Causos de Vila Velha

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Secult Vit贸ria - ES 2013


© Secretaria de Estado da Cultura, 2013 Governo do Estado do Espírito Santo

COORDENAÇÃO EDITORIAL Márcia Selvátice Tourinho

REVISÃO Vitor Graize EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Comunica.com Natália Zandomingo CAPA Ricardo Gomes IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica JEP TIRAGEM 1.000 exemplares

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) (Biblioteca Pública do Espírito Santo)

R456c Rey, Jovany Sales. Causos de Vila Velha / Jovany Sales Rey. - Vitória: Secult-ES, 2013. 272p. ISBN: 978-85-64423-27-5 1.Crônica brasileira. 2. Literatura brasileira – Crônica. I. Título. CDD: B869.8


Para minhas quatro guardiãs, amigas, paixões: Alessandra Toledo Janaína Serra Tatiana Martinelli Vanessa Frisso



Palavra

do

Governador A

democratização do livro e do saber

Entre tantas contribuições importantes que o Espírito Santo tem oferecido ao Brasil, destaca-se – no campo cultural – uma literatura da mais alta qualidade. E os livros selecionados para publicação em 2011 e 2012, a partir dos editais da Secretaria de Estado da Cultura, reiteram essa vocação capixaba e constituem excelente mostra da nossa atual produção literária. Entre os autores, alguns já são conhecidos do público, e outros vivem sua primeira experiência de publicação, mas todos têm algo em comum: a vivência da realidade capixaba. Essas obras literárias vão somar-se a dezenas de outras que, no passado, traçaram um perfil inesquecível do nosso povo, com seus sonhos, trabalhos e conquistas. Por entender que a literatura retrata um momento do nosso processo de evolução cultural, econômica, social e política e, ao mesmo tempo, estimula o diálogo entre o presente e o futuro, nesses dois anos e meio de gestão ampliamos a abrangência e mais que duplicamos o número e o valor global dos Editais. Passamos de 18 Editais, em 2009, para 41, em 2013. E os recursos, que antes somavam R$ 3,2 milhões, foram elevados para R$ 8,5 milhões. Trata-se de uma forma democrática e transparente de apoiar nossa produção artística e cultural e de fortalecer a identidade capixaba.


Os livros agora lançados serão distribuídos em todo o Espírito Santo e entregues a bibliotecas e escolas da rede estadual, onde um público em formação terá acesso a obras que nos ajudam a compreender a realidade do nosso tempo. Além disso, o projeto Biblioteca Móvel, que faz parte das ações do Estado Presente, levará esses livros às regiões em situação de risco social, enquanto o projeto Biblioteca Transcol colocará um acervo de 12 mil livros à disposição dos usuários do sistema de transporte público, em dez terminais rodoviários. Com esse tripé de valorização do livro e da leitura, estamos criando uma nova geração de leitores, disseminando a obra, o pensamento e o exemplo dos nossos melhores escritores,

e

reforçando o interesse pela literatura entre aqueles que nem sempre dispõem de recursos para adquirir os livros recém-publicados. Assim, enquanto construímos juntos o futuro do Espírito Santo, a literatura vai ocupando posição cada vez mais destacada no esforço coletivo de democratização do conhecimento e do saber.

Renato Casagrande

Governador do Espírito Santo


Palavra

do

Secretário

A palavra é a mãe de todas as manifestações do engenho humano. É por meio delas que construímos nossos códigos de entendimento e absorção do mundo. Ainda que possamos manifestar-nos por meio da música e das artes visuais, são sempre elas, as palavras, as estruturas constituintes do nosso pensamento. Por isso, causa-nos causa especial satisfação publicar os livros agraciados pelo Edital de Publicação da Secretaria de Estado da Cultura , exercícios 2011 e 2012. As narrativas curtas e longas, as poesias e as crônicas que compõem esses lançamentos são uma mostra do quão talentosos e profícuos são os escritores que vivem e produzem nos dias de hoje no Espírito Santo. Diversa em estilo e abordagem, visão de mundo e conteúdo. Publicar esses escritores é dar voz a essa multiplicidade de correntes de pensamento, que em um vasto diapasão estético e filosófico nos entretêm e revelam. E nos alimentam razão e sensibilidade. Levar essas obras aos leitores da Região Metropolitana da Grande Vitória e ao interior do Estado é descortinar universos que promovem a elevação do espírito humano por meio da promoção da arte e da cultura. A diversidade dessas obras nos colocou diante de um instigante desafio, que foi formatar edições que dialoguem com formas peculiares e conteúdos distintos em cada gênero literário abarcado. Essa heterogeneidade é fruto do trabalho de autores com singularidades que se refletem nesses próprios conteúdos e formas. Isso levou a um


atraso no cronograma das publicações. Por isso, optamos por lançar, no mesmo semestre, as obras agraciadas de 2011 e 2012. Essas mesmas obras serão distribuídas em bibliotecas e escolas de todo o Espírito Santo. As instituições que receberem esses livros passarão a ter em mãos uma potente ferramenta para desenvolver em seus frequentadores e alunos o espírito crítico, a tolerância, a compreensão de mundo necessária à construção de uma sociedade mais justa e feliz. Esse trabalho é realizado em sinergia com as políticas do livro e da leitura do Governo Renato Casagrande, representadas por ações como a Biblioteca Móvel, que leva livros e suporte para promoção de leitura a bairros em situação de risco da Grande Vitória, dentro das ações do Estado Presente, e a Biblioteca Transcol, que disponibiliza acervo de 12 mil livros aos usuários do sistema de transporte público, distribuídos em 10 terminais rodoviários. A todos desejamos uma excelente leitura. E que os horizontes descortinados por esses autores sejam plenos de novas descobertas.

Maurício Silva

Secretário de Estado da Cultura


Apresentação Este livro é uma coletânea de crônicas selecionadas entre as mais de duzentas que escrevi para minha coluna Causos de Vila Velha, publicada desde 1998 no Jornal da Praia da Costa e antes, por dois anos, no jornal O Calçadão, resgatando episódios pouco conhecidos e personagens pitorescos da história antiga e recente da cidade de Vila Velha. Decidi reuni-las em livro incentivado por alguns leitores, entre eles um acadêmico que prefere manter o anonimato, mas assim se refere à coluna: “Além de divertir, ela virou uma referência local por empregar uma linguagem leve que busca sempre privilegiar o bom humor e pela garimpagem contínua do que se convencionou chamar de rodapé da história.” O material para a elaboração dos causos provém de entrevistas, conversas informais, pesquisa documental e de experiências que vivenciei. Alguns causos são de veracidade duvidosa ou mergulham sem pudor na fantasia, caso da tenebrosa procissão das almas, não por acaso relatada por uma viúva de pescador. Outros, bem reais, extraem do limbo personagens históricos como o sombrio padre pedófilo Jácome Queiroz, denunciado nos tribunais da Inquisição e Brilhantina Papamel, prostituta canela-verde que teria passado as tropas brasileiras em revista durante a Guerra do Paraguai. Diversos causos foram transcritos em jornais e revistas do Espírito Santo, Minas Gerais,


Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Paraná. Outros, pela repercussão, motivaram reportagens, inspiraram uma adaptação teatral, uma campanha publicitária e um vídeo. Alguns foram discutidos por professores capixabas em salas de aula. Muitos caíram na internet. Entre todos, porém, o que teve a trajetória mais original foi A Freirinha Encurralada, que, ao ser contado no ar por Jô Soares, em 1999, acabou virando piada “anônima”, por sinal também de aparição assídua no mundo virtual.




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ARREPETE, EXCOMUNGADO! Alaor era um advogado sem caráter que costumava circular pelo calçadão da Praia da Costa rebocando dois cachorrinhos cujos nomes, Pompom e Pompinella, já davam pista da viadagem do dono. Bichona barbuda e parruda, escancaradamente do mal, seu golpe favorito era alugar um apartamento e recorrer a expedientes legais para ficar morando de graça sem pagar o locatário, até mudar de repente, roubando o que pudesse, de luminárias às torneiras do banheiro. Durante sua permanência num prédio, que podia durar anos dada a morosidade da Justiça e as chicanas jurídicas que ele conhecia como ninguém, infernizava o condomínio promovendo festas barulhentas que varavam a madrugada, muitas vezes acabando em baixarias. E ái de quem ousasse reclamar. Recorrendo aos punhos treinados numa academia de box, apelava para a ignorância e distribuía porrada. Um dia alugou o apartamento da desavisada Dona Celeste, uma senhorinha que fora morar com a irmã justamente para poder sobreviver do aluguel de seu único bem. Ô ilusão! Todo fim de mês, quando ia receber, ela voltava de mãos vazias, ou melhor, cheias de desculpas e evasivas. Na última tentativa, Alaor estava bêbado e deu-lhe uma tremenda prensa, chegando ao cúmulo de ameaçá-la de morte. Desesperada, Dona Celeste se lamentou com o parceiro


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de dança, um velhinho pé-de-valsa que conhecera num clube da terceira-idade. Seu Damião, esse o nome do velhinho, enxugou suas lágrimas e avisou: “Amanhã, faz uma feijoada carregada no tempero e põe numa marmita, que nóis vai dá de cumê pro excomungado”. Meio-dia, Seu Damião e Dona Celeste tocam a campainha. Alaor atende. “Viemo cobrá os atrasado e lhe botá pra fora.” Alaor dá uma gargalhada cínica: “Vai cagar, vovô!” Sem alterar a voz, Seu Damião responde: “Eu vou, ocê é que tão cedo capaz de num ir.” E enfia o cano de um revolvão nas fuças de Alaor, empurrando-o até à cozinha. “Tira as carça e a cueca”, ordena. Alaor obedece, tremendo como vara verde. “Marra ele, Celeste.” Dona Celeste amarra Alaor com as cordas que tinham preparado de antemão. “Agora serve a feijoada.” Alaor recusa abrir a boca. Seu Damião procura nas gavetas até achar uma faca do seu gosto. “Ou come ou passo na faca teus dois cachorrico.” Por adorar Pompom e Pompinella, Alaor abre a boca e come. “Arrepete.” Alaor repete. “De novo.” De novo. “Mais uma vez”. Vai indo, Alaor não consegue engolir mais nada, de tão embuchado. “Agora é no funir”, diz Seu Damião, colocando um funil na boca de Alaor e despejando feijoada até o homem ficar verde, pronto para desmaiar. Então, seu Damião mostra a ele um recorte de jornal. “Lê o que tá escrito, pra sabê com quem tá lidando”. Alaor lê: — Após 30 anos no manicômio judicial, ganha a liberdade e volta para as ruas o famoso Damião Costura-Cu, matador que aterrorizou Minas Gerais costurando o orifício anal de suas vítimas com anzol e linha de pescar e obrigando-as a comer até o estômago romper e causar uma hemorragia fatal.


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Seu Damião dobra o recorte, guarda no bolso e dá o ultimato: “Escói. Ou paga os atrasado e some no mundo ou remato o serviço.” Há muito tempo, Pompom e Pompinella não são vistos no calçadão. Uma pena. Eles eram bonitinhos.



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A COBRA DA DORA A notícia abismou Vila Velha. Como é que é? Mestre Tomazinho enfartado? Com aquela saúde de ferro? Hum, aí tem coisa! De fato tinha. Ao deixar a Santa Casa, recuperado, a história já se espalhara e poucos arriscaram aborrecer o velho pescador com perguntas que poderiam remetê-lo de volta aos médicos. Assim, não sei o que é real e o que foi posteriormente acrescentado. Sei que, de acordo com a cronologia traçada pela língua do povo, a causa do enfarte remonta a 1932, quando Tomazinho e Dora se conheceram e trocaram uns beijos em Marataízes, durante as férias escolares dela. Ambos tinham quinze anos, idade em que só se leva a sério a falta de seriedade e o namorico não iria longe, mas um acontecimento dramático contribuiu para acelerar o fim do que, por natureza, já nascera fadado à brevidade. Antônio Vivacqua, o pai de Dora, morreu assassinado em Cachoeiro e ela teve que deixar Marataízes às pressas. Na despedida, influenciado pelo clima fúnebre, o casalzinho trocou uma promessa solene: o primeiro que morresse deixaria para o outro seu bem mais precioso. Depois do funeral, Dora foi embora com a mãe para o Rio de Janeiro, onde acabou virando uma vedete famosa. Tomazinho seguiu os passos do pai e foi ser pescador, casando-se com uma boa


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moça e mudando para Vila Velha. Nunca mais viu Dora, embora às vezes tivesse notícias dela pelos jornais, ocasiões em que aproveitava para tirar onda com os amigos ou ferroar os ciúmes da mulher. — Lá vem você de novo com a história da venenosa! —rebatia ela — Larga de ser besta, homem, aquela víbora nem deve mais lembrar que passou pela tua vida! Brincando, brincando, quem passou mesmo foi a própria vida. Em meados de 1967, após vários dias no mar, atracando a traineira na Praia do Ribeiro, Tomazinho encontra o filho caçula à sua espera com um bilhete da mulher: “Não volto para casa enquanto a cobra da Dora estiver lá.” — O quê? A Dora tá lá em casa!? Tomazinho dispara para casa com o coração na mão. O filho mais velho aguarda na porta, empunhando um porrete e cercado por uma multidão querendo entrar para ver. — Ela tá no seu quarto, pai, deitada na cama. Não tive coragem de tirar ela de lá. — No meu quarto? Na minha cama? Ui, meu Deus! Filhão, cê achou ela bonita? — Bonita eu achei sim. Bonita e grande. — Claro que ela é grande, seu tonto! É a maior estrela do Brasil! Tomazinho corre para o quarto. Vê o vulto coberto pelo lençol. “Tadinha, cansou de me esperar e dormiu!” Trêmulo de emoção, abraça o bolo de carne macia... e solta um berro pavoroso! O enfarte foi a consequência inevitável do susto.


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Mestre Tomazinho não sabia, soube depois, na Santa Casa, que sua ex-namoradinha havia morrido e deixado para ele seu bem mais precioso, a imensa jibóia Castorina, com a qual se apresentava em seus shows. Era a cobra da Dora, Dora Vivacqua, mais conhecida pelo nome artístico de Luz del Fuego



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A PROCISSÃO DAS ALMAS Pouca gente sabe, mas até 1915 o cemitério de Vila Velha ficava naquela praça nos fundos da Igreja do Rosário. Foi Manoel Francisco Duarte, o primeiro prefeito eleito da cidade, quem transferiu os mortos para o novo cemitério da Rua Coronel Sodré. Foram-se os ossos, mas não o cortejo de lembranças, mantido vivo pelos moradores da Prainha, que transmitiram aos filhos e netos as histórias sombrias que teriam ocorrido nos tempos do antigo campo santo. Uma dessas histórias, talvez a mais tétrica, eu ouvi da boca da falecida Siá Teresa Piquira, já velhinha, porém ainda lúcida. Se não acreditei, digamos que também não desacreditei de todo, tanto que, quase trinta anos depois, recordo tão bem dos detalhes que tentarei reproduzi-los no linguajar pitoresco de Siá Teresa: Eu era meninota quanto o acontecido aconteceu. Minha finada mãe, Deus a tenha, trabalhava numa casa vizinha do cemitério, casa de família rica, graúda, cujos netos até hoje mandam e desmandam em Vila Velha. Numa Semana Santa, por volta de 1905, eles inventaram de visitar uns parentes no interior e deixaram mamãe tomando conta da casa, eu junto, porque nunca desapartava dela nem ela de mim. Tudo correu direitinho até chegar a Sexta-feira da Paixão, data que o povo daquele tempo respeitava com jejum, temor, devoção e silêncio. Quando escureceu e a cidade parecia morta de tão quieta, rezamos nossas orações e fomos dormir. No meio da noite acordamos com a cachorrada uivando, primeiro um


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aqui, outro lá longe, mais um e dali a pouco aquele frege de uivo lamentoso que dá um frio na espinha de quem escuta. Mas pior que a uivação era o rumorejo esquisito que vinha do lado de fora da casa. Mamãe atentou e falou: “Fia, tá parecendo procissão, vão espiá”. Ela abriu um pouco a janela e vimos que era mesmo uma procissão de penitentes dando volta em torno do cemitério, cada qual metido num camisolão roxo, usando um capuz que encobria as feições e empunhando uma vela acesa, dessas compridas, de pagar promessa. Ficamos as duas ali olhando, cismadas, teimando em descrer do que a gente pressentia ser e pensando nalguma providência, quando um vulto desgarrou, chegou perto da janela, entregou a vela dele pra mamãe e falou com voz rouca: “Guarda pra mim, dona. Ano que vem vorto pra panhá”. Tremendo, mamãe pegou a vela e jogou numa gaveta, enquanto se benzia e repassava o trinco na janela. Não demorou muito, o burburinho da procissão foi esvaindo, esvaindo, até sumir e a latição dos cachorros também minguou, o que não foi lá de grande valia porque ficamos o resto da noite em claro, emendando Ave-Maria em Padre-Nosso. O primeiro galo que cantou, corremos a abrir a gaveta. Sabe o que havia dentro dela? Uma canela de defunto, um baita osso de dois palmos! A gente tinha visto a procissão das almas... Toda vez que a cachorrada começa a uivar de noite, lembro da história de Siá Teresa Piquira e aí, confesso, cagão que sou, apesar de morar num quarto andar e bem distante de qualquer cemitério, não abro de jeito nenhum a janela!


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O PENICO DA IMPERATRIZ É surpreendente como certas pessoas valorizam as coisas mais inusitadas, mas para entender porque digo isso, primeiro precisamos retroceder até à famosa chuva de cocô do Catamarã, bar cujo precoce desaparecimento a Praia da Costa ainda pranteia. Era uma noite de sábado, a casa cheia e na mais perfeita harmonia chopística, quando Professor Salviano, cidadão tido como um dos pilares morais da cidade, entrou decidido, foi até à mesa onde Toninho Funil bebia com os amigos e abriu sobre a cabeça do rapaz um guarda-chuva cheio de cocô de cachorro. Na hora ninguém entendeu nada, mas a constrangedora cena, até hoje comentada, era o epílogo de uma história que teve início no século 19, mais exatamente no dia 28 de janeiro de 1860, quando Dom Pedro II e a Imperatriz Teresa Cristina visitaram Vila Velha. Depois de almoçar no Convento da Penha, o régio casal dividiu-se. Enquanto Dom Pedro foi conhecer o Forte de Piratininga, a Imperatriz ficou a descansar as pernas na areia da Prainha. A certa altura, empanzinada, manifestou o natural desejo de transformar em ruínas as maravilhas da cozinha capixaba e um solícito morador da Prainha acolheu a Imperatriz em sua casa e colocou um penico esmaltado a serviço das necessidades dela. Resolvida a questão, Dona Teresa Cristina agradeceu e foi embora. Tomado de justo orgulho, o


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proprietário do penico mandou gravar no dito cujo, em arabescos dourados, a inscrição “Aqui obrou a Imperatriz do Brasil” e o objeto passou a ser a relíquia maior da família, com direito a lugar de honra na cristaleira da sala, posto que continuava ocupando um século mais tarde na casa do Professor Salviano, bisneto do proprietário original. Ora, Professor Salviano detestava o namoro da filha com o Toninho, que hoje é um dentista respeitado, mas em 1988, jovem estudante, merecidamente ostentava o apelido de Funil, pois varava as noites esgotando as reservas etílicas da Grande Vitória. Para afugentar o indesejado genro, Salviano vivia aprontando-lhe pequenas maldades, como salgar seu cafezinho ou dizer que a filha não estava quando estava. Toninho a tudo suportava com a paciência dos apaixonados, até o dia que o sogro “esqueceu” o canil aberto e o doberman da casa tatuou-lhe as presas no traseiro. Mordido na carne e na honra, Toninho jurou vingança e ficou aguardando ocasião. Baba-ovo de padre, Professor Salviano não perdia chance de insinuar-se junto às autoridades eclesiásticas e ofereceu em sua casa um jantar para Dom Silvestre Scandian, o então Arcebispo de Vitória. Lá pelas tantas, como fazia sempre que recebia visitas ilustres, abriu a cristaleira para exibir o famoso penico. Coitado. Só não bateu as botas na hora porque ficou indeciso entre ter um ataque de apoplexia ou morrer de vergonha. Não era para menos. Do lado de fora, o penico ostentava a velha inscrição “Aqui obrou a Imperatriz do Brasil”, mas do lado de dentro, espetado sobre um tolete malcheiroso, um bilhete avisava: “E aqui cagou Toninho Funil!”


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Na noite seguinte, em defesa da dignidade do Segundo ImpĂŠrio, Professor Salviano recolheu no guarda-chuva o cocĂ´ do doberman e foi ao CatamarĂŁ dar o troco. Quanto ao penico, esse sumiu para sempre da cristaleira.


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