SUMÁRIO
1. biografia 2. o escritor 3. a recepção crítica 4. bibliografia 5. poesias
11 12 17 22 27
i Resignada 28 ii Distraida 29 iii Na chuva 30 iv Malicioso 31 v No terreiro 32 vi No tempo dos cajus 33 vii O pinto 34 viii Malcriada 35 ix Ladrazinha 36 x Desconfiada 37 xi Nua, na sala 38 xii Em porangaba 39 xiii A aleluia 40 xiv Natal 41 xv Às ave marias 42 xvi Depois do banho 43 xvii A lavadeira 44 xviii Um desafio 45 xix Ao alexandre lopes 46 xx Boca do forno 47 xxi Aguaceiro 48 xxii Noivados 49 xxiii Contratados 50 xxiv A avozinha 51 xxv O maribondo 52 xxvi São joão 53 xxvii No lar 54 xxviii Descoberto 55
xxix Na escola 56 xxx O vermifugo… 57 xxxi Depois da ceia 58 xxxii O Mata-pasto 59 xxxiii A volta 60 xxxiv No tempo do mata-pasto 61 xxxv Lição de leitura 62 xxxvi Filhas do povo 63 xxxvii Professor!… 64 xxxviii Roubada 65 xxxix No samba 66 xl Na lagoa 67
6. poesias diversas
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Extasis 70 Desejos 71 Dores íntimas 73 Longe!… 74 Sono da virgem! 75 Expatriada 78 Devaneio 80 Cismas 81 A' *** 83 No cemitério 84 Vai casar 85 Relíquias 88 Saudade 89 Sempre… 90 A alguém 91 Fragmento 92 A' *** 93 Volta sempre… 94 Adeus a uma ave 96 Para um retrato 98 A' *** 99 A A. Bezerra. 101
X. DE CASTRO, O POETA DOS CROMOS Humberto de Araújo
Biografia Augusto Xavier de Castro nasceu em Fortaleza, no dia 30 de janeiro de 1858 e faleceu na mesma cidade em 30 de abril de 1895. Filho de José Xavier de Castro e Silva e Antonia Josephina de Castro, casado e pai de três filhos. De família pobre, não teve educação esmerada e começou a trabalhar muito cedo. Ingressou no funcionalismo público aos vinte anos, chegando, por méritos próprios, a diretor de seção do Tesouro Provincial. Na sua vida literária, o poeta que colaborou em vários jornais, foi membro do Clube Literário do Ceará e da Padaria Espiritual. X. de Castro também atuou como membro do movimento abolicionista, havendo alguns registros na imprensa sobre esse posicionamento. Em o Libertador (Ano I, n.º 9, 29 de maio de 1881, p. 2), em matéria sobre o Congresso Abolicionista ocorrido em Maranguape no dia 26 de maio de 1881, lê-se: (...) Recitaram bonitas poesias os nosso DD. Collegas 1.º e 2.º secretários da L. Cearense A. Bezerra e A. Martins: os Srs. X. de Castro (soberbo improviso escripto no trajecto do trem), A. Barbosa de Freitas e finalmente o Sr. João B. Perdigão de O. Todos os poetas e oradores eram applaudidos com frenetico enthusiasmo. No Libertador, n.º 12, de 24 de junho de 1881, na coluna “Página do Povo”, p. 4, temos texto datado de 26 de junho de 1881 —o que acreditamos ser um erro tipográfico, uma vez que a data mais provável do referido texto é 26 de maio, a data do Congresso Abolicionista de 11
Cromos Maranguape—, assinado por Arigó, com o título “Em Maranguape”: (…₎ Foi solemne o protesto da civilização contra as misérias do passado e o bello ideal do mundo moderno teve seus intérpretes na eloquencia de Frederico Borges, Antonio Bezerra, Lourenço Pessoa, Barboza de Freitas, Antonio Martins, Pedro Sombra, Xavier de Castro, perdigão e mais batalhadores intrepidos da formidável legião da Libertadora. Ainda no Libertador, n. 250, de 28 de novembro de 1884, na “Relação dos eleitores desta capital que votarão em 1.º Dezembro”, relação que consta de 561 eleitores, encontramos o nome de Augusto Xavier de Castro como um dos eleitores da 2.ª secção, que se localizava na Câmara Municipal. Nas edições seguintes o mesmo Libertador publica a relação dos funcionários públicos que votaram a favor dos escravagistas. O nome de X. de Castro não consta entre eles.
O Escritor O poeta dos Chromos, que tinha 36 anos na ocasião de sua entrada na Padaria Espiritual, encontrava-se na fase da iniciação, ou seja, na fase em que se luta com a geração anterior na busca por seu espaço de expressão. Seguindo a concepção de Ortega y Gasset, que divide a existência humana em cinco períodos - meninice (primeiros 15 anos), juventude (dos 15 aos 30 anos), iniciação (30 aos 45 anos) e fase do predomínio (dos 45 aos 60 12
X. de Castro para exemplificar a natureza heterogenia das produções intelectuais das diferentes gerações dos membros da Padaria Espiritual. Sobre essa perspectiva de divisão, Sânzio de Azevedo afirma: Segundo a divisão proposta por Ortega y Gasset, vemos que os nomes se distribuem dentro de três das cinco etapas já mencionadas. Assim, Antonio Bezerra e Luis Sá estariam na fase do predomínio (ou de gestão), sendo que Rodolfo Teófilo, Francisco Ferreira do Vale, X. de Castro, Jovino Guedes e José Carlos Júnior pertenceriam à fase de iniciação (ou de gestação), enquanto todos os demais (…) estariam em plena juventude. (Azevedo, 1983, p.81). X.de Castro, com o criptônimo de Bento Pesqueiro, faz parte do segundo momento da Padaria Espiritual que se reorganiza admitindo mais 14 sócios em 28 de Setembro de 1894. Sua contribuição ao O Pão começa no reaparecimento desse periódico em 1° de janeiro de 1895. Nesse O Pão de número 7, que deu continuidade à divulgação da produção intelectual dos padeiros e de outros escritores, X. de Castro divulga três de seus “Cromos” – poesias de tom realista, com notas acentuadas de regionalismo e comicidade. São eles: “Distrahida”, “Na casa de campo” e “Na chuva”, assina-os no final com seu nome verdadeiro, seguido do pseudônimo de Bento Padeiro. Na edição n° 8 vêm mais três cromos com algarismos romanos que indicam uma continuidade: IV – “Desconfiada...”, V – “O Pinto” e VI – “Ladrasinha”. 13
Cromos Continua essa seqüência de três cromos por periódico até o n° 15. O Pão de n.° 16, traz um comunicado de capa sobre a morte de X. de Castro ocorrida quinze dias antes e anuncia para o próximo número uma edição inteira em homenagem ao poeta dos cromos.
Figura 1: O Pão, n.º 16
O número 17 de O Pão é dedicado à memória de X. de Castro. Há textos em prosa e em verso dos padeiros, amigos e órgãos de imprensa. A República e o Diário do Ceará, contribuíram com quatro artigos. Lopes Filho, Waldemiro Cavalcanti, Antonio Sales, Sabino Ba14
X. de Castro tista, Arthur Theophilo, Rodolpho Theophilo, Roberto de Alencar, Antonio de Castro, Ulysses Bezerra, Francisco Ferreira do Valle, Luis Cesário, José Nava, Bruno de Saboya e J.B. de Sousa Forte também prestaram homenagens ao falecido poeta. Emocionados e ainda surpresos com a morte repentina, ressaltavam os traços de sua escrita, como o humor fino e nunca mordaz ou virulento, a observação sensível e ao mesmo tempo realista da vida cearense e sobretudo, a alegria e disposição positiva diante das dificuldades da vida. Um dos últimos poemas de Xavier de Castro, “Dôres Intimas”, encerra o tributo.
Figura 2: O Pão, n.º 17, em homenagem à X. de Castro
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Cromos O Pão de número 18 traz o poema romântico “Extasis”, de idealização da mulher. Nesse mesmo número, a coluna “Carteira”, escrita por Rodolpho Teophilo, informa que: entraram para o prelo os famosos versos de nosso malogrado colega X. de Castro […] as listas para assignaturas expostas nas livrarias e outros lugares foram cheias promptamente e com a maior espontaneidade, podendo considerar-se esgotada a edição que se pretendia tirar. O número 20 de O Pão retoma a publicação de outros cromos de X. de Castro usando a numeração que dá continuidade ao número 15 do período. São dois cromos: “A Volta” e “A Sogra”. Contudo, a publicação dos cromos no periódico se encerra nesse número. O anúncio da publicação e distribuição do livro Chromos do escritor X. de Castro está na coluna “A carteira” de O Pão de número 24 escrita por Lívio Barreto. Ele destaca, entre outros aspectos, os esforços de José Carlos Júnior, que se ocupou da edição, e a rápida venda de todos os exemplares em apenas 3 a 4 dias. Também informa que uma nova edição seria começada devido a grande aceitação. Ele diz: Esse fato, virgem em nossa terra e raríssimo em qualquer parte do Brasil, denota claramente a extrema sympatia e popularidade de que gosava Xavier de Castro. […] o autor de Chromos era um poeta essencialmente popular, tendo como fonte predileta de inspiração a vida do grande público em 16
X. de Castro todos os seus departamentos sociais – vida tão rica de episódios interessantes e curiosas cenas que sua pena simples e honesta transludava com uma graciosa e impressionante fidelidade para os seus versos. E ainda ressalta que como Bilac afirmou que Juvenal Galeno era o único poeta verdadeiramente popular do Brasil, tornava-se claro que Xavier de Castro era um poeta digno de igual fama. Nesse mesmo numero, na coluna “os quinze dias” há a notícia da apresentação oficial do livro na festa de batizado da filha de Bruno Jacy.
A Recepção Crítica Os comentários críticos acerca de seus escritos e de sua obra Chromos, organizada e publicada postumamente, são poucos. Em O Pão de número 26, há a crítica de Manuel Lobato em carta aberta a Sabino Batista de 25 de agosto de 1896. Nela, encontramos a percepção de X.de Castro já como um espírito nacional e espontâneo que não exagera na ordenação das rimas e ainda consegue pintar um quadro da vida cearense. Para defender essa naturalidade e simplicidade de criação literária, Manuel Lobato diz apoiar a opinião de Goethe de que a poesia deveria ser humana e social antes de tudo, e reforça a concepção de ultrapassado e piegas do romantismo. Lobato vê na poesia de X. de Castro uma precisão e concisão no estudo dos costumes, pois segundo ele: “Castro por diversas circunstâncias se me afigura um pintor: em primeiro porque só 17
Cromos descreve o que vê, servindo-se do local do acontecido, em segundo porque não perde as cores do que o impressiona e as traça como são, fazendo-nos palpitar as narinas, como se até o órgão do olfato tivesse inteiro conhecimento do que se descreve”. (O Pão n° 26, 1895. p.6). O crítico também aponta imperfeições de forma na poesia de Xavier, mas apressa-se a dizer que não o condena. Ele diz: “Mas se fôramos exigir sempre isso para um chromo à feição dos de Castro, era como se exigíssemos para todas as telas a mesma harmonia de cores, o mesmo azul tranqüilo de um céu extenso e silencioso […] e de resto, eu penso como Guy de Maupassant, no magistral prefácio de seu romance Pierre et Jean, que uma vez que nós nos ponhamos no papel de críticos, a nossa escola outra não é do que a adotada pelo autor que criticamos.” (Ibidem). Manuel Lobato acredita então que essas cenas naturais pintadas com versos ligeiros não poderiam estar à mercê das avaliações e exigências da poética moderna, que em sua concepção significa parnasianismo, já que a linguagem utilizada nos Chromos está a serviço da verdade da cena. Outra crítica,W ainda em O Pão, na página 06 do n.° 27 trata da resposta de uma crítica de Arthur Azevedo em O Paíz sobre os Chromos de Xavier de Castro. Antonio Sales, assinando como Moacir Jurema, é o autor dessa resposta crítica, a qual transcrevemos na integra: 18
X. de Castro Arthur Azevedo nas suas Palestras d’O Paíz referiu-se menos lisongeira, conquanto delicadamente, aos Chromos de X. de Castro. Increpem-me embora de suspeito, eu sempre direi ao Arthur que não estou de acordo com suas opiniões sobre esse livro. Deus me perdoe! mas até quer parecer-me que o Arthur escreveu de autiva. É possível que si o fino humorista d’O Paíz lesse com attenção (ou mesmo sem esta) os Chromos, não achasse graça, naturalidade e delicadeza nesses sonetilhos que são outras tantas pequeninas telas em que se copiam do natural scenas e episódios da vida cearense? Pois olha, Arthur de minh’alma, essas pequenas peças humorísticas e descriptivas a que o autor deu o título hoje genérico de Chromos – são o que há de mais legitimamente cearense. Não há ali um traço, nem um matiz que não seja authêntico. Podes dizer que o desenho não é correto, não é artístico, não é parnasiano, vá lá, não t’o contesto. O colorido porém é admiravelmente exacto e bem destribuido. X. de Castro não era um artista do verso bem o sei: mas era um observador sagaz e delicado, tendo esse dom pouco trivial de apanhar a nota frizante e característica de uma scena qualquer. E a essa qualidade deve elle o successo que obteve, successo real, comprovado não só pelo prompto esgotamento da edição como 19
Cromos pela soffreguidão com que foi lido o livro e commentado com emthusiasmo em todas as rodas. O que parece, Arthur, é que a tua longa permanência nessa grande capital estrangeirada e incaracterística embotou-se o gosto por esses produtos da poesia nativa, singela e desataviada de requififes parnasianos. Deve ser isso, porque eu, como provinciano e cabeça chata – de mais a mais – gosto doidamente dos Chromos.” (O Pão n° 27,1895.p.6). Essa posição crítica, inteligente e irônica, tem o mérito de mostrar a criação poética de X. de Castro nos seus matizes mais expressivos: é uma poesia realista com alma popular, que se aproxima da pintura pela sua observação sensível. Outros críticos, numa perspectiva mais atual dos estudos da literatura cearense, como Leonardo Mota e principalmente Sânzio de Azevedo, escreveram a respeito de X. de Castro e sua obra. Leonardo Mota em sua obra Sertão Alegre (1965) sobre a poesia e a linguagem do sertão nordestino, também ressalta a naturalidade descritiva e sem as amarras do rigor das formas da poesia do poeta dos Chromos. Transcrevendo os Chromos: “Rendas do Ceará”, “A Lavadeira”, “Aguaceiro”, “No Tempo dos Cajus”, “A Aleluia” e “Distrahida”, Leonardo Mota assim define o poeta cearense: “X. de Castro era um gracioso poeta, aquarelista de flagrantes sertanejos. Justifica-se pois, a evocação de seu nome num livro sobre o sertão alegre.” (mota, 1965, p.212.). Sânzio de Azevedo aponta como principal característica dos escritos de X. de Castro a poesia realista que 20
X. de Castro reproduz a realidade que o circunda. Mesmo X. de Castro tendo composto versos indiscutivelmente românticos no inicio de sua escrita nos anos 1870. Sânzio diz acerca dos Chromos que: X. de Castro situa-se perfeitamente dentro daquela tendência que Péricles Eugênio da Silva Ramos chamou de Realismo Agreste, e que, tendo como principal representante no Brasil o poeta B. Lopes teve sua origem na influência de Gonçalves Crespo, conjugada a certa linha ingenuamente campesina de alguns de nossos românticos. X. de Castro explora quase sempre os aspectos anedóticos, mas o que ressalva acima de tudo é a nota regionalista: tanto as cenas como a linguagem são puramente cearenses.(Azevedo, 1982. pp. 96-97). Durante nossos estudos sobre o poeta no mestrado, sob a orientação do mesmo Sânzio de Azevedo, defendemos que se chamem os cromos de X. de Castro simplesmente de realistas, uma vez que as cenas neles retratadas podem ocorrer tanto em cenários urbanos quanto rurais.
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Cromos
Bibliografia Alves, Humberto. “Retratos Poéticos do Ceará ao fim do século xx: Os Cromos de X. de Castro”. Comunicação apresentada no iii Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários. Fortaleza, 2006 Azevedo, Sânzio de. Literatura Cearense. Fortaleza: Academia Cearense de Letras,1976. . Aspetos da Literatura Cearense. Fortaleza: uefc / proed / acl, 1982. . A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1983. o pão…da Padaria Espiritual. Fortaleza, Edições ufc / Academia Cearense de Letras / Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982. 36 n. em i volume. mota, Leonardo. Sertão Alegre: Poesia e Linguagem do Sertão Nordestino. Fortaleza, Imprensa Universidade do Ceará, 1965. Castro, X. de. Chromos. Fortaleza: Padaria Espitital, 1895. (Bibliotheca da “Padaria Espiritual”)
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X. DE CASTRO À memória de um dos seus mais caros consócios vem a Padaria Espiritual render parca homenagem com a publicação deste livrinho, um dos mais preciosos da sua Biblioteca, já pelo sabor literário, já como lembrança de um excelente colega que cedo deixou vazio o seu lugar em nossas reuniões. Da edição, que no 30.º dia do passamento lhe consagrou o nosso órgão, reproduzimos os ligeiros dados biográficos que se seguem e que relatam menos a vida do que o belo coração o do nosso colega: «Augusto Xavier de Castro, filho legítimo de José Xavier de Castro e Silva e D. Antônia Josefina de Castro, nasceu nessa cidade a 30 de janeiro de 1858. A pobreza de seus pais, que já lhe era um embaraço nos estudos, para os quais manifestava notável aptidão, veio chamá-lo muito cedo ao cuidado de prover a subsistência, não lhe permitindo mais do que o preparo elementar, apenas suficiente para o habilitar a uma colocação no comércio ou no funcionalismo. «Em fins de dezembro de 1878 foi admitido como colaborador na secretaria do governo, não nos sendo possível, apesar de todas as pesquisas, saber a data do ato que lhe deu tal colocação. «Mais tarde, submetendo-se a concurso, obteve o lugar de praticante no tesouro provincial, entrando a exercê-lo no dia 1.º de setembro de 1879. «Nomeado 3.º escriturário em 25 de janeiro de 1880, 2.º a 9 de março de 1881, 1.º a 15 de outubro de 1889 e diretor de Seção a 28 de setembro de 1891, percorre assim todos os graus hierárquicos na repartição; cabendo-lhe ainda ultimamente substituir por vezes o diretor geral de Secretaria. «Releva mencionar que todos esses acessos, Xavier de Castro os obteve pelo seu merecimento próprio e sob administrações de vários matizes políticos, pois nunca se afeiçoara es23
Cromos treitamente a esta ou aquela facção partidária para lhe prestar incondicionalmente sua adesão. «A estima que mereceu a todos os seus chefes e colegas, dizem-na de sobra o pesar profundo que sua morte despertou e o fato de não ter deixado um desafeto… «Seu humor fino e pronto, apanhado com uma rara facilidade para o lado cômico das cousas, fazia-se notar principalmente pela delicadeza, nunca ferindo nunca ofendendo. «Diziam seus amigos que X. de Castro, com um gracejo, seduzia e cativava a própria vítima do gracejo. «E esse humor que se lhe notava na palestra manifestou-se também cedo nas suas composições poéticas. Foram suas peças humorísticas que primeiro o revelaram como poeta. «Mais tarde ele atirou ao público algumas composições líricas de um cunho mais subjetivo, as quais, embora não sejam medíocres, nada lhe acrescentaram à reputação que as poesias humorísticas lhe haviam alcançado. «Com o tempo, a sua inspiração ia-se tornando mais firme e os Cromos, que ele compunha e ia de tempos em tempos corrigindo e melhorando, bastariam por si só para sagrar um poeta cheio de originalidade, que aliava em suas composições um humorismo cintilante a um espírito lucidamente observador e uma delicada sensibilidade. «Pouco a pouco os diferentes aspectos da vida cearense iam sendo apanhados nos Cromos com uma rara fidelidade e se a morte o não viesse colher tão cedo, a coleção viria a ser um caleidoscópio eminente poético dos nossos costumes. «Um dos maiores merecimentos do nosso poeta foi não ter se deixado impulsionar por fórmulas literárias mais ou menos em moda, e ter tido força para conservar a sua individualidade artística.» O presente volume não é mais do que uma seleção feita no acervo imenso das composições poéticas do nosso amigo, e nesta seleção deixamo-nos guiar principalente pelo critério do próprio 24
X. de Castro poeta, respeitando quanto possível as suas preferências. Seria impossível reunir as obras completas de Xavier de Castro, a maior parte das quais foram publicadas sem assinatura, ou com pseudônimos vários e algumas até assinadas por outros. Com uma índole de verdadeiro boêmio e uma excessiva modéstia ele desperdiçava o seu talento em assuntos medíocres, versejando a todo propósito, barateando-se, como inconsciente das suas raras aptidões, em qualquer jornaleco ou pasquim para que solicitavam sua colaboração, chegando a rimar não poucas vezes dezenas de quadras para anúncios de loja de modas ou mercearia, boletins carnavalescos, homenagens a estrelas de circos, testamento de Judas ou sortes de S. João. Com a mesma facilidade com que improvisava uma sátira carnavalesca ou louvava um artista equestre, alinhava hendecassílabos comemorando a morte de um cidadão eminente, o aniversário de uma criança ou uma festividade religiosa. A abolição da escravatura não podia deixar de fazer vibrar o seu grande coração. Achou-se na falange ardente e gloriosa dos abolicionistas cearenses e cada novo triunfo alcançado pela generosa propaganda lhe arrancava um hino entusiástico e eletrizante. Ultimamente a pujante agremiação da Padaria, que tem feito reviver no Ceará o gosto literário, o teve sempre como um dos seus mais esforçados e entusiásticos mantenedores, e as instâncias dos padeiros começara pouco tempo antes de morrer uma seleção e revisão de suas obras para o volume que hoje vê a luz em condições tão diferentes do que esperávamos. Bem quiséramos dar aqui ao menos uma amostra da sua prosa melodiosa e ritmada1, pois Xavier era tão bom prosador como poeta.
1 Em nossa pesquisa não foi possível localizar vestígios dessa prosa. N.E.
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Cromos A urgência porém de dar publicidade a este volume, destinado a trazer um auxílio às pessoas, que sua morte, ocorrida a 30 de abril deste ano, deixou quase sem recursos, obriga-nos a dar-lhe proporções menores do que desejávamos. Fique nele ao menos consignado o testemunho da saudade que nos deixou. Fortaleza, 5 de setembro de 1895.
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Cromos
I
resignada2 A casa tem a feitura D’uma cegonha cansada, D’asas abertas, tostada, Do sol ao bafo, à quentura! N’uma escora se segura Velha a frente esburacada; Do mar a vaga anilada Perto, bem perto murmura! É de tarde. O sol é posto. Maria, — voltado o rosto P’r’as ondas sempre em fragor, — — Espera, à porta sentada, Que volte a alegre jangada Do marido, — o pescador.
2 Publicado n’A República, com data de 10 de outubro de 1894, e declamado na sessão da Padaria Espiritual de 12 de outubro do mesmo ano.
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X. de Castro
II
distraida3 N’uma esteirinha assentada Branca a velha, no terreiro, Toca um chorado faceiro Nos bilros d’alva almofada.. Não falta mais quase nada P’ra levantar todo inteiro O papelão, qu’é o primeiro D’uma renda encomendada. Leva os óc’los à cabeça; E, como d’eles se esqueça, Diz: — Meu Deus! Inda mais esta! Perdi meus oc’los! — Chiquinha, Procura-os aqui... — Dindinha, Seus oc’los estão na testa!…
3 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 7, de 1.º de janeiro de 1895, trazia no terceiro verso o verbo “rufar” no lugar de “tocar” e trazia no primeiro verso “sentada” e não “assentada”. Estas mudanças, como algumas outras que encontraremos em outros cromos, tornam a dicção do poema mais próxima da fala comum do dia-a-dia.
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Cromos
iii na chuva4 — Vem voltando do Mercado, Range os dentes... franze a cara… Traz n’uma pequena vara Pedro um peixe pendurado. Vem vermelho… vem queimado… De dois em dois passos para… E às gargalhadas dispara, Dançando a força um chorado!… Sai-lhe da calça a camisa, Cai-lhe o chapéu, ele o pisa, Forceja em vão p’ra o pegar!… E diz: — Que diabo me empurra? Não há vento!… O mar não urra! Porque estou eu a dançar?
4 Publicado com o número ii, em O Pão, num. 7; Ano ii; 1.º de janeiro de 1895; p. 3, este cromo tinha como quarto verso “um peixinho pendurado”. X. de Castro modifica o verso dando ao pescador um nome, Pedro, santo padroeiro dos pescadores. Ao nomear o personagem, o poeta acrescenta mais personalidade e calor humano ao poema.
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X. de Castro
iv malicioso5 Da casinha ali ao lado Reverdeja a mongubeira; Brinca, à sombra, n’uma esteira Nenê já todo rajado. Outro, nos galhos trepado — O Tonho — esquece a canseira De pegar a lavandeira, No ninho lá pendurado. Quando vê que nos banquinhos A rir, conversam, sozinhos O pai e a mãe… mais ninguém… Ri-se o Tonho e grita: — Ai! ai! Muito bom! Heim, seu papai?! Namorando c’a mamãe?!
5 Publicado com o número xxiv em O Pão, num. 15; Ano ii; 1.º de maio de 1895; p. 4, sob o título “Ao Fernando Weyne”. Chama-nos a atenção neste cromo o fato de que um poeta que se preocupa em retratar a linguagem cearense rime “ninguém” (verso 11) com “mamãe” (verso 14), lusitanismo também encontrado em outro poeta da Padaria Espiritual, Lívio Barreto.
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Cromos
v no terreiro4 Há um pombal ou poleiro Bem pouco além da cozinha; Diva — a morena — e Julinha — Loira de olhar feiticeiro — Quando d’aurora o primeiro Raio d’elas se avizinha, Sai uma da camarinha, Já a outra está no terreiro… Laura, consigo baixinho Fala, beijando um pombinho De plumagem meio nu… Diva — a mimosa tapuia — Balança o milho na cuia Gritando: — Pombú! Pombú!…
5 Publicado com o número ii, em O Pão, num. 7; Ano ii; 1.º de janeiro de 1895; p. 3, sob o título “Na casa de campo”.
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X. de Castro
vi no tempo dos cajus5 No terreiro bem varrido Fumega acesa coivara; Pedro tangendo uma vara, Mexe o braseiro incendido Das castanhas com ruído Fervente azeite dispara; Queima as pestanas e a cara De um pequerrucho garrido, Corre o menino chorando; Rosa, os cabelos puxando, Diz: Mãe de Deus, ajudai-me! Anda!... Vem cá, danadinho! Arre! Bem feito, diabinho! Vem cá... meu Deus perdoai-me!
5 Publicado com o número xii, em O Pão, num. 10; Ano ii; 15 de fevereiro de 1895; p. 3. Estranhamente, X. de Castro, sempre tão cioso de retratar a linguagem popular, substituiu no verso 13 o vocábulo original da versão d’O Pão, “cãozinho”, de sabor muito mais popular, por “diabinho”, na versão final.
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Cromos
vii o pinto6 A casa é branca: o terreiro Varre-se todo à tardinha; Bem junto à romeira e à pinha Pequeno grupo ligeiro Folga, sorrindo fagueiro, O canivetim; — Joaninha Sai correndo, e da galinha Pisa o pintinho faceiro. A velha avó, que sentada Troca os bilros na almofada, Ergue os oc’los e diz — Figa! Criaturinha traquina! Passa pr’a dentro, menina! Sai d’aí, não sei que diga!
6 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 8, de 15 de janeiro de 1895. O “canivetim” citado no sexto verso é uma brincadeira infantil que remonta aos tempos coloniais e que ainda hoje é brincada emalguns estados, às vezes com o nome de Pinicainho ou Vassourinha. Para uma descrição dessa brincadeira, ver melo, Veríssimo de. Folclore infantil: acalantos, parlendas, adivinhas, jogos populares, cantigas de roda. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1985, p. 155-156, e ainda Luís, Edmundo. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Brasília-df: Senado Federal, 2000, p.299.
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X. de Castro
viii malcriada Tem onze anos a Stela, Loura, franzina, engraçada; Passa as tardes debruçada No peitoril da janela. Olham todos para ela, Vendo-a sempre penteada, Tendo na trança dourada Bonita rosa amarela. Um rapazito que passa Lhe pergunta, a fazer graça: — Quantos noivos tens? Nenhum?! Ela esconde o rosto e cora; Bota linguinha de fora, Faz certo jeito e diz: — Um…
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ix ladrazinha7 — É cega quase de guia! Nos anos muito avançada; Alva, magra e descorada, Bate algodão, limpa e fia! Sob o alpendre todo dia Vê-se branca rede armada, N’ela a velha está deitada Desde a aurora à Ave-Maria. Cochila; encosta a cabeça… Vem Lúcia — neta travessa — Pega o saco que a avó tem… A velha acorda e apalpando Agarra a Lúcia, gritando: — Bota p’ra aqui meu vintém!
7 Publicado originalmente n’O
Pão, n. º 8, de 15 de janeiro de 1895. 36
X. de Castro
x desconfiada8 É domingo. A tarde encanta! Ouvem-se uns sons de guitarra… — É o pescador Manoel Barra Que ali no terreiro canta. A casinha se levanta N’areia onde a praia esbarra. Agora Inês desamarra Os caranguejos p’ra a janta. Chega o vizinho Palmeira, Tira um níquel d’algibeira: — Olha! — diz p’r’a Mariquinha… Ela vai… toma o presente… E esconde o rostinho quente Na fralda da camisinha…
8 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 8, de 15 de janeiro de 1895... 37
Cromos
xi nua, na sala9 A Maricota é menina De sete anos completos; É tudo, — a graça, os afetos Da mamãe, D. Paulina. No quintal está despida; N’uma bacia de estanho Mexendo n’água, entretida, Falando só, toma banho. Chega Luís, o irmãozinho, Diz: — Me deixa um banhozinho Cotinha, d’ess’água tua… Ela à sala vem gritando: — Papai, Nenê’stá espiando P’r’a gente no banho, nua!…
9 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 13, de 1.º de abril de 1895. 38
X. de Castro
xii em porangaba10 Para o trem. Da vilazinha Verde, risonha, engraçada. Vem para a beira da Estrada Toda a gente, ali vizinha. Começa na férrea linha Por gritar a meninada: — E olha a castanha assada! É nova, é boa, é fresquinha! — Dé cá, diz um passageiro E enquanto puxa o dinheiro, Parte o trem já da Estação… Corre, e o menino aturdido Grita e brada enraivecido: — Paga as castanhas, ladrão!
10 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 13, de 1.º de abril de 1895. A risonha vila de Porangaba é, hoje, o bairro de Parangaba, em Fortaleza. No começo do primeiro terceto temos o registro da expressão “Dé cá”, com o som aberto no E, como era típico na linguagem dos nossos avós .
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Cromos
xiii a aleluia11 Nos ares brada o foguete! Repicam todos os sinos! Rola o judas no cacete! Que algazarra entre os meninos! Uns rasgam-lhe as calças finas E vão-lhe o corpo arrastando; Outros tiram-lhe as botinas, E vão-lhe o fraque arrancando... Uma mocinha da casa, Vendo que tudo se arrasa, Por acolá se deslisa, Gritando: — Mamãe, acuda! Que esta casaca do juda Papai diz qu’inda precisa!
11 Publicado originalmente no Libertador, n.º 92, de 20 de abril de 1889, com o título “Chromo”, com várias modificações, .e também n’O Pão, n. º 13, de 1.º de abril de 1895.
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X. de Castro
xiv natal É hoje noite de festa, Na casa reina a alegria, Desde quase meio dia Que p’r’arrumar nada resta! Diz Rosa: Julia, me empresta Teu fichu. — Corre, Maria! Vamos p’r’a missa. Anda… Espia Se o meu cocozinho presta... Veste o corpo de cambraia, Aperta o cordão da saia… Anda, mulher! com quem falo?!… Passa banha na pastinha… Segura bem essa anquinha… — Tu olha o bico do galo!…12
12 Essa referência ao bico do galo, que nos parece hoje obscura, é explicada por Sânzio de Azevedo ao comentar o poema de 1893 “A missa do galo”, de Lopes Filho. O pesquisador cearense explica a referência citando uma passagem do romance O Paroara, de Rodolfo Teófilo, na qual se afirma que para os sertanejos quem fosse à missa do Natal em roupas usadas seria beliscado pelo galo (ver Azevedo, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1996, p. 174).
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Cromos
xv às ave marias13 É sem reboco a casinha De palha, no alto erguida; D’ali se ouve na ermida Toda inteira a ladainha. Tomba o sol. É já tardinha. Sentada — a esteira estendida — Dá cafunés, entretida, A velha avó na netinha. Toca o sino a — Ave-Maria — Ela diz: — Ouves, Lilia?… Vamos acender a luz… Põe as mãozinhas iguais, Diz: — Louvada sejais, Oh! doce Mãe de Jesus.
13 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 9, de 1.º de fevereiro de 1895. 42
X. de Castro
xvi depois do banho14 O sol há pouco surgira; Ela vinha do quintal!… Assustou-se mal o vira E ocultou-se no avental!… De rosa, de seda e neve Seu colo d’alvo frescor Molhadinho assim de leve… — Era em neblinas a flor… Ele lhe disse: — Que alvura… Nunca vi manhã mais pura… Tanto Amor… mais luz n’Aurora! Ela, nas murtas pisando, Lhe disse, rindo e corando: — Nem tem graça!… Vá-se embora!.
14 Publicado n’O Pão, n.º 9, de 1.º de fevereiro de 1895, e anteriormente no Libertador de 18 de janeiro de 1889 com modificações de pouca monta.
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Cromos
xvii a lavadeira15 Iva é moça: vem da fonte Trazendo a roupa lavada; Abre a trouxa, ali sentada Da cozinha bem defronte. Separa de monte em monte Camisa e saia arrendada, Depois diz: — siá D. Amada, Aqui está sua roupa… conte. Enquanto contam-se as peças, O preto Tomás, às pressas, Beija Iva; ela diz: — bruto!! — Tu deixa de atrevimento… Moleque, tem fundamento… Sai d’aí, negro! — charuto!
15 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 10, de 15 de fevereiro de 1895 44
X. de Castro
xviii um desafio16 A noite lá fora encanta! A lua é clara que cega! D’uma esquina na bodega Zé Soares pinta a manta!17 Sapateia-se, ri-se e canta; Um outro a ele se pega N’um desafio que chega A uma luta que espanta! Grita o homem da guitarra Que no chão quebrada esbarra: — Meu amo, eu d’aqui não saio! — Por quê? diz o bodegueiro. — Meu pinho custou dinheiro… Vou queixar-me ao seu Sampaio18.
16 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 10, de 15 de fevereiro de 1895. 17 Pinta o sete. 18 Trata-se do delegado de polícia Major Pedro Sampaio, que era assíduo freqüentador das fornadas da Padaria Espiritual e chamado por Antônio Sales de “o terror do peixe frito e da boa pinga cajuótica”
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Cromos
xix ao alexandre lopes19 A casa é toda alegria Tudo sorri… Que prazer! Começa a Dona a fazer Bolos, doces, aletria. A meninada anuncia A festa que vai haver… Cantam seis; um a correr Cai, mas ri-se… Que folia! Alexandre vem chegando: Beijos e abraços vão dando No seu papai que anos faz; « — Papagaio do sertão, « — Teu senhor é capitão…» Diz uma voz lá por trás.
19 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 11, de 1.º de março de 1895. 46
X. de Castro
xx boca do forno O luar dá na parede Que alveja, alveja demais; No alpendre, em macia rede, Canta o fadinho um rapaz. Divertem, na sala, à bisca Velhas e moças; por trás Espreita o jogo a Francisca, Dizendo: — Corta de ás!… Lá fora, doidos, traquinas, Os meninos e as meninas Vão uns e outros em torno D’um, que, sentado n’areia, Junta flores a mão cheia, Gritando: — Boca de forno!
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Cromos
xxi aguaceiro20 Cai a chuva. Em casa tudo Revela grande alegria, Menos o velho, que chia Com seu reumatismo agudo. De semblante carrancudo Põe-se a velha em gritaria, Dizendo: — Corre, Maria!… Oh! Que pé-d’agua barbudo! Corre, negra! Anda, ronceira! Bota a jarra na goteira, Tira da chuva o pilão!… — Ora!... A gente assim molhada!… — Tira essa roupa, lesada! Fica só de cabeção21!…
20 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 11, de 1.º de março de 1895. 21 Espécie de camisa longa que as mulheres utilizavam como roupa íntima.
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X. de Castro
xxii noivados22 No branco oitão da casinha Ao pé do outeiro encravada, Se entretém a meninada Brincando alegre, à tardinha Fez-se linda capelinha; No altar, a santa adorada É a bonequinha aloirada De uma filha da vizinha. Os noivos — Zeca e Lilica — Já se casaram. Repica O sino — um ferro maciço! Quebram de Lica a boneca! Ela chora; diz-lhe o Zeca: — Ora, amassou-se com isso?!…
22 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 15, de 1.º de maio de 1895 49
Cromos
xxiii contratados23 Ela agora foi pedida Para em Agosto casar-se, E desde logo pagar-se Terna promessa devida. Ao vê-la já prometida Vai o noivo retirar-se… Mas d’ela ao aproximar-se Sente-a triste… comovida!… Diz-lhe então: — Tens pena, filha, De abandonar a família?… Responde ela, com ardil: Ah! meu Deus, fazei-me um gosto… Permiti que o mês de Agosto Caia este ano em Abril…
23 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 15, de 1.º de maio de 1895. 50
X. de Castro
xxiv a avozinha24 Dos velhos filhos e netos Vão todos de manhãzinha Se chegando à camarinha, Alvos, limpinhos corretos. Cada qual com mais afetos Abraça e beija a avozinha, Magra, corcunda, velhinha De noventa anos completos Um d’eles — o mais vadio — Quebra o fuso, espalha o fio, Destampa a caixa, abre um saco; A velha vê, diz baixinho: — Ai! sai p’ra fora, diabinho! Lá derramou meu tabaco!
24 Publicado originalmente n’O
Pão, n. º 14, de 15 de abril de 1895. 51
Cromos
xxv o maribondo25 A correr pelo terreiro Vão eles todos os dias Antes das Ave-Marias, E cada qual mais ligeiro Sentar-se de um castanheiro Sob as ramagens sombrias, Ouvindo as graças sadias Do Zezinho, o mais brejeiro. N’árvore, a Chica trepada Chora! — Ardente ferroada Deu-lhe uma vespa na mão! A mãe ouve… corre e grita: — Que diabo é isso, Chiquita?! Desce p’ra baixo, machão!
25 Publicado originalmente n’O
Pão, n. º 14, de 15 de abril de 1895. 52
X. de Castro
xxvi são joão Ouvem-se os tons afinados De delicada viola; Risonho par caracola Do baião nos requebrados… Entre toros esbrasados O mamoeiro se imola… Na sala o perú26 consola D’aguardente os namorados; Pedro, a fogueira passando, Grita, a Joaninha abraçando; — Viva nós! minha comadre! Por outro lado vem Rita, Que aperta Lucas e grita: — Viva São João! meu compadre!
26 Mistura de aguardente e caldo de cana. Quanto ao ritual de tornar-se compadre de fogueira, ver mota, Leonardo. Sertão Alegre. Fortaleza: abc Editora, 2002, p. 231.
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Cromos
xxvii no lar Maria, a um canto da sala, Com esmero o corte apura De encomendada costura, Cantarola, ri-se e fala. De vez em quando resvala Terno olhar sobre a feitura D’um anjo, loura criatura Que a sorrir a um lado embala. Alice brinca na esteira, Cai, e Maria ligeira Corre e diz: — Ai!… Foi aquele?… — Quem foi?… Mentira, filhinha!… Foi o chão?… Cale a boquinha… Deixe estar… Pá!… Eu dei n’ele.
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X. de Castro
xxviii descoberto27 Sábado à tarde, — da obra Chega Antão, puxa a tripeça, Senta-se à porta, e começa Por contar da feria a sobra… Marta não vê que manobra Faz-se antes qu’ela apareça! Antão descobre a cabeça, Sob o gorro uns cobres dobra… Diz, depois: — Velha, vem cá! Esta semana foi má… Ganhei pouco!… Está… É teu! — Só! — diz Marta. Então Zezinho Grita: — Mamãe, o paizinho Guardou cédra no chapéu!
27 Recitado na sessão da Padaria Espiritual de 12 de outubro de 1894.
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Cromos
xxix na escola A professora sentou-se, Reforma agora um casaco, Que apesar de ser um saco28, Quando o vestiu, estoirou-se! Como preciso lhe fosse Por nas ombreiras um taco, Corta um forro… o pano é fraco… Busca outro… levantou-se… Vai lá dentro; um dos meninos Da tal peça os crivos29 finos Ensopa na tinta, ali! Chorando ajunta o tinteiro, Gritando p’r’um companheiro: — Cuma-chama, acode aqui!
28 Largo e mal feito 29 Bordados.
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X. de Castro
xxx o vermifugo… É muito cedo. Da Aurora Mal brilha a luz no horizonte, Já Rosa trouxe da fonte Seu pote d’água; e agora, Na cozinha, onde vapora Negra chaleira, — defronte, Ela curva alegre a fronte, Sopra o fogo e sem demora Coa o café; apressada Vai, acorda a meninada, Que medicar é preciso… Um toma a xícara e prova… Cospe e grita à irmã mais nova: — Nenê, tem olho de riso!…
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Cromos
xxxi depois da ceia30 Agora mesmo, onze e meia, Bate o sino na capela; Na casa apaga-se a vela, Fica acesa uma candeia. Sobre um banco saboreia Uns restos de cabidela Mestre Luiz, cuja goela De bom vinho encheu na ceia… Ergue-se, após, e tombando Da sogra a rede embalando Quebra a corda nova e forte! Grita a velha, em tom irado: Sae d’aqui, arrenegado! Te desconjuro, sem sorte!
30 Publicado originalmente n’O
Pão, n.º 20, de 15 de julho de 1895. 58
X. de Castro
xxxii o mata-pasto31 Ao delegado pedro sampaio De azul-escuro o horizonte Rapidamente se veste; D’oiro o luzeiro celeste Nas névoas esconde a fronte! As flores, o vale e o monte Varre sorrindo o Nordeste, Da casa as palhas investe, Remove as folhas da fonte. Cai a chuva. As raparigas, Lembrando queixas antigas, Gritam: — Lá vem!… É o Inverno! — Em breve o campo está basto Do maldito mata-pasto!… — Lá vamos nós p’r’esse inferno!
31 Publicado originalmente n’O Pão, n.º 14, de 15 de abril de 1895. Descobrimos a partir de uma modinha de Ramos Cotôco, chamada “Matapasto”, que na época em que o cromo e a modinha foram escritos, a polícia prendia aqueles que encontrava vagando à noite pelas ruas da cidade e os levava pela manhã para arrancar o mata-pasto, o que justifica o cromo ser oferecido ao delegado da cidade…
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Cromos
xxxiii a volta32 Volta Anastácio da caça, Traz preá, mocó, jacu, Inda o sol não vem bem nu Da matutina fumaça Toda a família o abraça E lhe rodeia o uru33, Que enraivecido tatu Estrebuchando espedaça!… Nenê, criança de peito, Ouve aquele som desfeito, Quer chorar… faz um beicinho… Marta, sustendo-a no braço, Desce as rendas do regaço, Beija-a e diz: — ‘stá seu peitinho…
32 Publicado originalmente n’O 33 Cesto de palha de carnaúba.
Pão, n.º 20, de 15 de junho de 1895. 60
X. de Castro
xxxiv no tempo do mata-pasto A criadinha da casa Tem quinze anos apenas, Anda por ela uma asa Caindo, quebrando as penas. Dona Maria, à bodega Ontem mandou-a cedinho Dizendo: — Felícia pega: Vai comprar banha e toucinho. Já lá no beco a esperava Seu Pedro — a asa que andava Por ela pensa e de rasto. E a velha espera a Felícia Dizendo: — Est’hora a polícia Levou-a p’ra o mata-pasto.
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Cromos
xxxv lição de leitura É já tarde. É quase um’hora; N’uma algazarra infernada Fala, grita a meninada, Um lê, um ri-se, outro chora, Toca a campa a professora E com a voz meio enfezada Chama a classe adiantada P’ra as lições tomar agora. Maria, Sabina lendo, Soletra — coco — dizendo, Em vez de — coco, — cocó. Salta a mestra e diz: — Sabina! Esta palavra, menina, Não tem carrego no — ó.
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X. de Castro
xxxvi filhas do povo Cinco da tarde. Na igreja Canta-se o — Mês de Maria — Nas portas da Sacristia Riem uns… outro moteja… Em curiosa peleja Também no adro porfia Linda moça que os espia Por entre o leque que beija… No ouvido d’outra murmura: — Teu noivo é aquela figura!... Credo! É fino cuma-gaita! — E o teu?… aquilo é lá cara?!… — Não é?!… É um anjo; repara… Aquele, sim, é que é — baita!
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Cromos
xxxvii professor!… Chama um aluno às licções O Mestre régio da Vila, Pega o Camões, mas vacila… Busca um livro de Orações. D’entre os salmos e canções Uma estrofe o Mestre fila Enxuga o nariz, que estila… E diz com rijos pulmões: — «Deus é Rei dos outros Reis!» — Qual é o sujeito dos três? — Sujeito? — É Rei, professor. — Qual lá Rei! Leia direito! — Você não vê que o sujeito — Menino, é Nosso Senhor?
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X. de Castro
xxxviii roubada Há muito já na casinha Profundo silêncio habita, Da vela que mal crepita Nada mais resta, nadinha. No quintal, junto à cozinha, Ronca um porco, um pato grita, Um galo as asas agita, Có, có, có! Faz a galinha, A dona, velha senhora, Pula da rede e lá fora, Revista todo o cercado; E ao ver o poleiro extinto, Diz: — Malvado! Nem um pinto! — Deus te ajude, excomungado!
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Cromos
xxxix no samba34 O violão ri-se e geme! Que belo o terreiro é!… Da morena o lábio treme Cantando alegre o crochet. Mestre-Gino se levanta, Vem of ’recer aluá, Dizendo: — menina, canta Aquela do sabiá. Solta a goela a rapariga, E um negro, em rija cantiga, Grita de um lado: — Aguenta! E então a rapaziada Bate palma, em gargalhada, Até que a prima35 rebenta.
34 Publicada originalmente sob o título “Chromo” no Libertador, n.º 250, de 31 de outubro de 1889, p. 2. 35 Corda mais fina do violão.
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X. de Castro
xl na lagoa Cobrem folhas de palmeiras A casinha alegre e boa, Verdejam de lado, à-toa, As canas, e as bananeiras; Os meninos, às carreiras Com a jaçanã que lá voa, Saltam nus pela lagoa Horas e horas inteiras! Um mergulha, outro aparece Mais longe, onde o junco cresce, Gritando: — Galinha gorda36!… Ouve o velho; grita e ralha: — Salta p’ra fora , canalha!… Rosa, me traz uma corda…
36 Brincadeira que consiste em um diálogo tradicional, do tipo “Galinha gorda! / Gorda é ela! / Vamos comê-la? / Pois bumba nela!”, após o que um dos brincantes, denominado de mestre, atira na água algum objeto, normalmente uma pedra, atrás da qual os outros meninos mergulham; o que a encontra torna-se o mestre da vez. Ver melo, Veríssimo de. Folclore infantil: acalantos, parlendas, adivinhas, jogos populares, cantigas de roda. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1985, p. 140-141.
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Cromos
extasis37 Essa cabeça loira e perfumada, Cheia de luz e sonhos e quimeras, Inda mais que uma Santa, mais amada, Entretecida assim de primaveras, — Lembra a estátua do Amor, alva, adorada, Cismando no jardim, presa nas heras. Essa cabeça, que o luar de agora, Ontem, rindo, parece que a beijava E dir-se-ia um raio que apontava Da luz divina de uma estranha aurora… Mais bela do que o Céu quando a luz flava38 Pelos espaços oiro e rosa chora, — Como que a sinto repoisar n’est’hora Sobre o meu coração… Perdão!… Sonhava Que estavas no jardim, presa nas heras, Como a estátua do Amor, alva, adorada, Entretecida, assim, de primaveras… Inda mais que uma Santa, mais amada! Resplendendo de sonhos e quimeras Essa cabeça loira e perfumada…
37 Publicado n’O Pão, n.º 18; Ano ii; 15 de junho de 1895. 38 Que tem a cor do trigo maduro, ou do ouro; louro, fulvo, dourado.
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X. de Castro
desejos39 Eu sinto, se te ouço, o coração tremer-me!… Parece que minh’alma se esvai quando te vejo… Ao teu olhar inquieto jmais posso conter-me… Rebenta-se em meu peito a vaga do desejo De amar-te, de querer-te e de te ver querer-me… E o hálito sorver-te n’um prolongado beijo. Na concha cor de rosa que os risos descortinam, — De pérolas gravadas em bagos de romãs, Aonde tens, às vezes, uns gestos que alucinam… De tons acetinados de estrelas e manhãs; Tu soltas a sorrir as melodias santas, Que o lábio apaixonado soletra em vivo ardor. Eu sei… tu és criança… nas ilusões te encantas. Não voes, borboleta, aos páramos da dor…
39 Este poema é grafado em alexandrinos espanhóis, como era típico do Romantismo.
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Cromos
Eu volto a serenar a vaga do desejo De amar-te, de querer-te e de te ver querer-me, Mas, deixa-me pousar na tua fronte um beijo,Que ao teu olhar inquieto jamais posso conter-me. Parece que minh’alma se esvai quando te vejo E sinto, se te ouço, o coração tremer-me…
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X. de Castro
dores íntimas Nunca poder falar-te em meus amores!… Nas manhãs e perfumes, céus e noivos!… Nunca poder contar-te as minhas dores, Tristes como os ciprestes, como goivos!… Ter que morrer te olhando e toda est’alma Sentir que ao coração me vai fugindo… Ter que sorrir-te e olhar, como se calma Fosse a vida que a dor vai consumindo… Suplício eterno!… Embora nos meus sonhos Veja-te noiva… os lábios ter risonhos, Salpicados de per’las e diamantes… — Sinto um a um feridos meus desejos!… Ah! não nasceram para nós os beijos!… Antes fôssemos mortos!… Antes!… Antes!…
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Cromos
longe!… Voa, minh’alma, voa!… Além, distante, Longe, bem longe!… Vai onde ela habita Contar-lhe triste, amargurada, aflita! Quanto a angústia da ausência é cruciante!… Dos coqueirais em flor voa por diante… Beija as palmas que o vento abrindo agita… E leva, estrada a fora, a dor bendita, Que esquecê-la não deixa-te40 um instante! Não te demores mais!… O meu tormento Traz-me aferrado a negro pensamento Cheio do fel de amarga ansiedade — A ideia de jamais vê-la algum dia!… E órfão de amor e sonhos e poesia Morrer sempre abraçando esta saudade!…
40 Colocação pronominal típica do Romantismo.
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X. de Castro
sono da virgem! Alva, alva, como a neve Que nos espaços se embala, Na hora em que o sol estala No azul profundo dos céus, — Ela sonha como o lírio Entre açucenas cheirosas, E n’esses sonhos de rosas Su’alma volta-se a Deus. Por entre as alvas cortinas Como ela dorme bonita! No seio que mal se agita Descansa a destra sutil… Que placidez! Que harmonia! Que sono suave e débil!… De suor a gota flébil Banha-lhe a fronte gentil… Arde a branca estearina 41 Se espelhando no oratório, Onde pousa merencório De Cristo o vulto imortal; E ela, se espreguiçando, As loiras tranças assanha, Como o cisne que se banha Nos arroios de cristal.
41 Vela de estearina.
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Cromos
E ela dorme… Que inocência! Alva, alva como a garça! — É um anjo que se disfarça Nos vestidos de mulher! — Ela dorme descuidosa, Como a estrela matutina Brilha no céu, peregrina, Sem uma nuvem sequer! E ressona descuidosa… Nas rendas alabastrinas, Alvo ninho de boninas, Parece a aragem beijar!… E da inocência o arcanjo, Roçando as asas de leve, N’aquele floco de neve Vai de joelhos orar!… Oh! Que alvura no regaço! Coxim de macias plumas, Berço de brancas espumas, Onde os gênios vão sonhar, Constelações ali brilham N’uma harmonia de prata Entre os aljofres do mar!… Sob a gaze transparente D’esse céu imaculado Seu coração descansado Sonha tranquilo e feliz… Ela ressona cercada De castíssimos arminhos, 76
X. de Castro
Puros, mais puros que os ninhos Dos beija-flores sutis! É manhã. O leito treme; Ela ajoelha-se à borda, Como a aurora que se acorda Nos plainos azuis dos céus… Antes de atar os cabelos As mãos nos seios aquece, Do lábio voa-lhe a prece Que sobe pura até… Deus.
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Cromos
expatriada42 A branca pomba de asas transparentes Voou, voou, sorrindo, em plena aurora… — Dos céus as linhas d’oiro, reluzentes Cortou cantando. E foi... e foi-se embora! Voou, e da montanha na quebrada, Onde o regato a gaguejar sorria, — Sentou a planta débil e rosada, Como concha voltada à penedia. Olhou em roda… e tudo lhe falava… — O galho, o ramo, a palma, a flor, o ninho! — Do sol poente o raio lhe beijava A plumagem sutil de leve arminho. Desceu a tarde. As sombras pardacentas Do crepusc’lo, nas selvas s’estendendo, Iam e vinham, tristes, lutulentas43, As roupagens da noite, revolvendo… A branca pomba, que deixou suspenso, Cá, entre as rosas, o seu berço amigo, Volve um olhar de adeus ao rumo extenso
42 Publicada originalmente no Libertador n.º 119, de 24 de maio de 1890, p. 3. 43 A palavra lutulenta significa coberta de lodo, lamacenta. O poeta parece querer dizer que as sombras do fim da tarde tornam a selva com este aspecto sujo.
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X. de Castro
Por onde as asas levantou consigo!… É noite! treme a flor, geme o regato, E o ninho que à geada não resiste! E da montanha no escarpado ingrato Chora e soluça a viajora triste!...
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Cromos
devaneio Vem estrela gentil, brilha um instante No crepúsculo44 de chumbo de meu céu; Minh’alma resuscita palpitante Do túmulo da descrença onde desceu!… Eras tu esta luz que eu vejo agora… Teu coração — meu céu de nuvens nú… Tú eras o meu ser, a minha aurora! Vida, amor, céus e Deus tudo eras tu! Oh! quero adormecer em teus cabellos, — De teu labio na flôr beber perfumes… Quero minh’alma consumir em zêlos, Morrendo de paixão e de ciumes!… Vem, visão peregrina e vaporosa Despertemos d’amor nas hora calmas… Traze o aroma subtil de tuas rosas; Casemos entre beijos nossas almas.
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“crepúsculo” e “túmulo” (dois versos depois) devem ser lidas com síncopes não assinaladas, crepúc’lo e túm’lo, para que os versos tenham a mesma métrica do resto do poema.
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X. de Castro
cismas «Gota de orvalho pendida, Do seio do nenufar45, — Folha do vento tangida, Pela corrente do mar;» Ai! de amarguras perdido No fundo da solidão Gemido amargo partido Das dores do coração; Rosa virente46 que outr’ora Perfume à tarde exalou, Bebeu os prantos d’aurora… E o sol ingrato a secou. Assim murchou em meu peito A doce crença de amor. Assim morreu no meu leito De meus sonhares a flor…
45 Não sabemos de quem são estes versos citados por X. de Castro no começo do seu poema. Já o vocábulo “nenúfar”, pronunciado neste verso como oxítono, não é um caso de diástole (deslocamento da sílaba tônica para a sílaba posterior), mas o modo como a palavra, incorporada do francês no português somente em 1841, segundo o dicionário Houaiss, era pronunciada normalmente então (ver o poema “Em que pensas?”, de Castro Alves). 46 Verdejante, viçosa.
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Cromos Da mocidade na festa Minha ilusão vi cair!… Hoje mais nada me resta… Nem mesmo a fé no porvir! Vai, como a gota do orvalho Pendida na branca flor… Vai, como a folha ao atalho Da vaga em louco furor. Meu coração, na agonia Da ingratidão mais cruel Contando as horas e do dia Por noites de dor e fel!… É que o amor na minh’alma Foi sonho, e negra ilusão! Varreu-me do peito a calma, Ressecou-me o coração!
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X. de Castro A’
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Ela passava… E no olhar ardente Das estrelas a luz esplandecera, Minh’alma que a sentiu emudecera, E com ela seguiu, aos passos, rente… Depois a fronte pura, alvinitente47, Como feita de púrpura e de cera, Ergueu além… e nunca mais volvera… Nem um olhar ao menos complacente… Passou, sorriu e foi, calma e serena, Como sutil plumagem, leve pena Que d’asa da gaivota o vento arranca! E de longe, bem longe — Adeus! — me disse! E nunca mais voltou!… Ah! se eu a visse Tão branca como outr’ora!… branca, branca!
47 De alvura imaculada.
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Cromos
no cemitério À morte de Oriano Vilela Pátria dos mortos, a minh’alma elevas De teus campos de dor ao azul sidéreo!… E eu fito os céus… Assombra-me o mistério D’esta crença de Deus que luz nas trevas! Tu, que a Saudade, tu, que os prantos cevas ’Nestas ruínas de arrasado Império Guarda de Deus a Idéia, oh! Cemiterio! — Derradeira Esperança — em que me enlevas! Morto! Volve p’r’a terra o que era argila! Alma — essência de Deus — corre, desfila P’r’as regiões intérminas dos Céus! Ah! foi assim que o moço, deste mundo Foi através do Azul vasto profundo Levar a Deus o que lhe dera Deus.
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X. de Castro
vai casar A Manoel Xavier de Castro Amanheceu… Pela Alcova Corre pálida tremendo Doce luz, que vai perdendo Todo brilhante fulgor; O dia invade as cortinas D’esse recinto sagrado, Enche o ambiente adorado De leve e brando calor. Da tela fina como névoa pura, Que envolve branco leito ali deposto — D’essa nuvem sutil de rosa e alvura Loiro anjo a sorrir levanta o rosto… Como se houvera agora despertado De um sonho azul de amores iriado!… Como em colcha d’alva espuma Ela senta-se e medita… Boceja… Como é bonita Com 48 a mão no seio a cismar!… — Desce o pé de neve e jaspe Do tapete rente, rente, E a cruz do colo pendente 48 No livro está grafado “Como”, o que nos parece erro tipográfico. Se fora “Como” seria muito difícil acomodar o verso nas sete sílabas que compõem os versos desta estrofe. Usando “Com” isso se torna mais fácil, bastando para isso considerar o M como apenas sinal de nasalização, sem valor métrico (ectlipse): Cõ’a mão…
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Cromos Beija e começa a rezar… Os seus cabelos — lágrimas de aurora — Dos seios beijam-lhe os frouxéis49 rosados E sorvem-lhes o aroma que demora De alvas rosas nos cálices fechados50… Onde o sangue febril, vertendo amores… Quer transbordar e ferve pelas flores Na cadeira, junto ao leito Pousam vestidos nevados Em travesseiros lavrados De sedas brancas e azuis; E a fita que dos cabelos Ao deitar-se desatara Se enrola ao colar que para Sobre as rendas e transluz. Levanta-se… Concerta a loira trança… Toma os vestidos… inda é mais bonita Pelos cabelos vaga-lhe a esperança Nos doirados cordéis que prende a fita… A fronte e o colo de camélias touca E um riso assoma-lhe à vermelha boca… Agora segue ligeira Buscando os seres amados, — Pai e mãe idolatrados — Que os deixou ao noitecer, Em suas mãos que tanto adora 49 As penas mais macias das aves, penugem; figurativamente remete a maciez, suavidade. 50 No livro estava grafado “fachados”.
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X. de Castro Poisa os lábios cor de rosa — Eles, coroa extremosa51 Vão de beijos lhe tecer. Uma lágrima pura como a baga Do orvalho que a manhã chora na folha, Uma gota que os olhos enche e alaga, Qu’alma requeima quando a face molha — Desceu-lhe aos seios... Ah quem d’esse pranto Pode ao menos sonhar o doce encanto… Sim, talvez, por sua mente Perpassasse a idéia ingrata De um laço, qu’hoje desata P’ra’manhã outro ligar… — Deixar a vida querida Do lar que doirou-lhe a infância! Trocar d’alli a fragrância Pelas flores de outro lar Que mistério a manhã!… Que luz suave Não doira o céu azul de seu futuro!… Como a cantar desperta o ramo a ave… O ninho, a flor, a estrela, o espaço escuro!... Su’alma subirá dos céus à neve!… — Concha doirada aberta ao dia puro! — À manhã quando o amor houver trocado Lágrimas d’hoje em beijos de noivado!…
51 Terna, carinhosa.
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Cromos
relíquias Guardo zelosamente em delicado Cofre de amor as «prendas» que me deste, Mimos gentis, relíquias do passado, Lembrando o teu amor puro e celeste, Revejo-as muita vez; e assim, querida, Horas a ti consagro abstraído, E cada brinco ou flor, ao meu sentido Uma passagem lembra enternecida. Então por essas horas, te ouço e vejo, Vejo-te bem e sinto-te a meu lado, Vibrando docemente um quente beijo! Por isto as tenho com cuidado e zelo, Porque, as guardando, guardo este passado E o tempo nunca mais faz esquecê-lo!
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X. de Castro
saudade Eras a ave azul dos meus amores; A estrela dos meus sonhos e cismares, Que pelas horas tristes de pesares Vinha do peito serenar-me as dores… Ave — voaste além por sobre as flores… Estrela — confundiram-te os luares!… Já não ouço o teu canto nos palmares Já no céu não vejo os teus fulgores! Apenas quando a noite, a brisa calma Chora nas folhas soluçante canto, Como que sai dos mirtos52 pela palma, N’um murmúrio de mágoas ou de pranto, A tua voz, que me repassa a alma D’esta saudade que idolatro tanto…
52 Mesmo que murtas
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Cromos
sempre… Vai… mas verás que segue-te constante Por essa saudosíssima romagem53, Sombra de amor que busca a tua imagem, Que de ti não se aparta um só instante! De teus olhos gentis adiante, adiante, Qual velando teus passos na viagem, Contigo sob a copa da ramagem Descansará de ardores, ofegante… Irá contigo por vergéis e monte; Quando pousares peregrina a fronte De teu leito n’alvura imaculada, Ou junto ao lago azul fores n’alfombra Estará junto a ti a mesma sombra, Que sou eu, minha doce e terna amada.
53 Peregrinação, romaria.
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X. de Castro
a alguém Ontem à noite, no passeio publico Ela passava, deslumbrante e calma Bela, mais bela do que a ninfa pudica Branca, mais branca que a manhã mais alma. Nas dobras alvas dos vestidos cândidos A lua vinha derramar seu pranto… E a fresca aragem dos jardins em bálsamo Pelo seu seio suspirava um canto… Ah! quem me dera do luar argênteo Ser um dos raios nessa noite bela… E d’essa brisa desmanchada em sândalo — O hálito leve que roçou por ela!…
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Cromos
fragmento Nunca mais eu verei a tua imagem De meu leito nos sonhos perfumados! Nunca mais dos anelos no delírio Beijarei teus cabelos desatados!… Adeus, sombra gentil e vaporosa, Que de ilusões doiraste os meus sonhares Morra-me a voz no lábio e fogo n’alma Como a espuma que rola sobre os mares
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X. de Castro
À
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Adeus, sombra encantada e peregrina Que por meus sonhos e sorrir passaste… Pomba doirada d’asa alabastrina Que novos mundos e vergéis buscaste… Visão gentil que a hora matutina Meu amor, minhas crenças embalaste! Vais muito longe! longe… no deserto Embora! junto a ti minh’alma é perto!… Hei de seguir-te, sempre! Em toda parte Minh’alma irá beijar-te o seio puro! Se terna voz nos páramos falar-te, Não temas, que sou eu que te procuro!… E si alva e solta pena ali roçar-te, Prende a asa gentil de meu futuro!… Partiste, adeus!… O coração me invade — Recortada de dor — cruel saudade!
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Cromos
volta sempre…54 À
***
Voltaste, borboleta ao doce pouso… — À alameda gentil de teus amores, — De teu jardim virente, perfumoso Voltaste a rebeijar as mesma flores… No mesmo galho a mesma rosa aberta, Como o lótus aos beijos do levante, Mais viva e bela p’ra te ver desperta E estende os lábios à adorada amante!… No mar de azul a brisa canta agora; Tem hinos d’alma o marulhar nas fráguas A onda avança p’ra beijar a aurora! E a aurora as tranças vem banhar nas águas!… E as outras borboletas te adorando Brincam cheias de afetos a teu lado, E vão, como de pétalas um bando, Relembrando-te os lírios do passado… Por ti tudo sorri… e canta… e fala!… Corre no espaço indefinido gozo… A ave que no ninho, além, se embala Solta o canto mais doce e langoroso… Ouve! Em meu peito também há uma ave 54 Publicado originalmente no Libertador
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n.º 6, de 9 de janeiro de 1890.
X. de Castro
Que palpita cantando os meus amores; Vem com ela dormir sono suave… Mais doce e calma que o sonhar das flores!… Quando, à tardinha, o sol, buscando, o ocaso, For seu ultimo — adeus — dizendo as ondas, Não voes, borboleta, assim... ao acaso… Das flores de minh’alma não te escondas!
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Cromos
adeus a uma ave55 Segue, ave d’amor, vai recortando Do firmamento azul a curva imensa! E voa, e vai te unir ao meigo bando Das garças brancas, — pelo ar suspensa. Essas asas sutis e vaporosas, Serenas afrontando a imensidade, No fim das tardes, tênues, langorosas Talvez tremam de amor, ou de saudade… À sombra sorridente das palmeiras, Onde vais gorjear, ave formosa, Das alvoradas pela luz primeira Solta do peito uma canção queixosa… Que ela seja o — adeus — ultima esp’rança A flor que sem t’ouvir é murcha agora, E no pálido hastil tomba e se cansa… Morta quase ao nascer… na mesma hora! Teu canto eu ouvirei casto e divino, Solto através das folhas do arvoredo… E sentirei repercutir-me um hino Cheio de amor e pudico segredo…
55 Publicado originalmente no Libertador, n.º 86, de 12 de abril de 1889.
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X. de Castro
Não vás, pomba gentil, volta a teu ninho; Vem de novo afagar-te em teus amores, Entre os perfumes das virentes flores, Onde urzes não há, nem há espinho… Se a cabecinha loira e perfumosa Tu cansares no ermo, em desalento, Que é de teu leito de jasmins e rosa, P’ra repoisá-la ali um só momento?… Não vás que a noite lá é triste e feia, Não tem beleza a madrugada agora!… O céu sempre em crepúsculo se arqueia… Creio, ó ave, que lá nem tem aurora!…
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Cromos
para um retrato Onda de leve perfume. Suave brando sutil. Derrama-lhe o colo implume Corre-lhe o corpo gentil!… Como sândalo entranhado Nas alvas espáduas suas O opoponax56 delicado Se evola das carnes nuas. Tem na boquinha vermelha De úmido e fresco coral Mais doce que o mel d’abelha Uns favos que fazem mal.
56 Resina de mirra
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X. de Castro
à*** À Francisco Lopes Flor de um sonho de Deus, que te balanças Das alvoradas no cair do azul Que estremeces, a rir por entre as franças57 Aos beijos puros que te imprime o sul, Si deixas que em teu seio a brisa amena Beba eflúvios de mel e de falerno58… Dá-me um beijo dos teus, alva açucena Que banharam-te as lagrimas do Eterno Ah! deixa-me oscular, no devaneio D’esta febre que a alma me devora, O alvo nenufar que tens no seio Rorejante de pérolas da aurora. Deixa na onda d’essa trança umbrosa, Que a alvura de teu seio beija e afaga, Boiar minha alma leve e vaporosa Como a espuma do mar por sobre a vaga. Oh! deixa-me beber essa bafagem Que teus cabelos pelo ar expedem Deixa adorar-te assim... alva miragem, Loira criança das manhãs do Éden. O teu olhar de fogo me alucina! 57 Conjunto das ramificações menores da copa das árvores 58 Vinho de Falerno, região da Itália famosa por seus vinhos.
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Cromos
Arde-me a mente em sonhos e quimeras, A minha alma se embala em luz divina Entre pétalas de rosa e primaveras… Há na tua voz os flácidos ressábios Que dormem ao luar por entre as flores, A harmonia te foge pelos lábios Requebrada de pejo e de langores… Vem cantar no meu seio… E n’alvorada, Estende sobre ela a asa de arminho, Linda pomba de azul, ave doirada. Abre meu coração… faze teu ninho.
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X. de Castro
à a. bezerra.59 *** Não sei por que razão inda me rio! Não sei por que minh’alma inda se alegra — Eu devera chorar, viver sombrio Sob caligem d’essa noite negra Que cobre o infeliz!… Mas há em mim um não sei que que diz — Uma esp’rança, uma crença dos amores — Que a taça amargurada dessas dores Entornando-se toda até o fim, Há de volver-me a santa f ’licidade Desses dias de pura mocidade, — As doces ilusões virão a mim!
59 Publicado originalmente n’A
Quinzena (1888); n.º 7; p. 101
Título Cromos Autor X.de Castro Produção editorial Maria Adayse Martins Natacia Pereira Menzes Tipografia Bembo Papel Offset 80g/² Disciplina Design Editorial Professor Humberto Araújo Impressão e acabamento Original Gráfica
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Ut veni nimus atiorundae quid molenia conserc hiliqui amuscit quaspe voleculpa consero enihicat faces dipsam nia que con coreptusa ellaut laut facest od qui ut laborum quatinihicim repedipsamus sequossectam sunt odi untinisque latque sunt voluptae nossus. Occae evel molorem. Nemos quatatus ut repellatque et expel eos et molum qui dest alitate mquaes volut di od maiorumquo odipiet pa id quam re qui aut et rest laudis sinctur, que quunt eum quunducil maxim facerio rehenime mi, evenem consedi taquod que volores editatem rem vid quaecti tem quam quuntis mint facerum faccaeca.