Henrique Tahan Novaes Neusa Maria Dal Ri Organizadores
MOVIMENTOS SOCIAIS E CRISES CONTEMPORÂNEAS VOLUME 2 1a Edição Eletrônica
Uberlândia / Minas Gerais Navegando Publicações 2017
Navegando Publicações CNPJ – 18274393000197
www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG Brasil
Conselho Editorial
Anselmo Alencar Colares – UFOPA Carlos Lucena – UFU Carlos Henrique de Carvalho – UFU Dermeval Saviani – Unicamp Fabiane Santana Previtali – UFU Gilberto Luiz Alves – UFMS José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU José Claudinei Lombardi – Unicamp José Luis Sanfelice – Univás/Unicamp Lívia Diana Rocha Magalhães – UESB Mara Regina Martins Jacomeli – Unicamp Miguel Perez – Universidade Nova Lisboa – Portugal Ricardo Antunes – Unicamp Teresa Medina – Universidade do Minho – Portugal István Mészáros – Universidade de Sussex – Inglaterra
Copyright © by autores, 2017. M8695 – Novais, Henrique Tahan; Dal Ri, Neusa Maria (orgs) – Movimentos sociais e crises contemporâneas. Volume II –. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017. ISBN: 978-85-92592-75-2 1. Democracia 2. Política 3. Educação I. Henrique Tahan Novais; Neusa Maria Dal Ri. II. Navegando Publicações. Título. CDD – 370
Preparação/ Revisão – Lurdes Lucena Arte Capa – Carlos Lucena Foto Capa – João Zinclar Índices para catálogo sistemático Educação 370 Ciências Sociais 300 Ciência Política 320
Sumário Prefácio Candido Vieitez
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Apresentação Henrique Tahan Novaes Neusa Maria Dal Ri
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Parte I – Marx, os clássicos do materialismo crítico e a revolução brasileira
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1- A sociedade comunista na visão de Marx e Engels Newton Ferreira da Silva Paulo Alves de Lima Filho
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2- Sobre as revoluções burguesas radicais: fundamentos da sua dinâmica e limites contemporâneos do capital Paulo Alves de Lima Filho
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3- O papel das camadas médias militares na revolução brasileira Roziane Ferreira da Silva Cerqueira e Rogério Fernandes Macedo
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4- Apontamentos sobre ciência e ideologia nas Ciências Sociais no Brasil: um projeto de revolução brasileira no pré-1964 Angélica Lovatto
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5- Florestan Fernandes e a construção da sociologia crítica no Brasil Marcelo Totti
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6- As contribuições de Florestan Fernandes na defesa da Escola Pública brasileira (1980 – 1995) Fabiana de Cássia Rodrigues e Lucelma Braga
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Parte II – Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico
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7- Raízes da regressão no mundo árabe Marcos Del Roio
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8- Um panorama dos novos movimentos sociais latino-americanos e a pedagogia do trabalho associado Neusa Maria Dal Ri
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9- Luta por moradia e autogestão na América Latina - uma breve reflexão sobre os casos do Uruguai, Brasil, Argentina e Venezuela Coletivo USINA
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10- Las empresas recuperadas por los trabajadores en Argentina: límites y potencialidades de una experiencia de autogestión Andrés Ruggeri
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11- Reflexões sobre a questão agrária no Brasil e a trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Angelo Diogo Mazin, Marcio Jose dos Santos e Selma de Fatima Santos
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12- Corporações transnacionais, a agenda agroecológica do MST e as escolas de agroecologia Henrique Tahan Novaes e João Henrique Souza Pires
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13- Bordando uma história de luta das mulheres populares na América Latina Bruna Mendes de Vasconcellos
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14- Tecnologia e democracia: da tecnologia social à construção de alternativas tecnológicas pelos movimentos sociais Lais S. Fraga
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15- Autodeterminação indígena o sentido do movimento histórico e a riqueza das múltiplas possibilidades futuras Daniel Lopes Faggiano
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16- Reforma do Estado, administração pública e sociedade civil: alguns apontamentos Julio Cesar Torres
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17- Crise na Saúde: uma análise marxista da história recente da saúde pública brasileira e como vem sendo precarizada em prol da manutenção do status quo do sistema capitalista Yuri Barnabé
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18- O rap e as formas elementares da espontaneidade Fátima Cabral
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A revolução piorista em marcha - Manifesto do IBEC Paulo Alves de Lima Filho
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Sobre os autores
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La Barcarola Pero años impuros, la sangre del hombre distante recae en la espuma, nos mancha en la ola, salpica la luna, son nuestros: son nuestros dolores aquellos distantes dolores y la resistencia de los destruidos es parte concreta de mi alma Pablo Neruda
Educação do cacique Lautaro era uma flecha delgada Elástico e azul foi o nosso pai Foi sua primeira idade só silêncio Sua adolescência foi domínio Sua juventude foi um vento dirigido Preparou-se como uma longa lança Acostumou os pés nas cachoeiras Educou a cabeça nos espinhos Executou as provas do guanaco Viveu pelos covis da neve Espreitou as águias comendo Arranhou os segredos do penhasco Entreteve as pétalas do fogo Amamentou-se de primavera fria Queimou-se nas gargantas infernais Foi caçador entre as aves cruéis Tingiram-se de vitórias as suas mãos Leu as agressões da noite Amparou o desmoronamento do enxofre Se fez velocidade, luz repentina Tomou as vagarezas do outono Trabalhou nas guaridas invisíveis Dormiu sobre os lençóis da nevasca Igualou-se à conduta das flechas Bebeu o sangue agreste dos caminhos
Arrebatou o tesouro das ondas Se fez ameaça como um deus sombrio Comeu em cada cozinha de seu povo Aprendeu o alfabeto do relâmpago Farejou as cinzas espalhadas Envolveu o coração de peles negras Decifrou o fio espiral do fumo Construiu-se de fibras taciturnas Azeitou-se como a alma da azeitona Fez-se cristal de transparência dura Estudou para vento furacão Combateu-se até apagar o sangue E só então foi digno de seu povo Pablo Neruda
Menino do Rio São Francisco Foto – João Zinclar
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Prefácio Os textos que compõe esta coletânea são valiosos por si próprios. No entanto, o seu significado mais importante, em nosso entender, encontra–se no fato de que são a expressão literária da atividade pedagógica desenvolvida pelos seus autores no curso Movimentos Sociais e Crises Contemporâneas à Luz dos clássicos do Materialismo Crítico. Conforme consta na apresentação deste livro, esse curso, organizado por membros do IBEC e do GPOD, foi idealizado tendo em vista sobretudo os militantes dos movimentos sociais, ou, melhor, dos movimentos sociais lato censo considerados, o que abrange sindicalistas, integrantes dos partidos políticos, membros de movimentos do campo dentre outros. A criação e execução de um curso de aperfeiçoamento, mesmo que com esse propósito pode aparecer como acontecimento prosaico. Mas, não é o caso, uma vez que a sua realização tem implicações pedagógicas e políticas significativas. O curso foi aprovado pela UNESP, o que lhe proporciona certificação e certo apoio, fato que tampouco é trivial, posto que a universidade, mesmo a estatal, ao contrário do autopropalado, não é o lugar de cultivo da cultura universal. Com efeito, a universidade encontra–se direcionada para atender os requisitos de replicação do capital, o que pouco tem a ver com a organização de cursos para os militantes dos movimentos sociais. Em consequência, a organização de um curso desse tipo é virtualmente conflitiva e por vezes, inviável. E, em todo caso, depende da presença de uma vontade política determinada, que seja capaz de aproveitar as contradições e fissuras presentes em qualquer organização escolar. De qualquer modo, da empreitada resulta também um exemplo que poderá ser anotado por aqueles que, insertos no ensino universitário, se importam com a classe trabalhadora, com sua própria educação e organização. Embora tendo emergido na universidade, o curso não se cinge ao seu intramuros. Ainda que de alcance todavia restrito, o mesmo vem sendo ministrado em vários pontos do Estado, como bem observa a apresentação. Ressaltemos também que ademais do evidente empenho em alargar o alcance dessa atividade, os organizadores certamente especulam sobre as potencialidades de seu desenvolvimento junto ao movimento operário e popular (MOP), sob esse ou outro formato. Um dos aspectos mais significativos do Curso é que retoma uma prática que andou um tanto esquecida, qual seja, a de que os marxistas com formação teórica contribuam com ações concretas para a elevação cultural e política dos trabalhadores mediante a prática reiterada de estu-
2 do. O Partido Operário Socialdemocrata Russo (bolchevique), antes de empolgar o poder ficou conhecido como o “partido dos livreiros” em virtude dessa atividade. E Lênin, segundo Krupskaya (1986), em seu tempo de atuação nos círculos ou grupos de estudo, tinha como uma de suas tarefas discutir pedagogicamente O Capital de Marx com os operários. Essa prática de Lênin, pela qual um pensador se coloca numa situação de interação direta com os trabalhadores, seus movimentos e suas organizações, perfazendo uma espécie de “fusão” entre a atividade intelectual e a militância política, faz parte da tradição marxista. De fato, essa história começou com Marx e Engels. Primeiro porque o encontro deles com o MOP foi uma das determinantes no processo que os levou à conceptualização do materialismo histórico (GORAN, 1980). E depois, porque na condição de militantes/pesquisadores, vieram a exercer várias funções no movimento operário. Essa prática dos fundadores se estendeu no tempo, e pelo que nos consta, as principais contribuições à teoria marxista foram ainda realizadas por intelectuais–militantes. Depois da Segunda Guerra, em correspondência talvez com certa fragilização do marxismo, principalmente o marxismo enquanto prática, destacaram–se os denominados marxistas acadêmicos, aparentemente mais centrados na vida profissional universitária. Seja como for, essa interação profunda ou orgânica entre o estudioso marxista e o MOP se afigura como uma tendência do método marxista, observadas, naturalmente, as intermitências ou variações postas pelo curso da sociedade. Convenhamos, no entanto, que essa atividade pedagógica significa mais que o usual na pedagogia bancária burguesa, pois, se é fato que os militantes podem aprender com os professores, estes, dada a natureza intrínseca do marxismo, também podem aprender com os alunos, antes de tudo com os que são integrantes de movimentos ou organizações do MOP, as quais, de modo incipiente ou já estruturado, têm suas próprias análises e formulações sobre a realidade social. É interessante, e possivelmente sintomática, a maneira como os organizadores constituem o “quadro docente” do Curso. Eles contatam professores, de carreira ou não, que se dispõem a esse trabalho. Em seguida oferecem a cada um deles um tema que pode ser negociado. Fechado o assunto, o conteúdo das aulas e do respectivo texto é de sua própria iniciativa e responsabilidade. Essa flexibilidade, de se notar, diz respeito à idiossincrasia dos organizadores, certamente. Mas, também, muito provavelmente ao fato de que, devido ao desmantelamento do movimento comunista internacional, ou, por outra, devido à inexistência de uma força operário–popular hege-
3 mônica ou realmente influente no país, convivemos agora com a presença de muitos “marxismos”. Não obstante, em que pese essa situação, permitimo–nos inferir que, se os professores se dispõe a realizar essa atividade educativa, basicamente às expensas do próprio tempo, é porque esperam contribuir para que, em algum momento um grande partido efetivamente da classe trabalhadora possa se constituir. Os temas que constam do sumário deste livro não são outra coisa, como indicado, que os temas que foram desenvolvidos nas aulas. Os assuntos são diversificados e a maior parte é constituída por análises temáticas da realidade nacional. Queremos ressaltar um aspecto aí que nos parece importante. Tudo indica que os autores, em suas pesquisas, usaram o marxismo não como um cânone restritivo, mas sim, como um “guia para a análise”, para parafrasearmos uma observação de Lênin. Por interpretações restritivas entendemos, grosso modo, aquelas que tendem a ossificar certas categorias do marxismo aplicando–as mais ou menos mecanicamente a qualquer realidade. Esse procedimento foi constitutivo do marxismo da Segunda Internacional. Lênin contestou–o reafirmando que, embora o materialismo histórico implique análises em graus muito diversas quanto ao grau de abstração e generalidade, sua alma e essência é o estudo concreto da realidade concreta, o que lhe permitiu ver que a revolução era possível num país atrasado. Depois da morte de Lênin, porém, sob Stalin, possivelmente devido aos interesses geopolíticos e internos da revolução inconclusa que se havia corporificado no Estado Soviético, um procedimento semelhante ao da Segunda Internacional acabou sendo erigido numa espécie de marxismo oficial do movimento comunista internacional. Fizemos essas observações porque imaginamos que esse esquematismo se encontra hoje superado. No entanto, não tem muito cabimento supormos que o Santo Graal do marxismo foi encontrado. É da natureza deste o querer amalgamar–se no movimento político da classe trabalhadora, influenciando–o mas também sendo influenciado por ele, como indicado anteriormente. Quanto a isto, nossa contribuição deverá ser no sentido de que, se vier a se constituir um novo grande movimento comunista nacional ou internacional, este seja melhor do que foi no passado, pois, o marxismo é ele próprio um produto da história social movente. Quanto aos assuntos deste livro podemos, grosso modo, separá– los em dois grandes eixos: os que direta ou indiretamente tratam da revolução burguesa, ou, de sua consequência, o capitalismo, e aqueles que tratam dos vários fenômenos de resistência ao capitalismo. Não nos surpreende que a temática da revolução burguesa continue tão presente. Este é um tema clássico no marxismo, de fertilidade amplamente reconhecida, inclusive pela historiografia não marxista. Afora
4 isso, temos naturalmente o fato de que sua consequência histórica, o capitalismo, acaba de chegar ao zênite, de sorte que este não pode deixar de ser uma parte de nosso objeto de desejo intelectual, ainda que o seja porque o que realmente almejamos é sua antítese. Com relação aos textos que tratam das diversas modalidades de resistência ao capitalismo, e para não nos alongarmos, destacamos um aspecto. Um dos objetos estudados, que corresponde ao trabalho associado, o qual é uma variante do fenômeno classicamente denominado de controle operário, encontra–se não só presente como também ajuizado de forma positiva pelos autores. O controle operário, que fora uma das grandes forças ativas da revolução soviética, encontrava–se, por assim dizer, no ostracismo da vida social e intelectual da URSS e, por extensão da vida das forças sociais sob sua influência. E a bem da verdade, o controle operário, que poderíamos denominar nos dias de hoje mais propriamente como controle dos trabalhadores, segue eclipsado no MOP. Deste modo, a presença desse tema no livro talvez seja um indicativo de que ao menos embrionariamente, essa categoria, indissociável de uma revolução socialista, começa a dar sinal de si. Finalizando estas considerações queremos dizer que o curso em apreço, com sua respectiva produção intelectual literária, pode ser uma atividade ímpar. Mas, talvez seja um indício de que o movimento operário e popular possa estar se refazendo segundo uma perspectiva de classe, descolando–se do caudal burguês sobre o qual vêm há tanto tempo patinando (PATNAIK, 2017). Motivos não faltam. A revolução burguesa está consumada. E seu resultado, o capitalismo, tornou–se o modo de produção dominante. Contraditoriamente, em vez de propiciar a harmonia econômica e o bem-estar geral, encontra–se mergulhado em grave crise econômica e barbariza as condições de vida dos trabalhadores. Esta situação nos induz a fazer uma pergunta. Poderá o capitalismo, ainda uma vez mais, reerguer–se e reeditar com eficácia sua ideologia do progresso eterno que tanto lhe tem servido como mecanismo de controle da classe trabalhadora? Esta é uma pergunta cuja resposta não se encontra à mão. Mas, se o que está por vir é só a barbárie, uma coisa é certa, a única revolução disponível no horizonte é a socialista. E se assim for, quem pode negar que no movimento prático desta, a apropriação do marxismo pelas massas populares ocuparia um lugar importante ou mesmo primordial? Candido Giraldez Vieitez Vice–coordenador do GPOD UNESP Marília
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Referências KRUPSKAYA, N. La educación laboral y la eneseñanza. Moscou: Progreso, 1986.. PATNAIK, P. Cresce aresistência declasse à “globalização”. Obtido em: <http://resistir.info/patnaik/patnaik_18jun17.html> THERBORN, G. Ciencia, classe y sociedade. Sobre – la formación de la sociologia y del materialismo histórico. Madrid: Siglo veintiuno, 1980.
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Apresentação Na ocasião em que estamos fechando este livro, estamos também vivendo um momento peculiar e bastante difícil no país, ou seja, uma grave crise política, institucional e econômica. Desse modo, do nosso ponto de vista, não há como realizarmos um evento acadêmico–científico, como a publicação desta obra, sem fazer menção e deixar clara nossa crítica radical ao atual governo golpista e às medidas e reformas anunciadas e implantadas no último ano. Medidas como a Reforma Trabalhista que, mascarada com um nome técnico, na verdade cria um balcão de negócios dos direitos trabalhistas. O principal ponto que destacamos nessa reforma é a permissão para que os acordos entre patrões e empregados fiquem acima da lei. Entre os temas passíveis de negociação estão o parcelamento das férias, a redução salarial e o aumento da jornada de trabalho, que pode chegar até 12 horas diárias e 48 horas semanais. Reformas como a Trabalhista e a da Previdência são extremamente danosas e destrutivas dos direitos arduamente conquistados historicamente pela classe trabalhadora. Citamos também a Reforma do Ensino Médio, que não passa de uma falácia, porque não resolve as sérias questões estruturais do ensino, como a formação de professores, e várias outras colocadas pelos estudantes que ocuparam as escolas em passado recente, como as condições de ensino e de infraestrutura das escolas e as classes superlotadas. De nada adianta colocar a pretensa escolha do aluno pela área de exatas ou humanidades, se o professor for mal preparado e se não houver a aplicação de recursos na educação. Além disso, é altamente questionável a flexibilização das matérias, em especial as de educação física, filosofia e sociologia, que deveriam ser obrigatórias para a formação de todo e qualquer cidadão. Com essa reforma, na prática, teremos um aprofundamento da dualidade estrutural escolar, ou seja, uma escola para o rico e outra para o pobre, pois a reforma divide os alunos entre aqueles que terão acesso a um ensino propedêutico e aqueles que terão acesso a um ensino técnico, muitas vezes de baixa qualidade. Por último, fazemos menção à Emenda Constitucional n. 95 de 2016, que congela os gastos sociais por 20 anos, cuja consequência é a extraordinária redução dos recursos destinados à saúde e à educação. Após a sua aprovação ocorreram vários cortes na área da educação em geral e, em especial, nas agências de financiamento à pesquisa e no financiamento do Sistema Nacional de Pós–Graduação.
8 As reformas e medidas que mencionamos, dentre outras, em seu conjunto, operam segundo uma racionalidade que pretende dar continuidade à reconfiguração do estado brasileiro, no sentido de torná–lo o mínimo possível no que se refere à garantia dos direitos sociais, e o máximo para garantir os interesses do capital nacional e internacional, especialmente o financeiro especulativo, afetando a maioria da população brasileira e, de forma mais intensa e cruel, destruindo as conquistas sociais alcançadas pela classe trabalhadora deste país. Os movimentos sociais e entidades representativas dos trabalhadores e população em geral vêm demonstrando, em várias manifestações públicas, a sua grande insatisfação com as reformas e as diretrizes políticas do governo Temer. No entanto, empregando métodos da ditadura militar, o governo vem usando o expediente de reprimir duramente os movimentos e manifestações. Comprometidos com as lutas do nosso tempo histórico, nós do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC) e do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia (GPOD) prosseguimos realizando inúmeras atividades de ensino, pesquisa e extensão junto aos movimentos sociais. Este segundo volume do livro intitulado Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico apresenta capítulos escritos por professores do curso itinerante de mesmo nome. Trata–se de um Curso de Aperfeiçoamento certificado pela UNESP que tem sido frequentado por membros de movimentos sociais, alunos universitários e inúmeros outros interessados nos temas abordados. Os capítulos são fruto das pesquisas realizadas pelos membros do IBEC, GPOD e convidados sobre Karl Marx, Friedrich Engels, marxismo, revoluções, transição ao comunismo, bem como sobre as contribuições dos movimentos sociais, as crises contemporâneas e as lutas anticapital do século XXI. O curso caminha para a sua 5ª Edição, que iniciará seus trabalhos em Campinas, em agosto de 2017, fruto da parceria entre a UNESP e a UNICAMP. Em tempos de liberalismo acadêmico, cabe sublinhar esta iniciativa de somarmos nossos esforços com professores de outras universidades públicas. Em 2018, na 6ª Edição, o curso voltará a ser realizado na cidade de São Paulo, local estratégico do ponto de vista dos movimentos sociais e das lutas anticapital. Cursos como esse são imprescindíveis na atual quadra da história. A Era da Barbárie, ao mesmo tempo em que destrói as conquistas da classe trabalhadora mundial, também produz uma intensa reação por parte dos trabalhadores, em geral não divulgadas pelos meios de comunicação
9 capitalistas. Estamos assistindo cenas de uma guerra civil no plano mundial: lutas por teto; por terra; pela manutenção dos direitos trabalhistas e previdenciários; por trabalho; transporte digno e creches; contra a espoliação dos recursos naturais, ou seja, são lutas pela vida. É possível verificar também que nessas lutas pelos direitos fundamentais começam a surgir ações práticas e bandeiras em torno da autogestão, do trabalho associado, pela desmercantilização da vida, pela propriedade comunal, superação do Estado capitalista, pela democracia e igualdade substantivas, pela educação para além do capital, soberania alimentar, terra de trabalho, agroecologia, dentre outras. É verdade que essas lutas ainda são difusas e esparsas, sem um sentido ou direção comum contra o sociometabolismo do capital. Também é verdade que as trabalhadoras e trabalhadores sabem o que não querem, mas ainda não sabemos muito bem para onde caminhar. Ajudar os movimentos sociais a compreender A Era da Barbárie e a organizar a luta para superar o modo de produção capitalista é uma das funções dos cientistas sociais na sociedade de classes. Desse ponto de vista, a realização do Curso e da publicação que ora apresentamos são também tarefas importantes. Os textos aqui reunidos trazem contribuições fundamentais sobre Karl Marx, Friedrich Engels, Gyorgy Lukács e Florestan Fernandes, dentre outros marxistas, e análises de alguns movimentos sociais contemporâneos e as crises do século XXI. Abrirmos a Parte I denominada Marx, o materialismo crítico e a revolução brasileira com o texto de Newton Ferreira da Silva e Paulo Alves de Lima Filho, que foi denominado A sociedade comunista na visão de Marx e Engels. Para eles, muito além do que uma simples utopia e do significado que passou a ter após as trágicas experiências pós–capitalistas dos países autointitulados socialistas do século XX – especialmente a URSS sob o comando discricionário de Stálin, o comunismo permanece no horizonte dos revolucionários do mundo todo como um modo de produção e de organização social que ainda tem muito a proporcionar à humanidade e ao desenvolvimento dos seres humanos. Estes pesquisadores visam apreender “os nós górdios não desatados que inviabilizaram a transição da sociedade do capital para a sociedade comunista e que decretaram a falência de todos os modelos autoproclamados socialistas do século XX”. Com isso, é imprescindível “retomar e evidenciar as bases desse novo sistema econômico, político e social teorizado por Karl Marx e Friedrich Engels. A despeito de não terem elaborado uma grande obra específica sobre a sociedade comunista – tal qual fez Marx com o capitalismo e o capital no livro O capital – os dois pensadores alemães deixaram espalhadas, ao longo dos anos e de vários trabalhos, formulações e elabora-
10 ções teóricas substanciosas que nos permitem uma incursão guiada neste seu legado”. Sobre as revoluções burguesas radicais – fundamentos de sua dinâmica e limites contemporâneos do capital foi escrito por Paulo Alves de Lima Filho que observa que as revoluções burguesas, de modo geral, são conservadoras ou radicais e evoluem com maior ou menor celeridade, radicalidade e conservantismo. A dialética de sua evolução tem significado vital para entender o sistema mundial do capital e os papéis da vasta constelação de países regidos por ele. Para ele estamos vivendo a era da catástrofe geral e do declínio final do capital, “a partir do surgimento do quarto órgão da máquina, o órgão de controle, propiciado pela revolução microeletrônica e que, por sua vez, faz emergir o novo capital produtivo microeletrônico, parte dinâmica do novo capital financeiro”. Roziane Ferreira da Silva Cerqueira e Rogério Fernandes Macedo escreveram o capítulo O papel das camadas médias militares na revolução brasileira. Eles buscam analisar a importância da camada média militar para o desenvolvimento da revolução burguesa brasileira. Depois de situar o surgimento das camadas médias na história, partem para a especificidade das camadas médias no Brasil e examinam os elementos que a compõe, bem como suas relações com a oligarquia, com a forma específica de absorção da ideologia liberal, com a herança escravocrata do trabalho manual. Por último os autores analisam as baixas camadas médias, na qual se inserem os militares, tendo por objetivo destacar a centralidade da sua atuação para o avanço da revolução burguesa no Brasil. Apontamentos sobre ciência e ideologia nas Ciências Sociais no Brasil: um projeto de revolução brasileira no pré–1964 de Angélica Lovatto contextualiza o debate entre ciência e ideologia nas Ciências Sociais em geral e, no Brasil, em particular. Lovatto toma como referência – além do próprio Karl Marx – o escritor húngaro, György Lukács. A experiência do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros – é tomada como exemplo do fazer ciência e ideologia como momentos integrados de uma mesma construção de um projeto de revolução brasileira, nos anos 1950–60, em especial o projeto editorial que vendeu mais de um milhão de exemplares entre 1962–64: a Coleção Cadernos do povo brasileiro, que foi censurada e encerrada pelo golpe militar. Marcelo Augusto Totti escreveu o capítulo Florestan Fernandes e a construção da sociologia crítica no Brasil. Totti analisou a construção de uma sociologia crítica sob os auspícios de Florestan Fernandes, que se dedicou intensamente a dar moldes científicos a essa disciplina, criando um modo de pensar, fazer e uma interpretação da sociologia no Brasil. Para ele, a literatura convencionalmente aponta que o pensamento de Florestan
11 está divido em duas fases: acadêmico–reformista antes do golpe civil/militar e, posteriormente, político–revolucionária, mas observa que a perspectiva crítica e militante sempre esteve em suas obras e que o marxismo aparece com suas devidas ênfases nesses dois períodos aparentemente distintos, conteúdos e visões que possibilitaram a construção de uma sociologia crítica no Brasil. O capítulo As contribuições de Florestan Fernandes na defesa da Escola Pública brasileira (1980 – 1995) – escrito por Fabiana de Cássia Rodrigues e Lucelma Braga – discute as contribuições de Florestan Fernandes na defesa da escola pública no período entre 1980 a 1995. Para elas as ideias e propostas desse intelectual marcaram o debate educativo no Brasil, no período destacado, que parte dos primeiros anos da abertura política após a ditadura militar até o debate em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), n. 9394/1996. A Parte II do livro traz as contribuições ao debate dos Movimentos Sociais e Crises Contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico. Marcos Del Roio debateu As raízes da regressão no mundo árabe. Este pesquisador considera que a partir da mobilização popular que colocou abaixo a ditadura vigente na Tunísia a mídia difundiu a expressão primavera árabe para a série de eventos que se sucederam. Para o pesquisador é perceptível que a Primavera forma eventos diferenciados e com muitos vetores, que se manifestam quase todos no conflito armado que corrói a Síria. Seu capítulo oferece um amplo panorama para sugerir a explicação da forte regressividade presente no mundo árabe, mesmo com a existência de microrregiões de incrível riqueza. O capítulo intitulado Um panorama dos movimentos sociais latino–americanos e a pedagogia do trabalho associado foi escrito por Neusa Maria Dal Ri. A pesquisadora apresenta um panorama dos novos movimentos sociais da América Latina, analisa suas principais características e sua relação com o trabalho e a educação. A autora observa que “Um elemento marcante e inovador que se pode observar nas organizações e nos novos movimentos sociais da América Latina é a exigência de que a democracia avance para além do formalismo vigente. Uma grande parte desses movimentos, numa singular inflexão histórica, afronta a democracia burguesa liberal”. Afirma, ainda, que a demanda por democracia real não se dirige apenas contra a democracia liberal burguesa. Aparece também interna às entidades e movimentos populares, nas quais são cada vez menos toleradas a hierarquização autoritária e o assenhoreamento das organizações por lideranças, quadros, grupos ou partidos, que no passado, como agora, com frequência descolam–se das bases representadas. Apre-
12 senta ainda exemplos de dois movimentos sociais que, de forma inusitada, aliam a política, a economia e a cultura e criam sistemas próprios de trabalho associado e de educação democrática. Las empresas recuperadas por los trabajadores en Argentina: límites y potencialidades de una experiencia de autogestión foi escrito por Andrés Ruggeri. Este pesquisador observa que as empresas recuperadas argentinas são o movimento mais numeroso e dinâmico da autogestão operária nos últimos 15 anos. O capítulo nos mostra o processo de recuperação de empresas por trabalhadores como um dos movimentos sociais mais relevantes, principalmente como fruto da crise de 2001. Ele analisa também as formas de desenvolvimento de uma forma coletiva de gestão do trabalho, sua inserção nas redes de apoio mútuo, a relação com o Estado, além dos limites e possibilidades das recuperadas como forma alternativa de trabalho no contexto neoliberal global. Angelo Diogo Mazin, Marcio Jose dos Santos e Selma de Fatima Santos escreveram o capítulo Reflexões sobre a questão agrária no Brasil e a trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Este texto trata sobre os principais aspectos da história da Questão Agrária no Brasil, buscando centrar o debate no latifúndio e seu papel na configuração de uma economia dependente da exportação de commodities. Eles também observam que essa contradição inerente ao modo de produção capitalista possibilita o surgimento de várias lutas e movimentos que atuam na democratização da terra. Os autores – militantes do MST – analisam o seu surgimento e descrevem o programa de luta chamado Reforma Agrária Popular. Henrique Tahan Novaes e João Henrique Pires escreveram o capítulo Corporações transnacionais, a agenda agroecológica do MST e as escolas de agroecologia. Este capítulo nos mostra a ascensão das grandes corporações, especialmente as corporações ligadas ao agronegócio. Eles observam que as promessas da chamada “revolução verde” não foram cumpridas e que há um fetichismo da mesma. Novaes e Pires retratam as lutas dos movimentos sociais contra a “revolução verde” e pela soberania alimentar, dando destaque a questão de gênero, e resgatam as lutas sociais na América Latina que podem nos ajudar a construir uma sociedade para além do capital. Por último, trazem a experiência das escolas de agroecologia do MST e sua relação com o mundo do trabalho. A pesquisadora Bruna Vasconcellos apresenta o capítulo Bordando uma história de luta das mulheres populares na América Latina. Como o próprio título sugere, ela borda uma história de luta das mulheres populares na América Latina. Por meio do resgate de autoras que analisam as lutas feministas e de mulheres na região, ela destaca especialmente a atua-
13 ção das mulheres que – à margem do sistema socioeconômico – tem alavancado disputas históricas em nosso território. Bruna Vasconcellos relaciona o papel social das mulheres populares e a disputa que surge em torno do lugar social do cuidar. O capítulo aborda também as relações que hoje se estabelecem no Brasil entre essa luta histórica das mulheres populares e as ações no campo do trabalho associado e da agroecologia nos últimos anos. Tecnologia e democracia: da tecnologia social à construção de alternativas tecnológicas pelos movimentos sociais – de Lais Fraga – nos traz o debate sobre tecnologia e democracia e parte da perspectiva de autores que, para além da crítica aos efeitos negativos da tecnologia, exploram as possibilidades de construir trajetórias tecnológicas alternativas. Tendo como marco analítico os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, o capítulo analisa experiências de resistência tecnológica em movimentos sociais e, como resultado, aponta a criação de alternativas tecnológicas em oposição a modelos hegemônicos, concorrentes entre si. Autodeterminação indígena – o sentido do movimento histórico e a riqueza das múltiplas possibilidades futuras, de Daniel Lopes Faggiano, destaca que, em um contexto de guerra permanente, desde o contato colonial, existir, para os povos indígenas, é também resistir. Mesmo após mais de 500 anos de violenta opressão, persistem os povos, produzindo e reproduzindo seu modo de vida tradicional. Contrários à mercantilização da vida e da natureza, na atual crise estrutural do capital, Faggiano faz a seguinte pergunta: podem os povos indígenas alavancar a luta pela superação desta sociabilidade da miséria? Reforma do Estado, administração pública e sociedade civil: alguns apontamentos foi escrito por Julio Cesar Torres. Este pesquisador retoma o debate da Reforma do Estado no Brasil contemporâneo, a partir de uma contextualização histórica e crítica, lançando luz aos desafios colocados para a administração pública e suas políticas, frente ao avanço das demandas sociais que pressionam o Estado no sentido da garantia dos direitos de cidadania e da consolidação da democracia. Torres compreende o Estado como o resultado da construção histórica da organização política de uma dada sociedade e defende um maior protagonismo da sociedade civil nos projetos de Reforma do Estado. Não por acaso, ao se despolitizar a discussão do papel da sociedade civil diante da sociedade política representada pelo Estado, o público não–estatal ocupa posição-chave no projeto de Reforma dos anos 1990, elegendo–se a administração pública gerencial, pelos vieses da publicização e da privatização, como paradigma de superação da administração burocrática. Júlio Torres finaliza o capítulo observando que os problemas históricos e estruturais do Estado brasileiro ocupam
14 posições secundárias nesse debate, abandonando–se o sentido da res publica. Yuri Barnabé escreveu o capítulo Crise na Saúde: uma análise marxista da história recente da saúde pública brasileira e como vem sendo precarizada em prol da manutenção do status quo do sistema capitalista. Barnabé explica como a história recente da saúde pública brasileira passou de grandes conquistas em relação a direitos universais do ser humano até vir a ser expropriada com o início da era neoliberal da política brasileira que vem, sistematicamente, com o apoio da burguesia nacional brasileira e internacional, retirar os direitos e financiar o lucro do privado. Para ele, ter clareza desse processo nos permitirá tomar consciência da luta em defesa de um direito tão importante como a saúde. Por último, Fátima Cabral nos brinda com o capítulo O rap e as formas elementares da espontaneidade. Ela destaca certos aspectos presentes no movimento RAP, em especial seu particularismo periférico e a centralidade discursiva individual. Esta pesquisa problematiza o fato desse discurso localista e fragmentado ser também fragmentador, pois se baseia na questão da identidade, o que reforça os especifismos. Tomando as experiências criativas como constitutivas de um movimento social que incorpora todas as lutas, ela busca então avaliar a dimensão política desse movimento no complexo sistema de emancipação humana. Boa Leitura!
Henrique Tahan Novaes (IBEC–GPOD) Neusa Maria Dal Ri (GPOD) Organizadores Junho de 2017
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PARTE I Marx, os clássicos do materialismo crítico e a revolução brasileira
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1– A sociedade comunista na visão de Marx e Engels 1
Newton Ferreira da Silva Paulo Alves de Lima Filho
A sociedade comunista na visão de Marx e Engels Nos dias de hoje há inúmeras razões que podem nos ajudar a compreender o porquê da cada vez mais frequente aplicação e apropriação incorretas da palavra comunismo – e de suas respectivas variantes. Longe de ser um fenômeno localizado, essa cacofonia sobre o comunismo reproduz–se em praticamente todas as esferas sociais – sejam elas reféns diretas do senso comum transmitido diuturnamente, sejam elas supostamente eruditas e ilustradas. No próprio meio acadêmico (hipoteticamente científico e comprometido com o conhecimento e com a verdade) ainda é patente uma visão deformada e tendenciosa do significado desse vocábulo. Tal fato pode ser explicado, grosso modo, ou por uma formação teórica lacunosa e alienada do estudioso ou por este ter interesses outros que não a emancipação da classe trabalhadora. Não são poucos os que, por exemplo, empenhados e determinados na defesa do status quo, confundem, propositadamente ou não, conceitos totalmente antagônicos, tais como stalinismo/comunismo e capitalismo/democracia. Partidos e países espalhados pelos mundos autointitulados comunistas que não o são de fato, expoentes de propaganda anticomunista ainda presentes tanto nos meios de comunicação de massa quanto nas mercadorias produzidas dia após dia pela indústria cultural, ajudam a reforçar uma não ideia a respeito do comunismo, o que esvazia decisivamente o conteúdo desse candente conceito, assim como o arcabouço teórico que o envolve e o alicerça. Partindo dessa constatação, mas tendo como objetivo maior a apreensão dos nós górdios não desatados que inviabilizaram a transição da sociedade do capital para a sociedade comunista e que decreEste capítulo baseia–se, em grande medida, na primeira parte da tese de doutoramento em Ciências Sociais defendida por Newton Ferreira da Silva (bolsista da CAPES) no ano de 2015 na UNESP/Campus Marília. Quase a totalidade dos parágrafos deste texto foi dali extraída, não obstante a essencial e decisiva colaboração de Paulo Alves de Lima Filho (professor doutor da FATEC/Mococa) na conformação da versão final aqui apresentada. Este capítulo saiu no Livro “Questão agrária, cooperação e agroecologia”. São Paulo, Expressão Popular, 2015, volume 1, organizado por Angelo Diogo Mazin, Henrique Novaes e Lais Santos. 1
18 taram a falência de todos os modelos autoproclamados socialistas do século XX, é que adveio a necessidade de retomar e evidenciar as bases desse novo sistema econômico, político e social teorizado por Karl Marx e Friedrich Engels. A despeito de não terem elaborado uma grande obra específica sobre a sociedade comunista – tal qual fez Marx com o capitalismo e o capital no livro O capital – os dois pensadores alemães deixaram espalhadas, ao longo dos anos e de vários trabalhos, formulações e elaborações teóricas substanciosas que nos permitem uma incursão guiada neste seu legado. Marx e Engels, em consonância com a sua metodologia materialista dialética, extrapolam a delimitação conceitual imanente às doutrinas científicas ao afirmar que, antes de tudo, o comunismo é um movimento que revoluciona e transforma radicalmente a sociedade. “Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual.”. Ressalte–se aqui a palavra real, pois ela determina e enfatiza a noção de que qualquer processo revolucionário verdadeiro deve se descortinar e ser realizado na objetividade das relações sociais, assim como estão arraigados – com profundas raízes objetivas – o sistema do capital e sua alienação consequente. Dessa forma, “somente é possível efetuar a libertação real no mundo real e através de meios reais […]. A ‘libertação’ é uma ato histórico e não um ato de pensamento, e é efetivada por condições históricas…” (MARX & ENGELS, 1987, p.52 e p.65) A importância da justa apreensão da teoria marxiana do comunismo se assenta no fato de que, para os dois teóricos alemães, este seria o modo de produção que finalmente extinguiria a contradição axial e basilar existente na maioria das organizações sociais e econômicas ao longo de toda a história da humanidade a partir do fim da sociedade tribal, qual seja, a desigual relação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, cuja manifestação, no moderno sistema capitalista industrial, é observada na luta de classes entre burgueses proprietários dos meios de produção (dos meios de vida em geral) e proletários não proprietários (simples possuidores da sua força de trabalho). Portanto, para Marx, o enigma da história se desfaz com a supressão da propriedade privada e com a ascensão e desenvolvimento da sociedade que baseia a sua produção na posse coletiva dos meios que a realizam. Conforme definiu Marx ainda em um dos seus escritos da juventude: O comunismo sabe–se como reintegração ou regresso do homem a si, como supressão da auto–alienação humana… O comunismo como supressão positiva da propriedade privada (enquanto auto–alienação humana) e por isso como apropriação real da essência humana pelo e para o homem; por isso como regresso completo, consciente e advindo
19 dentro de toda a riqueza do desenvolvimento até agora, do homem a si próprio como um homem social, i. é, humano. […] ele é a verdadeira resolução do conflito do homem com a Natureza e com o homem, a verdadeira resolução da luta entre existência e essência, entre objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma da história resolvido e sabe–se como essa solução. (MARX, 1994, p.92)
Já nos escritos de maturidade, especialmente no Das Kapital, Marx afirma que o sistema do capital, ao universalizar a mercadoria como forma do valor, só poderia ser superado através da supressão do valor, do mundo das mercadorias. Isto posto, ir além do capital é ir além da forma valor, além das mercadorias, através do trabalho coletivo, consciente e voluntário dos trabalhadores, dessa maneira, então, autoemancipados, desalienados. Observar a diferença essencial entre a emancipação concebida na juventude e aquela alcançada no ápice de sua teoria, em sua maturidade. Não mais bastaria a exclusiva supressão da propriedade privada dos meios de produção. Fazia–se necessária a existência de uma forma coletiva, voluntária e consciente de trabalho para superar a forma social da mercadoria, onde esse trabalhador coletivo se põe na história, portanto, como não–mercadoria. Daí que o lema da Internacional de Marx, dissesse, não como meras palavras, ser a emancipação dos trabalhadores obra dos próprios trabalhadores. Dado o primeiro e principal passo, aquele que se refere ao domínio social coletivo definitivo dos meios de reprodução e dos meios de vida em geral, à humanidade será possibilitada uma existência plenamente consciente e não alienada. Como proprietário direto dos meios de produção, o homem passa a ter autonomia e controle total sobre seus atos – passa a compreender a complexa e dialética lógica que compõe a realidade que se descortina à sua frente. Ao não ter mais o seu trabalho apropriado particularmente por um capitalista ou por um Estado, passa a contribuir direta e conscientemente para a produção coletiva e para a distribuição social. Tal participação se dá de forma consciente e voluntária e não mais de maneira imposta e alienada (agora decide e compreende o seu papel individual na produção e na sociedade como um todo). A história do homem e a história da humanidade passam a ser construídas mediante planejamento e participação direta e consciente da grande comunidade humana, do trabalhador coletivo mundial. Desse modo, as leis imanentes da natureza voltam a pertencer apenas à natureza e o naturalismo não terá mais espaço e sentido nos atos que tem o intuito de compreender aquilo que é, ineludivelmente, uma determinação social e histórica e não uma construção supostamente "natural". Enfim, os homens
20 estarão aptos a começar a escrever e vivenciar conscientemente a sua história e a história da humanidade: o fim da alienação propicia o advento do sujeito histórico plenamente sabedor e conhecedor da sua condição diante da e na sociedade. Conforme afirmação de Engels extraída da obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1981): Ao apossar–se a sociedade dos meios de produção, cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores. A anarquia reinante no seio da produção social cede o lugar a uma organização planejada e consciente. Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o homem sai definitivamente do reino animal e sobrepõe–se às condições animais de existência, para se submeter às condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e até agora o dominam, colocam–se, a partir desse instante, sob o seu domínio e o seu comando e o homem, ao tornar–se dono e senhor das suas próprias relações sociais, converte–se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis da sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam ao seu império, são agora aplicados por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidos ao seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é, de agora em diante, obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história, colocam–se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e em cada vez maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade. (p. 76–7, itálicos nossos)2
Longe de prescrever qualquer tipo de vida estoica e espartana – em que o consumo deve ser restrito e racionado graças a uma suposta baixa produtividade e a um pequeno volume de produção – o comunismo é, ao contrário, o sistema que, pela libertação das forças produtivas das amarras do capital, propiciará o maior desenvolvimento econômico jamais visto na história da humanidade. Isto será também verdadeiro devido não só à evolução progressiva da tecnologia aplicada à produção, mas porque Não obstante a relevância desta asserção de Engels, ela deverá ser entendida como uma simplificação a nosso ver exagerada da proposta teórica de Marx, mais próxima dos escritos de juventude deste, dado que na afirmação “Ao apossar–se a sociedade dos meios de produção, cessa a produção de mercadorias e, com ela, o domínio do produto sobre os produtores” lhe falta a realidade vital e necessária da existência da propriedade direta dos meios de produção por parte dos coletivos de trabalhadores organizados voluntária e conscientemente a mover essa desalienação. Como ficou demonstrado da experiência das revoluções autoproclamadas socialistas do século XX, da nacionalização e estatização dos meios de produção não brota automaticamente o comunismo, ou seja, a supressão do mundo das mercadorias, do valor. 2
21 a anarquia produtiva do sistema de outrora e o consumo irresponsável típico da sociedade capitalista – estimulado e reproduzido mormente pela classe burguesa – serão destronados e não ocuparão mais lugar nenhum na nova sociedade de produtores livremente associados. Segundo Engels, o modo de produção comunista compreenderia a saciedade de todas as necessidades da população através da produção social abundante dos produtos e meios necessários para a sobrevivência e para o livre desenvolvimento (físico, intelectual, cultural) de toda a comunidade. As desavenças, concernentes às questões de consumo e propriedade não conseguirão encontrar lugar num sistema baseado na posse coletiva e social e na plena abundância dos víveres e dos demais produtos. "[…] todas as colônias comunistas chegam a ser, ao cabo de dez ou quinze anos de funcionamento, tão enormemente ricas que contam com maior quantidade de coisas desejáveis do que poderiam consumir, razão pela qual não há motivo algum de desavença." (ENGELS, 1845, p. 554, nossa tradução) Diante dessa nova condição de vida – assentada na abundância da produção social e na satisfação material de toda a humanidade – torna–se factível a libertação do homem, que passa a poder dedicar–se finalmente não só ao trabalho necessário e excedente, mas também ao fruir espiritual e ao desenvolvimento cultural. Em suma, estabelecem–se as condições materiais básicas (de produção e consumo) para que se realize a emancipação dos homens e mulheres. A emancipação econômica possibilita e conduz à emancipação completa dos seres humanos (sujeitos partícipes conscientes) envolvidos na então nova realidade social construída e eternamente em construção. Assim definiu F. Engels: A força expansiva dos meios de produção rompe as amarras com que são submetidos pelo modo capitalista de produção. Só esta libertação dos meios de produção pode permitir o desenvolvimento ininterrupto e cada vez mais rápido das forças produtivas e, com isso, o crescimento praticamente ilimitado da produção. Mas não é apenas isso. A apropriação social dos meios de produção não só elimina os obstáculos artificiais hoje antepostos à produção, mas põe termo também ao desperdício e à devastação das forças produtivas e dos produtos, uma das consequências inevitáveis da produção atual e que alcança o seu ponto culminante durante as crises. Além disso, acabando–se com o parvo desperdício do luxo das classes dominantes e de seus representantes políticos, será posta em circulação para a coletividade toda uma massa de meios de produção e de produtos. Pela primeira vez, surge agora, e surge de um modo efetivo, a possibilidade de assegurar a todos os membros da sociedade, através de um sistema de produção social, uma existência que, além de satisfazer plenamente e cada dia mais abundantemente as suas necessidades materiais, lhes assegura o livre e completo desenvolvimen-
22 to e exercício das suas capacidades físicas e intelectuais. (1981, p. 75, itálico original, negritos nossos)
A nova sociedade comunista, com as suas novas relações de produção e novas possibilidades de existência, criará uma nova civilização de homens e mulheres com pensamento e consciência diversos daqueles observados entre os alienados seres sociais provenientes da sociabilidade burgo–capitalista. A transformação objetiva, material e real na sociedade (num primeiro momento mais especificamente concentrada na infraestrutura econômica) construirá os pilares que possibilitarão o surgimento de novos seres sociais com uma nova consciência. Por conseguinte, infere–se que a emancipação do trabalho e da consciência (então finalmente libertos e desalienados) não poderá partir da própria consciência, mas sim de uma nova realidade social e econômica concreta e objetivamente construída. A esse respeito, Marx e Engels sentenciaram: "Será necessária inteligência tão profunda para entender que, com a mudança das condições de vida das pessoas, das suas relações sociais, de sua existência social, também se modificam suas representações, concepções e conceitos, em suma, também sua consciência?" (1998, p. 26) Para executar o seu trabalho, o homem necessita das condições propiciadas pela natureza – não possuí–las significa ter que trabalhar e ser explorado por aqueles que a usurparam e a tornaram sua propriedade privada: "…do condicionamento natural do trabalho segue–se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna–se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho." (MARX, 2012, p. 24, itálicos meus) Justamente a supressão da propriedade burguesa sobre os meios de vida (expressão mais moderna e completa da propriedade privada em geral) é o que propõe a teoria comunista. O capitalismo acabou com a propriedade privada individual e estabeleceu a propriedade privada capitalista; o comunismo deve transformar essa propriedade capitalista em propriedade social, coletiva. Cabe ressaltar que não se trata da extinção da propriedade em si, mas sim da extinção e aniquilamento da propriedade capitalista – aquela propriedade de uns poucos que possibilita a submissão forçada e a escravização da maioria legalmente (jurisprudência burguesa) despossuída. Trata–se de criar uma sociedade em que a propriedade dos meios de produção e dos meios de vida seja uma realidade material cotidiana para todos e não uma quimera existente apenas para a classe produtora. Já afirmavam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: "O que caracteriza o comunismo não é a supressão da propriedade em si, mas
23 a supressão da propriedade burguesa. […] os comunistas podem resumir sua teoria em uma única expressão: supressão da propriedade privada. […] fim da propriedade de classe…" (MARX & ENGELS, 1998, p. 21 e p. 24) Dessa forma, a apropriação dos bens e produtos (então já todos de propriedade social e coletiva) será natural à toda população no "modo comunista de produção e de apropriação". O que se tornará inadmissível é a utilização desse tipo de posse coletiva e provisória para se explorar o trabalho de outrem. "O comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar–se de produtos sociais; apenas suprime o poder de, através dessa apropriação, subjugar trabalho alheio." (MARX & ENGELS, 1998, p. 24 e p. 23) A assunção desse modo de produção superior se dará, antes de mais nada, mediante a posse coletiva e social da terra e dos meios de produção. De fato, nada poderá ser propriedade privada individual ou coletiva de forma definitiva, pois por propriedade entende–se, antes de tudo, algo que se espalha ao longo do tempo, algo então que não é passível de transferência universal e contínua – condição incongruente com o modo de produção e a organização social comunistas. A posse (provisória) dos meios de vida deve contrapor–se à sua propriedade (definitiva). Coletivamente, os seres humanos de cada geração serão os arrendatários zelosos de toda a natureza, responsáveis por transferir solidariamente aos seus descendentes as condições de reprodução social outrora herdadas de seus antepassados. No Livro III, de O capital, Marx escreveu: Quando a sociedade atingir formação econômica superior, a propriedade privada de certos indivíduos sobre certas parcelas do globo terrestre parecerá tão monstruosa como a propriedade privada de um ser humano sobre outro. Mesmo uma sociedade inteira não é proprietária da terra, nem uma nação, nem todas as sociedades de uma época reunida. São apenas possuidoras, usufrutuários dela, e como bonipatres familias [bons pais de família] têm de legá–la melhorada às gerações vindouras. (MARX, 2008, p. 1028–1029, negritos nossos)
Numa sociedade comunista, onde a produção assenta–se na propriedade coletiva dos meios de vida e está organizada a partir da livre e consciente associação de produtores, o produto total é, lógica e coerente mente, social. Isto posto, sua distribuição baseia–se na mesma prerrogativa, variando o modo que ela se realizará a depender do nível de desenvolvimento da sociedade onde esse modo de produção se descortina. Não há mais fantasmagoria ou alienação: as relações sociais se dão entre homens emancipados que compreendem e participam conscientemente da vida social. O valor de um produto é medido pelo tempo de trabalho socialmente
24 necessário para fabricá–lo e não mais pelo seu preço (valor de troca). É o fim do fetiche da mercadoria e da própria mercadoria. No Livro I, de O capital, Marx afirmou: Suponhamos […] uma sociedade de homens livres, que trabalham com meios de produção comuns e empregam as suas múltiplas forças individuais de trabalho, conscientemente, como força de trabalho social. […] Em nossa associação, o produto total é um produto social. Uma parte desse produto é utilizada como novo meio de produção. Continua sendo social. A outra parte é consumida pelos membros da comunidade. Tem, portanto, de ser distribuída entre eles. O modo dessa distribuição variará com a organização produtiva da sociedade e com o correspondente nível de desenvolvimento histórico dos produtores. […] Neste caso, as relações sociais dos indivíduos no tocante a seus trabalhos e aos produtos de seus trabalhos continuam meridianamente claras, tanto na produção quanto na distribuição. (MARX, 2006, p. 100)
Se em todas as sociedades fossem vigentes repúblicas e comunas centralizadas no trabalho e no trabalhador, em vez de concentradas nas lutas pelo poder dinástico e financeiro, as guerras não teriam motivo para ocorrer. A cooperação internacional seria o modus operandi fundamental da relação entre as diversas repúblicas do trabalho numa grande sociedade comunista em escala planetária. "…em contraste com a velha sociedade, com suas misérias econômicas e delírio político, uma nova sociedade está a desabrochar, uma sociedade cuja regra internacional será a paz, porque em cada nação governará o mesmo princípio – o trabalho." (MARX, 2011, p. 25, itálicos originais) Quando finalmente as relações de produção comunistas forem libertadas a partir das forças produtivas desenvolvidas (até então) capitalistas, a classe trabalhadora se tornará proprietária dos meios de produção e passará a controlá–los e gerenciá–los de uma nova forma planejada e com o objetivo precípuo de atender à demanda de toda a população e de cada indivíduo tomado isoladamente. A decisão da produção – o que, quanto e como será produzido – será alçada de todos esses novos seres sociais conscientes que participam ativamente da construção da realidade social que os envolve e os define. À anarquia da produção observada no capitalismo será contraposto um novo sistema de cooperação e cogestão que, com a participação direta ou indireta de toda a comunidade, transformará a passada atuação política burguesa – de grupelhos interessados no favorecimento estatal dos seus representados (latifundiários, industriais, rentistas e capitalistas em geral) – em consciente atuação coletiva sobre as questões concernentes à administração da coisa pública e da produção social de bens que garantam a
25 sobrevivência e o fruir da espécie humana e do meio ambiente, não apenas da geração atual, mas de todas as que herdarão esse novo sistema social e as riquezas naturais proporcionadas pelo planeta em que vivemos e do qual dependemos e somos parte intrínseca. Ato contínuo, parte da produção deverá ser destinada para investimentos no desenvolvimento ulterior da produção e da comunidade e parte para fruição imediata e consumo de cada indivíduo. No texto Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels sumarizou a questão: No dia em que as forças produtivas da sociedade moderna se submeterem ao regime congruente com a sua natureza por fim conhecida, a anarquia social da produção deixará o seu posto à regulamentação coletiva e organizada da produção, de acordo com as necessidades da sociedade e do indivíduo. […] por um lado, apropriação diretamente social, como meio para manter e ampliar a produção; por outro, apropriação diretamente individual, como meio de vida e de proveito. (ENGELS, 1981, p. 71–2)
Finda a transição ao comunismo e extintas as classes sociais, o Estado e o poder político soçobram naturalmente frente ao advento e à consolidação da sociedade sem classes. Como sempre são utilizados para reprimir uma classe por outra e impor sua ordem, perdem a razão de sua existência e desaparecem no novo contexto social de ausência de antagonismo de classes – ou seja, se não há mais classes, não há mais Estado. Numa sociedade sem classes, o Estado é um instrumento dispensável e inútil pois não há adversários a serem reprimidos e controlados. Conforme já asseveravam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista de 1848: Uma vez que, no processo, desapareçam as diferenças de classe e toda a produção esteja concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para dominar outra. Se, em sua luta contra a burguesia, o proletariado […] se converte em classe dominante e, como tal, suprime violentamente as velhas relações de produção, então, junto com elas suprime os antagonismos de classes e as classes em geral e, com isso, abole a sua própria dominação de classe. (MARX & ENGELS, 1998, p.28–29, itálicos nossos)
Quando uma comunidade governa a si mesma (todos "simultaneamente encarregados da administração dos interesses comuns"), ela, na verdade, não governa a si mesma (na conotação mais comum), pois ela é ela mesma e não outra. Isto é, quando as pessoas se governam, não se pode ver isto como a presença de um outro ser/instituição o realizando, haja vista que as determinações são internas e autocolocadas pela própria comunidade. A ideia de governo (principalmente aquele amparado numa ma-
26 quinaria estatal) relaciona–se à posição de uma instituição externa à Comuna, que a controla e estabelece as normas e a organização da mesma. Nesse sentido, o autogoverno é o não governo (de terceiros, de membros ou seres exteriores à comunidade). Um ente só consegue governar um outro, exterior a ele. O próprio governo no comunismo é o não governo, porque não existe mais classes (nem o outro); todos fazem parte da mesma comunidade que se autogere. "Pois a questão começa com o autogoverno da comuna. […] Quando um homem governa a si mesmo, segundo esse princípio ele não governa a si mesmo, pois ele é ele mesmo e não outro." (MARX, 2012, p. 113) Com o controle e planejamento cada vez maior da produção pelos homens, o Estado vai se tornando cada vez mais supérfluo: tanto devido ao fim das classes sociais como devido ao fato de que o principal objetivo – a propriedade social dos meios de produção e o seu consequente domínio consciente – já foi concretizado pelos produtores livremente associados. "À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai–se diluindo também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim da sua própria existência social, tornam–se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres." (ENGELS, 1981, p. 79) Desse modo, a organização e controle políticos são subsumidos no planejamento econômico de toda a produção social assentada em meios de produção de propriedade coletiva e nas tarefas de administração do que é público. O fim da política, mediante a sua apropriação pela economia e pela gestão social do que é público, seria possibilitado nesse novo e hipotético cenário a partir da constatação da desnecessidade de qualquer tipo de instituição de poder em uma sociedade comunista. Não havendo mais poder em disputa – devido à inexistência de classes sociais – os resquícios das práticas políticas de outrora deverão ser empregados como a somatória dos esforços individuais para colaborar com a administração da coisa pública e, mais especificamente, com o controle e planejamento econômico da produção social total. Na citação que segue, apõe–se uma interpretação da ideia de Saint–Simon por Engels referente à subsunção da política na economia, no sentido de que o Estado seria desmantelado institucionalmente com a estruturação de um sistema de planificação, organização e controle da produção dos bens de consumo necessários à vida humana. Asseverou Engels (1981, p. 37): Em 1816, Saint–Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz já a total absorção da política pela economia. E se aqui não se faz senão aparecer em germe a ideia de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama já claramente a transformação do governo político sobre os homens numa administração das coisas e na di-
27 reção dos processos de produção, que não é senão a ideia da "abolição do Estado", que tanto alarde levanta atualmente.
Na própria experiência francesa observada no período da sublevação proletária de 1871 (A Comuna de Paris), a administração estatal, da coisa pública, ficou plenamente sob o controle da Comuna (isto é, sob o controle de legítimos representantes da classe trabalhadora). Nessa situação, não existia nenhuma vantagem ou ganho de status por se exercer uma função governamental. Ali, cada trabalhador executava algo que lhe foi delegado pela maioria e, para tanto, recebia o mesmo salário dessa maioria operária que o elegeu. Uma vez eleito para o cargo, poderia ter o seu mandato revogado a qualquer momento pelos seus eleitores. Privilégios e tratamento diferenciado foram abolidos do sistema de organização e gerenciamento da coisa pública. Funcionários de todos os ramos da administração poderiam ser substituídos caso não se portassem como verdadeiros agentes (práticos, executores) dos desígnios da comunidade. Cabe aqui ressaltar que todos os servidores públicos deveriam ser eleitos, até mesmo aqueles vinculados ao sistema judiciário. "Tal como os demais servidores públicos, os magistrados e juízes deviam ser eletivos, responsáveis e demissíveis." (MARX, 2011, p. 57) A Comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento. A maioria de seus membros era naturalmente formada de operários ou representantes incontestáveis da classe operária. A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo. […] Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha que ser remunerado com salários de operários. Os direitos adquiridos e as despesas de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios altos dignitários. As funções públicas deixaram de ser propriedade privada dos fantoches do governo central. Não só a administração municipal, mas toda iniciativa exercida até então pelo Estado foi posta nas mãos da Comuna. (MARX, 2011, p. 56–57, itálicos originais)
O autogoverno provincial e comunal deveria substituir a centralização do poder estatal de outrora, consolidando a Comuna como estrutura política básica e comum a todos os vilarejos, bairros etc. Isto significa que, a despeito da existência de um órgão central de governo, as pequenas ou grandes comunas provinciais teriam total independência em relação a ele ao mesmo tempo que, através de seus participantes da plenária nacional, fariam parte de desse governo central (mas, ressalte–se, não centralizador). Ao descrever, na citação a seguir, o experimento político vivenciado naqueles dias da Comuna de Paris, Marx parece fincar as bases teóricas do
28 que seria a forma política mais coerente e consequente para o proletariado revolucionário no poder que busca construir e consolidar uma sociedade comunista. Uma vez que o regime comunal estava estabelecido em Paris e nos centros secundários, o antigo governo centralizado também teria de ceder lugar nas províncias ao autogoverno dos produtores. No singelo esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, consta claramente que a comuna deveria ser a forma política até mesmo das menores aldeias do país… Às comunidades rurais de cada distrito caberia administrar seus assuntos coletivos por meio de uma assembleia de delegados com assento na cidade central do distrito, e essas assembleias, por sua vez, enviariam deputados à delegação nacional em Paris, sendo cada um desses delegados substituídos a qualquer momento e vinculado por mandat imperátiv (instruções formais) de seus eleitores. (MARX, 2011, p. 57–58, itálicos nossos)
Dessa maneira, em uma sociedade organizada com base em comunas, as eleições ganham um outro caráter à medida que os cidadãos trabalhadores aclamados e escolhidos pelo povo nas urnas como seus representantes podem ser retirados do cargo a qualquer hora, assim como, para permanecerem no posto, devem ser fiéis emissários/delegados reprodutores das ideias daqueles que o escolheram – a sua função é representar, e com restrições às suas idiossincrasias, os anseios e as opiniões de um grupo de pessoas que convivem com eles na mesma comunidade. Pode– se inferir daí que as eleições e o sistema representativo político típicos da democracia burguesa não serão completamente alijados no período de transição liderado pelas comunas de trabalhadores. Na verdade, serão aperfeiçoados no intuito de se construir uma verdadeira democracia representativa – realidade política distante para todos os plutocráticos países capitalistas que vivem uma indefectível ditadura do capital nos dias de hoje. Em lugar de escolher uma vez a cada três ou seis anos quais os mem bros da classe dominante que irão atraiçoar [misrepresent] o povo no Parlamento, o sufrágio universal serviria ao povo, constituído em comunas, do mesmo modo que o sufrágio individual serve ao empregador na escolha de operários e administradores para seu negócio. […] geralmente sabem colocar o homem certo no lugar certo, e se nessa escolha cometem um erro, sabem repará–lo com presteza. (MARX, 2011, p. 58)
Marx, na citação a seguir, volta a reafirmar a possibilidade do advento de eleições de novo tipo na experiência revolucionária da Comuna, onde novos personagens, a maioria apenas conhecidos das classes trabalhadoras, passam a representar fielmente os anseios e as deliberações do povo que os elegeu. Além disso, expõe de maneira sucinta a estrutura da
29 democracia reformada sob a influência dos proletários franceses. Sentencia também, no trecho reproduzido, a Comuna de Paris como a maior revolução do século XIX. Apoiada em sua organização militar existente, Paris formou uma federação política de acordo com um plano muito simples. Este consistia na aliança de todas as guardas nacionais, postas em conexão umas com as outras pelos delegados de cada companhia, que nomeariam, por sua vez, os delegados dos batalhões, que por seu turno nomeariam os delegados gerais, generais de legiões, cada um a representar um bairro e a cooperar com os delegados dos 19 outros bairros. Esses 20 delegados, escolhidos pela maioria dos batalhões da Guarda Nacional, compunham o Comitê Central que em 18 de março iniciou a maior revolução do século e que ainda conserva seu lugar na atual luta gloriosa de Paris. Nunca houve eleições tão seletivas, nunca delegados representaram tão plenamente as massas das quais eles provinham. (MARX, 2011, p. 124– 125, itálicos originais)
Desse modo, na Comuna, as eleições deixaram de ter um caráter simplesmente homologatório, em que os trabalhadores participavam de um processo decisório fraudulento e a classe dominante burguesa – através deste artifício político – apenas utilizava as massas para chancelar e legitimar um sistema dominado por ela e distante da realidade da maioria. Nas organizações comunais, o sufrágio universal cumpre a sua função precípua de possibilitar a escolha dos representantes legítimos e fiéis que representarão as diversas comunidades de produtores espalhadas pela nação. O sufrágio universal, que fora até então abusado – seja servindo para a sanção parlamentar do Sagrado Poder Estatal, seja como um joguete nas mãos das classes dominantes, tendo sido exercido pelo povo apenas uma vez em muitos anos a fim de sancionar o (para escolher os instru mentos do) domínio parlamentar de classe –, é adaptado aos seus propósitos reais: escolher, mediante as Comunas, seus próprios funcionários para a administração e legislação. (MARX, 2011, p. 129–130)
Os atos de legislar a respeito e de administrar a coisa pública igualmente ganham novo significado a partir da organização comunal. À medida que a nova atividade social em si, os servidores que a desempenham e as próprias eleições que os colocaram nas funções públicas assumem um caráter de fato responsável e fidedigno aos propósitos para os quais foram escolhidos – e dos quais podem ser retirados a qualquer tempo –, a antiga burocracia estatal burguesa, com a sua opulência, favorecimentos e corrupção imanentes, se esvai e é liquidada pela verdadeira forma democrática de se gerir o que é de uso e propriedade coletivas.
30 Portanto, não haveria mais aquela noção de que somente um grupo especial de pessoas capacitadas poderia administrar o supostamente complexo e misterioso Estado. Tratam–se de funções tão importantes e simples quanto àquelas atinentes diretamente à produção, não podendo – consequentemente – terem um status diferente ou uma remuneração não equivalente àquela percebida por todo o povo trabalhador. Cai a ilusão de que a administração e o governo político seriam misté rios, funções transcendentes a serem confiadas apenas a uma casta de iniciados – parasitas estatais, sicofantas ricamente remunerados e sinecuristas ocupando altos postos… Elimina–se a hierarquia estatal de cima a baixo e substituem–se os arrogantes senhores do povo por servidores sempre removíveis, uma responsabilidade de mentira por uma responsabilidade real, uma vez que eles passam a agir continuamente sob supervisão pública. Eles são pagos como operários… Toda a fraude dos mistérios e pretensões do Estado foi eliminada por uma Comuna que consistia em sua maior parte de simples trabalhadores […] executando seu trabalho publicamente, de maneira simples, sob as circunstâncias mais difíceis e complicadas, e o fazendo […] por umas poucas libras, agindo à luz do dia, sem nenhuma pretensão à infalibilidade… Fazendo das funções públicas – militares, administrativas, políticas – funções de trabalhadores reais em vez de atributos ocultos de uma casta treinada. (MARX, 2011, p. 130, itálicos originais)
Marx rechaça, a todo momento, a ideia de uma vanguarda ("corpo superior") que seria supostamente mais capaz do que os trabalhadores em geral na gestão do negócio público. Concepção antagônica em relação ao que se pôde observar no século XX, onde se tornou comum que o debate entre comunistas e socialistas descambasse para a ‘evidência’ da incapacidade dos proletários em se auto–administrar. A escolha livre dos cidadãos por meio do sufrágio seria a única forma de se ter representantes interessados e responsáveis na administração da coisa pública e das questões pertinentes a toda comunidade. Não poderia existir nenhuma esfera governamental que não fosse ocupada por trabalhadores eleitos pela maioria e com mandatos revogáveis a qualquer momento. A Comuna consistia de conselheiros municipais […] escolhidos pelo sufrágio de todos os cidadãos, responsável e revogável em curto prazo. A maioria desse corpo era naturalmente formado de operários ou representantes reconhecidos da classe trabalhadora. […] Os agentes policiais, em vez de serem agentes do governo central, tinham de ser os servidores da Comuna, tinham de realizar seu trabalho por salários de operários. Os juízes também tinham de ser eleitos, substituíveis e responsáveis. A iniciativa em todas as matérias da vida social estava reservada à Comuna. Em uma palavra, todas as funções públicas, mesmo aquelas que caberiam ao governo central, eram executadas pelos agentes comunais
31 e, portanto, estavam sob o controle da Comuna. (MARX, 2011, p. 172– 173, itálicos nossos)
As Comunas, portanto, deveriam ser auto–operantes e autogovernadas, assim como suas eleições deveriam expressar deliberadamente os seus objetivos. […] as funções estatais sendo reduzidas a algumas poucas funções para fins nacionais gerais. Tal é a Comuna – a forma política da emancipação social, da libertação do trabalho da usurpação dos monopolistas dos meios de trabalho, sejam estes meios criados pelos próprios trabalhadores ou dados pela natureza. (MARX, 2011, p. 131, itálicos originais)
Nem mesmo um hipotético planejamento estatal seria necessário, pois o controle e a planificação pertenceriam tão somente aos produtores associados e livres, distantes de qualquer tipo de eventual intermediação institucional. A produção cooperativa local teria completa consonância com a então organizada e planificada produção nacional. Esta, por ter sido pensada de acordo com as necessidades do povo, não estaria exposta às intempéries típicas do sistema econômico mercadológico capitalista."[…] as sociedades cooperativas unidas devem regular a produção nacional segundo um plano comum, tomando–a assim sob seu controle e pondo fim à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista…" (MARX, 2011, p. 60) Com efeito, Marx não vê problemas nos processos eleitorais em si – se desvinculados de políticas classistas assentadas na divisão da sociedade em estratos econômicos diferenciados e antagônicos entre si. A eleição pode ser usada na comunidade para se escolher os mais aptos tecnicamente para administrar e fazer funcionar a coisa pública em prol do atendimento aos interesses comuns. Tal posição não redundará nem significará nenhum tipo de autoridade, poder ou domínio, sendo apenas a imputação de responsabilidade para exercício de determinada função. Além disso, não há anseio individual ou de classe a ser representado num suposto governo; agora, na comuna, os desejos são realizações, pois concebidos e realizados pelas mesmas pessoas. No Resumo Crítico de Estatismo e Anarquia, de Mikhail Bakunin (1874), Marx definiu: A eleição é uma forma política que existe até na menor das comunas russas… O caráter da eleição não depende desse nome, mas das bases econômicas, dos contextos econômicos dos eleitores; e assim que as funções deixarem de ser políticas: 1) não haverá mais nenhuma função governamental; 2) a repartição das funções gerais se tornará uma questão técnico–administrativa, que não outorga nenhum domínio; 3) a eleição não terá nada do seu atual caráter político. […] Na propriedade co-
32 letiva, a chamada vontade popular desaparece e dá lugar à vontade efetiva da cooperativa. (MARX, 2012, p. 114, itálicos nossos)
À guisa de ilustração e exemplo de como funcionaria um sistema de organização político não político (pois técnico, precipuamente) de uma colônia comunista, pode–se recorrer a relato feito por Engels a partir das observações de Finch na comunidade de bens de Zoar, estado de Ohio, nos Estados Unidos do século XIX. Muito embora tal estratagema organizacional contenha uma série de características que poderiam ser utilizadas nas mais diversas sociedades comunistas, é necessário ressaltar que não se trata de um modelo ou esquema que deverá ou será aplicado por toda a coletividade que decida assentar a sua vida e a sua produção na comunidade de bens e de meios de produção. Como sabemos, o movimento e o dinamismo da história constituem fatores que determinam a indeterminabilidade, a complexidade e a não previsibilidade do devir histórico. Todos que desempenham funções na comunidade são eleitos de seu seio por todos os membros dela maiores de 21 anos. Estes funcionários são: 1º Três administradores, um dos quais é eleito a cada ano e os três podem ser removidos a qualquer momento pelos seus eleitores. Tem por missão administrar todos os bens da comunidade e prover aos seus membros o quanto necessitarem em matéria de víveres, alojamento, vestimenta e alimento na medida que as circunstâncias permitem e sem estabelecer diferença alguma de caráter pessoal. Nomeiam os subadministradores necessários para coordenar os distintos setores de trabalho… 2º Um diretor, que permanece no cargo enquanto goze da confiança da sociedade e que encabeça, como supremo funcionário, todos os assuntos coletivos. O diretor tem direito a comprar e vender e fechar contratos e transações, porém, quando se trata de negócios importantes, deve trabalhar de acordo com os três administradores. 3º O conselho da sociedade, formado por cinco membros, um deles abandona o seu posto a cada ano. Este conselho constitui o mais alto poder da sociedade, fixa as leis de acordo com os administradores e o diretor, vigia os demais funcionários e decide arbitrariamente os litígios, quando as partes interessadas não se mostram de acordo com as decisões dos administradores. Finalmente, 4º O pagador, eleito a cada quatro anos e que é o único dos membros e funcionários da coletividade que tem direito a possuir e manejar dinheiro. (ENGELS, 1845, p. 561, itálicos originais, nossa tradução)
No que tange à organização militar em uma sociedade comunista, Marx e Engels reivindicam o fim do exército regular profissional (pois muito oneroso à sociedade) e a criação da milícia popular proletária que, a despeito do que ocorria no sistema congênere burguês, também produzirá – e não apenas consumirá – parte do que foi produzido socialmente. Haverá, portanto, o armamento da população e a transformação do caráter
33 do exército, cujos soldados não poderão ser apenas soldados, mas igualmente deverão ser operários/trabalhadores produtivos. Entre as Reivindicações do Partido Comunista da Alemanha, de 1848, Marx e Engels já apontavam: "Armamento geral do povo. No futuro, os exércitos serão simultaneamente exércitos operários, de modo que o exército deixe apenas de consumir, como no passado, mas produza além do necessário para custear a sua manutenção. Ademais, esse é um meio de organização do trabalho." (MARX & ENGELS, 2010, p.53) Segundo Marx, não há circulação de dinheiro na sociedade que tem os seus meios de produção socializados entre todos os produtores. Estes, ao invés de receberem papel–moeda/dinheiro como meio de pagamento (recompensa), recebem vales que carregam o quanto de contribuição de cada um (em horas de trabalho) existe no total da produção social. No Livro II, de O capital, o pensador alemão afirmava: Não entra em cogitação na produção socializada o capital–dinheiro. A sociedade reparte a força de trabalho e os meios de produção nos diferentes ramos de atividade. Os produtores poderão, digamos, receber um vale que o habilita a retirar dos estoques iniciais de consumo uma quantidade correspondente a seu tempo de trabalho. Esses vales não são dinheiro. Não circulam. (MARX, 2005, p. 406, itálicos nossos)
O sistema de crédito capitalista, de acordo com o pensamento de Karl Marx, seria fundamental para a criação das condições ideais que propiciariam o surgimento e a consolidação do modo de produção comunista. Por um lado, o crédito tanto estimularia o desenvolvimento das forças produtivas como aprofundaria as contradições inerentes ao capitalismo; por outro, já na etapa de transição capitalista–comunista, o crédito, entre outras medidas até mais importantes de transformação radical da estrutura econômica, manter–se–ia no papel de grande fomentador e dinamizador da produção. Não obstante sua óbvia relevância na sociedade capitalista e na imediatamente pós–capitalista, o crédito, e todas as suas engrenagens e lógica pertinentes, não teria sentido nem necessidade de existência na for ma social superior de produção e associação comunista. Ainda na obra O capital, mas agora no Livro III, Marx asseverou: […] não há dúvida de que o sistema de crédito servirá de poderosa alavanca durante a transição do modo capitalista de produção para o modo de produção do trabalho associado; todavia, será apenas um elemento relacionado com outras grandes mudanças orgânicas do próprio modo de produção. […] Quando os meios de produção tiverem cessado de se converter em capital (o que inclui a abolição da propriedade fun diária privada), o crédito como tal não terá mais sentido algum… (MARX, 2008, p. 803)
34 Num sistema de cooperação, assentado sobre a propriedade comum dos meios de produção, não há mais trocas de produtos entre os produtores e nem mensuração de seus respectivos valores unitários com o propósito de tornar esse cálculo uma qualidade e um diferencial entre os diversos bens produzidos. Não há troca porque toda a produção e todo o produto é de propriedade coletiva (social). Trabalho individual e produto individual foram transformados em trabalho total e produto social. Ato contínuo, deixa de existir a necessidade de imputar ou aferir o valor de determinado bem pois a troca foi abolida quando o trabalho individual passou a se expressar somente pelo trabalho total e social. Na célebre e fundamental Crítica do Programa de Gotha (1875), Marx afirmou: No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos, como uma qualidade material que eles possuem, pois agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos existem não mais como um desvio, mas imediatamente como parte integrante do trabalho total. (MARX, 2012, p. 29, itálico original, negritos nossos)
Não obstante, mesmo depois do advento da nova sociedade alicerçada em modo de produção e distribuição superiores, a categoria valor (tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um bem) será ainda o maior parâmetro para se organizar a produção socializada. Conforme afirmação de Marx no Livro III de O capital: […] suprimido o modo capitalista de produção e mantida a produção social, a determinação do valor continuará predominando no sentido de que será mais necessário que nunca regular o tempo de trabalho, repartir o trabalho social entre os diversos grupos de produção e finalmente contabilizar tudo isso. (MARX, 2008, p. 1120, itálicos nossos)
Ainda dentre as principais características de uma sociedade comunista – "associação em que o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos" (MARX & ENGELS, 1998, p. 29) – em sua fase superior e desenvolvida, poderiam ser apontadas, segundo Karl Marx, àquelas referentes ao fim da oposição, tão comumente observada na sociedade capitalista, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual – fatos que consubstanciariam a criação de uma realidade social não mais baseada no trabalho estranhado e no trabalho alienado. A mudança de status do trabalho, de simples meio de sobrevivência e obrigação vital para meio também de autorrealização, e o aumento cada vez maior de sua produtividade – graças ao sucessivo desenvolvimento tecnológico que buscaria tanto reduzir o tempo de trabalho individual necessário
35 quanto prover a todos de bens de consumo que impliquem numa sempre maior qualidade de vida – igualmente seriam objetivos a serem alcançados nesta etapa do comunismo. Continua Marx na sua Crítica do Programa de Gotha: Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual, quando o trabalho deixar de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: 'De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!' (MARX, 2012, p. 31–32, itálicos nossos)
Doravante, o trabalho humano no comunismo, então regenerado como autoatividade (atividade para si, não mais concebida por terceiros nem com seu fruto apropriado por outrem), passa a ser um dos momentos de objetivação da essência humana libertada da alienação capitalista. Os produtores proprietários, mediados pela sua atividade consciente produtiva, criarão um mundo exterior em que se identificam, pois fruto da sua imaginação e de seu labor (extinta, então, a divisão do trabalho manual e do trabalho intelectual). Nos Manuscritos Econômico–Filosóficos de 1844, Marx já definia: O homem apropria–se da sua essência multilateral de uma maneira multilateral, portanto como um homem total. Cada uma das relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, sentir, querer, ser ativo, amar, em suma, todos os órgãos da sua individualidade, bem como os órgãos que são imediatamente na sua forma órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo, ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da realidade humana. (MARX, 1994, p.96)
Ao desenvolver–se em uma sociedade baseada no trabalho humano, este trabalho terá, na sociedade comunista, outro caráter, não mais de obrigação e escravidão, mas sim de dever social consciente. Finda a atividade que se exerce sob o imperativo das necessidades fisiológicas mais elementares, o trabalhador finalmente se emancipa ao contribuir para a produção social de maneira não alienada, deliberada e autônoma. Conforme escreveram Marx e Engels no livro A Ideologia Alemã: […] na sociedade comunista […] cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar–se no ramo que lhe apraz, a soci-
36 edade regula a produção geral, dando–me a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar–me caçador, pescador, pastor ou crítico. (MARX & ENGELS, 1987, p.47)
Dessa forma, Marx fundamenta a possibilidade de surgir um modo de produção que possibilite aos seres humanos o desenvolvimento integral de suas potencialidades; uma organização social que se locuplete de toda a capacidade humana, não restringindo o potencial total de sua energia criadora a tão–somente um único tipo de atividade produtiva ou profissão. Ademais, insiste na ideia de que não se pode garantir a reprodução social dos seres humanos com um sistema que mantém boa parte da força de trabalho apta inutilizada ou com utilização transitória e sazonal. É com um grande leque de atividades produtivas, culturais e intelectuais que homens e mulheres poderão desenvolver–se plenamente, levando a experiência da vida humana a um outro e ainda não descoberto patamar. De acordo com o que disse Marx no Livro I de O capital: […] a indústria moderna, com suas próprias catástrofes, torna questão de vida ou morte reconhecer como lei geral e social da produção a vari ação dos trabalhos e, em consequência, a maior versatilidade possível do trabalhador… Torna questão de vida ou morte substituir a monstruosidade de uma população operária miserável, disponível, mantida em reserva para as necessidades flutuantes da exploração capitalista, pela disponibilidade absoluta do ser humano para as necessidades variáveis do trabalho; substituir o indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma operação parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido, para o qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade. (MARX, 2006, p. 552– 553)
Ademais, numa sociedade comunista, o trabalho seria restringido à quantidade mínima necessária que garantisse a sobrevivência e a livre fruição e desenvolvimento dos diversos seres sociais. Inexistente o capital e a sua imanente lógica de acumulação e reprodução ampliada, não haveria mais razão para se criar mais–valia mediante extensão da jornada de trabalho necessário, ou seja, mediante trabalho excedente; a não ser que com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e garantir o nível de consumo de toda a sociedade (isto é, exceto quando se objetivasse ampliar os meios de produção ou os bens de consumo sociais). Portanto, não se observará na organização social comunista uma ampliação da atividade produtiva (em horas ou intensidade) de cada trabalhador, pelo contrário: o intuito será diminuir a sua quantidade e transformar substantivamente a sua qualidade. Fato que será possibilitado e
37 ampliado em sua dimensão graças ao ininterrupto desenvolvimento tecnológico (que aumenta a produtividade e diminui o tempo de trabalho dispensado por produto além de modificar a relação homem–máquina continuamente) e à inserção de todos os seres humanos aptos na grande cadeia produtiva social. Prossegue Marx: A eliminação da forma capitalista de produção permite limitar a jornada de trabalho ao trabalho necessário. Todavia, não se alterando as demais circunstâncias, seria ampliado o trabalho necessário, por dois motivos: as condições de vida dos trabalhadores seriam mais ricas e maiores suas exigências; uma parte do atual trabalho excedente seria considerada trabalho necessário, para constituir um fundo social de reserva e acumulação. (MARX, 2006, p. 601)
Ao não eximir nenhuma classe ou grupo social apto da necessidade natural do trabalho, o coletivo de produtores–proprietários (categorias finalmente reunidas nas mesmas pessoas), teria mais tempo para dedicar– se às outras esferas de interação social fundamentais para o pleno desenvolvimento do ser humano. Por isso, ressalte–se mais uma vez, que o Estado e toda a sua burocracia deve soçobrar numa sociedade comunista, pois o trabalho produtivo não pode ser evitado por uma casta burocrata supostamente especial – quanto maior o aparelhamento da maquinaria estatal, mais recursos (e, portanto, mais tempo social de trabalho necessário) serão requeridos da massa trabalhadora para a sua manutenção e funcionamento. Ainda no Livro I de O capital: Dadas a intensidade e a produtividade do trabalho, o tempo que a sociedade tem de empregar na produção material será tanto menor e, em consequência, tanto maior o tempo conquistado para a atividade livre, espiritual e social dos indivíduos, quanto mais equitativamente se distribua o trabalho entre todos os membros aptos da sociedade e quanto menos uma camada social possa furtar–se à necessidade natural do trabalho, transferindo–a para outra classe. Então a redução da jornada de trabalho encontra seu último limite na generalização do trabalho. (MARX, 2006, p. 602, itálicos nossos)
Assim, o trabalho excedente (observado na servidão, na escravidão e no capitalismo) não deixará de existir no comunismo, antes irá alterar–se qualitativa e quantitativamente. Primeiro porque tal excedente será apropriado socialmente e não mais privadamente (prática cristalizada no contumaz e constante roubo da mais–valia), e segundo porque, não existindo mais uma fração da sociedade vivendo improdutiva e ociosamente à custa da criação de valor alheio, toda a atividade produtiva coletiva (que assegurará a reprodução social da comunidade), será justa e equanimemente repartida entre todos os membros aptos a trabalhar. Ademais, é
38 esse trabalho excedente – o trabalho adicional ao mínimo necessário para garantir a sobrevivência de todos – que será acumulado como prudente medida de previdência e seguro contra eventuais dissabores futuros (causados por desastres naturais, p. ex.) e para propiciar a expansão constante das forças produtivas sociais. No Livro III, de O capital, Marx definiu: Haverá sempre, necessariamente, trabalho excedente no sentido de trabalho que excede o nível das necessidades dadas. No sistema capitalista, no sistema escravista etc. reveste–se, entretanto, de forma antagônica e corresponde à mera ociosidade de fração da sociedade. Os seguros contra acidentes e a expansão progressiva do processo de reprodução, necessária e correspondente ao desenvolvimento das necessidades e ao crescimento demográfico, exigem determinada quantidade de trabalho excedente. (MARX, 2008, p. 1082)
Ao trabalho necessário estaria, portanto, subsumido alguma quantidade ou tempo de trabalho excedente que seria acumulado para fomentar a expansão dos meios de produção (imprescindível graças ao crescimento demográfico e devido à elevação do nível de consumo individual) e para salvaguardar a comunidade frente a eventuais imprevistos e dificuldades momentâneas. O trabalho excedente também seria responsável por permitir que crianças e velhos (e inaptos para o trabalho produtivo de forma geral) pudessem ser adequadamente sustentados pela sociedade organizada. Nenhum outro indivíduo será sustentado apenas com o usufruto e a expropriação de parte do produzido por trabalho alheio. A atividade produtiva é uma atividade que deve ser justamente dividida entre os membros que compõem a coletividade. Quanto maior o número de produtores ativos e quanto mais eficiente for a sua atividade, menor será o número de horas per capita (ou a quantidade de produto excedente) despendidas ainda sobre a lógica da necessidade. Continua Marx: […] parte do lucro, ou seja, da mais–valia ou do produto excedente que, sob o aspecto do valor, representa apenas novo trabalho adicionado, serve de fundo de seguro. […] Esta é a única porção da mais–valia e do produto excedente, ou do trabalho excedente a qual, junto com a parte destinada à acumulação, a ampliar o processo de reprodução, teria de continuar a existir após extinguir–se o modo capitalista de produção. […] Além do trabalho excedente em favor daqueles que, em virtude da idade, ainda não podem ou não podem mais participar da produção, não haverá mais trabalho para manter aqueles que não trabalham. (MARX, 2008, p. 1115)
Marx chama a atenção para o fato de que tanto o selvagem como o civilizado devem obrigatoriamente estabelecer uma relação direta com a natureza para que consigam suprir suas necessidades primárias de sobrevi-
39 vência. Viveremos, inapelavelmente, sempre no reino da necessidade, pois precisamos produzir para obter os recursos que garantam a nossa reprodução social. Não obstante essa verdade inescapável, não temos que, necessariamente, nos reproduzir baseados em um sistema econômico que nos imponha (à atividade humana) a prática e o exercício da produção apenas dentro desse espectro da necessidade. A liberdade, real, verdadeira, que potencializa e realiza todas as faculdades humanas começa, de fato, quando não estamos mais entregues aos momentos/horas nas quais produzimos para nos reproduzirmos socialmente. Entretanto, mesmo ainda neste reino da necessidade – imanente à qualquer organização humana – pode–se ter uma experiência mais justa, emancipada e fiel às capacidades dos homens e mulheres trabalhadoras. Ainda no Livro III, de O capital: O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. […] A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam–no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam–no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. Mas, esse esforço situar–se–á sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho. (MARX, 2008, p. 1083–1084, itálicos nossos)
Assim, liberdade significa menor tempo de trabalho necessário e excedente e maior tempo para a livre busca do desenvolvimento pessoal de cada indivíduo. Entrementes, há de se ter forças produtivas cada vez mais desenvolvidas e eficientes para que, com menor tempo de trabalho possível (isto é, com o menor tempo possível dispensado no "reino da necessidade") possa se produzir os meios necessários à sobrevivência e ao fruir de todos. Nesse sentido, os seres humanos só serão verdadeiramente livres quando o trabalho não mais se configurar unicamente como uma atividade imposta pela necessidade de sobrevivência. Deve o trabalho recuperar todas as suas outras características humanas e não ficar apenas atrelado à imperiosa necessidade de reprodução social. O trabalho deve ser, antes de qualquer coisa, uma emanação consciente da vontade criadora dos indivíduos. Ao vinculá–lo exclusivamente ao imperativo da sobrevivência e da reprodução material, a sociedade dispensa todo o complexo arcabouço evolutivo potencial envolvido diretamente com a autoatividade (porque
40 para si) criadora e produtiva típica dos seres humanos. "De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, [o trabalho] situa–se além da esfera de produção material propriamente dita." (MARX, 2008, p. 1083) A relação de submissão máquina–homem deverá igualmente ser revertida na sociedade comunista à medida que o trabalho acumulado (capital, máquinas e equipamentos etc.), isto é, o trabalho morto (ou pretérito), não mais subordinar a atividade produtiva dos trabalhadores aos seus ritmos e à sua necessidade de acumulação permanente. Toda a maquinaria e toda a tecnologia estarão subjugadas aos anseios e planos conscientes dos produtores; serão empenhadas pela sua libertação, não mais serão utilizadas para ampliar a intensidade da escravização e da exploração dos homens. "Na sociedade burguesa, o trabalho vivo constitui apenas um meio para multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado é apenas um meio para ampliar, enriquecer e incentivar a existência do trabalhador." (MARX & ENGELS, 1998, p. 22) Com a aplicação cada vez mais intensiva da tecnologia em uma sociedade assentada na propriedade coletiva dos meios de produção, os trabalhos mais abjetos e desvalorizados tenderiam a desaparecer – máquinas e sistemas automatizados finalmente poderiam libertar os homens desse tipo de atividade, tal como hoje já seria possível após o surgimento do quarto órgão da máquina (BACCHI, 2013). Engels ressalta a não mais qualificação e diferenciação existentes outrora entre os vários tipos de trabalho: no comunismo, antes de mais nada, há apenas o trabalho, que não será superior nem inferior entre as suas mais diferentes atividades. Qualquer atividade produtiva que gere e agregue valor deverá ser equanimemente avaliada socialmente, muito mais a partir do tempo despendido na sua elaboração e execução do que por outras variáveis que valorizavam principalmente o trabalho intelectual na sociedade capitalista. Asseverou o grande pensador alemão: "[…] uma vez estabelecida a comunidade, não existe mais trabalhos inferiores que, por outro lado, podem desaparecer quase em sua totalidade mediante uma melhor organização, empregando máquinas etc." (ENGELS, 1845, p. 554, nossa tradução) Para tanto, isto é, para ser possível a caminhada certeira nesse longo e pedregoso trajeto, torna–se fundamental que tal jornada seja baseada em uma teoria revolucionária comunista autônoma. Partido e teoria devem caminhar juntos, mas a ciência e a elaboração teórica devem mover– se sempre com liberdade para desenvolver–se na sua trilha independente e crítica. Em carta a August Bebel de maio de 1891, Engels escreveu sobre a importância da autonomia da teoria socialista–comunista: "Vocês – o parti-
41 do – precisam da ciência socialista, e esta não pode viver sem liberdade de movimento. […] Uma tensão, mesmo que leve, para não falar de uma ruptura entre o partido alemão e a ciência socialista alemã, seria uma desgraça e uma vergonha inomináveis." (ENGELS, 2012a, p. 75–76) Sobre a viabilidade e a existência real do tipo de organização econômica e social comunista em etapa histórica anterior àquela denominada como sendo a das revoluções socialistas, iniciada na segunda década do século XX , Engels reiterou as experiências vivenciadas à época por algumas comunidades criadas nos Estados Unidos e na Inglaterra. O comunismo, portanto, não era (não é) uma utopia irrealizável: "Com efeito, o comunismo, a vida e a atuação do homem em um regime de comunidade de bens, não só são perfeitamente possíveis, como têm sido postos em prática, e com o melhor dos êxitos, […] em muitas comunidades da América e em um lugar da Inglaterra." (ENGELS, 1845, p. 554, nossa tradução) Ao descrever uma colônia comunista então existente nos EUA, Engels – baseado num relato do viajante inglês Sr. Finch – afirmou que ali, sob aquele tipo de organização social e econômica, ninguém trabalhava contra a sua vontade ou ficava desempregado sem desejar. Ademais, não havia penúria, nem pobres e órfãos; a polícia, desnecessária na ausência de uma classe / Estado opressor, inexistia. Mesmo assim (ou graças a tudo isso), todos da comunidade viviam tranquilos e satisfeitos. Afirmava Engels em 1845 no texto Descripción de las colonias comunistas creadas en los últimos tiempos y que aún existen: Não há entre eles ninguém que trabalhe contra a sua vontade ou que busque trabalho em vão. Não conhecem o que são asilos e hospitais pois não há entre eles pobres nem pessoas que sofram, viúvas ou órfãos desamparados; não sabem o que é penúria nem tem porque temê– la. Em nenhuma de suas dez cidades há um só gendarme ou polícia, não existem juízes, advogados ou soldados, celas nem prisões, o que não é obstáculo para que todo mundo viva tranquilo. As leis do país não regem a sua conduta e, se deles dependessem, poderiam ser todas derrogadas que não lhes importariam, pois não haverá no mundo cidadãos mais tranquilos, já que jamais um deles teve que ir preso. Vivem, como havíamos dito, em um regime de perfeita comunidade de bens e não conhecem o comércio e nem o dinheiro. (ENGELS, 1845, p. 555–6, itálicos do autor, nossos negritos e nossa tradução)
Portanto, não havia produtos individuais que seriam trocados ou vendidos num hipotético mercado. À produção social tinham acesso todas as pessoas da comunidade de acordo com as suas respectivas e individuais necessidades. Comércio e dinheiro eram completamente dispensáveis nesse contexto interno dos agrupamentos comunistas.
42 A esse respeito, o Sr. Finch igualmente relatou da seguinte forma o funcionamento de uma dessas colônias localizadas na cidade de Pleasant Hill (Estado de Kentucky, EUA): Aqui não há senhores nem criados e menos ainda escravos: todos são livres, ricos e felizes. […] Cada qual recebe o que necessita dos armazéns gerais da comunidade, sem pagar nada e na quantidade necessária. Em cada família há um diácono, encarregado de zelar para que todos disponham do que necessitam e de atender, dentro do possível, os desejos de todos. […] O patrimônio da comunidade corre a cargo de um conselho de administração, formado por três membros, encarregado de acompanhar todos os investimentos, de dirigir os trabalhos e de comercializar com os vizinhos. E há, como é natural, vigilantes e administradores nos diversos setores de trabalho; mas todos eles têm por norma que ninguém receba ordens de ninguém, senão que todos trabalhem livremente, por meio do convencimento. (FINCH apud ENGELS, 1845, p. 555– 6, itálicos de Engels, nossa tradução)
Trabalha–se, portanto, a partir de uma autorresolução consciente, mediante a constatação de que a somatória dos trabalhos individuais é que garantirá uma vida digna e de abundância a todos. É com a participação efetiva de sua força de trabalho que cada produtor poderá contribuir para o aumento da produção e dos serviços sociais que beneficiarão os membros do coletivo do qual faz parte, dentro da lógica do "regime total de comunidade de bens" (p. 557). Naturalmente, para o desempenho de sua atividade livre, será prescindível a figura opressora de qualquer tipo de patrão, chefe ou senhor – bastando, para tanto, apenas o administrador que orientará e guiará cada atividade individual no sentido das determinações e resoluções democraticamente aprovadas pelos próprios produtores (ou seus representantes diretos) durante as reuniões e assembleias que definem o planejamento dos próximos passos da comunidade. Sobre a colônia localizada na cidade de Economy, o mesmo Sr. Finch observou: Sua grande aspiração, desde o começo, tem sido fabricar por si mesmos tudo o que necessitam, para comprar de outros o menos possível; acabaram assim fabricando mais do que o necessário; […] em tudo o que fazem cuidam de prover–se a si mesmos abundantemente antes de vender a outros. (FINCH apud ENGELS, 1845, p. 559, nossa tradução)
Desse modo, o fruto da produção social socializada (tanto em sua atividade produtiva como na propriedade do produto) pertence a todos, independentemente da magnitude da contribuição individual concernente ao total de valor criado naquele contexto comunal. Todos da comunidade, em todas as etapas da vida, têm direito de serem devidamente assistidos pelo grupo ao qual se encontram inseridos.
43 […] a comunidade se compromete em prover a todos os seus membros e a suas famílias os meios necessários para atender as suas necessida des, a zelar por eles em caso de doença e velhice e, quando os pais fale cerem ou se separarem da coletividade deixando nela seus filhos, a comunidade se encarregará de sua educação. (ENGELS, 1845, p. 558, nossa tradução)
Ato contínuo, Sr. Finch dessa forma descreveu o funcionamento solidário e cooperativo da organização comunal – e da essencial questão da abundância – que pôde observar in loco: A família recebe tudo o que necessita dos armazéns coletivos. Dispõem de bens abundantes para todos e todos obtêm gratuitamente o quanto desejam. Se necessitam vestido ou calçado, recorrem ao mestre alfaiate, à costureira ou ao sapateiro, que se encarregam de confeccionar–lhe a peça de acordo com o seu gosto. A carne e os demais mantimentos são distribuídas a cada família segundo o número de membros, que desfru tam de tudo abundantemente e em excesso. (FINCH apud ENGELS, 1845, p. 559, itálicos de Engels, nossa tradução)
Engels finaliza a descrição das colônias comunistas reafirmando a possibilidade de existência e o grande potencial de desenvolvimento que têm essas comunidades de bens. Ademais, acaba por indicar como um modo de produção desse tipo pode contribuir para que os seres humanos não fiquem apenas trabalhando a maior parte do tempo de suas curtas vidas, assim podendo utilizar grande parte desse seu escasso recurso (tempo) para o fruir e para o livre desenvolvimento intelectual, moral, cultural e espiritual. Vemos, pois, que a comunidade de bens, longe de ser impossível, tem conseguido prosperar em todos os intentos que até agora se propôs. E vemos também que aqueles que se agrupam no regime de comunidade, trabalhando menos, vivem melhor e dispõem de mais tempo livre para cultivar seu espírito e são homens melhores e mais morais que seus vizinhos, aferrados às suas propriedades. E tudo isto já tem podido comprovar os norte–americanos, os ingleses, franceses e belgas e grande número de alemães. São muitos os que, em todos os países, se ocupam da difusão desta doutrina e tomam partido a favor da comunidade. (ENGELS, 1845, p. 566, nossa tradução)
Justamente a partir dessa constatação de Engels, referente às possibilidades de existência de uma sociedade comunista, podemos começar a especular o porquê da não disseminação mundial do comunismo como modo de produção – mesmo em suas formas mais básicas e quase primitivas (tais quais os exemplos citados por Engels). Ao longo do século XX, diversos movimentos revolucionários adotaram os símbolos comunistas e parte do seu discurso como uma forma de se posicionar frente ao subde-
44 senvolvimento, à desigualdade e à rapinagem imperialista, mas nenhum país erigiu uma formação social minimamente aproximada àquela teorizada originalmente por Marx e Engels. Revoluções autoproclamadas socialistas ou comunistas propiciaram diversos tipos de organização política e de desenvolvimento econômico que jamais tangenciaram as duas questões essenciais do comunismo evidenciadas por Marx, a saber: a organização da produção a partir de produtores livremente associados e assentados sobre propriedade (posse) direta dos meios de vida e a liquidação, ainda que paulatina, do "parasita estatal". Todo este primeiro ciclo de experiências dos processos revolucionários autoproclamados socialistas ou comunistas ficou encaixotado numa etapa histórica chamada de socialista , inexistente em Marx, transformada em suprema teoria oficial. Desse modo, a transição ao comunismo foi liquidada teórica e praticamente. Perdeu–se até a teoria cujos fundamentos estão precisos em Marx. Daí a importância vital de recuperar e transmitir às novas gerações de revolucionários e, assim, à classe trabalhadora, este legado essencial à emancipação da humanidade.
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2– Sobre as revoluções burguesas: fundamentos da sua dinâmica e limites contemporâneos do capital Paulo Alves de Lima Filho
Síntese As revoluções burguesas, de modo geral, são conservadoras ou radicais e evoluem com maior ou menor celeridade, radicalidade e conservantismo. A dialética de sua evolução tem significado vital para entender o sistema mundial do capital e os papéis da vasta constelação de países regidos por ele. Vital também para as forças empenhadas em sua conservação ou superação, dado o centro dinâmico desse sistema permanecer sendo o conjunto dos países do núcleo radical central, alargado ao longo dos últimos dois séculos. Esse núcleo permanece ditando a dinâmica social, econômica, política e cultural do mundo capitalista. Ele é o centro, igualmente, da contrarrevolução mundial e da fixação subordinada, por todos os meios, da constelação de países e povos, à trama alienante dos insuperáveis, sob o capital, obstáculos impostos pelas suas revoluções burguesas conservadoras. A dialética de sua evolução, portanto, nos faz vislumbrar o estágio por ela alcançado e, consequentemente, nos permite caracterizá– lo. Por isso, dizemos estarmos na era da catástrofe geral e do declínio final do capital, a partir do surgimento do quarto órgão da máquina, o órgão de controle, propiciado pela revolução microeletrônica e que, por sua vez, faz emergir o novo capital produtivo microeletrônico, parte dinâmica do novo capital financeiro. Tal fato nos reforça a convicção da necessidade de criarmos, a nível nacional e mundial, um vasto movimento de emancipação dos trabalhadores, da esmagadora maioria da humanidade, prisioneira da destrutividade acelerada desse novo capital sobre todo o universo das relações humanas. A emergência do novo capital subverte radicalmente a frágil paz republicana de classes que se estendeu, no mundo capitalista, do pós II Guerra até 1973, ocasião em que se transita a uma nova era. Esta é oficialmente proclamada pelos altos escalões intelectuais dos cientistas e ideólogos consultores do Departamento de Estado dos EUA como a nova era do fim do emprego. Uma verdadeira catástrofe, uma real inversão de uma tendência histórica. Subvertida a reprodução social historicamente forjada
48 desde a Revolução Industrial, todas as relações sociais mundiais se verão igualmente fora de seu figurino. A roda da história ao ser assim forçada a girar ao contrário, retrocede no caminho que expandia a emancipação, vai quebrando sua construção, desconjuntando o mundo até então conhecido. Trata–se de uma cruel reversão de expectativas, liquidação de futuros sonhados, dos projetos de paz, da universalização das soberanias nacionais e das industrializações com democracia e emancipação econômica e, por suposto, da emancipação dos trabalhadores. Retornava–se cada vez mais ao território original dos desígnios unilaterais do capital, ao seu apetite avassalador, agora sem mais a concorrência de potências pós–capitalistas, classes trabalhadoras comunistas, da nobreza e do clero. O capital é o rei absoluto do mundo. À breve primeira fase da era das catástrofes, inter mediada pelo hiato dos ‘trinta gloriosos’ anos do pós II Guerra, seguir–se– ia a nova era das catástrofes generalizadas, da reconstrução da reprodução social mundial no figurino exclusivo do capital financeiro, agora revolucionado pelo novo capital industrial de base microeletrônica, que rompe definitivamente as barreiras técnicas que impediram a universalização dos sistemas de máquinas, iniciado com o sistema têxtil e que daria início à revolução industrial. A catástrofe ambiental tem, ali, importância vital. Se proceder à sua crítica será impossível transformá–la.
Introdução Em outros textos desenvolvemos boa parte da temática das revoluções burguesas conservadoras. Neste, tentaremos ultimá–la e desenvolver aquela relativa às revoluções burguesas radicais. Antes de tudo, cumpre dizer estarmos diante do surgimento de uma nova história, verdadeiramente mundial. Todos os poros do planeta se verão interligados. Falamos da longa duração da revolução burguesa conservadora espanhola e portuguesa, do momento fundante da criação do mundo colonial, primeiro espaço mundial da plena liberdade do capital, centro plurissecular do complexo da acumulação primitiva do capital. Afirmamos a impossibilidade, a irrepetibilidade das revoluções radicais burguesas no Novo Mundo, onde as classes proprietárias estão radicalmente empenhadas na luta contra a plena independência econômica dos povos e nações que ali se constituíram. Esse impatriotismo radical das classes coloniais e suas derivações burguesas neocoloniais mais modernas, incluídas as burguesias industriais do século XX, confere à transformação social dessas nações um caráter particular.
49 A plena realização republicana e democrática das classes proletárias exigirá, nesses países, o comando politico exercido por essas classes, o que imprimirá à transformação social um caráter anticapitalista, no sentido de negação do capitalismo associado e subordinado vigente. Isso empurrará inevitavelmente essa transformação no sentido do controle não capitalista do capital, ou seja, no sentido do autocontrole social do capital pelos trabalhadores, cujo processo seria, de modo imanente, a transição comunista, tal como a concebia Marx. Esta teve, porém, por várias razões, esquecido o seu significado, e tomará o nome de socialismo, a ela conferido como sendo forma estatal estável sob o reino da mercadoria (e do capital, portanto) e se encalacrará nessa transição de modo a sucumbir ao capitalismo a dada altura de sua evolução. Dizia o povo soviético, em sua sabedoria, na Radio Armênia 1, nos anos sessenta do século XX, em resposta a pergunta “O que é o socialismo?”:“O socialismo é o caminho mais longo ao capitalismo”.
1- O complexo ancestral da acumulação primitiva do capital e as revoluções burguesas radicais. O complexo central da acumulação primitiva do capital tem como seu eixo o Novo Mundo, criatura do e para o capital mercantil, surgido como decorrência direta das revoluções burguesas conservadoras portuguesa e espanhola. Nestas, como já foi dito na primeira aula ao tratarmos das revoluções burguesas conservadoras, forma–se uma inaudita aliança de classes, capaz de dar prosseguimento ao processo da acumulação do capital, após seu ancestral circuito haver sido seccionado pela queda de Constantinopla. Duas classes feudais, nobreza e clero, aliam–se à burguesia mercantil, em sua maioria recém–cristianizada à força pelo estado e, com auxílio vital dos capitais italianos até então acumulados no circuito mediterrâneo, inventam de abrir–se novas terras incógnitas e outras rotas para as Índias. Entre os séculos XV ao XVII estender–se–á o mundo colonial português a todo o globo e, junto com o império espanhol, tornar–se– ão os proprietários dos maiores tesouros da terra, muitas vezes superior aos tesouros das Índias. A fantástica expansão do mercado colonial, através da exploração dos tesouros agrícolas e naturais com trabalho escravo, produziu tal montante de valor capaz de propiciar o trânsito acelerado de alguns dos países continentais europeus ao controle social do capital sobre suas sociedades. Da Holanda à Inglaterra, das colônias norte–americanas unidas à França 1
Rádio Armenia – rádio de humor, muito apreciada pelos soviéticos.
50 vingaram, entre os séculos XVII e XVIII, as principais revoluções burguesas radicais. Revoluções politicas nas quais, ao lado da essencial liquidação das relações feudais em várias gradações e sob o influxo de diversas ideologias, o predomínio do capital sobre a produção material significou a emancipação política e econômica desses reinos transformados em nações. Igualmente, significaram elas a decretação da liberdade formal entre todos os homens e a razão como força motora da vida social, em substituição à fé religiosa sob a alienação feudal. Nelas, o liberalismo significou essa revolução ideológica, ligada ao universal domínio do capital sobre a reprodução social. Entre os séculos XV e XVIII opera–se o trânsito do capital comercial ao industrial, passando pelos estágios dos capitais mercantil e manufatureiro. Vale dizer que o complexo capitalista a comandar a dinâmica mundial de seu sistema manteve o antigo centro colonial como apêndice da continuação de sua aventura global. O núcleo central da acumulação, após a Revolução Industrial, foi ampliado por outros espaços nacionais soberanos, derivados de revoluções burguesas conservadoras europeias. Por sua vez, da revolução política liderada pela burguesia, com maior ou menor auxílio das classes trabalhadoras, opera–se através da luta entre o capital e o trabalho, o trânsito da autocracia dos capitalistas à de mocracia, de tal forma que nessas revoluções forja–se um complexo mais ou menos sincrônico, autêntico e imanente de formas socioeconômicas e políticas. Fato inexistente nas revoluções burguesas conservadoras, sejam as europeias ou as do mundo colonial. A luta entre capital e trabalho indica e evidencia o trânsito da emancipação do capital à emancipação dos trabalhadores. Tal processo está implícito na evolução das revoluções burguesas radicais, muito embora ele não acompanhe pari–passu a expansão do controle do capital sobre a reprodução social, tal como ingenuamente se supunha em finais do século XIX, ocasião em que o movimento histórico dos trabalhadores tomava a forma de partidos políticos e sindicatos que expressariam universalmente a emancipação dos trabalhadores ao longo dos séculos XIX e XX até os dias atuais. Dessa forma, também a revolução teórica perpetrada por Marx está em consonância com esse complexo societário capitalista derivado desse punhado de revoluções burguesas radicais e seu apêndice ex–colonial. A descoberta do papel central da teoria na conquista da emancipação dos trabalhadores, ao transformar–se em força social devido à sua apreensão pelo movimento dessa classe, só poderia ter ocorrido nesse centro vital. A questão da emancipação assim como sua relação com as revoluções conservadoras europeias, antes de tudo a alemã, em contraste com as re-
51 voluções burguesas radicais já se apresenta nos trabalhos juvenis de Marx (vide A questão judaica, de 1844; Notas críticas ao artigo “O Rei da Prússia e a reforma social. Por um prussiano.”, 1844 e nos Manuscritos econômicos filosóficos de 1844).
2- Revolução Industrial e emergência do capital financeiro. Os impérios do capital industrial e financeiro, as guerras mundiais, a revolução comunista e a contrarrevolução permanente. O sistema mundial imperialista. Aproximadamente sete décadas separam a emergência do capital industrial do surgimento do capital financeiro. Entre os anos 50 e 60 do século XIX este inicia a sua marcha acelerada rumo à construção de seu império, assim como exacerba ao máximo a tensão política e econômica em torno da emancipação dos espaços nacionais das revoluções burguesas conservadoras, conducente à deflagração de duas guerras mundiais. A liderança do complexo de capitais regente do sistema mundial destes transita sucessivamente de Portugal e Espanha à Holanda, depois à Inglaterra e, por último aos Estados Unidos da América. Depois de derrotadas, as potências imperialistas do bloco conservador, Alemanha, Japão e Itália, foram absorvidas pelo núcleo original regente, fortalecendo–o. Este será também o núcleo central da contrarrevolução mundial, voltada à dupla tarefa de manter a ordem unida colonial e neocolonial, assim como frear e se possível, liquidar metódica e sistematicamente, a marcha da luta dos trabalhadores por sua emancipação. A luta das revoluções burguesas conservadoras para conquistarem espaço no mercado mundial dominado pelas velhas revoluções radicais as faz promover processos ideológicos e políticos inusitados. Contrarrevoluções ideológicas e politicas como formas revolucionárias contestadoras da matriz liberal. Tal leque político–ideológico caracterizará as experiências fascista e nazista, assim como as de suas irmãs da órbita japonesa, portuguesa, espanhola, assim como dos países da Europa Central. A rebeldia revolucionária da contrarrevolução é um fenômeno extremamente complexo e com potencial de arrastar as massas trabalhadoras, assim como boa parte da intelectualidade, em ambos os campos das revoluções burguesas, muito embora característico do seu polo conservador (SAND, 2016). Processo que volta hoje a assombrar o mundo capitalista em geral, antes de tudo o seu polo regente, com exemplaridade na Itália, e com singular gravidade, nos EUA e França.
52 Mas a guerra mundial, ao exacerbar de modo excepcional as contradições sociais no campo das nações oriundas de revoluções burguesas conservadoras, promoverá igual caráter das lutas de classes. A revolução proletária salta ao primeiro plano da politica mundial. A Revolução Russa será o fruto direto da primeira Guerra Mundial. A velha ordem russa, exaurida com a guerra e sob o abraço dos acordos entre a nobreza e seu estado com a burguesia, colocou a massa trabalhadora urbana e camponesa no limite de sua resistência à transformação social. A revolução política atropelou os planos parlamentares burgueses de prosseguir a guerra. As palavras de ordem bolchevique por pão e terra e o fim da guerra imperialista expressavam o profundo sentimento popular, de modo a fazer da determinação de assalto ao poder uma realidade evidente nas grandes cidades, onde o exército camponês ainda em armas e os trabalhadores, no limite de suas privações, tomaram para si a tarefa de por cobro à guerra e dirigir a nação. O relato de John Reed em Os dez dias que abalaram o mundo demonstra tal fato com toda a riqueza. Ao lado da rebeldia revolucionária da contrarrevolução na transição ao capitalismo soberano das nações mais atrasadas, instala–se, a partir de 1917, a rebeldia revolucionária dos trabalhadores para a revolução proletária, projetada, a partir de então, à transição comunista. Quarenta e seis anos antes, em 1871, o proletariado parisiense promovera a primeira revolução proletária no coração do núcleo dominante das nações do capital e demonstrara através de sua Comuna, embora efêmera, a real capacidade e possibilidade da revolução e da transição comunista por parte dos trabalhadores. A Comuna fora o órgão reitor da revolução. A emancipação dos trabalhadores fora obra dos próprios trabalhadores. Nem o estado ou os seus partidos promoviam a emancipação (MARX, 1976). Esta fora genuinamente proletária. Nela estariam os pressupostos da iniciativa da revolução russa. Os trabalhadores russos entravam em cena com enorme energia e determinação, dispostos a conquistar as mais plenas liberdades no prazo o mais curto possível.
Breves notas sobre o pós–capitalismo O mundo das revoluções anticapitalistas vitoriosas, transformadas em sociedades não capitalistas ou como se queira, pós–capitalistas, se expandiu e, sob o cerco imperialista se obrigou a mimetizar o núcleo produtivo defensivo–ofensivo do capitalismo, ou seja, seu complexo industrial militar, como sendo a garantia de sua sobrevivência política, ao lado da emu-
53 lação com o mundo capitalista na produção de mercadorias vinculadas ao consumo conspícuo. O complexo bélico se concebe como momento central de sua convivência entre as nações. A emancipação econômica dos trabalhadores, inscrita na ata inaugural da AIT em 1871, já abandonada, teria sob a dupla determinação da mimetização da produção conspícua e bélica do capitalismo um fardo por demais pesado para ser suportado. Sem contar com o fato, bem notado por Hobsbawm e outros historiadores, de que a ideologia desse pós–capitalismo, sua teoria do socialismo, se transformaria em dogma de estado e, desse modo, em verdade estatal–partidária impossível de ser transformada por meios legais. Uma realidade bizantina. Não bastasse isso, uma derivação soreliana (OIZERMAN, 2010) da teoria da violência se transformaria em politica de estado, por via de repressão permanente e massiva da população e seu confinamento em campos de trabalho forçado. Isto, aliado a uma ideologia de estado voltada ao controle do trabalho em geral, mas em especial ao intelectual, em todas as suas manifestações, transformaria a vida social numa práxis extremamente complexa e conflitante, com múltiplas chaves ideológicas, amálgama em nada condizente com a emancipação humana. Quando o assalto neoliberal ao coração do partido e estado, ao centro do poder efetivou–se, com a ascensão de Gorbatchiov e seus aliados no topo, a liquidação da URSS ocorreria de modo surpreendente e extremamente rápido. A transição do pós–capitalismo ao capitalismo se daria em ritmo acelerado e com extrema radicalidade. Não houve, nem poderia haver um levante proletário nacional contra a restauração do controle pleno da reprodução social pelo capital. A revolução russa promovera a emancipação nacional da Rússia por meio de uma profunda revolução democrática, ao atender em boa medida a necessária reprodução civilizada da força de trabalho. Entretanto, a via bizantina e aderências ideológicas e suas práticas, estranhas ao projeto emancipador de Marx, não só bloquearam a transição ao comunismo, como fizeram com que ela desaparecesse do horizonte teórico e, consequentemente, prático.
3- As revoluções burguesas conservadoras e a questão da emancipação As revoluções burguesas conservadoras, dada a inserção política e econômica subordinada das nações em que elas ocorrem, colocam empecilhos dificilmente superáveis à emancipação política e social de suas clas-
54 ses trabalhadoras e, desse modo, à plena emancipação nacional de suas pátrias respectivas, sejam elas de origem colonial ou não. Todas elas se realizarão na história em luta aberta contra o sistema mundial do capital financeiro e tomarão rumos distintos seja no sentido de alcançarem sua plenitude capitalista com a consequente emancipação politica e social da classe trabalhadora ou se manterem subalternamente na órbita mundial desse capital. Esta ordem mundial do capital financeiro, também leva o nome de imperialismo. Nos países de origem colonial, dos mais antigos aos mais novos, a situação de subalternidade nacional e alienação politica e social das classes trabalhadoras será mantida até os dias atuais, mesmo naqueles onde ocorreram revoluções politicas industrializantes – seja de proclamado caráter capitalista ou socialista – tenham porventura ocorrido, como é o caso, por exemplo, do Brasil em 1930 e o das ex–colônias portuguesas em África a partir de 1975. Somente em Cuba esse elo foi rompido e não casualmente a plena emancipação nacional e a das classes trabalhadoras somente puderam ser alcançadas, ainda que de modo limitado, incompleto e, desse modo, garantido a sobrevivência dessa revolução, ao haver ela optado pela via socialista, ou mais apropriadamente, pós–capitalista. A particularidade dessas revoluções burguesas conservadoras imprime sentido inequívoco às revoluções de emancipação nacional e das classes trabalhadoras, unindo ambas essas dimensões em um laço indissolúvel somente capaz de ser desatado ao imprimir a estas um sentido anti capitalista. Seja no sentido restrito, de negação do capitalismo nacional subalterno, do capitalismo da miséria ali vigente, seja no sentido lato, de negação da possibilidade de salto a uma forma capitalista oriunda da realização de revoluções burguesas radicais, como atalho a uma forma qualitativamente distinta de capitalismo, nos moldes das revoluções burguesas radicais que exigiriam uma reprodução social civilizada, condizente com ela. Com isso afirmamos que as revoluções autoproclamadas socialistas do século XX, se plantam no território da particularidade das revoluções burguesas conservadoras, como momento de superação destas, da russa à cubana e venezuelana. Depois da Comuna de Paris, nenhum outro experimento revolucionário foi vitorioso – embora o Maio de 1968 da França tenha sido um surto revolucionário mundial cheio de lições a serem absorvidas – no território das revoluções burguesas radicais. Todas as revoluções anticapitalistas no século XX ocorreram no mundo capitalista subalterno, no universo mundial das revoluções burguesas conservadoras, em decisiva medida no mundo euro-asiático e central–europeu. Estas revoluções burguesas conservadoras, por sua vez, tomaram rumos capitalistas inusitados, em decisiva medida como formas de emanci-
55 pação do campo de forças do imperialismo, questão direta e inexoravelmente ligada àquelas da emancipação nacional e da classe trabalhadora. Eles passam pela necessidade de desencadeamento de duas guerras mundiais devastadoras e genocidas, pela expansão do mundo colonial das potências imperialistas dentro ou fora da redivisão do velho mundo colonial ibérico, pela expansão anticolonial e posterior regressão neocolonial nos espaços ex–coloniais novos e antigos – caso da América Latina e África –, pela regressão neocolonial e congelamento econômico–político da subalternidade nas ex–metrópoles ibéricas. Passarão também pela transição belicista e antidemocrática à plenitude monopolista nos polos econômicos mais poderosos, transformados em cidadelas da alienação de massas sob ditaduras racistas, anticomunistas, antissoviéticas, sob o despotismo do poder de partidos de massa dirigidos pelos pequenos burgueses e sua ralé, aliados ao cimo monopolista nacional e internacional – o caso da Itália fascista, da Alemanha nazista e do Japão imperial– que inauguraram extensão e profundidade inauditas à alienação da classe trabalhadora capturada pelo nacionalismo de grande–potência. Dessa forma, o desenvolvimento histórico do capital monopolista, ou seja, do imperialismo, contará com o simultâneo desenvolvimento desse complexo de múltiplos caminhos passíveis de serem trilhados pelas revoluções burguesas conservadoras. A Revolução Russa de 1917 fez soar o sinal de alerta na cidadela do capital. Tornou–se imperativo aos lideres do capital se preocuparem com um futuro diferente para os seus assalariados. A crise de 1929, a primeira de amplidão mundial abateu–se com força inaudita sobre os centros vitais do capital. A crise não mais poderia ser tratada com o atendimento unilateral e exclusivo dos interesses do capital, o que na literatura econômica se convencionou chamar de “métodos ortodoxos” ou liberais. A catástrofe econômica fora tão grande – o desemprego tão alto, as falências tão numerosas, a inflação tão alta, a desvalorização do dinheiro tão alarmante e a porcentagem de máquinas paradas tão significativa – que no campo da vanguarda liberal se fez destacar uma outra forma de abordar teórica e praticamente a política anticrise. A teoria de John Maynard Keynes – não sem grande oposição do status–quo liberal no estado e nas universidades – passou a ocupar lugar central na política anticíclica dos EUA (GALBRAITH, 1981) e logo mais se universalizaria na política do mundo capitalista como sendo a do “estado do bem–estar social”, que sobreviveria até os primórdios da revolução tecnológica de base microeletrônica, meados dos anos setenta do século XX. Ao contrário da política liberal ortodoxa, ela privilegiaria o investimento. Este forjaria as condições para a diminuição do desemprego e expansão da produção de mercadorias, esta-
56 bilizando os valores monetários e, portanto, todas as formas da valorização do capital.
Sistema mundial capitalista e a emergência do novo capital. A emergência do novo capital e suas consequências “A tragédia histórica das Décadas de Crise foi a de que a produção agora dispensava visivelmente seres humanos mais rapidamente do que a economia de mercado gerava novos empregos para eles. […] A combinação de depressão com uma economia maciçamente projetada para expulsar mão–de–obra humana criou uma acerba tensão que penetrou na política das Décadas de Crise.” (HOBSBAWM, 1995) A revolução científico–tecnológica contemporânea, antes de tudo a revolução microeletrônica, cujo ponto álgido situa–se em meados dos anos setenta, imprime elementos novos à subsunção real do trabalho no capital previamente existente. Simultâneo a isso, instala–se uma crise estrutural no capitalismo mundial (MESZAROS, 1995), com impacto imediato sobre a estrutura do emprego (RIFKIN, 1995). Universaliza–se uma nova aceleração inusitada da história, assim como as ideologias correspondentes a esse processo, antes de tudo os embates entre o keynesianismo (GALBRAITH, 2006) com as variantes do ultraliberalismo ou neoliberalismo, de Milton Friedman (DALLASFED, 2007). A marcha triunfal dos ultraliberais inicia– se nos anos 60 através da sucessão de golpes militares e experimentos ditatoriais em todo o mundo, em especial na América Latina – cujo modelo insuperável foi a conquista da ditadura de Pinochet no Chile, em 1973–, espraiando–se depois para experimentos ainda mais grandiosos (que não podem competir, entretanto, com o brilhantismo disciplinador das boas regras da economia política liberal exemplificadas no saldo positivo dos milhões de mortos do golpe na Indonésia, em 1965) (LABARIQUE, 2015), tal como o desmoronar da URSS, da Iugoslávia, etc. (KLEIN, 2007). O surgimento de um novo capital industrial de base microeletrônica (BACCHI, 2008, 2013, 2014) passará a revolucionar as forças produtivas, rompendo o secular limite histórico à expansão da Revolução Industrial a todos os campos da produção. Entra–se, assim, na etapa final desta, na qual se invertem as relações entre incremento das forças produtivas e relações de produção, quando aquelas se verão bloqueadas (nos velhos espaços de expansão) em função das próprias relações capitalistas. A reprodução social mundial, em virtude disso, adquirirá um acentuado caráter catastrófico, tomando conta de todos os poros daquela e expressará a crise que a partir de então adquirirá permanente caráter estrutural (MÉS-
57 ZÁROS, 1995). Incapaz de esgotar os esperados incrementos de produtividade derivados de seus investimentos em prazos compatíveis com as taxas e massa de lucro esperadas, a partir de então o novo capital monopolista, proprietário universal do novo órgão da máquina, seu 4º órgão – que expressa o surgimento dessa nova força social – se verá impelido a mais rápida possível corrida para a conquista de espaços econômicos em todo os rincões do planeta, em busca do aumento da taxa de lucro em tendência decrescente (HEINRICH, 2013; HARVEY, 2014), cujo alcance se tornará impossível, a partir da crise estrutural. Antes de tudo, o peso da reorganização mundial do espaço econômico recairá sobre a classe trabalhadora, degradando suas condições de trabalho e reprodução, seja no que respeita a proteção ao trabalho – à aposentadoria, organização do trabalho ou sua intensidade (STENGERS, 2015; SALAMA, 2015). Por sua vez, aquilo que se convencionou chamar de intromissão de Gaia nos coloca diante da exigência de uma nova ecologia (LE DEM, 2014), que retira da ciência positiva e sua crença no progresso automático que ela promoveria, a primazia e exclusividade na apreensão da catástrofe em que estamos involucrados, na degradação universal das relações sociais que configura o advento da era de uma nova barbárie (STENGERS, 2013). Estamos, assim, diante de alteração radical no processo de produção, com implicações imediatas imanentes nas esferas da circulação e consumo das mercadorias e, consequentemente, na interação entre o trabalho alienado e o meio ambiente, onde este não é somente aquele aparentemente externo ao trabalhador, mas também e indissoluvelmente, o próprio trabalhador em seu processo de trabalho. Este, por sua vez, também é natureza, lembremo–nos, de tal forma que a degradação do trabalho é degradação do próprio trabalhador em seu processo de trabalho, em sua condição operante, ativa. Ou seja, o complexo das relações de produção se expressa pela degradação solidária e irredutível do trabalho alienado e da natureza através da nova etapa da organização do trabalho e das ideologias que o informam (no âmbito filosófico, da economia politica e da gerência). Não seria demais assinalar as decorrentes transformações inerentes às dimensões política de caráter nacional e da dimensão geopolítica. A nova economia política capitalista contemporânea, ainda não plenamente delineada pelas suas vertentes acadêmicas, está a exigir novos delineamentos da referida disciplina, que afetam vitalmente os próprios alunos, os quais, por sua vez, em sua maioria, são estudantes–trabalhadores. Todas as dimensões da existência humana estão afetadas pelo novo caráter da crise, agora permanente e estrutural, nesta nova e final etapa da revolução industrial. Daí o adjetivo “novo” em todas as dimensões científi-
58 cas, “nova organização do trabalho”, “nova ecologia”, “nova revolução industrial”, etc. e, consequentemente, nova economia política e novas ideologias gerenciais. Com se pode inferir, o tema da catástrofe ambiental vincula–se à sorte, ao destino da humanidade e, em primeiríssimo lugar do destino dos que trabalham.
4- Reprodução capitalista e catástrofe Dada a instabilidade universal das relações políticas e transformando–se a economia em “uma máquina cada vez mais poderosa e incontrolável” (HOBSBAWM, 1995), sobressaem dramaticamente os problemas ecológicos: Uma taxa de crescimento econômico como a da segunda metade do Breve Século XX, se mantida indefinidamente (supondo–se isso possível), deve ter consequências irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural deste planeta, incluindo a raça humana que é parte dele. Não vai destruir o planeta, nem torna–lo inabitável, mas certamente mudará o padrão de vida na biosfera, e pode muito bem torná–la inabitável pela espécie humana, como a conhecemos, como uma base parecida a seus números atuais. Além disso, o ritmo em que a moderna tecnologia aumentou a capacidade de nossa espécie de transformar o ambiente é tal que, mesmo supondo que não vá acelerar–se, o tempo disponível para tratar do problema deve ser medido mais em décadas que em séculos (HOBSBAWM, 1995; itálico nosso)
O que se põe, desse modo, naturalmente é a evidência do aprofundamento da degradação universal das relações sociais e da questão do meio ambiente, em especial a forte possibilidade da perda de controle sobre esse processo por meio da entrada irreversível em situação de entropia. Sendo a questão ecológica uma síntese das determinações das relações de produção, projeta–se então a catástrofe como processo alternativo plausível de futuro. Sob a aceleração da história, “a crise permanente nos oferece estreito campo de alternativas de futuro” (LIMA FILHO, 2015). Ao nos aproximarmos, ainda que sucintamente, das teorias de Beinstein (BEINSTEIN, 2014; 2012) e Katz (2009), observamos que “ambos (os autores) assinalam o enfraquecimento da capacidade de resposta política das maiorias trabalhadoras, fato que poderia dar longo fôlego à regressão antiindustrialista da região” (GONÇALVES, 2014; FILGUEIRAS, 2014), entendida esta como sendo a América do Sul. Nesse sentido ainda devemos enfrentar com mais profundidade a crítica às teorias de Galbraith (GALBRAITH, 2006, 2000), de Stengers (STENGERS, 2015), Mészáros (MÉSZÁROS, 2015), Marques (MARQUES, 2015), (BECK, 2008, 2011, 2015),
59 Souza (SOUZA, 2015), Francisco (FRANCISCO, 2015), Stiglitz (STIGLITZ, 2015) e outros, além de aprofundarmos nossa análise dos autores já estudados, tais como Altair Barbosa (2014) e António D. Nobre (2014), por exemplo, sem perder de vista o caráter mundial desse processo e seu fundamento produtivo. Essa interpretação bem condiz com aquela enfaticamente formulada por Hobsbawm no último capítulo de sua monumental síntese histórica do século XX, A era dos extremos. O breve século XX, 1914–1991: “Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou, pelo menos, é razoável supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente quanto internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana. As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo mesmo algumas as fundações sociais da economia capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado humano. Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão. Tem de mudar.” (HOBSBAWNM 1995; itálico PALF) Evidenciam–se nessa citação, desse modo, o império da simultaneidade, da questão da urgência, da gravidade, da incontrolabilidade, da entropia e do futuro, assim como a exigência da necessidade da ação coletiva planejada e consciente para contrarrestar esse processo em curso, de caráter mundial. É evidente serem necessários panoramas globais para podermos tratar dos temas dos futuros possíveis. Como já vimos anteriormente, vários autores se debruçam sobre as questões científicas ou doutrinárias necessárias para tal empresa, tais como Bacchi, Dagnino (2013), Sapir (2013), Amin (2005), Max–Neef (2015), Francisco (2015), Salama (2014, 2015), etc. No campo da crítica da economia política, momento crucial desse esforço, vários autores realizam pesquisas deveras relevantes, tais como Oliveira (OLIVEIRA, 2004, 2005), Mészáros (1995, 2015), Arrighi (2012), Piketty (2013) e outros. Acreditamos que os trabalhos de Bacchi, Silva (2013, 2014), Lessa (2014), Doti (2014), Guerra (2014), Sevá (2013), Sampaio Jr (SAMPAIO JR, 2015), Bermann (2002, 2014) e outros conseguem nos fazer aproximar de níveis elevados de aproximação aos processos contemporâneos, de caráter socioeconômico e energético, políticos e sociais, apesar de que os fundamentos mais íntimos da crise ainda estejam velados, a exigir síntese teórica mais adequada à sua interpretação, dada a exigência imperiosa de atuar sobre a história.
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O novo capital industrial e o caráter da crise capitalista. Como já sabemos, com exceção de Bacchi, a crise contemporânea ainda é vista no âmbito exclusivo da ampliação do capital fictício e da financeirização, processos reais e deveras importantes, embora não nos digam nada sobre as transformações vitais no âmbito do capital industrial (financeiro) produtivo (JURUÁ, 2005; SALAMA, 2013), a nosso ver o centro determinante da nova aceleração da história em processo. Daí, então, ser a crise estrutural, como afirma Mészáros (1995). Como hipótese inicial, acreditamos que a dinâmica vital desta fase de finalização da Revolução Industrial iniciada no século XVIII se encontra no surgimento do 4º órgão da máquina, descoberta por Bacchi. De acordo com este, é o 4º órgão que impõe ao capital a fuga ao modo histórico de desempenho temporal da crise econômica cíclica (uma sinusóide como forma de apresentação de suas oscilações retificadas da produção industrial no tempo) e faz com que os capitais se atropelem no curto e curtíssimo prazo, no empenho individual (das corporações) de ampliar sem cessar os estágios da evolução do órgão de controle da máquina, capaz de assim ampliar sem mais limites técnicos o âmbito da atuação dos sistemas de máquinas na busca mundialmente desplanejada da máxima taxa de lucro possível. O errático desenrolar–se da crise capitalista mundial, do tipo stop and go, deve–se ao surgimento e expansão desse órgão como nova força produtiva vital do capital, que leva ao surgimento de novo capital produtivo de base microeletrônica e, consequentemente, de um novo capital financeiro – aquela que faltava para que o caminho da expansão dos sistemas de máquinas não mais estivesse bloqueado entre ramos industriais sob barreiras intransponíveis, tal como ocorreu até a entrada em cena da microeletrônica vinculada ao surgimento do órgão de controle. Seria, então, a notada aceleração fantástica da história promovida pela expansão do novo órgão da máquina na trama das relações produtivas, o que empurraria o capital à etapa contemporânea da mundialização, o que conferiria ao capital financeiro tamanho poder de liquefação da reprodução social, ainda mais incontivel nos espaços nacionais e capaz do feito de fazer retroceder tão rapidamente a sociabilidade mundial ao ponto de podermos falar em nova barbárie universal e, nela, do ressurgir o fantasma de nova guerra mundial. Tal aceleração da história implicará necessariamente em aceleração do assalto à natureza pelo capital. Este tipo específico de assalto nos coloca diante da vital e urgentíssima premência de solução dos dilemas
61 energéticos, ao lado da preservação dos fundamentos da vida no planeta. Está posta, desse modo, a inescapável questão do futuro da humanidade.
A dinâmica dos tempos modernos. O capitalismo da catástrofe e as disputas ideológicas em torno da interpretação dos futuros possíveis. A história apresenta–se nestes dias através de uma situação de encavalamento de todas as suas principais categorias sintéticas e regulares, categorias sociais tão regulares que mais se assemelham às naturais. Os cinco cavaleiros do apocalipse enfeixam–se célere e incontrolavelmente sob a batuta poderosa do novo capital financeiro. A guerra, a revolução, a crise, a catástrofe e a casualidade cavalgam freneticamente e sem rumo. A arrancada para frente do capital financeiro sob a pressão das taxas de lucro decrescentes após o fim do ciclo de longa duração do pós–segunda guerra, os chamados trinta gloriosos, impôs à acumulação mundial do capital a expansão exponencial do capital fictício na ordem de várias vezes o montante do crescimento do mundo das mercadorias que compõem a somatória dos PIB nacionais. A catástrofe apresenta–se sob a forma da impossibilidade de dar forma monetária a todas as trocas, da sua interrupção sucessiva e subsequente ruptura e desmanche de toda a cadeia mundial de acumulação. A variante teórica republicana e democrata de enfrentamento da crise coincide, nos EUA. Concebe trata–la como dependência da guerra, na qual a potência imperial se obriga a ser caudatária do complexo industrial–militar (uma unilateralidade similar àquela “ortodoxa” liberal, ainda usada, por exemplo, no Brasil contemporâneo) (GONÇALVES, 2017). Esta a suprema mensagem de futuro esperada por parcela importante dos possíveis governantes da potência mundial decadente (CHERNUS, 2008). Os comandantes do complexo da guerra apresentam–se ao mundo priorizando não a catástrofe mundial que os liquidaria como governantes supremos da terra, em cujas entranhas rugem mais guerras e catástrofes assim como as revoluções. A nova fase da contrarrevolução em processo, expressa na guerra infinita, mostrou–se assustadoramente cega às consequências mundiais de sua marcha (COCKBURN, 2008): “Tanto os extremos de pobreza e riqueza subiram, como subiu a gama de distribuição de renda entre eles. […] havia menos inquietação social do que se poderia esperar, embora as finanças do governo se vissem espremidas entre enormes pagamentos de benefícios sociais, que subiam mais depressa que as rendas do Estado em economias cujo crescimento
62 era mais lento do que antes de 1973. Apesar dos esforços substanciais, di ficilmente algum governo nacional nos países ricos – e sobretudo democráticos – e certamente não dos mais hostis à previdência nacional pública conseguiu reduzir a vasta proporção de suas despesas para esse fim, ou mesmo, mantê–las sob controle.” Continua Hobsbawn: “Ninguém em 1970 esperara, e muito menos pretendera, que tudo isso acontecesse. No início da década de 1990, um clima de insegurança e ressentimento começara a espalhar–se até mesmo em muitos dos países ricos. Como veremos, isso contribuiu para que neles ocorresse o colapso de padrões políticos tradicionais. Entre 1990 e 1993, poucas tentativas se fizeram de negar que mesmo o mundo capitalista desenvolvido estava em depressão. […] Ninguém sabia o que fazer em relação aos caprichos da economia mundial, nem possuía instrumentos para administrá– la. O grande instrumento para fazer isso na Era de Ouro, a política de governo, coordenada nacional ou internacionalmente, não funcionava mais. As Décadas de Crise foram a era em que os Estados nacionais perderam seus poderes econômicos.” (HOBSBAWM, 1995)
Daí ser possível a um importante teórico democrático contemporâneo, Ulrich Beck, poder afirmar em 2008: “O declínio do estado nacional é realmente o declínio do conteúdo nacional específico do estado e uma oportunidade para criar um sistema mundial cosmopolita que será mais capaz de tratar dos problemas que todas as nações enfrentam atualmente no mundo. A globalização econômica, o terrorismo internacional, o aquecimento global: a litania é familiar e assustadora. Há um exército de problemas que estão claramente mais além do poder da velha ordem de lutar contra eles. A resposta aos problemas globais que ominosamente se acumulam em todo o mundo e que se recusam submeter–se a soluções dos estados nacionais indica que a política deve dar um salto qualitativo do sistema estatal–nacional para o sistema estatal cosmopolita. A política necessita readquirir credibilidade para desenhar soluções reais.
Mais do que em qualquer outro lugar a Europa nos demonstra que tal passo é possível. A Europa ensina o mundo moderno que a evolução política dos estados e sistemas estatais está chegando ao fim. A realpolitik nacional está se tornando irreal não somente na Europa mas em todo o mundo. Ela está se tornando um jogo de perdas sucessivas. A europeização significa criar uma nova politica. Significa entrar como jogador no jogo do metapoder mundial, na luta para criar as regras
63 de uma ordem global. A frase sintética para o futuro deve ser: mover–se para os Estados Unidos, a Europa está atrás.” (BECK, 2008) 2 Nesse contexto, dentre outros, ouvem–se clamores por uma nova ordem financeira mundial, vindos tanto das bandas do stablishment norte– americano como dos representantes dos países candidatos a futuros alvos preferenciais ou inevitáveis da catástrofe. Fala–se na necessidade de um novo Bretton Woods como se a história pudesse repetir–se tão virtuosamente quanto no após II guerra. Clinton apoiaria tal proposta em 1997, porém seu governo seria o mais pródigo acelerador do desmanche do caráter público do estado, em especial no que respeita à transição das funções de defesa (e mesmo de ataque) do complexo industrial–militar a empresas privadas (JOHNSON, 2008). As estrelas keynesianas expulsas do Olimpo governamental também se somam a ela. Elas têm em comum o fato de não serem críticos do capital, e assim, compartilham a incompreensão básica sobre as razões do capital e sua história. Marx, ao contrário, considerava ser a sociedade da plena liberdade do capital exatamente a sua expressão suprema (MARX, 1970). A economia política da centralidade do desenvolvimento nacional e internacional das forças produtivas – e, consequentemente, de uma educação e ciência que multiplicassem as capacidades humanas – e de uma ordem mundial composta por nações soberanas, simplesmente não dá conta da dialética contemporânea imanente à lógica do capital na construção de sua história como história da humanidade a ele submetida. É incapaz de explicar a irracionalidade, a destrutividade e demais absurdos da ordem do capital quando este se encontra liberado de controles sociais enquanto ordem capitalista, ou seja, as razões pelas quais o capital esfarelou todos os intentos de controle social sobre si, seja os do pós–capitalismo – experiência da União Soviética e do que se chamou campo socialista – ou dos estados do bem–estar social (LAROUCHE, 2007). “The decline of the nation–state is really a decline of the specifically national content of the state and an opportunity to create a cosmopolitan state system that is better able to deal with the prob lems that all nations face in the world today. Economic globalisation, transnational terrorism, global warming: the litany is familiar and daunting. There are a host of problems that are clearly beyond the power of the old order of nation–states to cope with. The answer to global problems that are gathering ominously all around and that refuse to yield to nation–state solutions is for politics to take a quantum leap from the nation–state system to the cosmopolitan state system. Politics needs to regain credibility in order to craft real solutions. More than anywhere else in the world, Europe shows that this step is possible. Europe teaches the modern world that the political evolu tion of states and state systems is by no means at an end. National realpolitik is becoming unreal, not only in Europe, but throughout the world. It is turning into a lose–lose game. Europeanisation means creating a new politics. It means entering as a player into the meta–power game, into the struggle to form the rules of a global order. The catchphrase for the future might be: move over America, Europe is back.” (BECK, 2008) 2
64 A guerra infinita promovida pela potência hegemônica ainda não foi oficialmente abolida, embora combatida pela ala liberal (na sua vertente anglo–saxônica, ou seja, socialdemocrata) do stablishment (STIGLITZ, 2006,2008,2010; ENGELHARDT, 2008). Tal fato confirma a força dos laços denunciadores da subordinação da política de estado aos interesses privados da guerra, do complexo industrial–militar expandido de forma espetacular e única, como nunca depois da II Guerra Mundial e, consequentemente, do petróleo como energia essencial para que a produção industrial possa reproduzir o mundo à imagem do capital e do modo como deseja a única potência imperial. Desse modo a questão energética é indissociável da reprodução global da ordem do capital. No dizer de Engdal: “A venda do petróleo expressa em dólares é essencial para garantir o dólar dos EUA. Assim, ao manter a demanda por dólares pelos bancos centrais de todo o mundo para as suas reservas correntes para garantir o comércio exterior de países como a China, Japão ou Alemanha, é essencial que o dólar norte–americano permaneça a reserva monetária líder mundial. O status de reserva monetária líder mundial é um dos dois pilares da hegemonia norte–americana desde o fim da segunda guerra mundial. O segundo pilar é a supremacia bélica mundial.” (ENGDAL, 2016) 3
Conclusão As revoluções burguesas radicais permanecem sendo a vanguarda capitalista do sistema mundial do capital, seus polos reitores e expressão da sua dinâmica contemporânea. O futuro se vislumbra por seu presente. A marcha acelerada da República Popular da China ao se constituir em espaço universal do capital e a falência da URSS e da constelação dos regimes de democracia popular a ela firmemente ligada, universalizou o campo do capital e liquidou a primeira etapa histórica do pós–capitalismo. Tal processo repõe a imperiosidade da apreensão teórica dos fundamentos históricos do capitalismo contemporâneo, da transição comunista e razões de seu bloqueio nesta primeira fase pós–capitalista, assim como das razões da vitória do capital ao bloquear por vários meios, por sua vez, a hegemonia proletária na Europa e nas suas constelações neocoloniais.
“The sale of oil denominated in dollars is essential for the support of the US dollar. In turn, maintaining demand for dollars by world central banks for their currency reserves to back foreign trade of countries like China, Japan or Germany, is essential if the United States dollar is to remain the leading world reserve currency. That status as world’s leading reserve currency is one of two pillars of American hegemony since the end of World War II. The second pillar is world military supremacy.” (ENGDAL, 2016) 3
65 Ao lado da curiosamente escassa leitura de Marx nos núcleos intelectuais revolucionários – em sentido decrescente ao iniciarmos a medida em fins do século XIX –, e da deficiente qualidade das traduções das obras do mestre e da imensidão desconhecida da sua obra (revelada pelas novas traduções da MEGA, vide FINESCHI, 2017; SANKAR, 2012), se impõe releitura cuidadosa de Marx e, no caso do Das Kapital, para além da leitura de Engels nos livros II e III. A emergência do novo capital produtivo microeletrônico em resposta ao surgimento do quarto órgão promoverá tal conflagração na reprodução social mundial cujo centro está, desta vez, no universo do núcleo imperial, no coração das revoluções burguesas radicais. A história dessas revoluções se alterará de modo também radical. A hora da emancipação dos trabalhadores retornou à sua praia. Os fantasmas da revolução e da contrarrevolução voltam a assombrar o seu futuro imediato.
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3– O papel das camadas médias militares na revolução brasileira Roziane Ferreira da Silva Cerqueira Rogério Fernandes Macedo
1. Sobre a formação das camadas médias na história Em decorrência do desenvolvimento das relações sociais capitalistas, operou–se uma expansão do aparelho urbano de serviços. Dentro desse processo, para além das classes sociais fundamentais, burguesia e trabalhadores, surgiu um complexo mais amplo de grupos sociais1 que se situavam para além desses polos antagônicos. Tais grupos são aqui chamados camadas médias. Conforme salienta Saes (1985), no processo de formação tais camadas médias, a princípio, não se identificam imediata e necessariamente com os trabalhadores e, portanto, tendem a não antagonizarem estruturalmente com os proprietários dos meios de produção. Conforme Ribeiro (1983), esses setores intermediários inclinam–se a se oporem mais aos estratos inferiores que aos superiores, sem contudo identificar–se com nenhum deles2. Por conta dessa posição social ambivalente e não conflitante com as classes superiores foi possível a dispersão das camadas médias “[…] em vários grupos, inconscientes ao mesmo tempo de sua posição comum na organização social da produção e de sua similitude com a classe operária.” (SAES, 1985, p.12). Tais estão relacionados ao conjunto de trabalhadores improdutivos, isto é, aqueles que não contribuem diretamente à produção de valor, conforme a tradição marxista. “Este corte analítico, empreendido ao nível das relações sociais de produção, entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, reagrupa, portanto, num grande conjunto os trabalhadores assalariados dos serviços urbanos (bancos, comércio, propaganda, transporte, comunicações) e da administração das empresas industriais, os funcionários de Estado, civis e militares, e os profissionais liberais.” (SAES, 1985,p. 9). 2 Para Ribeiro: “O que os caracteriza é uma conduta ambivalente de camada que espera ascender (ou ao menos representar) ao estatuto da classe dominante; mas se sente frustrada em virtude da rejeição de seus reiterados esforços por alcançar ou ver reconhecidas aquelas pretensões. A própria posição de intersticial dos setores intermediários – situados entre as classes dominantes e subalternas – acarreta as duas características responsáveis por sua conduta política. Primeiro, a ambivalência de interesses que algumas vezes se confundem com os das camadas altas e outras com os das inferiores. Segundo, sua composição social heterogênea.” (RIBEIRO, 1983, p. 77). 1
76 Essa condição abre espaço para que as camadas médias se aliem à classe trabalhadora, mas essa aliança, em geral, porém não impreterivelmente, encontra uma barreira: a recusa de nivelamento social com esses. Além disso, outro aspecto importante é identificado pelo autor (1985) como uma consciência média situada entre a consciência burguesa e a operária, que apesar de não ser garantia de unidade ideológica e política aos membros das camadas médias, opera como um limite fazendo–os oscilar potencialmente à esquerda e à direita do espectro político; com isso, é importante destacar que “[…] a compreensão das orientações políticas dos grupos médios nos leva além de sua posição na ‘estratificação social’ […)”. (SAES, 1985, p. 17–18). Dessa forma, "[…] a posição política dos grupos médios depende da conjuntura, do modo pelo qual se articulam e se opõem a prática política burguesa e a prática política operária, de seus problemas e de suas ten sões." (SAES, 1985, p.18). Eles, por não serem os sujeitos principais da luta de classes, devem aceitar, na sua prática política, a definição das linhas gerais do conflito essencial estabelecido pelas classes antagônicas. Importante registrar que isso não implica ausência política visto que "[…] as classes antagônicas, seja a burguesia, seja o proletariado, podem conceder aos grupos médios uma função na concretização política do antagonismo de classe." (SAES, 1985, p. 18). Em decorrência, abrem–se as seguintes possibilidades: De um lado, é possível que, numa certa conjuntura, uma classe social, seja a classe burguesa, seja a classe proletária, se mostre incapaz de exprimir, no plano da organização política, a defesa de seus interesses de classe. Neste caso, a representação política dos interesses de classe pode ser assumida por um grupo social estrategicamente situado no plano institucional; este grupo social secundário caracteriza–se como um “agente substituto” de uma classe social temporariamente incapaz de estender a defesa de seus interesses ao plano político. Alguns grupos médios são especialmente aptos a preencher esta função de “substituição”; referimo–nos às “categorias sociais” ou aos “grupos institucionais”, cuja posição no interior dos aparelhos de Estado ou no seio das instituições sociais e políticas fundamentais aumentam as possibilidades de ação política direta e eficaz. (SAES, 1985, p. 18–19)
Nesse sentido, para o interesse do presente artigo e no bojo da história brasileira, os militares em diversos momento desempenharam esse papel de agente substituto; para além deles, podem também comparecer à cena histórica os estudantes, a burocracia de Estado, a igreja, o judiciário,
77 os jornalistas, entre outros3. Ainda, esses grupos médios podem formar a base de apoio à política das classes sociais Neste caso, os grupos médios aderem à linha política definida pelas organizações ou grupos (“agentes substitutos” ou não) que falam em nome das classes sociais. O apoio e o assentimento dos grupos médios tornam–se, pois, um fator importante de concretização de uma certa política de classe. (SAES, 1985, p. 19)
Pensando o interior desses grupos médios, observa–se que eles não formam um bloco monolítico, implicando desafios do ponto da análise teórica de suas posturas, dada a relativa ausência de coesão ideológica e unidade política entre eles. Buscando compreender de forma mais abstrata essa diferenciação interna, Saes (1985) assevera que a referência ao trabalho é profundamente relevante, pois se trata de um "[…] conjunto de elementos capazes de introduzir diferenciações ideológicas no mundo dos trabalhadores “não–manuais” […]" (SAES 1985, p. 20). Tipo de trabalho, condições de trabalho, suas relações decorrentes, a forma de remuneração, o nível de remuneração, nível de formação necessária: por certo, as "[…] diferentes articulações destes elementos criam uma “situação de trabalho” particular, capaz de engendrar uma disposição ideológica específica."4 (SAES, 1985, p. 20). Depois dessa caracterização mais abstrata das camadas médias, interessa analisar o seu processo histórico de formação e desenvolvimento no Brasil, como ponto relevante para a apreensão da atuação desses grupos em geral e dos militares, em específico.
2. Formação das camadas médias no Brasil O nascimento das camadas médias urbanas brasileiras se situa principalmente em um contexto histórico marcado por duas dimensões: em um plano, a consolidação a partir de 1850 do Estado Nacional; em outro, tem–se a expansão da economia cafeeira5. Ressalta–se que isso deu origem no espaço citadino a um novo aparelho urbano, burocrático e de serviços, a exemplo de bancos, empresas exportadoras, importadoras e “Nos países subdesenvolvidos ou dependentes, em que as relações capitalistas não alcançaram ainda a sua plenitude, onde a classe operária é pouco numerosa ou carece de organização ou esta é ainda precária, os movimentos políticos de libertação e de avanço sofrem a influência poderosa da pequena burguesia; à frente desses movimentos aparecem, com freqüência, elementos da intelectualidade, das forças armadas, do clero, das organizações estudantis, dirigentes nacionalistas […]” (SODRÉ, 1978, p. 236). 4 Ainda: “De qualquer modo, o desenvolvimento do capitalismo industrial tende a reforçar a significação ideológica da “situação de trabalho” dos grupos médios e a torná–la dominante em relação a outros elementos de propagação ideológica.” (SAES, 1985, p. 21). 3
78 organismos de financiamento, entre outros6. Nesse momento, contudo, o desenvolvimento das cidades sob regência relativa do latifúndio ainda era diminuta, transbordando ao século XX o processo de sua intensificação e aprofundamento7. À medida que o desenvolvimento econômico avançou, no contexto da aceleração da revolução burguesa brasileira, as cidades passaram a ter maior importância, como resultado da progressiva divisão social do trabalho. Nem só o aumento demográfico e as sobras humanas da atividade agrícola, aquelas que já não encontravam em tal atividade um lugar, impunham um papel à cidade. O próprio aparelhamento administrativo e político havia crescido o suficiente para dar aos centros urbanos uma função. Desenvolveram–se a administração, particularmente nos setores judiciário e fiscal, enquanto as milícias, de um lado, e o clero, de outro, não só aumentavam como, o que é mais importante, recolhiam elementos da terra, davam–lhe uma posição. (SODRÉ, 1978, p. 38).
Nesse solo histórico de mudanças no âmbito da produção e diversificação das atividades produtivas e comerciais, está a origem social das camadas médias urbanas brasileiras8. Conforme Saes (1985), é importante indicar o ponto de nascimento social das camadas médias urbanas para a compreensão da sua ação ideológica e política. Nesse sentido, um dos aspectos centrais é ter em conta que ocorreu um fluxo de ex–proprietários de terras para as cidades em busca de uma alternativa para a decadência de Furtado ensina que é a partir da etapa cafeeira da economia colonial que se vislumbrou uma maior a dinamização da sociedade, uma vez que foi naquele momento que surgiu uma camada burguesa empresarial: “A etapa de gestação da economia cafeeira é também a de formação de uma nova classe empresária que desempenhará papel fundamental no desenvolvimento subseqüente do país […]. Desde o começo, sua vanguarda esteve formada por homens com experiência comercial. Em toda a etapa de gestação os interesses da produção e do comércio estiveram entrelaçados.” (FURTADO, 2000, p. 119–120). 6 “Tais alterações enquadram–se na moldura natural do ambiente urbano. A cidade adquire, a pouco e pouco, uma função, o que não acontecia no passado. Surgem, com a divisão progressiva do trabalho, extraordinária no regime colonial, e tardia em conseqüência disso mesmo, profissões e misteres que até então não haviam encontrado oportunidade de definir–se.” (SODRÉ, 1978, p. 35). 7 Vale salientar que conforme Carone: “Só que até 1930 – e podemos incluir até 1940 – a maior parte das pequenas cidades vive na dependência do campo: as várias atividades – ferreiros, carpinteiros, carroceiros, advogados, médicos etc. – funcionam a favor da demanda dos grandes fazendeiros e de seus interesses. A vida urbana é complementar a vida rural. Daí o domínio absoluto do sistema agrário, já que não existe contradição profunda entre cidade e campo.” (CARONE, 1989, p. 13). 8 Nesse momento o desenvolvimento social também repercute nas demais classes: “[…] a classe trabalhadora, agora definida pela retribuição do seu trabalho em dinheiro, inteiramente distinta da massa constituída pelo elemento escravo que, apesar de tudo, também encontra campo de atividade agora em misteres urbanos e domésticos. A classe proprietária, por outro lado, vê–se colocada em progressivo antagonismo com a Coroa, deixando de fornecer–lhe o apoio maciço de antigamente, deixando de representá–la no interior, como na primeira fase.” (SODRÉ, 1978, p. 38). 5
79 seus negócios. Nas cidades, ocuparam cargos públicos e exerceram profissões liberais, uma vez que era preciso “[…] preencher as assembléias legislativas provinciais e a geral, que prover as funções judiciárias, que dar for ma à força militar. É na classe média que vão ser recrutados muitos desses elementos.” (SODRÉ, 1978, p. 40). Nesse momento histórico de desenvolvimento das camadas médias, o poder social exercido pelos proprietários de terras ainda era muito elevado e se expressava em diversos aspectos, dentre eles: […] o horror ao mister do comércio, relegado a um nível secundário no conceito vigente. Outro, mais importante porque mais profundo, o horror aos trabalhos que exigissem esforço ou habilidade física, entre os quais se colocavam todos os que se aparentassem com o artesanato. (SODRÉ, 1978, p. 35)
A desqualificação dos trabalhos manuais durante o período aqui tratado marcou (SAES, 1985) a maneira como tais atividades típicas do ambiente urbano eram encaradas pelo conjunto da sociedade 9. Em decorrência disso, quando também parcelas das massas trabalhadoras rurais assumiram posições nas camadas médias urbanas, tal fato se deu predominantemente pela saturação de atividades consideradas socialmente inferiores, na divisão social do trabalho: notadamente, o trabalho manual e o comércio. Como consequência, abrem–se (SAES, 1985) estratificações e polarizações dentro da própria camada média. Ali, configura–se um cenário em que, de um lado, estão elementos dedicados aos trabalhos não manuais e ao comércio; por outro, os elementos que se dedicavam aos trabalhos manuais. Assim, conforme Saes (1985), em que pese a distância das oligarquias, aquela fração relacionada aos trabalhos não–manuais, ingressante nas camadas médias, afastou–se objetiva e subjetivamente dos trabalhadores manuais, mal vistos como decorrência da concepção historicamente estabelecida de trabalho manual como algo degradante. Tal estratificação terá consequências importantes para o processo da revolução burguesa brasileira, marcado por múltiplas variantes de posições distintas, todas presentes no interior desses estratos médios da sociedade. Dessa feita, emperram as possibilidades da referida revolução, por não criarem um vetor ideológico e político impulsionador: um bloco das “[…] a exploração do trabalho escravo, até o fim do século XIX, impôs uma sobre–degradação ao trabalho produtivo e ao conjunto das atividades “manuais”. A predominância, ao longo de quatro séculos de dependência colonial e semicolonial, da mão–de–obra escrava nas atividades produtivas estigmatizou de maneira durável o “trabalho manual”; esta degradação, o capitalismo agrário semicolonial nascente legou–a ao capitalismo industrial nascente, sem que a impessoalidade do mercado de trabalho capitalista se mostrasse capaz de apagar a curto prazo este resíduo ideológico do período colonial.” (SAES, 1985, p. 12–13). 9
80 camadas médias. Em geral, todos os seus estratos se encontram nesse embaraço.
3. As camadas médias tradicionais Como se depreende do que foi tratado até aqui, as camadas médias brasileiras desde a sua origem não formavam um corpo homogêneo. Tem–se dentre elas o que Saes (1985) denomina de camadas médias tradicionais, indicadas como membros empobrecidos da oligarquia não majoritária10. Por conta de sua proximidade histórico–social com as oligarquias dominantes, as camadas médias tradicionais poderiam "[…] fazer o papel de agente secundário da dominação oligárquica." (SAES, 1985, p. 47). Essa relação impactou sua formação ideológica, uma vez que As balizas do comportamento citadino destas “classes médias tradicionais” serão o culto aos valores tradicionais, uma visão estamental da realidade social e uma superestimação do seu “status” social (o que leva a considerar–se em pé de igualdade com os grandes proprietários de terras). Os membros desse grupo ainda que empobrecidos, sentem–se aristocratas, o que estabelece uma vinculação afetiva e valorativa aos grupos tradicionais ainda poderosos economicamente. (SAES, 1975, p. 34)
De outra parte, tais posturas reforçam aquele fosso objetivo e subjetivo, com reflexos ideológicos e políticos, entre essas camadas médias tradicionais e aquelas submetidas aos trabalhos manuais e, para além e ainda mais amplo, entre essas e os trabalhadores propriamente ditos. Como não haveria de ser, esses elementos condicionaram também a ideologia vigente, criando um pensamento liberal bem específico e com algumas variantes. Conforme Fernandes (1975), o liberalismo assume aqui duas funções típicas: a primeira se refere à capacidade de dar forma e conteúdo às manifestações igualitárias de reação contra o sistema colonial; a segunda de redefinir, de modo aceitável para as elites nativas, as relações de dependência que continuariam a vigorar no país em relação ao mercado externo e as grandes potências. Além disso, associava–se ao liberalismo o ideário ligado a construção de um Estado nacional 11. Somando–se a essas funções, Saes (1985) apreenderá outra, a saber, o liberalismo oligár"Nesse processo, os antigos pequenos proprietários, velhos habitantes da região, foram empobrecidos e expelidos para as cidades, onde passaram a ocupar os cargos mais elevados do aparelho burocrático e a desempenhar aqueles serviços mais qualificados (exemplo: as profissões liberais)." (SAES, 1975, p. 34). 11 “Assim o liberalismo esteve tão presente nas concepções que impulsionaram os conflitos com o Reino ou com os “reinóis” e nas acomodações impostas pela persistência da ordem social colonial, quanto nos ideais que projetavam o Estado e a sociedade nacionais como um destino a ser conquistado no futuro.” (FERNANDES, 1975, p. 35). 10
81 quico. Esse corresponde à reinterpretação periférica e agrária da ideologia do capital industrial nascente capaz de justificar a dominação de classe dos latifundiários (SAES, 1985). Em relação assa última função, o autor (1985) destaca alguns pontos: o primeiro se concentra no fato de que o liberalismo político das oligarquias se fundava em uma concepção de democracia representativa sem nenhuma relação com a representatividade popular. A concepção em questão era elitista e negava às massas, consideradas incultas, a possibilidade de participação no processo decisório, além de atribuir aos homens cultos, isto é, à oligarquia ou a seus semelhantes, a responsabilidade exclusiva pelo funcionamento das instituições democráticas. "No fundo, as oligarquias definiam a democracia como uma espécie de clube aristocrático do qual as massas rurais e urbanas deveriam ser descartadas em virtude de sua ignorância, incapacidade e imaturidade." (SAES, 1985, p.48). Tal liberalismo também apartava os militares da vida política por medo que pudessem agir contra as oligarquias majoritárias. Assim, o liberalismo defendido pela oligarquia visava à sua manutenção no controle político da produção econômica do país. Ao defenderem a essencialidade agrícola do Brasil, a interdição de incentivos industriais, alegando que esses poderiam gerar o que chamavam de indústrias artificiais, bem como a defesa das vantagens comparativas, buscavam interromper a ascensão da indústria e da burguesia industrial. "As oligarquias se apoderavam, assim, de uma arma de luta antifeudal fabricada pela burguesia das sociedades capitalistas centrais, e serviam–se disso contra a burguesia industrial nascente." (SAES, 1985, p. 49). Por essa via, elas seguem criando impossibilidades ao processo da revolução burguesa, aportando a ela ritmos lentos de transformação histórica. Não obstante tal situação, conforme Fernandes (1975), apesar das oligarquias estarem mais comprometidas com a defesa da propriedade, da escravidão e de maneiras possíveis para se apropriarem dos meios de organização do poder, aportando ao liberalismo uma variante profundamente conservadora – até mesmo contrarrevolucionária –, ainda assim12, mesmo Conforme Fernandes: “O que ocorreu com o Estado nacional independente é que ele era liberal somente em seus fundamentos formais. Na prática, ele era instrumento de dominação patrimonialista ao nível político. Por essa razão […] ele combinou de maneira relativamente heterogênea e ambivalente as funções da Monarquia centralizada com as da Monarquia representativa. Enquanto veículo para a burocratização da dominação patrimonialista e para a realização concomitante da dominação estamental no plano político, tratava–se de um Estado nacional organizado para servir aos propósitos econômicos, aos interesses sociais e aos desígnios políticos dos estamentos senhoriais. Enquanto fonte de garantias dos direitos fundamentais do “cidadão” […] travava–se de um Estado nacional liberal e, nesse sentido, “democrático” e “moderno””. (FERNANDES, 1975, p.68). 12
82 […] nos limites acanhados em que ela se mostrou sensível e racional diante de tais questões, parece evidente que as coisas teriam sido piores não fora a influência do liberalismo (em tal caso, teríamos como ponto de partida uma organização estatal de modelo mais retrógado; ou, talvez, ocorresse a fragmentação do país) […] A necessidade de adaptar a dominação senhorial a formas de poder especificamente políticas e organizadas burocraticamente não teria produzido os resultados reconhecíveis, se o horizonte cultural médio dos “cidadãos de elite” não absorvesse idéias e princípios liberais, de importância definida para a sua orientação prática, a sua ação política e seu comportamento social. (FERNANDES, 1975, p. 45–46)
Saes (1975) afirma que durante toda a Primeira República as camadas médias tradicionais viveram mergulhadas na ideologia dominante das oligarquias; nesse sentido, “[…] o liberalismo político e econômico, na forma em que era professado pelas elites rurais, acabou fornecendo as coordenadas do pensamento dos grupos médios e condicionando, desse modo, a sua atuação política." (SAES, 1975, p. 65). Assim, a ideologia oligárquica, não tendo relação com as aspirações das classes populares, nem com os industriais, encontrou eco nas camadas médias tradicionais. Essas se vincularam à tradição do liberalismo da elite oligárquica, conquistando vantagens e privilégios, visto que se tratava de ideologia antipopular, anti– industrial, com liberdade de mercado e concorrência13. Desta forma, as camadas médias tradicionais não se prestaram à tarefa de imprimir uma forma política própria que culminasse na criação de um partido político, conectado com as bandeiras da revolução burguesa. Ao invés disso, prenderam–se voluntariamente ao conservadorismo das oligarquias majoritárias e seus partidos. Elitismo, civilismo, antiintervencionismo, agrarismo, antiindustrialismo: todas essas concepções contribuíram para vincular as camadas médias tradicionais às oligarquias (que souberam recompensá–las, atribuindo– lhes a função de “guardião” e “fachada” do sistema político oligárquico) de modo mais efetivo, e para diminuir as possibilidades de um entendimento com outros segmentos e setores (grupo militar, empresariado industrial). Manipulados pelas oligarquias e, portanto, precariamente integrados ao sistema político oligárquico, tais grupos apresentaram poucas condições para desenvolver uma atuação política realmente significativa e transformadora. (SAES, 1975, p. 69) “Essa ausência de radicalismo do seu projeto “democratizante” não se chocava com os anseios das camadas médias urbanas; ao contrário, fazia um casamento perfeito com as concepções políticas alimentadas pelos setores mais atentos destas camadas, isto é, os grupos tradicionais. Impregnados de uma cultura política elitista, os setores “destituídos” se sentiam atraídos por essa reivindicação, oligárquica e pouco radical, de democratização do regime político brasileiro.” (SAES, 1975, p. 72). 13
83 Aqui, vale ressaltar que a dominação de uma fração oligárquica sobre o conjunto social, apesar de ampla não era irrestrita, dada existência de dissidências que disputaram o poder político, uma vez que As diversas camadas oligárquicas têm consciência de suas necessidades e lutam pelo controle político do Estado. O que interessa é ser situação, comandar os mecanismos políticos e administrativos do Estado, beneficiando–se de suas benesses, dispondo do poder de comandar ou de impor. Daí a importância de ser facção dominante, a que recebe a adesão de outros. O mais das vezes não existe oposição entre seus pares, mas, por uma razão outrora, mesmo nos Estados mais ricos, surgem protestos e movimentos de oposição: sempre a pretexto de divergências pseudomoralistas, que envolvem, na verdade, o preterimento, para cargos eletivos, de indivíduos ligados a minoria; outras vezes é porque determinada facção pretende disputar a chefia do Executivo estadual, já que se julga com direito, pois, tendo passado pelos diversos escalões da carreira política – vereador, deputado, secretário de Estado, ministro, etc –, acha– se agora no direito de ocupar o posto. (CARONE, 1989, p. 16)
Esse processo de disputa pelo poder era presente dentro das camadas médias tradicionais. Ainda que ligados ao liberalismo oligárquico, eles faziam, em determinados momentos, oposição às oligárquicas hegemônicas por intermédio da política. Ainda assim, tais divergências, apesar de existirem, não representaram um ponto de conflito mais intenso, de tal forma que é possível dizer que as camadas médias tradicionais tendiam a uma política de conciliação com a oligarquia e não ao confronto direto, resultante em ruptura. Assim, as camadas médias tradicionais desempenharam em seu conjunto a função de aliadas das oligarquias majoritárias, sem serem capazes de gerar […] um partido tipicamente “classe média” como expressão de um certo grau de autonomia política em relação as oligarquias. Ao contrário, foram decapitadas dos seus melhores elementos em benefício dos partidos e movimentos oligárquicos. (SAES, 1985, p.59, grifos do autor)
Pode–se notar, portanto, que as camadas médias tradicionais, por conta da sua ligação histórico–social com a oligarquia, no espaço citadino, representaram em grande medida a outra face dos interesses da oligarquia dominante e do seu liberalismo elitista. Nas cidades, não constituíram um ponto de efetiva contestação desse poder oligárquico, tampouco se organizaram politicamente para quebrar o seu domínio e impor uma nova forma de organização do poder. Ainda que houvesse a possibilidade de aliança entre essas camadas médias tradicionais e as oligarquias dissidentes, gerando uma certa disputa pelo poder, as camadas médias tradicionais tenderam ao longo do processo à conciliação e à não ruptura com o passado;
84 tal papel não recairá sobre seu colo, restando à outra fração das camadas médias urbanas.
4. As baixas camadas médias militares e a revolução burguesa no Brasil As baixas camadas médias correspondem àqueles grupos que ascenderam socialmente pela via do trabalho manual e/ou do comércio: como dito anteriormente, atividades estigmatizadas. Desse modo, os elementos das baixas camadas médias não se conectavam ideológica e politicamente à oligárquica majoritária14 e, justamente por isso, criou–se ali o gérmen de uma orientação política antioligárquica. Seu afastamento do mundo oligárquico e a indiferença das oligarquias com respeito aos setores mais modestos do "terciário urbano" criavam, portanto, condições para uma maior autonomia ideológica e política frente a classe dominante agrária. (SAES, 1985, p. 62)
Saes (1985) afirma que, apesar do distanciamento da política oligárquica dominante, essas baixas camadas médias não se alinhavam imediatamente aos trabalhadores, bloqueando a unificação de demandas e de estratégias políticas15, impedindo a revolução burguesa de transbordar benefícios para ambos. Apesar das reivindicações difusas das baixas camadas médias, a oligarquia não fazia nenhuma distinção entre os seus protestos e dos operários, de modo que ambos eram reprimidos, uma vez que “[…] questionavam igualmente os mecanismos de sustentação da expansão do capitalismo agrário–mercantil […]” (SAES, 1985, p.64). Importa destacar ainda que as camadas médias de maneira geral, por se situarem entre a burguesia e os trabalhadores, têm dificuldade em identificar seus adversá“Uma parte das massas rurais urbanizadas fugiu a “proletarização” indo ter aos patamares inferiores do “terciário urbano”; os empregados de banco, os pequenos funcionários do Estado, os empregados de escritório constituirão, pois, um conjunto muito diferente das camadas médias tradicionais. Estas baixas camadas médias conservam–se a margem do mundo oligárquico; a ausência de laços familiares, sociais e éticos com a classe dominante agrária impede a constituição de predisposições psicossociais pró–oligárquicas e lhes assegura uma certa autonomia em relação a ideologia e a política oligárquica.” (SAES, 1985, p. 45, grifos do autor). Assim, “Nestas condições, é difícil admitir a possibilidade de uma fusão destes 'colarinhos brancos' em ascensão dentro da classe operária e a formação de um conjunto proletário ampliado, organizado politicamente para a luta contra a classe dominante.” (SAES, 1985, p.63–64). 15 “Desfavorecidos igualmente pela política econômica oligárquica, os dois grupos não chegavam, no entanto, a articular num só movimento seus protestos econômicos cotidianos. Enquanto a classe operária integrava as reivindicações econômicas a sua estratégia política anticapitalista, a espontaneidade comandava os protestos das baixas classes médias; as finalidades de suas manifestações difusas e não organizadas não iam além da pura satisfação de suas necessidades imediatas.” (SAES, 1985, p. 64). 14
85 rios no contexto da luta de classe, direcionando suas insatisfações genericamente contra o Estado16. O advento da proclamação da República acirrou os sentimentos antioligárquicos das baixas camadas médias urbanas 17. A grave crise econômica que acompanhou toda vigência da República Velha foi um dos fatores que contribuiu para a elevação de suas tensões sociais. De fato, para Prado Junior (1970), com as mudanças decorrentes do regime republicano Do império unitário o Brasil passou bruscamente com a República para uma federação largamente descentralizada que entregou às antigas províncias, agora Estados, uma considerável autonomia administrativa, financeira e até política. (PRADO JUNIOR, 1970, p. 218)
Tal passagem relativamente brusca trouxe a crise ao centro da dinâmica nacional, agora republicana. Dentre os elementos que concorreram para o grave problema financeiro do país naquele momento pode–se citar a elevação da emissão de moeda 18. Além disso, a retração dos capitais estrangeiros, em grande medida resultado das profundas agitações políticas, econômicas e sociais pelas quais o país passava “[…] determinavam não somente a suspensão de novos capitais para o Brasil, mas ainda a liquidação apressada de todas as suas disponibilidades.” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 221). Seguiu–se a esse quadro econômico–financeiro a superprodução do mais importante produto da pauta de exportação 19: o café. […] graças aos incentivos governamentais, cada vez se produzia mais café, mas não havia como vendê–lo. O café excedente era comprado pelos governos dos Estados que o produziam […], cujos estoques do produto aumentavam assustadoramente, enquanto os lucros dos cafeicultores ficavam garantidos. (PRESTES, 2009, p. 27) “Ausentes, assim, da luta social direta e aberta, ficam obrigados a traduzir seu mal–estar social em reivindicações e demandas endereçadas a expressão mais abstrata da dominação dos proprietários do capital: o Estado. Os grupos médios tendem, pois, a considerar o Estado como o supremo personagem da cena social e a desconhecer sua base de classe; o Estado aparece a seus olhos como o ser universal capaz de representar os interesses gerais da sociedade.” (SAES, 1985, p. 66). 17 “O conflito estrutural entre a classe oligárquica, que pretendia conservar o monopólio do poder, e os grupos médios urbanos que desejavam ter acesso ao sistema de poder, marcará a vida política do País durante o período que vai de 1890 a 1930. De um lado estava a aliança dos grupos semifeudais que controlam as regiões mais atrasadas com a nova classe agrícola– exportadora que manipula o Governo central em benefício próprio. De outro lado, estavam as classes médias urbanas em rápida expansão, portadoras de idéias liberais, aspirando a formas modernas de vida.” (FURTADO, 1979, p. 7). 18 “O progresso das atividades econômicas, […] determinara uma relativa escassez de moeda que por falta de um sistema organizado e normal de emissões que mantivesse automaticamente certo equilíbrio entre o volume monetário e as necessidades financeiras, tinha por isso que ser atendida, […], por medidas de emergência e mais ou menos arbitrárias.” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 218). 16
86 Essa situação se arrastou até o ano de 1920 20, tornando–se relativamente explosiva logo no início dessa década, possibilitando a emergência de expressões políticas antioligárquicas 21, uma vez que “[…] não se trata apenas de uma crise institucional, mas de uma crise social profunda traduzida pela revolta crescente das populações urbanas contra a política oligárquica de “socialização das perdas”.” (SAES, p. 69, 1985). Tal cenário afetou diretamente as camadas médias urbanas, pois gerou profunda elevação dos custos de vida, decorrente da manipulação do câmbio para baratear as exportações e, contudo, encarecer as importações: tudo somado à falta de liberdade de exercer influência sobre a vida política do país. Nenhum setor social era mais sensível às influências do crescente clima de revolta do que as camadas médias urbanas. Faltavam–lhes, contudo, organização e capacidade de arregimentação para assumir a direção do processo revolucionário. (PRESTES, 2009, p. 27)
Como salientado anteriormente, a falta de organização política das camadas médias urbanas impediu o surgimento de um partido político que concentrasse suas aspirações e desejos, enquanto camada intermediária, para contrapor–se à política oligárquica de socialização das perdas e de apartamento político. Dessa maneira, abriu–se espaço histórico, aceleradamente ocupado pela fração militar das camadas médias urbanas. O movimento tenentista22 foi crescentemente se tornando a expressão política e
“O acordo de Taubaté, em 1906, estabelecia um preço fixo para a venda do café e tomava medidas para melhorar a sua produção e controlar sua oferta. Começava assim uma política protecionista, de valorização do café, que procurava neutralizar sua tendência à baixa, através do financiamento dos centros produtores […] pelos recursos da União. Somente a intervenção estatal conseguiu salvar a economia do café, chocando–se com os princípios liberais que a burguesia agrária sustentava até então. Entretanto, esta política protecionista levaria, a longo prazo, a um debilitamento da posição brasileira de monopólio sobre a produção mundial de café.” (SANTOS, 1994, p.46). 20 "Ainda assim, é preciso reconhecer que antes dos anos 20 as aspirações pró–industrializadoras e antioligárquicas tinham mais dificuldades de exprimir–se: a expansão contínua – se bem que limitada – do capitalismo agrário mercantil constituía um obstáculo a tomada de consciência do caráter socialmente nefasto da “especialização agrária” e da dominação oligárquica. Numa conjuntura em que as exportações agrícolas geravam a maior parte da renda nacional, e em que a política de 'valorização' neutralizava efetivamente os efeitos da superprodução, a industrialização ainda não podia ser encarada como a alternativa obrigatória do impasse do desenvolvimento capitalista agrário." (SAES, 1985, p. 67). 21 “Os anos 20 no Brasil foram anos de rebelião das classes médias. No plano cultural, a semana modernista de 1922 deu o grande grito por um Brasil novo. No plano militar, o assalto ao forte de Copacabana por 18 oficiais jovens no mesmo ano, o levantamento do Marechal Izidoro, em 1924, e a formação em seguida da Coluna Prestes, que percorreu todo o país sem ser derrotada pelas forças armadas, formaram a liderança do ‘Tenentismo”, que veio a transforma–se num mito heróico para as classes médias, a pequena–burguesia e também importantes setores do operariado.” (SANTOS, 1994, p.56). 19
87 armada da luta contra a oligarquia23. Nas palavras de Caio Prado Júnior, os tenentes Exprimem antes a inquietação das classes médias a que pertencem pela sua origem; de uma burguesia progressista cujos anseios de renovação encarnam, e que as forças conservadoras da República Velha comprimem num arcabouço anacrônico e rígido, que já resvalará francamente para a mais completa degradação política e moral. Se são militares que formam a vanguarda dos movimentos de regeneração política do Brasil, é que suas armas lhes davam a possibilidade de agir; e não estava ainda em condições de substituí–los a ação das massas populares, desorganizadas e politicamente inativas. Os “tenentes” assumirão por isso a liderança da revolução brasileira. (PRADO JUNIOR apud LIMA, 1974, p. 14)
É importante salientar que o tenentismo não foi um movimento monolítico e suas distinções são indicações sociológicas de aspirações sociais diversas no interior do grupo militar24. Ademais, é necessário considerar os tenentes como um grupo militar, uma categoria social que assume formas políticas concretas. A definição funcional do grupo militar leva–o a ver o Estado como expressão suprema da Nação; e, enquanto categoria profissional institucionalmente encarregada de assegurar a soberania do Estado, o grupo militar tende a interpretar sua própria degradação profissional e social como indício de um ultraje à Nação. (SAES, 1985, p.71)
Para Sodré (1980), o tenentismo […] como vanguarda do processo político de ascensão burguesa, em nosso país, consequente do alastramento e aprofundamento aqui das relações capitalistas, pretendeu sempre purificar o regime republicano, Sobre o movimento tenentista ver: SODRÉ, Nelson Werneck: A história militar do Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira. 1979. SODRÉ, Nelson Werneck: A Coluna Prestes: análise e depoimentos. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira. 1980. PRESTES, Anita Leocadia: Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes. 2.ed. São Paulo, SP: Expressão Popular, 2009). 23 Conforme Prado Junior: “O impulso mais sério, e que abalará toda a estrutura do país, partirá de outros setores. Destaca–se neles o papel de militares de patente inferior: tenente, capitão, raramente outras. Serão de sua iniciativa pronunciamentos e levantes que se sucedem desde 1922, em que se destacam, como vigas mestres do grande movimento revolucionário brasileiro destes anos, a revolta do Forte de Copacabana (1922), a revolução paulista de 1924, a marcha da Coluna Prestes, e finalmente a Revolução de 1930.” (PRADO JUNIOR apud LIMA, 1974, p. 14). 24 "A análise sociológica do tenentismo deve apreender, ao mesmo tempo, sua unidade e sua diversidade. De um lado, deve ter em conta características gerais comuns a todos os movimentos tenentistas, e considerá–los como uma manifestação da situação particular do grupo militar enquanto 'categoria social' ligada ao Estado; de outro, deve considerar a variedade das manifestações tenentistas, e considerá–la como a expressão da inserção dos tenentes na sociedade e de sua filiação as camadas médias urbanas." (SAES, 1985, p.71). 22
88 despojá–lo dos desvios, dos erros, dos desmandos que a realidade brasileira lhe impusera […] (SODRÉ, 1980, p. 62)
Por conseguinte, os tenentistas ao direcionarem suas insatisfações ao Estado, "[…] propunham–se, sobretudo, à derrubada do bloco oligárquico hegemônico: aspiravam primordialmente à “purificação” do Estado, e não à transformação da sociedade." (SAES, 1985, p. 72). Sua postura se concentrava em servir como força de regeneração da nação e das instituições corrompidas por maus políticos, Os “tenentes” estavam distantes de qualquer preocupação com reformas sociais, com o problema agrário, ou mesmo com a dominação imperialista do país. Seu pretenso nacionalismo era vago, impreciso […]. No fundamental, o tenentismo manteve–se fiel à defesa da ordem e das instituições. (PRESTES, 2009, p. 37)
Em relação aos matizes ideológicos do movimento tenentista, Saes (1985) identifica uma ala liberal, que se aproximava das oligarquias dissidentes e das camadas médias tradicionais. Suas propostas circunscreviam– se à democracia liberal de elite. Havia também uma ala nacionalista, com propósitos bastante distintos da ala liberal, uma vez que questionavam as estruturas do Estado oligárquico, federativo e antinacional e se dispunham a substituí–lo por outro, antioligárquico, centralizado e nacional 25. Como subgrupo da ala nacionalista, havia a esquerda do movimento tenentista, ligada a Luís Carlos Prestes. Conforme Anita Leocádia Prestes (2009), a partir da marcha da Coluna Prestes pelo interior do Brasil 26, fez com que seu comandante tivesse contato direto com a extrema pobreza e o abandono em que viviam grandes parcelas da população. Ao se exilar na Bolí via, iniciou seus estudos sobre marxismo e estabeleceu contato com os comunistas, buscando uma explicação teórica para as causas e soluções a serem enfrentadas ante o drama do povo brasileiro. As conseqüências lógicas da nova postura ideológica de Prestes foram a sua adesão ao programa dos comunistas e, após infrutíferas tentativas de conquistar a adesão de alguns ex–companheiros do movimento teImportante destacar, porém que a ala nacionalista do movimento tenentista não possuía um programa definido e coerente de transformação político e econômica do país, uma vez que "Mesmo medidas como as nacionalizações eram antes propostas em nome dos imperativos da segurança nacional e do reforço do Estado nacional do que em nome da superação de uma etapa histórica, do estímulo a expansão do grupo industrial nacional ou da promoção social das classes populares." (SAES, 1985, p. 75). 26 “Com um contingente de 1.500 seguidores, a lendária Coluna Prestes percorreu 26 mil quilômetros, a pé ou a cavalo, venceu 53 batalhas e jamais foi derrotada. Nem Virgulino Ferreira, o Lampião, a troco de 100 contos de réis e da falsa patente de “capitão do Batalhão Patriótico”, conseguiu deter o Cavaleiro da esperança. Prestes e seus homens não conseguiram tomar o poder, mas durante dois anos, um mês e sete dias rasgaram 13 Estados do país (do Rio Grande do Sul ao Maranhão) levando a mensagem da revolução.” (FIGUEIREDO, 2005, p. 36–37). 25
89 nentista, sua decisão de romper publicamente com eles, já em maio de 1930. (PRESTES, 2009, p. 135)
De fato, a realidade brasileira impunha desafios teóricos e práticos aos problemas nacionais: o subdesenvolvimento, a extrema pobreza de grande parte da população, a questão da industrialização, a forma de exploração dos recursos naturais estratégicos, a deterioração das condições de vida das camadas médias, entre outros, foram temas que permearam os grandes conflitos militares ao longo da década de 1920. Tais confrontos se avolumaram ao ponto de romperem com o modelo estabelecido após a proclamação da República: a Revolução de 1930 se apresenta como um dos episódios centrais desse longo processo de acumulação de forças contra a política das oligarquias majoritárias, vinculadas à exportação de café. Sobre a Revolução de 1930, Saes (1985) afirma que ela se inicia como um movimento político–militar composto por uma coalizão heterogênea contra o bloco oligárquico hegemônico, em um contexto histórico de crise do capitalismo agrário–mercantil, cujas contradições foram evidenciadas pela crise do mercado mundial, em 1929. Alerta ainda que, apesar da crise do capitalismo agrário–mercantil estar na origem da Revolução de 1930, não se pode deduzir daí que essa tenha sido vivida de uma só maneira pelos diferentes grupos sociais e forças políticas, “[…] a crise cindiu definitivamente a burguesia cafeeira, dado que a política econômica do Estado era o objeto de uma disputa entre o bloco oligárquico hegemônico e as oligarquias dissidentes reunidas no Partido Democrático de São Paulo.” (SAES, 1985, p. 80). De todo o processo de embate de forças que culminou na revolução de 1930 é importante destacar que, conforme Saes (1985), a derrota eleitoral da Aliança Liberal não coincide com o movimento revolucionário. Nesse sentido, o movimento eleitoral de março de 1930, no qual foi eleito Júlio Prestes, e o político–militar de outubro do mesmo ano, não foram conduzidos pelos mesmos sujeitos políticos, uma vez que as oligarquias dissidentes tendiam à conciliação com a situação, de modo que, […] a crise do capitalismo agromercantil foi vivida por outros grupos sociais urbanos como um momento de privação e de degradação do nível de vida e de consumo. […] Se a política oligárquica de “socialização das perdas” já havia inoculado nas baixas camadas médias o sentimento de necessidade e da “urgência” de uma mudança social, a crise do mercado mundial teve o efeito de reforçá–lo. Tais aspirações estiveram presentes na revolução de trinta pela mediação política do tenentismo nacionalista; mas, a condição militar de seus intérpretes políticos transformou–as em ímpeto de destruição da federação e da democracia oligárquica, bem como de construção de um Estado nacional e centralizado. Não queremos dizer com isso que as baixas camadas médias eram os únicos
90 grupos a sentir a necessidade de um nível mais alto de vida e de consumo, mas que apenas nas baixas camadas médias essa necessidade poderia ser transformada em impulso político e em aspiração a um Estado nacional. (SAES, 1985, p. 81–82)
Nesse sentido, foi a partir da pressão política das baixas camadas médias e, mais particularmente, daquela exercida pelos militares, que foi possível superar a tendência de conciliação por cima das oligarquias e impor novas formas de organização do poder político, econômico e social que fizeram o capitalismo brasileiro avançar por caminhos que não interessavam exclusivamente às oligarquias. “Na realidade, os tenentes arrastaram as forças armadas e as oligarquias dissidentes para o confronto armado com a situação oligárquica.” (SAES, 1985, p. 82). Dessa forma, A participação do tenentismo nacionalista deu, portanto, à revolução de trinta, um alvo político que as outras forças da coalização revolucionária – as oligarquias dissidentes, os oficiais superiores das forças armadas – seriam incapazes de propor. Assim, pode–se considerar a revolução de trinta, em certa medida, como uma “revolução da classe média”; se os tenentes propuseram uma finalidade revolucionária ao movimento político–militar de 1930, é porque eles souberam interpretar as aspirações das baixas camadas médias, ao mesmo tempo em que as exprimiam a um nível político–institucional. (SAES, 1985, p. 82)
Após o golpe de estado que alçou ao poder Getúlio Vargas, nota– se que a coalização que se formou a partir de então explica o duplo caráter do Estado: de um lado, o principal objetivo do nacionalismo tenentista era a destruição das bases institucionais da dominação oligárquica; de outro, a participação das oligarquias dissidentes no movimento revolucionário permitiu a extinção do monopólio dos seus setores hegemônicos no exercício do poder político, ainda que a subtração da primazia política do conjunto da burguesia cafeeira não tenha resultado na exclusão completa e irrestrita das oligarquias rurais do novo bloco dominante. Os episódios de trinta operaram (SAES, 1985) transformações no Estado: o centralizou e o transformou de oligárquico em de compromisso. Nesse novo cenário, na medida em que as categorias sociais de Estado imprimiram com relativa autonomia uma condução política capaz de desenvolver o capitalismo industrial e sua burguesia correspondente, a qual aumentava sua capacidade de influenciar o processo decisório e seu grau de
91 inserção nos aparelhos do Estado central 27. Outro ponto de destaque foi a modificação da relação entre o bloco dominante e as classes populares. Nesse processo, o autoritarismo nacionalista tenentista se apresentou como uma forma de expressão de seus propósitos antioligárquicos e centralizadores28. Apesar disso, o movimento de 1930 não foi capaz de subtrair o coronelismo de sua dimensão local, deixando “[…] quase intacta a capacidade oligárquica de controle socioeconômico das massas rurais.” (SAES, 1985, p. 85).
Considerações finais. A partir do exposto acima, nota–se que a formação das classes sociais no Brasil ocorreu em um contexto histórico específico de capitalismo periférico, de um país de extração colonial, no qual a ideologia liberal foi assimilada predominantemente como forma de manter os privilégios das elites. O aburguesamento da sociedade brasileira permitiu a formação do ambiente urbano e a dinamização da economia que fomentaram o aparecimento de diferenciações e estratificações na sociedade brasileira. Essa, por sua vez, não se encontrava mais cindida apenas em dois polos antagônicos, mas sim passou a contar com camadas médias intermediárias. Decorre desse processo, o nascimento de estratos sociais em condições de contestarem o poder da oligarquia, ao ponto de impor mudanças à sua forma de conduzir econômico e politicamente o Brasil. Nesse processo, os militares tiveram papel de extrema relevância no contexto da luta de classes, assumindo a vanguarda da revolução burguesa, saturando as posições ideológicas e políticas das necessidades revolucionárias republicana. Por essa via, eles acirraram as lutas sociais capturando as inquietações e anseios das baixas camadas médias, polarizando o cenário político até os episódios de 1930. Por conseguinte, o movimento tenentista poderia ser enten“O Estado pós–oligárquico se define, consequentemente, como um “Estado de compromisso”; […] A revolução de trinta quebrou o monopólio oligárquico do poder político, mas não representou a conquista da hegemonia política pela burguesia industrial nascente. O Estado pós– oligárquico corresponde antes a uma composição política que relaciona as “categorias sociais” de Estado – inicialmente os tenentes, depois a burocracia e as forças armadas, – as oligarquias e a burguesia industrial nascente.” (SAES, 1985, p. 84). 28 “Mais precisamente, a “urgência” da industrialização periférica levou o Estado pós–oligárquico, sob o impulso político das “categorias sociais” de Estado, a uma política de intervenção e de industrialização nitidamente avançada em relação ao grau de desenvolvimento das relações de classe no seio do capitalismo industrial nascente. Tal política de consolidação “precoce” da burguesia industrial deveria, portanto, encontrar seu complemento necessário numa política de prevenção da eclosão “precoce” das lutas de classe. Daí a dupla face da política do Estado pós– oligárquico diante da classe operária: uma política simultânea de integração e de manipulação.” (SAES, 1985, p. 85–86). 27
92 dido como expressão máxima da força revolucionária burguesa, nascente do solo social das camadas médias urbanas. De sua parte, a revolução burguesa brasileira se vê dinamizada e, consequentemente, impulsionada. Não obstante, ao progredir, desdobraram–se do processo profundos limitantes e impossibilidades insuperáveis. De fato, a pesquisa sugere que os integrantes do tenentismo não tinham inteira clareza do papel desempenhado 29; todavia, a despeito disso, exerceram–no defrontando–se contra todas as forças contrárias à moralização da república, ao aburguesamento do país e à ampliação das franquias democráticas. A certa altura, este processo permite a ascensão de Vargas, representante dos anseios das oligarquias dissidentes, das baixas camadas médias, de vastas frações dos trabalhadores, fato que não ofuscou o papel profundamente relevante dos tenentistas. Por fim, como tese a ser reforçada teoricamente no futuro, pode–se sugerir que, em face de todas essas forças em luta, “Os ‘tenentes’ assumirão […] a liderança da revolução brasileira”. (PRADO JUNIOR apud LIMA, 1974, p. 14). De outro modo, mais direto e sem rodeios, a teoria deve considerar com cuidado a tese segundo a qual é possível entender “[…] a revolução de trinta, em certa medida, como uma “revolução da classe média”. (SAES, 1985, p. 82). Certamente, isso colaboraria com a compreensão de muitas de suas particularidades.
Referências CARONE, Edgar: Classes sociais e movimento operário. São Paulo, SP: Editora Ática, 1989. FERNANDES, Florestan: A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1975. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927–2005). Rio de Janeiro: Record, 2005. 591p. FURTADO, Celso e outros: Brasil: tempos modernos. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1979. __________. Formação econômica do Brasil. –27ª ed.– São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional Publifolha, 2000. – (Grandes nomes do pensamento brasileiro). Sobre isso, ver RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo, SP: Círculo do Livro. s/d. v.I e II. 29
93 PRADO JUNIOR, Caio: História econômica do Brasil. São Paulo, SP: Editora Brasiliense. 1970. __________. Prefácio. In: LIMA, Lourenço Moreira, A coluna Prestes – marchas e combates. 2.ed., São Paulo: Alfa–omega, 1979. p.11–15. (Coleção Política, Série 1ª, Vol. 8). PRESTES, Anita Leocadia. Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes. 2.ed. São Paulo, SP: Expressão Popular, 2009. RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo, SP: Círculo do Livro. s/d. v.I e II. RIBEIRO, Darcy. O dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983. SAES, Décio. Classe média e política na primeira República brasileira (1889–1930). Petrópolis, RJ, Vozes, 1975. (Sociologia brasileira, v. 3). ________. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo, SP: T. A. Queiroz, 1985 (Biblioteca básica de ciências sociais: ser. 1.: Estudos brasileiros; v.6). SANTOS, Theotonio dos. Evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da Nova República. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 302p. SODRÉ, Nelson Werneck. A Coluna Prestes: análise e depoimentos. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira. 1980. _______. Introdução à Revolução Brasileira. 4ed. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1978.
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4– Apontamentos sobre ciência e ideologia nas Ciências Sociais no Brasil: um projeto de revolução brasileira no pré–1964 Angélica Lovatto
1. Introdução A análise que aqui desenvolvo sobre o debate entre ciência e ideologia nas ciências sociais como um todo e no Brasil, em particular, está pautada no campo teórico–metodológico do marxismo. A referência fundamental foi o próprio Karl Marx (1818–1883) e não seus intérpretes. Porém, não se nega aqui a importância das reflexões de autores marxistas que contribuíram de diferentes maneiras para a elucidação do debate, onde será referida a contribuição do húngaro György Lukács (1885– 1971). Pautada nessa análise, vou inserir apontamentos sobre um caso específico publicado no Brasil dos anos 1960: trata–se da experiência editorial da Coleção Cadernos do povo brasileiro, publicados de 1962–1964, num total de 28 volumes, coordenada pelo filósofo Álvaro Vieira Pinto, diretor do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros. A Coleção será referida como exemplo da integração entre fazer ciência e fazer ideologia, baseada na postura teórica que não professa, necessariamente, a concepção de que a ideologia sempre se apresenta como falsa consciência.
2. A questão teórico–metodológica da relação entre ciência e ideologia no campo do marxismo Iniciando por Marx, é muito importante resgatar alguns aspectos que o autor alemão desenvolve no Prefácio da Contribuição à crítica da economia política que nos importam para a análise em pauta, quando afirma que “O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que deter mina a sua consciência”. (MARX, s/d–b, 301, grifos nossos). Ao explicar que numa determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, Marx afirma que elas são a expressão jurídica das relações de propriedade nas
96 quais haviam se desenvolvido até aquele momento e passam a sofrer uma alteração: De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona–se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê–lo. (MARX, s/d–b: 302, grifos nossos).
Portanto, as formas ideológicas devem ser estudadas na conexão concreta das relações de produção das quais se originaram. Daí a referência a outra famosa passagem de Contribuição à crítica da economia política, desta vez no Pósfácio: O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da percepção e da representação. (MARX, 1982: 63)
Esta advertência de Marx é importantíssima para a análise de ideologias pois, na sequência do texto, o pensador alemão dá o exemplo de que o equívoco de Hegel (1770–1831) teria sido cair na ilusão de conceber o real “como resultado do pensamento que se absorve em si, procede de si, move–se por si” pois, na verdade, “o método que consiste em elevar–se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi–lo mentalmente como coisa concreta”. (Ibid.) Cientes, portanto, desse aspecto metodológico, a pesquisa pode prosseguir, a fim de realizar os esforços necessários para não confundir a reprodução mental da coisa concreta como sendo “o processo da gênese do próprio concreto”. (Ibid.) A delicadeza e a complexidade desse esforço de inverter apenas no pensamento aquilo que na realidade está indissociavelmente unido, traz para qualquer pesquisador o desafio de compreender a questão da totalidade, que Marx prossegue explicando da seguinte maneira: […] a totalidade concreta, como totalidade de pensamento, como uma concreção de pensamento, é, na realidade, um produto do pensar, do conceber; não é de nenhum modo o produto do conceito que se engendra a si mesmo e que concebe separadamente e acima da percepção e
97 da representação, mas é elaboração da percepção e da representação em conceitos. (Ibid.)
Portanto, a maneira como essa totalidade deve ser apreendida precisa respeitar o fato de que “o todo, tal como aparece no cérebro, como um todo mental, é um produto do cérebro pensante”, pois apropria– se do mundo “da única maneira em que o pode fazer” dado que o “objeto estudado permanece em pé antes e depois, em sua independência e fora do cérebro ao mesmo tempo”. Isto quer dizer que o cérebro “não se comporta senão especulativamente, teoricamente” (Ibid.: 63–4). Antes desses escritos, ainda em A ideologia alemã, Marx (e Engels) já chamavam a atenção para essa inversão e a consequente ilusão que poderia causar, afirmando que: A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. (MARX e ENGELS, 1986: 37, grifos nossos)
Enfim, quando Marx e Engels estão, neste texto, falando em “produção de ideias” referem–se não a um conjunto autônomo de ideias, como se tivessem vida própria. Eles estão falando de “representações, da consciência” que desde sempre estão diretamente entrelaçadas com a “atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real”. (Ibid.: 36) Diferentemente de uma concepção idealista da história, Marx e Engels afirmam que não se trata de “procurar uma categoria em cada período, mas de permanecer sempre sobre o solo da história real” (Ibid.: 55– 6), e o pesquisador não deve “explicar a práxis a partir da ideia, mas de explicar as formações ideológicas a partir da práxis material”. (Ibid.: 56, grifos nossos) Partindo do pressuposto de que diferentes autores, desde os fins do século XIX, procuraram dar continuidade às reflexões de Marx, podemos afirmar que, no mínimo, dialogaram – criticamente ou não – com as formulações originais daquele pensador. Assim, indico agora, entre esses autores, aquele cuja reflexão – em meu entendimento – melhor responderam às necessidades do objeto aqui tratado. No tocante à análise de ideologias, vou destacar o pensador György Lukács, especialmente as reflexões baseadas em partes da obra Ontologia do ser social (1979b, 1979c e 1981). Num dado momento de seu percurso intelectual, sua proposta foi fazer um resgate dos aspectos on-
98 tológicos do pensamento marxiano. O autor frequentemente ressalta a colocação marxiana de que “as categorias são modos de ser, determinações da existência”,1 utilizada por Marx quando explica o método da economia política e, em seus escritos, a hierarquia ocupada pelo Prefácio de 1857 de Contribuição à crítica da economia política reflete a importância que Lukács atribui à inseparabilidade entre as formas ideológicas e sua correspondente base material concreta. Esse aspecto é decisivo para o desvendamento da função social da ideologia no quadro da luta de classes. E este é um dos principais aspectos que quero destacar aqui. Sabe–se que o tratamento do fenômeno ideológico, e sua relação com a ciência, não é consensual entre os autores que realizam suas reflexões no campo do marxismo. A tendência que mais se propagou foi a designação de ideologia como sinônimo imediato de falsa consciência. O resultado desta análise é a contraposição entre ciência e ideologia, onde a primeira apareceria como a consciência verdadeira. Para o pensador húngaro, no entanto, o fenômeno ideológico não significa – necessariamente – falsa consciência: “a correção ou a falsidade não bastam para fazer de uma opinião ideologia”. (LUKÁCS, 1981: 448)2 Para o autor, tudo depende da função social que um pensamento qualquer – independentemente de seu erro ou acerto – venha a desempenhar. Na tematização lukacsiana, portanto, o fenômeno da ideologia é analisado sob fundamento ontológico–prático, o que significa “analisar este fenômeno essencialmente pela função social que desempenha, ou seja, enquanto veículo de conscientização e prévia–ideação da prática social dos homens”. (VAISMAN, 1989: 421). A prévia–ideação diz respeito às posições teleológicas primária e secundária3. A ideologia seria uma posição teleolóLUKÁCS (1979b) usa esta frase, por exemplo, como epígrafe na abertura da Ontologia, considerada sua obra de maturidade. 2 As citações aqui utilizadas do texto Il Problema dell’Ideologia, de Lukács, que fazem parte da secção 3 do Volume II de Per l’Ontologia Dell’Essere Sociale (1981), baseiam–se na tradução para o português realizada por Ester Vaisman, constante do Anexo da Dissertação de Mestrado (1986) da mesma autora (a página da citação corresponde à edição italiana). Uma versão sintética da Dissertação da autora encontra–se em VAISMAN (1989). No momento, já temos no Brasil a tradução completa da Ontologia do ser social, volumes I e II, publicadas pela Editora Boitempo (2012 e 2013). 3 Para as explicações sobre as posições teleológicas primária e secundária, além do texto de VAISMAN (1989), chamamos a atenção para as reflexões de dois autores que desenvolveram estudos sobre Lukács, a saber Maria Angélica Borges (1990 e 1996) e Sérgio Lessa (1997). Borges explica que, segundo Lukács, a existência humana é mediada pela ação social da consciência, logo “o fenômeno da ideologia tem o seu nascimento determinado pela ação dos homens e geneticamente surge desta própria ação coletiva. Ao produzir a vida o homem cria todos os objetos sociais, portanto, todas as posições teleológicas: primárias e secundárias. Isto é consequentemente válido para a ideologia, enquanto posição teleológica secundária”. (BORGES, 1996: 30, grifos nossos). 1
99 gica secundária4. Para Lukács o homem é um ser ativo. Isso porque o surgimento do ser social é simultâneo ao aparecimento do trabalho. E o homem que trabalha é um ser que responde, que escolhe entre alternativas apresentadas pelas circunstâncias do mundo concreto, na medida em que também possui a possibilidade de capturar a realidade por onde se move. O homem é, portanto, produto e produtor da realidade, ainda que em circunstâncias não escolhidas por ele. O fato de que a ideologia para Lukács seja uma função social e não falsa consciência, não pressupõe que o autor despreze os efeitos que a maior ou menor veracidade de uma ideologia traga para a história da humanidade5. É nesta perspectiva que localizo, entre outros aspectos, a importância de se analisar a função social dos Cadernos do povo brasileiro, meu objetivo no breve espaço deste capítulo, pois, na hipótese de terem se constituído em ideologia, defendo a hipótese de que tenha sido dentro da significação de consciência para–si da humanidade e não naquele sentido que se contrapõe à ciência, isto é, como falsa consciência. Além da função social, György Lukács agrega outros dois momentos para a análise de um discurso ideológico: a análise imanente e a gênese desse discurso6. Portanto, a análise de ideologias para o autor compõe– se destes três momentos fundamentais, resgatados e sistematizados a partir do pensamento marxiano. A análise imanente deve revelar a lógica própria e original de um discurso para que seja entendido a partir do que ele é e não lhe sejam inadvertidamente atribuídas características que não lhe dizem respeito. Hierarquicamente falando, é após este importante e criterioso passo, que o discurso pode ser devidamente submetido aos fundamentais passos posteriores – gênese e função social – sem o quê não se completaria a análise de uma ideologia. A gênese do discurso de um autor, por sua vez, é a base concreta a partir da qual ele se forma. Em conhecido depoimento concedido a Ko“Essa nova posição teleológica, ao invés de buscar a transformação do real, tem por objetivo influenciar na escolha das alternativas a serem adotadas pelos outros indivíduos, visa a convencer os indivíduos a agir em um dado sentido, e não em outro. […] O segundo tipo de posição teleológica, aquela voltada à persuasão de outros indivíduos para que ajam de uma determinada maneira, é denominada de posição teleológica secundária”. (LESSA, 1997: 50–51) 5 “não é certamente um fato desprezível se, numa disputa ideológica, vence a ideologia que impulsiona o desenvolvimento da generalidade humana, da consciência para–si da humanidade” (LESSA, 1997: 55). 6 A introdução do pensamento de Lukács no Brasil data do final da década de 1960, destacando– se fundamentalmente Carlos Nelson Coutinho (e também Leandro Konder), como tradutor e difusor das ideias do pensador húngaro, notadamente no campo da análise literária (COUTINHO: 1967). De outra parte, coube a J.Chasin inaugurar a análise de ideologias, com o trabalho O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio (1978). 4
100 fler, Holz e Abendroth (1969), Lukács afirma que: “na sociedade cada homem existe numa determinada situação de classe à qual naturalmente pertence a inteira cultura de seu tempo; não pode assim haver nenhum conteúdo de consciência que não seja determinado pelo ‘hic et nunc’ da situa ção atual”, pois “uma consciência pretensamente livre de liames sociais, que trabalha por si mesma, puramente a partir do interior, não existe e ninguém jamais conseguiu demonstrar sua existência”. (LUKÁCS, 1969: 40) A partir do pressuposto de que não existe um indivíduo isolado que esteja isento das influências de suas relações, coloca–se como condição para a completude de uma análise de discurso, o estabelecimento da relação entre a ideologia afirmada com a situação concreta de quem a afirmou. O conjunto formado por esse tripé – análise imanente, gênese e função social – é referido por Lukács, ao afirmar que os próprios clássicos do marxismo recorriam à análise imanente em seus estudos e, portanto, esse recurso não devia ser desprezado:7 O rechaçar da crítica imanente como fator de uma exposição de conjunto que abarque, ao mesmo tempo, a gênese e a função social, a característica de classe, o desenvolvimento social, etc., conduz necessariamente a uma atitude sectária em filosofia. (LUKÁCS, 1959: 7)
Logo, a análise deve relacionar devidamente os fatores econômicos, políticos e sociais, isto é, o complexo histórico–social, pois “sem descobrir os fundamentos reais da situação histórico–social não há análise científica possível”. (LUKÁCS, 1959: 15) Neste quadro, atribui–se à esfera econômica a determinação fundamental deste complexo, sem, no entanto, absolutizar as relações entre infra e superestrutura, isto é, sem estabelecer uma ligação puramente mecânica entre a esfera econômica e as demais (política, jurídica, social, ideal), mas vendo nela o nexo básico para a compreensão de como surge uma determinada ideologia. Proceder desta maneira significa relacionar devidamente o todo e as partes. Sob essa influência teórica procurei, portanto, pautar minha análise pela totalidade dos fenômenos em questão, ou seja, realizar, da melhor maneira possível, as mediações entre o todo e as partes. Parto do pressuposto de que essa totalidade não é determinada simplesmente por partes que se somam, mas que “é um todo coerente em que cada elemento [que] está, de uma maneira ou outra, em relação com cada elemento, e de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades ligadas entre si de maneira completamente diversa, mas sempre determinadas”. (LUKÁCS, 1979a: 240). Ele exemplifica com Engels no Anti–during e Lenin no Empiriocriticismo. (Cf. LUKÁCS, 1959: 7).
7
101 Essas partes se inter–relacionam, ou seja, agem umas sobre as outras, reconfigurando–se continuamente. Por conseguinte, não estão separadas, de uma forma estanque, as condições originais de uma ideologia e a produção ideal em si. Não se trata, pois, de uma “história das ideias” autônoma, o que não quer dizer que a ideologia não tenha características próprias. Mas trata–se, sim, de relacionar sempre a formação ideal, com o momento histórico em que foi produzida. Essa separação, como se disse anteriormente referindo Marx, é possível apenas através do procedimento científico, uma vez que na sua dimensão ontológica estas dimensões são inseparáveis. Fiel a essa dimensão colocada por Marx, Lukács, em Introdução a uma estética marxista (1978), afirma: O método dialético de Marx – onde a história, a sociedade e a economia são representados como um processo unitário, indissociável, mantendo– se firmemente a prioridade da base econômica – é uma intensa polêmica contra a separação mental daquilo que na realidade é ligado”. (LUKÁCS, 1978: 75.)
A tematização lukacsiana de ideologia, portanto, fundamenta–se numa constatação ontológica preliminar: o reconhecimento do homem ativo no mundo real. Esta afirmação tem origem no pensamento marxiano e significa que o mundo real existe e essa é uma constatação feita pelo homem ativo no mundo, ou seja, “este mundo real é capturável pelo homem, pelo seu entendimento. Em síntese, a concepção ontológica da qual Lukács parte é a de que: o homem ativo no mundo real é capaz de capturar o realmente existente” (VAISMAN, 1989: 407). Desaparece, portanto, a “rígida contraposição metafísica entre ideologia (subjetividade) e pura objetividade, tomada enquanto princípio exclusivo da ciência”. (LUKÁCS, 1981: 543). Portanto, perseguindo a totalidade do ser social, Lukács considera o marxismo uma expressão ao mesmo tempo ideológica e científica. Ele assume que o marxismo é, por um lado, a ideologia do proletariado e, por outro, que pretende ser científico. Ao reconhecer–se como ideologia, o marxismo estaria se reconhecendo como orientação para a ação, sem omitir em momento algum a sua própria determinação, o seu enraizamento de classe. Ou seja, o marxismo procede de modo a tomar uma clara posição em relação a um dos lados – o proletariado – sem que isso implique em efeitos negativos para a cientificidade, pois em seus discursos teóricos, históricos e de crítica social, faz ciência. O marxismo autêntico, segundo Lukács, estabelece uma ligação nova e peculiar entre ciência e filosofia, que superaria qualquer antagonismo ou separação radical entre ideologia e ciência. (Cf. LUKÁCS, 1981: 549 e VAISMAN: 1989: 443).
102 Sabemos que a questão da ideologia8 está longe de ser esgotada, e nem poderia ser o propósito no curto espaço aqui destinado. Por isso, passo agora a exemplificar o caso do ISEB em geral e da Coleção Cadernos do povo brasileiro, em particular, para a demonstração do fazer ciência e fazer ideologia naquele contexto histórico dos anos 1950–60.
3. Breve histórico do ISEB para o contexto de um programa desenvolvimentista e/ou da revolução brasileira Para caracterizar sinteticamente o Instituto, é importante começar pelo final: o ISEB – que teve uma breve existência de nove anos (1955– 1964) – foi invadido e destruído fisicamente, em abril de 1964. E, por consequência, também foi institucionalmente destruído pelo golpe de estado. A destruição do prédio onde funcionava, no Rio de Janeiro, foi alvo do mesmo tipo de ódio que também destruiu o prédio da UNE. Essas duas instituições foram emblemáticas do furor reacionário que foi levado a cabo nos primeiros dias de abril de 1964, por um dado setor da classe mé dia raivosa, resultado de campanha semeada durante os anos precedentes, através da agitação e propaganda de direita, promovida eficazmente pelo IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Os documentos foram apreendidos ou, no caso da UNE, consumidos pelo fogo. O “famoso” IPM9 que tratou do ISEB, após 1964, afirmava, em tom apocalíptico, que os intelectuais daquele instituto pretendiam desestabilizar a ordem capitalista, com vistas à tomada do poder. (Cf. PEREIRA, 2005a: 253). Nelson Werneck Sodré, que foi preso logo após o golpe e, mesmo depois de liberto, foi intimado a depor no IPM do ISEB, assim se refere à destruição do prédio do Instituto: O ISEB fora, a 1º. de abril, invadido e depredado por uma malta de de sordeiros, organizada pelos órgãos policiais da Guanabara, recrutada no lúmpen da cidade. Nada ficou inteiro no edifício onde funcionara a instituição: as cadeiras e mesas foram quebradas, os quadros arrancados da parede e destruídos vidros e molduras, as poltronas foram eventradas, as gavetas atiradas ao chão, os papéis espalhados pelo jardim, a biblioteca teve os seus livros rasgados e as estantes derrubadas. Ali se encontravam, no momento, apenas três funcionários, o zelador, o copeiro e o Maiores desdobramentos e pistas sobre a questão da ideologia, sob distintas perspectivas, podem ser buscadas, entre outros, em MÉSZÁROS (1993 e 1996), ZIZEK (1996), BARTH (1971), LENK (1971), LACLAU (1979), THERBÖRN (1996), EAGLETON (1997), KONDER (2002), LÖWY (1995), SAES (1985a), ALMEIDA (1995). 9 Vários foram os Inquéritos Policial–Militares nos quais autores do ISEB foram implicados após o golpe. 8
103 faxineiro; passaram dois meses nos cárceres do DOPS guanabarino, como se fossem facínoras. (SODRÉ, 1978: 65–66).
Para entender o desfecho do ISEB é importante resgatar alguns estudos. A historiografia brasileira já produziu diferentes trabalhos sobre o ISEB, mas, com certeza, ainda há lacunas a serem preenchidas. Principalmente em relação ao chamado último ISEB. Não se pretende fazer aqui uma reconstituição total da história isebiana, mas apenas ressaltar os aspectos que trazem à luz o ambiente histórico–cultural em que se inseriram os Cadernos do povo brasileiro. O ISEB em seus primeiros anos – considerado por alguns autores como o período que melhor corresponderia aos objetivos para os quais o Instituto foi inicialmente criado – possui um primeiro estudo realizado no Brasil,10 mais completo, levado a cabo por Caio Navarro de Toledo. O trabalho foi concluído em 1974 – portanto dez anos após o fim do Instituto – fruto de tese de doutorado defendida na área de filosofia na Unesp de Assis e publicada alguns anos depois: ISEB: fábrica de ideologias (1977). A disposição do autor foi fazer um exame crítico do conjunto doutrinário produzido pelos intelectuais reunidos no ISEB, fundamentalmente na chamada fase juscelinista do Instituto. Até então nenhum estudo sobre o ISEB tinha sido realizado no âmbito acadêmico. E não era à toa. “Razões de estado” – como ressalta Toledo – permeavam, ainda em 1974, o acesso aos arquivos públicos onde a história do ISEB pudesse ser pesquisada. Assim, Toledo explica em sua Introdução que a delimitação de seu objeto de estudo, ou seja, o tratamento mais direto da fase juscelinista do Instituto – em detrimento da fase que acompanhou a fase das reformas de base – não se deu apenas por uma questão de recorte da pesquisa, mas pela dificuldade encontrada no acesso àqueles arquivos 11. Toledo coloca também uma outra dificuldade para desenvolver um estudo sobre o ISEB, particularmente dentro da academia paulista. Tudo indica que os estudiosos paulistas discordavam da linha de ação daquele Instituto no seguinte aspecto: os isebianos defendiam a aplicação prática das categorias das Ciências Sociais para o desenvolvimento do país. A academia paulista, em particular a USP, considerava esse tipo de postura pouco científica, dado que estaria destituída de neutralidade. Toledo, ao definir este tema para pesquisa, inclusive ressalta e agradece, em nota prévia à publicação do livro, o papel do Prof. Octávio Ianni – uma No ano seguinte, 1975, foi concluído um estudo sobre o ISEB realizado por uma autora brasileira, na França. Trata–se da tese de doutorado de Alzira Alves Abreu, Nationalisme et action politique au Brésil: une etude sur l’ISEB. Paris: Université René Descartes – Paris V. 11 Somente a partir do ano de 2004 o governo federal inicia a abertura dos arquivos militares por meio do Decreto 5.301/2004. Foi então que o material dos IPMs sobre o ISEB puderam ser consultados. 10
104 exceção nesse quadro – dizendo que foi ele quem mais o incentivou quando, pela primeira vez, se arriscou a propor o tratamento do ISEB como objeto de uma tese universitária, um tema considerado “maldito para certos guardiães da intelectualidade nativa”. (TOLEDO, 1982: 10). Em nota de rodapé esclarecendo esta questão da USP, Toledo afirma que: Bem se sabe que a maior parte da intelectualidade de São Paulo – particularmente aquela reunida em torno da Universidade de São Paulo – manteve–se motu proprio afastada das realizações e atividades patrocinadas pelo ISEB. As ideologias isebianas jamais tiveram guarida no seio desta camada de intelectuais; da mesma forma, raramente chegaram a se exteriorizar, a partir dali, críticas e objeções (latentes) ao “nacionalismo–desenvolvimentista”. A razão disso parece ser muito simples: em nenhum momento se reconhece a Instituição como possível interlocutor para um debate em comum acerca dos problemas que afetavam o capitalismo dependente brasileiro. (TOLEDO, 1982: 26)
Como se vê, as dificuldades para pesquisar este tema, ainda na década de 1970, eram muitas. E aparecia no texto a tensão da relação entre ciência e ideologia, no caso, entre estas duas instituições que faziam quase que um “diálogo surdo” em torno da questão: no ISEB se produziria “ideologia” e na USP se produziria “ciência”. Portanto, este trabalho de Caio Navarro de Toledo teve importância – independentemente da concordância plena com as teses ali defendidas 12 – e, por isso mesmo, tornou– se um referencial aos estudos que viessem a ser desenvolvidos sobre o ISEB,13 principalmente no que diz respeito à fase desenvolvimentista. Sabemos que quaisquer tentativas de periodizar algum objeto de estudo corre o risco de abranger parcialmente seus aspectos. O ISEB não ficou imune a isso. Mas também sabemos que as periodizações ajudam na compreensão de um dado processo e, dentro desses limites, cumprem uma função que pode ser valorizada14. Toledo chega a identificar três fases na história do Instituto, pois dado o detalhamento de sua pesquisa, o autor procurou diferenciar uma fase bem inicial, onde predominavam figuras de influência liberal muito acentuada e que depois não se firmaram no Instituto. Mas a rigor, o que se destacam são as duas fases subseqüentes (e principais) – a que acompaMinha principal diferença em relação à análise de Caio Navarro de Toledo é a hipótese por ele defendida de “fábrica de ideologias”, justificada predominantemente na concepção teórica– metodológica althusseriana. 13 Um estudo específico sobre a produção teórica de Helio Jaguaribe não só no ISEB, mas também no IBESP e IBF pode ser encontrada em LOVATTO (2010a). 14 Outros estudos sobre o ISEB que foram consultados: ABREU (1975 e 2005), BARIANI (2005a e 2005b), BRESSER–PEREIRA (2005), MIGLIOLI (2005), LOVATTO (2010a), OLIVEIRA FILHO (1999), ORTIZ (1985), PEREIRA (2005b), SANTOS (2005). 12
105 nhou o período juscelinista e a que acompanhou a fase do governo João Goulart, particularmente no tocante às reformas de base. Mas para entender, pela própria definição do autor, a periodização que estabeleceu, é importante detalhá–la, da seguinte maneira: a) 1ª. fase: um período bem inicial (menos de um ano) que se estende da criação do instituto, em 14 de julho de 1955, no governo Café Filho, até o que denomina de “encampação juscelinista” (1956), dizendo que essa fase, apesar de curta, foi caracterizada por posições ecléticas e conflitantes; nessa fase, não haveria por parte dos autores ali presentes – dentre eles, Roberto Campos, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Miguel Reale, Heitor Villalobos, Sérgio Milliet, Augusto Frederico Schimidt – “a menor referência ao nacionalismo como possível ideologia propulsora do desenvolvimento industrial brasileiro; pelo contrário, através do antiestatismo e do tecnocratismo ali defendidos, o antinacionalismo pode ser considerado como a posição ideológica comum a todos eles”. Os autores dessa fase não se firmaram no instituto. (TOLEDO, 1982: 187); b) 2ª. fase: de 1956 até 1960; esta é a fase que acompanha, aproximadamente, o quinquênio juscelinista, onde a ideologia nacional–desenvolvimentista é hegemônica no interior do ISEB, segundo Toledo. Aqui os isebianos de primeira hora predominam: além de Hélio Jaguaribe, principal figura do grupo (e que coordena o departamento de Ciência Política), estão: Roland Corbisier (diretor), Cândido Mendes (departamento de História), Guerreiro Ramos (departamento de Sociologia), Álvaro Vieira Pinto (departamento de Filosofia), Ewaldo Correia Lima (Economia) e Nelson Werneck Sodré (não coordenava departamentos). A figura de Ewaldo Correa Lima aparece com menor destaque entre os isebanos históricos. (Ib.: 187–88); c) 3ª. (e última fase) do ISEB, de 1961 até 1964, quando o governo JK é substituído por Jânio Quadros e, depois da renúncia, assume Jango. Essa fase ficou conhecida como aquela que acompanhou as reformas de base. Segundo Toledo, a perspectiva nacionalista não é negada, mas fica sensivelmente atenuada (Ibid.: 189), predominando as propostas de alteração nas estruturas básicas da sociedade, tais como: reforma agrária, reforma urbana, reforma universitária, reforma fiscal e reforma política. Ciente das diferentes fases do ISEB e para efeito de simplificação – e atendendo aos objetivos que me interessam trabalhar aqui – vou adotar uma periodização do ISEB apenas em duas fases: 1ª. fase (1955–1960) – que acompanhou a fase do governo JK); e 2ª. fase (1961–64) – que acompanhou a transição de Jânio Quadros para João Goulart e as reformas de base. A esta 2ª. fase corresponde ao que se chama de último ISEB.
106 Entendida brevemente a história do instituto como um todo, passemos agora falar da experiência do último ISEB, onde se localiza a experiência dos Cadernos.
4. Um projeto de revolução brasileira no pré–1964: o caso da Coleção Cadernos do povo brasileiro Imagine–se um brasileiro comum, vivendo em pleno ano de 1962, tomando contato com o seguinte texto: Por que os ricos não fazem greve?, seguido do texto Quem pode fazer a revolução no Brasil? E, ainda: Quem dará o golpe no Brasil?. Ou então, imagine–se em pleno ano de 1963, tomando contato com o texto: Como seria o Brasil socialista?, seguido de Como atua o imperialismo ianque? E depois Como são feitas as greves no Brasil? Ou Que são as Ligas Camponesas?. Ou também os seguintes temas: Por que existem analfabetos no Brasil?, A Igreja está com o povo?, Quem faz as leis no Brasil?, De que morre o nosso povo?. Depois dessas leituras, o que você faria? Bem, no mínimo, ia ser obrigado a parar e pensar um pouco. O resultado, provavelmente, seria de indignação diante do conteúdo lido. E talvez surgisse a disposição de se movimentar, de agir. Enfim, de não ficar passivo frente aos candentes problemas brasileiros daquele período histórico ímpar. É com essa intenção que foram escritos, no período de 1962 a 1964, os Cadernos do povo brasileiro, que circularam por milhares de mãos no período anterior à deflagração do golpe de estado de 1964 que, inclusive, encerrou sua circulação. Foi um momento profícuo na história e na cultura brasileira: estava–se diante do Cinema Novo, da Bossa Nova, do Teatro de Arena, da arte na rua, do CPC da UNE, 15 de novos métodos de alfabetização de adultos associados à leitura da realidade, ao crescente movimento das Ligas Camponesas, à crescente sindicalização e organização da classe operária, para citar o mínimo. Os Cadernos do povo brasileiro foram editados pela Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro, sob a coordenação de Ênio Silveira, figura emblemática da propagação da cultura brasileira antes e depois da ditadura militar. Os diretores dessa coleção eram o próprio Silveira e Álvaro Vieira Pinto, este último diretor do ISEB, como já se referiu. A totalidade da coleção Cadernos do povo brasileiro tem 28 volumes, mas ela é frequentemente identificada apenas com os três volumes conhecidos como Violão de Rua16. Analisando o sentido, a finalidade e a função social desempenhada pelos Cadernos naquele contexto histórico, 15
CPC – Centro Popular de Cultura, da UNE – União Nacional dos Estudantes.
107 percebe–se que estava fortemente marcado, entre outras coisas, pela produção teórica do ISEB e também por um forte sentimento de nação e de nacionalismo, num mundo dividido entre potências opostas – EUA x URSS – num dos momentos mais quentes da Guerra Fria, bem como a recém–vitoriosa Revolução Cubana, em 1959, no coração do domínio imperialista norte–americano. Impossível entender o significado dos Cadernos sem esse contexto e um quadro mundial em mudança: avanço do processo de descolonização; crescimento do bloco dos “não alinhados”; início do “cisma” sino–soviético; emergência do terceiro–mundismo; intenso desenvolvimento capitalista industrial em alguns países periféricos, especialmente o próprio Brasil que, inclusive, acabava de ganhar uma nova e moderna capital: Brasília. A principal questão presente nas páginas dos Cadernos foi a busca das condições para a construção de um projeto para a revolução brasileira. Da análise dessa proposta emergiram, inicialmente, as seguintes questões que permearam minha pesquisa: 17 Como os cadernistas articularam (se o fizeram) o nacionalismo à luta democrática numa formação social subordinada (no interior da divisão internacional do trabalho) conferindo, ao mesmo tempo, a esta luta um caráter socialista? Ou será que apresentaram este nacionalismo apenas como uma luta do povo, no máximo uma luta democrático–popular, esvaziando o significado – da perspectiva do proletariado – da formação social através da eliminação de seu caráter de classe? Neste último caso, teriam os cadernistas sucumbido aos limites da apropriação dos elementos da ideologia burguesa pelo proletariado, dado que a ideologia nacional limita a luta desta classe ao espaço nacional? Minha primeira hipótese foi a de que os dois casos aconteceram e, por isso mesmo, a publicação faz ideologia e faz ciência. Considerando os diversos autores que ali escreveram, prevaleceu a defesa de uma luta de caráter democrático–popular, em detrimento da luta de caráter socialista, mesmo quando no âmbito do discurso a segunda opção pareça ter predominado. Minha segunda hipótese foi que, mesmo quando prevaleceu o limite do caráter apenas democrático–popular, os Cadernos cumpriram uma função social. Eles propiciaram uma contribuição absolutamente significativa, pois forneceram tons candentes à luta efetuada numa formação A coleção também é às vezes confundida – mas nesse caso só pelos mais desavisados – com os Cadernos do nosso tempo, publicação do IBESP – Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (1953–55), que antecedeu o ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros (1955–64). 17 Termo usual naqueles tempos – numa terminologia de esquerda – para designar ações organizadas de agitação e propaganda revolucionária. 16
108 social localizada na periferia do sistema e que – mesmo sob essa restrição histórico–social – abalaram as forças conservadoras do bloco no poder, hegemonizadas pelas frações de classe burguesas ligadas ao imperialismo. Estas questões principais fizeram surgir uma questão complementar, porém não menos importante: Os Cadernos do povo brasileiro expressaram de algum modo um ascenso das lutas populares no período do pré– 1964 ou foram mera reprodução de um movimento de agitação e propaganda (agit–prop)? Defendo que os Cadernos expressaram, sim, um ascenso das lutas populares neste efervescente período. Se, posteriormente, essas forças foram ou não vitoriosas, cabe analisar que no processo interferiram outras ordens de intervenções, inclusive – e principalmente – equívocos estratégicos e táticos irreconciliáveis diante da maior eficácia das frações de classe hegemônicas no bloco no poder. Por ora, cabe afirmar que a coleção foi construída no último ISEB, num período de intensa politização e participação popular. Também cabe afirmar que os Cadernos jamais tiveram nenhuma pretensão de caráter acadêmico, mas expressavam uma reflexão de caráter teórico e metodológico. E, por fim, é importante dizer que dois temas eram recorrentes em suas páginas: a luta antiimperialista e a questão agrária, esta última no sentido de eliminar o latifúndio e realizar, no mínimo, uma reforma agrária radical. Praticamente os demais temas vêm a reboque desses dois assuntos principais. No entanto, é importante afirmar desde já que nem todos os autores dos Cadernos fizeram uma relação direta entre luta antiimperialista e internacionalismo proletário. Na maioria das vezes, o antiimperialismo é o conteúdo do nacionalismo defendido, mas poucos ultrapassam esse limite da luta no âmbito preponderantemente nacional.
5. Concluindo Portanto, usando aqui as concepções de Lukács para a análise sobre ciência e ideologia, quero destacar que não tive a pretensão de mensurar a eventual eficiência revolucionária dos Cadernos e muito menos sua não eficiência, mas tratar qual foi sua gênese e função social naquele momento da história brasileira, a partir da análise imanente do discurso ali construído, independentemente dos eventuais erros ou acertos da análise empreendida pelos cadernistas. Os Cadernos – justamente por não se pretenderem acadêmicos – realizaram um importantíssimo papel naquele momento histórico em, pelo menos, duas perspectivas: a primeira, na afirmação da necessidade da construção de um programa para a revolução bra-
109 sileira, dentro da multiplicidade de questões estratégicas e táticas suscitadas pelas diferentes leituras desta formação social; a segunda, por adotarem uma linguagem acessível – sem deixar de ter seriedade teórica com o objeto tratado – a fim de atingir um público menos elitizado, numa palavra, o povo. Evidentemente, o próprio conceito de povo será discutido nos diversos Cadernos e num deles, em especial, será o próprio tema–chave: Quem é o povo no Brasil? de Nelson Werneck Sodré. A segunda perspectiva é a de que os Cadernos do povo brasileiro podem sofrer críticas no mundo acadêmico, pela eventual ausência de profundidade de suas análises, embora jamais seu objetivo tenha sido acadêmico. Entendo, ao contrário, que sua importância reside – mais do que na forma e no tratamento analítico dispensado – na escolha do tema a ser estudado: a questão agrária, o latifúndio, o campesinato, a fome, 18o imperialismo, as greves, a classe operária, as lutas de classe, e, fundamentalmente, as estratégias para a revolução brasileira. Se a análise teve eventuais problemas que podem ser apontados – assim como em quaisquer estudos de ordem teórica – o importante dos Cadernos foram a sua concepção, o seu propósito, os seus temas. Os Cadernos fugiram ao convencional, ao institucional, estavam fora do âmbito da academia e isso, em meu entendimento, já teria sido uma importantíssima contribuição, mesmo que só tivesse se resumido a este aspecto. E ultrapassou. Se ainda hoje, em pleno início de século XXI, continua difícil fazer vingar projetos editoriais de monta, fora do âmbito da universidade (e mesmo dentro dela), naquele momento histórico isso era muito mais difícil de ser executado. Ainda mais com a tiragem média de 20 mil exemplares por número, e a potencial divulgação para além da tiragem, via consumo de mão–em–mão que multiplicou sua difusão, facilitada pelo formato de bolso. O caso mais impressionante foi o do sugestivo Caderno de Vieira Pinto, Por que os ricos não fazem greve? que alcançou a estratosférica marca de 100.000 exemplares vendidos! Outro aspecto: até onde pude apurar, nunca mais houve projeto editorial desse porte que tenha envolvido a União Nacional dos Estudantes de maneira tão próxima, como essa da Editora Civilização Brasileira, em parceria com o ISEB. Eram três forças juntas e muitos leitores. A tiragem ampla provocou uma expansão, um estilo de difusão que, no mínimo, contribuiu para o acúmulo de conhecimentos necessários à ampliação das lutas sociais da época: os volumes eram distribuídos não só pela UNE, como também por sindicaÉ muito importante lembrar que a fome não era exatamente um tema considerado no âmbito acadêmico naquela época. Nesse sentido, a contribuição de Josué de Castro – praticamente isolada durante alguns anos – passava a ter eco numa publicação de grande acesso popular. O pioneirismo deste pensador – hoje destacado – demorou a fazer “escola” entre os intelectuais. Sua principal obra é Geografia da fome (1963). 18
110 tos, grupos de teatro e de cinema, mesmo antes do surgimento de Violão de Rua. Com este último, a divulgação potencializou–se. Eis, portanto, uma coleção digna de ser retomada, relida, referida e, quem sabe, reescrita para os desafios do nosso tempo presente, mostrando que é possível fazer ciência social sem que tudo que possa significar uma defesa ideológica seja necessariamente percebida como falsa consciência. Afinal, como se defendeu neste texto que agora encerro – o marxismo, por suas características de defesa de um projeto revolucionário, pode ser ao mesmo tempo ciência e ideologia.
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114 6. THEOTÔNIO JÚNIOR. Quais são os inimigos do povo? Vol. 6, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1962. 7. COSTA, Bolívar. Quem pode fazer a revolução no Brasil? Vol. 7, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1962. 8. HOLANDA, Nestor de. (1963). Como seria o Brasil socialista? Vol. 8, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 9. OLIVEIRA, Franklin de. Que é a revolução brasileira? Vol. 9, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 10. SCHILLING, Paulo R. O que é reforma agrária? Vol. 10, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 11. MIRANDA, Maria Augusta Tibiriçá. Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica? Vol. 11, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 12. MONTEIRO, Sylvio. Como atua o imperialismo ianque? Vol. 12, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 13. MIGLIOLI, Jorge. Como são feitas as greves no Brasil? Vol. 13, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 14. HOFFMANN, Helga. Como planejar nosso desenvolvimento? Vol. 14, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 15. GUERRA, Aloísio. A Igreja está com o povo? Vol. 15, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 16. MARQUES, Aguinaldo Nepomuceno. De que morre o nosso povo? Vol. 16, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 17. BAILBY, Eduard. Que é o imperialismo? Vol. 17, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 18. DUARTE, Sérgio Guerra. Por que existem analfabetos no Brasil? Vol. 18, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 19. PINHEIRO, João. Salário é causa de inflação? Vol. 19, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 20. RAMOS, Plínio de Abreu. Como agem os grupos de pressão? Vol. 20, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 21. CHACON, Vamireh. Qual a política externa conveniente ao Brasil? Volume 21, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963.
115 22. SANTA ROSA, Virgínio. Que foi o tenentismo? Vol. 22, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 23. PEREIRA, Osny Duarte. Que é a Constituição? Vol. 23, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1964. 24. SOBRINHO, Barbosa Lima. Desde quando somos nacionalistas? Vol. 24, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963. 25. OLIVEIRA, Franklin. Revolução e contra–revolução no Brasil. Vol. avulso, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1962. 26. Vários autores Violão de rua – poemas para a liberdade. Vol. Extra–I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1962. 27. Vários autores Violão de rua – poemas para a liberdade. Vol. Extra–II, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1962. 28. Vários autores Violão de rua – poemas para a liberdade. Vol. Extra–III, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1963.
117
5– Florestan Fernandes e a construção da sociologia crítica no Brasil *
Marcelo Augusto Totti
Introdução A história da sociologia no Brasil confunde–se com a trajetória de Florestan Fernandes. Sua contribuição envolve diversos temas, teorias e articula a pesquisa e o ensino criando “um padrão de pensar a realidade social por meio da qual se torna possível reinterpretar a sociedade e a história, bem como a sociologia anterior produzida no Brasil” (IANNI, 2004, p. 307). As palavras de Octavio Ianni, discípulo de Florestan, são significativas da remodelação que a obra de Florestan Fernandes opera no interior da sociologia no Brasil. Com um estilo de linguagem própria e combinando várias correntes do pensamento clássico, Florestan impulsionou o discurso com características próprias, rompendo com o modelo ensaísta de ciência produzida no Brasil. Essa característica faz com quem o trabalho do sociólogo seja debatido de diversas vertentes e correntes, com uma obra vasta e abrangente, possibilita aos interpretes diversos ângulos de análise, o que culmina em interpretações nem sempre consensuais e muitas vezes polêmicas. Uma dessas interpretações polêmicas é a de Freitag 1, para ela o pensamento de Florestan incorre em uma ruptura epistemológica, “que permite distinguir uma fase acadêmico–reformista de uma fase político revolucionária. Biograficamente, o momento do corte coincide com sua aposentadoria compulsória pelo AI–5, em 1968” (FREITAG, 1987, p.164). A autora utiliza o instrumental do corte epistemológico 2: “defendi em Marília a tese de uma “ruptura epistemológica” na obra de Fernandes, comparável à ruptura apontada por Althusser na obra de Marx. Argumentei que a produção intelectual de Fernandes sofre, na virada da década de 1960 para 1970, uma profunda re–orientação” (FREITAG, 2015, p. 236). Essa visão aponta uma profunda remodelação impactada pelo aconteciAs reflexões produzidas nesse texto são oriundas de minha tese doutorado (TOTTI, 2009). Freitag tem importância na interpretação da obra de Florestan, visto que em seu período no exílio respondeu aos pedidos biográficos da então jovem estudante Freitag, que preparava uma tese sobre sua obra (GARCIA, 2002). Freitag trocou cartas com Florestan e algumas delas foram publicadas na revista Estudos Avançados, vol. 10, número 26 de 1996. 2 Não é objeto desse texto fazer uma reflexão sobre o referencial adotado por Freitag (1987) na análise da obra de Florestan, pois demandaria um tempo de maior maturação e profundidade. * 1
118 mento histórico de sua aposentadoria compulsória, a saída da USP e a perseguição realizada pelos militares e seu exílio teriam contribuído decisivamente para essa mudança abrupta. De outro lado, essa interpretação não leva em consideração a ideia de processo e amadurecimento intelectual alcançado no pensamento de Florestan3 e de sua interpretação sobre o Brasil e as diversas conjunturas políticas do país vivenciada pelo sociólogo. De perspectiva distinta, a leitura de Antônio Cândido resgata o diálogo profícuo que Florestan estabeleceu com diversas correntes do pensamento sem adotar ingenuamente posições divergentes. O processo que Cândido relata e vem amparando minhas pesquisas, de que a fase inicial de Florestan não é ainda madura, mas de um intelectual que busca reconhecimento e afirmação na universidade, devido a isso “explorou diferentes linhas, por vezes potencialmente conflitantes, como a economia liberal, inclusive a teoria de Ricardo, o radicalismo democrático francês, o materialismo filosófico alemão, e nem por isso foi eclético” (CANDIDO, 2001, p. 60). Conforme destaca Cândido, a formação de Florestan é lenta, gradual e muito pessoal4, transformando a “sociologia neutra e acadêmica” para uma “sociologia participante”, sem “perder nada o rigor metodológico e da objetividade na investigação” (idem). Assim, nas palavras de Antônio Cândido, Florestan foi o precursor de um novo modo de trabalho sociológico, “que é ao mesmo tempo arsenal da práxis, fazendo o conhecimento deslizar para a crítica da sociedade e a teoria da sua transformação” (idem).
Vida acadêmica e construção da sociologia Florestan Fernandes teve uma origem humilde, sua mãe Maria Fernandes, filha de imigrantes portugueses trabalhava como empregada doméstica, mas desde pequeno teve que trabalhar como engraxate, trabalhou em açougues, alfaiatarias para ajudar no sustento do lar. Essa expeInteressante notar que segundo a própria Freitag, em relato introdutório sobre as cartas trocadas entre ambos e publicadas na revista Estudos Avançados (1996), na Jornada de Marília, Florestan não teria coadunado com abordagem feita pela autora: “Foi simultaneamente homenageado por todos os seus ex–alunos, colegas e amigos. Eu estava entre eles. Mas Florestan não gostou da tese que lá defendi, em sua presença, sobre a existência de um ‘corte’ em sua obra, separando o ‘acadêmico–reformista’ do ‘político–revolucionário’” (apud FERNANDES, 1996, p.131) 4 O próprio Florestan em um texto autobiográfico deixa transpassar essa ideia, quando comenta seu ingresso no curso de Ciências Sociais da USP: “a escolha de uma profissão quase não contou. Queria ser professor e poderia atingir esse objetivo através de vários cursos. O meu vago socialismo levou–me a pensar que poderia conciliar as duas coisas, a necessidade de ter uma profissão e o anseio reformista de modificar a sociedade, cuja natureza eu não conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas.” (FERNANDES, 1994, p.127) 3
119 riência do ponto de vista da formação moral o levou a “um amadurecimento precoce, uma verdadeira escola da vida” (SOARES, 1997, p.24). Anos mais tarde, trabalhando no Bar e Restaurante do Bidu 5, foi que Florestan conseguiu conciliar o trabalho com o estudo, terminando o curso de madureza. Neste mesmo bar, Florestan conhece “Maneco”, diretor de uma indústria de produtos químicos que o convida para trabalhar na empresa. O trabalho na indústria química o motivou a estudar Química, mas as condições não eram favoráveis, era necessário ficar o dia todo na faculdade e os livros eram muito caros. Florestan opta pelo curso de Ciências Sociais na recente Faculdade de Ciências e Letras. Os conhecimentos adquiridos na vida cotidiana e o esforço nas leituras que mantinha atrás do balcão do Bar do Bidu foram importantes para prestar a seleção. A seleção foi realizada por uma banca composta pelos professores da missão francesa, Roger Bastide e Paul Bastide; A seleção incluía sorteio de pontos e o candidato teria de comentar os assuntos e responder as perguntas da banca examinadora. Foi sorteado um texto do livro De La divison du travail social: étude sur l’organisation dês sociétés supérieures, de Émile Durkheim. O ponto e as perguntas eram em francês e Florestan não falava, mal lia nesta língua. Pediu, então, aos professores para fazer a prova em português. Diante daquela situação insólita, se reuniram nos fundos da sala e decidiram aceitar. (CERQUEIRA, 2004, p. 29).
Florestan consegue um bom desempenho e é aprovado no curso de Ciências Sociais em conjunto com mais cinco candidatos. A vida acadêmica é difícil, aulas em francês, metodologia europeia, esse era o panorama da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, talvez o ponto de inflexão e ruptura tenha sido o interesse de Fernando de Azevedo pelo jovem estudante. No ano de 1941, Florestan realiza um trabalho sobre folclore referente à disciplina de Sociologia I, sob responsabilidade de Roger Bastide, como Bastide estava em viagem, a disciplina ficou a cargo da prof. Lavínia Costa Villela. Neste trabalho, “Florestan realizou a pesquisa de campo coletando diversos tipos de dados sobre o folclore paulistano em vários bairros da cidade” (GARCIA, 2002, p. 82), apesar do trabalho árduo de levantamento empírico e do redirecionando das formulações teóricas de Mauss e Durkheim, acabou rendendo–lhe uma nota nove. Ao discutir o assunto com a Florestan era um garçom inusitado no bar no Bidu, ele encantava os clientes ao falar sobre seus conhecimentos de História do Brasil e a leitura de clássicos da literatura brasileira, também, não perdia a oportunidade de aprender com os clientes. Essa relação com os clientes possibilitou–lhe novas amizades e auxilio na conquista de um novo emprego na indústria farmacêutica e desconto no curso de Madureza (GARCIA, 2002). 5
120 prof. Lavínia, obteve a explicação que seu trabalho havia excedido o tom sociológico sobre o folclore, inconformado com tal explicação, espera a chegada de Bastide para lhe mostrar o trabalho e discutir o assunto. A partir do diálogo com Bastide cria–se uma aproximação e interlocução entre ambos, ao debater os dados da pesquisa com renomado sociólogo francês fica admirado pela capacidade intelectual do estudante e ao saber de suas dificuldades financeiras intermedia um trabalho para Florestan, através de Sérgio Millet, no jornal O Estado de São Paulo. Em 1944, Florestan gradua–se em Sociologia e é convidado no ano posterior por Fernando de Azevedo a ser segundo assistente na cadeira de Sociologia. Garcia (2002) relata como se deu o convite e a posição de Florestan: Dr. Fernando, o senhor tem toda a responsabilidade neste convite. O senhor está convidando um aluno… e não um professor. O senhor deveria chamar um professor, essa é a sua responsabilidade. Se eu falhar, aí o senhor não pode transferir a culpa para mim. Ele levou um susto. Acho que, pela primeira vez na vida, se deu conta de que não se convi da um assistente aleatoriamente. E quem me salvou foi Antônio. Fernando de Azevedo naquela perplexidade, estava mais ou menos inclinado a dizer: Acho que tem razão, é melhor procurar outro assistente. Aí Antonio Candido disse: Olha, Dr. Fernando, nós todos sabemos muito bem que o Florestan é burro, que não sabe, que incompetente não pode ser assistente. Dr. Fernando deu uma gargalhada e o convite ficou acertado. (FERNANDES, apud GARCIA, 2002, p.100)
Esse era um momento de afirmação da Universidade de São Paulo e da Sociologia no meio acadêmico, a Universidade era considerada pelos seus idealizadores como uma nova modalidade cultural, de reflexão e preocupação sobre os fatos da vida social: “a transmissão de conteúdos gera o esforço de sistematização dos sistemas de pensamento, expresso em grandes sínteses, frequentemente apoiadas em longos discursos sobre o método” (ARRUDA, 1995, p.116). Segundo Arruda, a ideia era criar um ambiente simbólico em que se referenda pela qualidade de suas análises e produções: “a atividade acadêmica implicou, por tudo isso, num processo de racionalização da produção do conhecimento, ao definir e reordenar as diversas áreas e ao instaurar o seu próprio domínio” (1995, p.119). A sociologia, na expressão da escola paulista e de Florestan Fernandes, tinha como meta emancipar–se enquanto ciência e isso acaba expressando uma remodelação de técnicas e teorias, a preocupação no campo teórico é buscar uma identidade para as Ciências Sociais, um campo específico para essa ciência, como define Lahuerta: “ a discussão de técni-
121 cas, métodos, interpretações condizentes com o nível de rigor praticado em centros mais avançados” (LAHUERTA, 1999, p.35). A questão das técnicas, dos métodos, está presente no pensamento de Florestan, Gabriel Cohn ao comentar um dos títulos dos livros de Florestan relata o que parece ser a ideia original do autor, “em Florestan o que importa fundamentalmente são os procedimentos de análise da realidade, os modos de se enfrentar a realidade pela via do pensamento analítico” (COHN, 1987, p.49). Florestan aponta a necessidade de subordinar às questões práticas as questões teóricas, isso leva “Florestan a colocar desde logo na sua obra a questão das modalidades de domínio analítico dos fenômenos” (idem). Nesta perspectiva, que Florestan escreve um livro denominado Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, dando um norte do caminho que a sociologia científica deveria traçar. As preocupações de ordem metodológica seriam a tônica do desenvolvimento da Sociologia, “as Ciências Sociais no Brasil surgiram e se têm desenvolvido sob a influência de dois processos: o da forma de absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados em centros culturais no exterior” (SANTOS, 2002, p.19). Santos aponta dois fatores importantes do desenvolvimento das Ciências Sociais, a incorporação das tendências teóricas do exterior e o rigor da produção metodológica. A ênfase no trabalho metodológico atrela–se ao fator institucional, a Universidade cria um espaço de produção de ideias e do conhecimento e esse conhecimento produzido deve ser guiado pelas exigências acadêmicas de cientificidade. As fronteiras da cientificidade de um trabalho acadêmico são medidas pelo grau de rigor e regras quando analisa determinado paradigma. O surgimento da universidade, desse modo, seria incompreensível sem a presença de condições sociais propícias, instituindo, ao mesmo tempo, novos modelos de produção intelectual, isto é, a constituição dos quadros acadêmicos transforma os critérios de produção do saber, a partir dos quais as identidades grupais emergem, agora lastreadas numa formação e num princípio profissional dotados de certa unidade. (ARRUDA, 1995, p.124)
O princípio da legitimidade acadêmica é localizado na institucionalidade, os paradigmas, os problemas sociais, devem ser absorvidos pelo cientista que, além de dar um tratamento racional a eles, produz um discurso específico para esse auditório. As Ciências Sociais desenvolvidas nos quadros universitários redirecionam, então, os critérios de confecção das normas de elaboração dos discursos. No interior do sistema intelectual, as oposições estarão pontua-
122 das pelas diferenças entre reflexões consideradas rigorosas e científicas e aquelas vistas como impressionistas e arbitrárias (ARRUDA, 1995, p. 126)
Florestan Fernandes é figura fundamental dessa mudança no estilo das ciências sociais, “seu projeto intelectual pressupunha atingir duas dimensões fundamentais: em primeiro lugar, instituir uma ciência social pautada por critérios metodológicos rigorosos e por uma linguagem áspera, avessa ao ensaísmo” (LAHUERTA, 1999, p.36). Ao procurar instituir ciência social pautada por critérios metodológicos rigorosos, Florestan Fernandes estabelece como primordial a profissionalização do cientista social, que incluía um trabalho árduo de disciplina baseada em extensas leituras e fichamentos, debates e análises, buscando a definição conceitual. Esse trabalho buscava distanciar–se do senso comum, criar uma cisão entre o pensamento leigo e pensamento científico, a linguagem adquire uma dimensão onde é permeada de conceitos ordenados, guiando–se por valores e ideais do saber científico, “a escrita do sociólogo transporta ao leitor a impressão de que se encontra num torturante diálogo consigo mesmo” (ARRUDA, 1995, p.142). A linguagem ficava relacionada a uma busca de identidade para o conceito, tornando o pensamento mais rigoroso. Além da linguagem, a escolha do objeto, da teoria e o recorte que se faz da realidade privilegiariam o método disciplinar de levantamento dos dados. Dessa forma, a modificação ocorre no modo como são expostas as idéias, o texto deve ser a expressão consciente do autor que o escreve, ele deve ter o total domínio da teoria em exposição, que são condições necessárias mínimas de uma análise segura de verificação: A crítica passa a incidir sobre o ensaio, visto ser uma forma estranha à ‘regra’ do jogo da ciência e da teoria organizada’. O estilo ensaístico rejeita a noção de método e ordenamento sistemático da exposição. Por isso, o ensaísmo retira o seu impulso do afastamento em relação aos cânones científicos (ARRUDA, 1995, p.134).
Os temas tomam outro impulso em direção ao discurso científico. Projetos sobre a formação nacional e o Estado como arauto do desenvolvimento não fazem parte do horizonte intelectual dos sociólogos uspianos. Neste caso, Florestan Fernandes6 é a figura emblemática ao distanciar–se A polêmica com Oswald de Andrade é singular dessa relação com o ensaísmo. Oswald frequentava a Faculdade de Filosofia, pois estava interessado no concurso de cátedra e conheceu Florestan pessoalmente, só havia ouvido falar de sua seriedade. Neste encontro, Oswald começou uma discussão com Florestan em tom irônico sobre a relação entre a antropofagia e os índios tupinambás, quando cansado de tanto deboche, Florestan expulsa Oswald da sala acusando–o de não levar nada sério e prestar um concurso de cátedra sem estar preparado. (CERQUEIRA, 2004) 6
123 da tradição especulativa ensaística e construir uma obra voltada aos princípios marcados pela academia e com grande erudição. Ao criar um padrão científico no campo das Ciências Sociais, Florestan torna–se marco divisório e consolida uma interpretação acerca do desenvolvimento da sociologia. O autor distingue três etapas de estudos sociológicos, […] a primeira época se caracteriza pelo fato dominante de ser a socio logia explorada como um recurso parcial e uma perspectiva dependente de interpretação. A intenção não é de fazer, propriamente, obra de investigação sociológica, mas de esclarecer certas relações, mediante a consideração dos fatores sociais. Desse modo, a inteligência brasileira passa a se interessar por conexões entre o direito e a sociedade, a literatura e o contexto social o estado e a organização social, etc, muito parecidas com as formas elaboradas na Europa pelo pensamento racional pré–científico (FERNANDES, 1958, p.190)
A interpretação de Florestan Fernandes, que se tornou clássica no pensamento social, é que o desenvolvimento da sociologia foram constituídas por fases, sendo o primeiro período caracterizado pelo ensaísmo, pela generalização simples, que qualificava qualquer reflexão social como problema do país. A segunda tendência interpretada por Florestan é a de que os estudos sociológicos se caracterizam pelo “uso do pensamento racional como forma de consciência e de explicação das condições histórico–sociais de existência na sociedade brasileira” (FERNANDES, 1958, p.190). Esse período tem como predomínio uma forma de análise histórico–geográfica, que foram retemperadas pela influência européia, em busca de interpretações do presente, associando a intervenções racionais no processo social. O terceiro período, no qual se encontra Florestan, tem como predomínio “a preocupação dominante de subordinar o labor intelectual, no estudo dos fenômenos sociais, aos padrões de trabalho científico sistemático” (FERNANDES, 1958, p.190). Nesse período é que se consolida o padrão genuinamente científico, versando obras de investigação empírico–indutiva e ensaios de sistematização teórica. A contribuição para o progresso da sociologia como disciplina científica é evidente através de imperativos da especialização, criação de centros de estudos e escolha individuais dos investigadores. A interpretação7 sedimentada por Florestan tornou–se clássica na Sociologia. Octávio Ianni é um dos autores que adota essa visão. Ao coEssa visão é corroborada por Manfredo Berger (1984, p.308), que avalia o processo de desenvolvimento das ciências sociais no Brasil dividida em três fases: “a) fase pré científica, b) a fase da institucionalização c) a fase científica propriamente dita” 7
124 mentar sobre as referências do pensamento brasileiro, destaca que até os anos 1930 existiam preocupações sociológicas, mas a tônica dessas obras era pouco comprometida com a consistência lógica da análise científica. É a partir dos anos 1930, que a sociologia vai se enraizando na sociedade brasileira, o que lhe confere outro status: A sociologia se estrutura como uma forma de pensar a realidade social, a sociedade vista no presente e em perspectiva histórica. O saber racional, científico, é mobilizado, em escala crescente, dentro e fora da universidade, nas esferas do poder econômico e político, movimentos sociais e outros círculos, para fundamentar decisões de significação vital para a coletividade ou setores dela (IANNI, 2004, p.313).
Ianni relaciona o desenvolvimento da sociologia à sua inserção social. O fato de crescer o saber racional foi fundamental para sua incorporação nos meios sociais como instrumento de análise e resolução dos problemas sociais. Por outro lado, a versão de Florestan não é unânime, Wanderley Guilherme dos Santos faz críticas a esse modelo quando discute o desenvolvimento da história do pensamento político–social: Até o segundo quartel do século XX produziram–se ensaios sobre temas sociais, a partir de então produziu–se ciência. Considerando–se ademais que qualquer que tenha sido a quantidade ou qualidade da produção do primeiro período, ela é irrelevante para o progresso da ciência, torna–se desnecessário qualquer investigação sobre autores que pertencem ao passado cultural do país, ou sobre o modo pelo qual pensaram o social. O interesse histórico se resumiria a catalogar a produção do primeiro período (pré–científico) pela temática e a explicar de que modo as variações na estrutura da sociedade introduziram modificações na temática pré–científica (SANTOS, 2002, p.31).
Wanderley Guilherme entende que a historiografia, ao adotar critérios meramente estrangeiros de inerentes às influências de professores visitantes, desconstrói–se narrativas para entender as relações entre passado e presente na história do pensamento intelectual brasileiro, desconsidera– se toda uma gama de ideias e esforços de teorização da realidade nacional e os artigos de Florestan Fernandes 8 caminhariam e reforçariam tal desprezo. Porém, a narrativa de Florestan e da escola de sociologia paulista torna–se hegemônica no interior de uma historiografia da Sociologia.
O debate entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes é sintomático dessa relação. Guerreiro Ramos defendendo a retomada de autores que pensaram sobre os problemas da nação e Florestan considerando esses aspectos como uma retomar a sociologia ao seu caráter pré– científico. Santos (2002) retoma esse debate em seu texto, que ficou conhecido entre os debates Iseb e escola de sociologia paulista. 8
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O Marxismo no pensamento de Florestan Conforme mencionamos na introdução desse texto, corroboramos com a tese de Antônio Cândido de que a construção do marxismo no pensamento de Florestan Fernandes é algo muito particular e dialoga com várias vertentes do pensamento clássico, na qual o próprio autor ratifica essa visão em carta a Bárbara Freitag: Quanto a mim, fiquei surpreso com o diagnóstico: não pertenço apenas teoricamente mas também praticamente à esquerda. Só não participo de um partido, porque não existe; e por formação universitária, só poderia ser um marxista na tradição européia, isto é, democrática e heterodoxa. (FERNANDES, 1996, p.145).
Florestan escreve essa carta em 1969, mas seu diálogo com o marxismo vem de muito antes, já nos anos 1940, quando participou do PSR (Partido Socialista Revolucionário) por intermédio de Hermínio Sachetta. Florestan milita pouco tempo no partido, pois tinha que conciliar as atividades laborais com a formação acadêmica, o que não tarefa fácil, visto as suas dificuldades de formação com a erudição dos professores estrangeiros, “que davam suas aulas na própria língua, não tomavam tais deficiências em consideração e procediam como se nós dispuséssemos de uma base intelectual equivalente à que se poderia obter através do ensino médio francês, alemão ou italiano.” (FERNANDES, 1994, p. 128). Diante das dificuldades enfrentadas, o próprio Sachetta sugere a Florestan seguir o caminho dentro da Universidade e como último trabalho militante traduz o livro de Karl Marx, Contribuição a crítica da economia política, publicado em 1946, com uma longa introdução. Porém, os temas ligados as lutas sociais e democráticas já eram candentes nos escritos do jovem estudante. Em artigo publicado em 1945 para o jornal Folha da Manhã, Florestan tece elogios ao recém–publicado livro de Astrogildo Pereira Interpretações, em especial, ao último capítulo denominado tarefas e posições da inteligência. A mesma coisa pode–se falar de outros problemas característicos de nosso povo. Isso tudo quer dizer como também reconhece o sr. Astrojildo Pereira, que a questão tem três lados: a democratização da cultura, que é o coroamento, o fim e o resultado; a "democratização política" e a "democracia econômica". O escritor nunca chegará à "democracia cultural" diretamente saltando seus princípios políticos e suas bases econômicas. (FERNANDES, 1945, p.9)
Astrogildo em seu livro retomava toda uma tradição de correntes literárias e suas relações com as causas sociais, agora seria a vez dos inte-
126 lectuais se embrenharem na principal causa que clamava o país: a educação das massas. Florestan, não só aponta que a causa defendida por Astrogildo é das mais nobres, como defende um amplo processo de democratização da sociedade, seja ela política, econômica e cultural. No final dos anos 1940 e na década de 1950, já mencionado na seção anterior, foi um período de afirmação acadêmica e fortalecimento do status científico da sociologia. Entretanto, apesar da ênfase em autores não marxistas nas análises dos tupinambás e no primeiro livro sobre a questão racial em São Paulo, essa temática na sociologia era até então de periférica, Florestan se debruça sobre os esquecidos, os subalternos, suas pesquisas contribuem decisivamente para um novo olhar temático sobre o Brasil, encarando a sociedade tupinambá como complexa e entendo a guerra como construção social. No caso dos negros em São Paulo, a pesquisa descontruiu visões disseminadas, como no caso da democracia racial no Brasil9, identificando o racismo de cor ligado à estrutura social. Sua atuação não é restrita ao ambiente universitário, em 1959, participa da campanha em defesa da escola pública contra a proposta udenista10 de recursos equânimes destinados tanto para a escola pública e privada, um claro desvio de recursos públicos para a iniciativa privada. Contra esse processo de privatização da educação, Florestan teve papel de destaque fazendo conferências, escrevendo artigos e realizando debates com representantes da Igreja e de setores conservadores que defendiam o projeto udenista. Nos anos 1960, Florestan defende sua livre–docência intitulada A integração do negro na sociedade de classes, neste texto começam a aparecer as preocupações de Florestan sobre a questão da revolução burguesa e a dinâmica das classes sociais. A competitividade do negro com o homem branco adaptado trabalho assalariado competitivo levou ao “isolamento do negro e do mulato, através das impulsões econômicas, psicossociais e socioculturais segundo os quais eles foram excluídos ou se excluíram da ordem legalmente institucionalizada da sociedade nacional, representava o modo por que a sua agregação ao regime de classes poderia transcorrer incialmente” (FERNANDES, 2008a, p.77). Seguindo as pistas de Netto (1987), o ponto de inflexão no pensamento de Florestan para uma guinada marxista possa ter ocorrido processos ditatoriais na América latina; A pesquisa fora encomendada pela Unesco a Roger Bastide, que pressupunha no Brasil ocorrer uma democracia racial, a pesquisa tinha essa hipótese, no decorrer do trabalho verificou–se o oposto, de que no Brasil existe um preconceito de cor muito mais nefasto e localizado na estrutura social. 10 Estamos nos referindo ao partido político União Democrático Nacional, de tradição conservadora, que teve como um de seus principais expoentes Carlos Lacerda. 9
127 O processo desta inflexão prossegue voltado para a explicação e a compreensão da realidade brasileira. Esse desenvolvimento da sua Sociologia do período anterior engrena–se, então, com os dados novos postos pelo aborto das vias democrático–nacionais latino–americanas – porque Florestan logo apreende a dimensão continental supranacional, da contra–revolução (burguesa) (NETTO, 1987, p.297)
A análise de José Paulo Netto realizada na Jornada de Marília situa o pensamento do sociólogo dentro de um processo conjuntural e estrutural, como as pesquisas de Florestan centraram–se na realidade brasileira, suas observações e exames estão dentro desse processo histórico dinâmico, contudo, sua obra adquire tal característica de complexidade e dinamismos inerentes à realidade brasileira. Acrescentaria à análise de José Paulo Netto o ingrediente do processo de revolução burguesa, que está atrelado ao fator conjuntural e estrutural observado pelo autor. Esse viés da revolução burguesa é presente nos textos do autor, quando enfatiza a questão educacional e o papel do Estado enquanto agente disseminador do processo democrático, segundo Florestan não haveria no Brasil um Estado democrático sem um Estado–educador, neste caso o sociólogo paulista acredita que esse processo se configurava como uma revolução dentro da ordem para posteriormente uma revolução contra–ordem. Conforme explica o sociólogo: O maior contraste entre a situação do sociólogo em nossos dias e nas décadas de 1940 ou de 1950 está no nível de expectativas. Então, duas coisas aparecem certas. Primeiro, que ao sociólogo cabia assumir suas responsabilidades intelectuais em um nível puramente profissional. Feita uma descrição ou uma interpretação, suas implicações ou consequências relevantes acabariam sendo percebidas e se concretizando, de uma forma ou de outra. Segundo, que a sociedade brasileira estava caminhando na direção da revolução burguesa segundo o ‘modelo’ francês, sob aceleração constante da autonomia nacional e da democratização da renda, do prestígio social e do poder. Havia, portanto, a presunção de que o alargamento do horizonte intelectual médio refluiria na área de trabalho do sociólogo, criando investigações sociológicas de cunho crítico uma ampla base de entendimento, tolerância e, mesmo, de utilização prática gradual. Tratava–se de uma ‘utopia’ e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada. (FERNANDES, 2008b, p.30)
Neste trecho de mudanças sociais no Brasil, Florestan deixa claro as ênfases de seu trabalho sociológico e de sua geração, nos anos 1940 e 1950 caberia um esforço de dar moldes científicos ao trabalho sociológico, estabelecer padrões de trabalho e rigor científico, visto que a sociedade passava por um processo de transformação via uma revolução burguesa nos moldes “franceses”, observa–se uma íntima relação entre ciência e so-
128 ciedade11 estabelecida pelo sociólogo, pois ao apontar as possíveis transformação oriundas na sociedade brasileira de democratização da renda e das consequências do alargamento horizonte intelectual para o trabalho sociológico que essas transformações renderiam, o que o sociólogo talvez não contasse é com a mudança substancial ocasionada pelo golpe civil– militar. Não tanto em virtude do ‘desmascaramento’ da revolução burguesa, o qual já se patenteara, de múltiplas maneiras, no terreno da ação (já na década de 1910 as greves operárias foram tratadas como ‘questão de polícia’, como essa foi reimplantada de forma ampliada, em 1964, deve–se super que ela define o horizonte político das classes dominantes). A nível prático, só acumulamos experiências que pressupõem as expectativas autocráticas de uma ‘tirania esclarecida’, o que fez com que o desmascaramento da revolução burguesa entrasse para a rotina. Ninguém, hoje, se ilude com os propósitos de ‘autonomia nacional’, de ‘nacionalismo econômico’ ou de ‘democracia liberal’ da burguesia. (FERNANDES, 2008b, p. 40)
Neste trecho, evidencia–se a posição do autor de descrença do autor com os rumos de uma revolução burguesa nos moldes “franceses”. Para ele, a revolução burguesa havia se concretizado de modo particular, articulando modelo autocrático de dominação interna com submissão dependente externa. Esse modelo de revolução burguesa ocorrido no Brasil seguia os rumos do dinamismo imperialista e das nações capitalistas hegemônica, apenas com uma diferença, nossa integração se deu de modo subalterno e subordinado.
Considerações Finais Ao discutir a obra de um sociólogo da envergadura de Florestan Fernandes, a literatura convencionalmente denomina uma linha divisória no pensamento do autor, antes de sua aposentadoria compulsória na USP em 1968, na qual, o autor se amparava em uma formulação teórica nitidamente funcionalista e após esse período teria aderido as teses marxistas. A leitura de alguns textos antes e depois do período mencionado, sua autobiografia e a pesquisa do processo de revolução burguesa indicou caminho adversos da literatura especializada. Nos anos 1940, em artigos no jornal Folha da Manhã, Florestan destaca a postura do intelectual e sua responsabilidade de intervenção frente aos processos sociais, de combate ao encastelamento e distanciaNão é objeto desse texto, mas uma das influências de Florestan Fernandes foi o pensamento de Karl Mannheim, essa relação entre ciência e sociedade tem traços da obras do sociólogo húngaro. 11
129 mento do intelectual perante as massas. Em 1945, o autor reitera essas questões ao comentar o livro de Astrogildo Pereira, dando destaque especial ao capítulo: Posições e tarefas da inteligência, na qual destaca a tarefa da inteligência nacional que seria um combate sem tréguas contra ao analfabetismo: “A campanha contra o analfabetismo é um dos grandes elos de uma corrente; um dos aspectos de uma imensa tarefa” (FERNANDES, 1945, p.5). Porém, nos anos 1950, a preocupação de Florestan parece modificar–se, seus escritos caminham no sentido de dar moldes científicos a sociologia e estabelecer um padrão de trabalho intelectual aos sociólogos brasileiros. Essa orientação se assemelha aos estudos de Mannheim, na medida em que os estudos produzidos pelos cientistas sociais seriam a luz no fim do túnel para compreender os desafios da sociedade contemporânea. Assim, somente os cientistas sociais, com capacidade de lidar com as novas técnicas racionais introduziriam a sociedade brasileira ao caminho da racionalização da vida, ou nos dizeres do autor: ao processo de revolução burguesa em curso. Em sua ótica, a sociedade brasileira caminhara para um processo de modernização e racionalização da vida. Em outros textos nos anos 1980, Florestan destaca a relação indissolúvel entre ser professor, participação política e sua função enquanto intelectual: “O professor não pode estar alheio a esta dimensão. Se ele quer mudança, tem que realizá–la nos dois níveis – dentro da escola e fora dela.” (FERNANDES, 1989, p. 164). A temática do intelectual engajado é retomada nos anos 1980, com objetivo único de mudança social; “O professor precisa se colocar na situação de um cidadão de uma sociedade capitalista subdesenvolvida e com problemas especiais” (idem, p.170). Em uma sociedade ainda marcada pelo analfabetismo e pelo atraso cultural, o professor tem um papel fundamental diante das condições vivenciadas pela sociedade, o professor é privilegiado pela sua própria formação intelectual e deve assumir uma posição de compromisso com a mudança social. Essa preocupação é expressa com a possível perda de prestígio renda e principalmente tempo para adquirir cultura e ser um “cidadão ativo e exigente”. Essa perspectiva assume o caráter militante e marxista da concepção de intelectual ao pensar na educação do educador: “O educador educa os outros, mas ele também é educado. No processo de educar, ele se educa, se reeduca e quando pratica uma má ação no sentido gestaltiano ele se autopune” (FERNANDES, 1989, p.172). O que verificamos após proceder análises de textos e fontes produzidor pelo autor, que independente das fases apontadas pela literatura de uma cisão abrupta em seu pensamento, de dois Florestans, nossos estudos
130 indicam outro caminham, que a ideia de mudança social é patente no pensamento de Florestan, Atrela–se a esse fator a concepção humanista e o caráter militante parecem estar presentes na exposição de toda sua trajetória intelectual, de modo mais agudo no período pós–aposentadoria compulsória. Porém, as tarefas de uma inteligência engajada parecerem estar presentes em ambos os períodos, isso indica que o marxismo parece permear toda sua trajetória, diferentemente das colocações sedimentadas pela literatura especializada acerca do autor.
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6– As contribuições de Florestan Fernandes na defesa da Escola Pública brasileira (1980 – 1995)* Fabiana de Cássia Rodrigues Lucelma Braga
Introdução O objetivo último da educação escolarizada não está em ‘fazer a cabeça do estudante’. Mas em inventar e reinventar a civilização sem barbárie. (Florestan Fernandes, O desafio educacional).
Este artigo tem por objetivo discutir as contribuições de Florestan Fernandes na defesa da escola pública no período entre 1980 a 1995. Trata–se de um autor, cujas ideias e propostas marcaram o debate educativo no Brasil, no período destacado, que parte dos primeiros anos da “abertura política” após a ditadura militar até o debate em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), n. 9394/1996. Outras pesquisas já abordaram as contribuições de Florestan ao campo educacional segundo diferentes aspectos. A professora Débora Mazza (2004) em sua tese de doutorado tratou da problemática educacional na produção sociológica de Florestan Fernandes, no período entre 1941 e 1964. A principal hipótese da autora consiste em perceber que a educação como processo social foi preocupação recorrente em sua obra. Mazza (2004, p. 278) defende que na obra do sociólogo a educação conforma parte importante de uma missão civilizatória. Há também duas teses de doutorado que tratam desse mesmo período, a partir de perspectivas e conclusões distintas, elas abordaram o debate entre Florestan Fernandes e os intelectuais da escola Nova. A tese de Adriana Chaves (1997) defende haver proximidade entre Florestan Fernandes e os pioneiros da educação, chegando mesmo a afirmar que no encalço dos escolanovistas, Florestan teria sido um defensor dos ideais da Escola Nova. Em posição diametralmente oposta está a tese de Gilcilene Barão (2008) que destaca entre as contribuições fundamentais de Florestan à historiografia e à educação: a problematização e a ruptura com alguns princípios centrais da pedagogia Publicado em Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v.7, p.133-145, 2015
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134 nova, bem como a possibilidade de ampliação do horizonte intelectual do educador. Dermeval Saviani (1996) trata da atuação de Florestan no âmbito educacional, realçando suas várias facetas enquanto educador, cientista, militante e publicista e destaca sua atuação em defesa da escola pública em dois momentos da história da educação brasileira, na década de 1950 e na década de 1980. Roberto Leher (2012) em artigo que “examina os estudos teóricos de Florestan Fernandes e sua elaboração dedicada à causa da educação pública”, discute a centralidade do conceito de capitalismo dependente para compreender os entraves que impossibilitaram, no Brasil, reformas educacionais universalistas, características das revoluções burguesas clássicas. Já o artigo de José Luis Sanfelice (2014) trata da biografia de Florestan e de sua contribuição seminal à área educacional. Nesse artigo, Sanfelice (2014), retoma a interlocução entre Bárbara Freitag e Florestan referente à questão educacional, que se deu por meio das correspondências trocadas entre os dois, ao longo de décadas. A troca de cartas entre eles é bastante interessante, pois, expressa várias apreensões críticas do sociólogo em relação à sua trajetória intelectual e militante. Nos anos de 1980, as formulações teóricas de Florestan Fernandes sobre o Brasil já se encontravam num alto grau de maturidade e também se intensificava sua atuação política, chegando inclusive a compor o Congresso Constituinte como deputado e a comissão que discutiu o tema da educação na nova Constituição. Neste contexto, Florestan Fernandes exerceu um trabalho de intelectual militante incansável, desde sua produção textual à sua atuação como parlamentar na Constituinte e nos debates em torno da LDB. Com a clarividência daqueles que mergulharam fundo e sistematicamente no estudo da sociedade brasileira, ele percebe a centralidade das questões educacionais em nossa realidade marcada pela dependência e pelo subdesenvolvimento, desafiada a retomar a “revolução democrática”. Pode se perceber aqui um elemento fundamental para compreender a importância de suas contribuições para a área educacional. Em sua análise a educação jamais encontra–se apartada da totalidade e de seu papel fundamental na luta política das camadas populares1. Fernandes (2006) defende que esta é uma realidade particular sob uma dominação burguesa que não poderia liderar a um só tempo a transformação capitalista e as reformas nacionais e democráticas, ou seja, trata– O conservantismo tosco ou egoístico possui conteúdo neocolonial certo: o incentivo à alienação das consciências. As culpas são hipocritamente transferidas aos professores e às escolas, como se elas moldassem sua ruína por gosto e incapacidade. Contra isso temos de bater–nos incessantemente. Ou eles ou nós; ou o Brasil culto, ou o Brasil da senzalização e da barbárie – não temos escolha (Fernandes, 1989, p.6). 1
135 se de uma formação social cujo aspecto político possui um forte componente autocrático o que deixava pouca margem para mudanças que permitissem uma participação ativa do conjunto da população nas decisões políticas. Por isso, nos momentos decisivos da revolução burguesa, nos anos de 1950 e 1960, ele atribuiu ao pensamento dos pioneiros da educação nova, principais reformadores da educação no país, uma certa “consciência utópica” por haver nele a crença de que era possível na realidade brasileira uma revolução educacional burguesa. Ao mesmo tempo, Florestan Fernandes aponta os aspectos contraditórios que esses educadores ensejavam, uma vez que eles constituíram um movimento importante que sonhava com mudanças progressistas para a educação do país e o fizeram de maneira rigorosa, construíram uma teoria articulada, mas, com fortes componentes utópicos: Esses educadores trouxeram para o Brasil, a nível de consciência social, uma perspectiva revolucionária sobre educação. Anteciparam mudanças, que seriam potencialmente possíveis e necessárias, numa sociedade capitalista, mas que as classes dominantes brecaram, impediram. Ao ler o Manifesto dos educadores, vê–se que o grande componente sociológico desse documento está na tentativa de transferir para o Brasil os ritmos avançados das sociedades europeias. Era como se a Revolução Francesa desabasse sobre nós, no plano educacional, sem ter desabado no plano econômico e político. Portanto, uma consciência utópica, mas uma consciência articulada. […] (Fernandes, 1989, p. 161).
As contribuições de Florestan Fernandes ao debate educacional partem de uma análise crítica quanto aos limites da revolução burguesa no Brasil também no âmbito da educação. Foi possível notar que a maior parte dos textos analisados nesta pesquisa faz menção ou mesmo retoma momentos cruciais da história da educação no país e seus principais embates a fim de colocar em perspectiva histórica os desafios presentes nas décadas de 1980 e 1990. O sociólogo realiza uma crítica do pensamento e políticas ensejadas pelos intelectuais da escola nova e procura avançar a partir daí, observando seus aspectos progressistas, seus limites e a premência de superá–los em consonância com as necessidades reais da sociedade brasileira: Hoje, a questão que se repõe, com as mesmas contradições. As iniquidades educacionais e as carências do ensino público aumentaram. Ao mesmo tempo, o Estado tornou–se um mecenas do ensino privado, por meandros que iludem até os observadores mais lúcidos e exigentes. Na transição para o século XXI, não basta defender as bandeiras das décadas de 1930 ou de 1950. É preciso ir mais longe e mais fundo, com vistas à construção de uma sociedade democrática com um forte pólo de poder popular. (Fernandes, 1989, p. 37).
136 A pesquisa apresentada neste artigo pretendeu contribuir para os estudos acerca da atuação de Florestan Fernandes no debate educacional por meio da realização de um trabalho de sistematização dos seus textos sobre a temática publicados no período apontado. Florestan Fernandes ao longo dos anos de 1980 foi um publicista incansável, com coluna semanal no Jornal Folha de São Paulo. Enquanto deputado constituinte redigia suas intervenções nos debates da Comissão que discutia o tema educacional, bem como escrevia para revistas especializadas na área educacional, como a Revista Educação & Sociedade. Diante desta intensa e instigante produção intelectual, as pesquisadoras realizaram uma sistematização desses textos reunidos em coletâneas e publicado em periódicos. No total, foram 57 artigos analisados. A análise destas fontes nos levou a perceber que as intervenções de Florestan Fernandes (1989, p. 131) no debate educacional giravam em torno de três eixos estruturantes, aos quais ele denominou de “conjuntos de prioridades pedagógicas”. Organizamos o texto em três partes segundo as prioridades pedagógicas apontadas. Iniciamos pela primeira delas que trata da garantia de igualdade efetiva nas oportunidades educacionais, em que pobres e ricos fossem colocados em igualdade de condições. Interessa notar o destaque do autor, tanto para a correlação entre educação e conscientização política, quanto para o efeito contraproducente em termos coletivos de uma educação voltada para os interesses de uma pequena parcela privilegiada da população. Na segunda parte do texto, abordamos a prioridade pedagógica relativa à valorização dos agentes humanos que compõem a escola. Contrapondo–se ao que foi denominado de administração racional da escola e à introdução de técnicas verticalistas de imposição de decisões, bem como à fascistização dos procedimentos de atribuição e execução de papeis no interior das instituições escolares, Florestan defendia a escola como o principal laboratório da sociedade civil, portanto, deveria pautar–se no pluralismo e em decisões democráticas. E, finalmente, discute–se a terceira das prioridades pedagógicas indicadas por Florestan e presente no conjunto dos textos analisados que gira em torno do que ele denominou de “auto–emancipação pedagógica em escala nacional”. Florestan Fernandes se refere à busca por uma autonomia na produção dos conhecimentos que sejam vinculados às necessidades reais da população do país. Em um processo em que a autonomia da pesquisa, bem como a da escola se vinculassem ao processo de democratização da sociedade, nas frentes de luta nos anos de 1980.
137 São prioridades pedagógicas que se conectam entre si e vinculam– se diretamente aos objetivos da independência econômica, à emancipação nacional e à revolução democrática.
1- Educação e democracia: a igualdade de oportunidades Em repúdio às barreiras que confinam a educação escolarizada ao atendimento com qualidade apenas de pequenas parcelas da população, Florestan Fernandes (1995, p. 26) defende a educação pública para a população trabalhadora, afinal “Uma população trabalhadora menos rústica não seria reduzida à condição de substituta e sucessora da população escrava e liberta por tanto tempo, se dispusesse de melhor nível educacional e cultural.” O sociólogo não crê que as normas legais resolvam os dilemas sociais, no entanto, criam deveres mínimos ao estimular a distribuição crescente de oportunidades educacionais. Assim, a primeira prioridade pedagógica apontada por Florestan Fernandes é a relativa à igualdade de oportunidades, da qual subjaz a defesa intransigente do financiamento público para escola pública e aos centros de pesquisa do poder público, como princípio fundamental. No projeto de dispositivos constitucionais entregue ao relator da Subcomissão de Educação da Assembleia Nacional Constituinte, Senador João Calmon, Florestan propõe o seguinte artigo: É dever do Estado assegurar a todos a igualdade de oportunidades educacionais, através do ensino público, laico e gratuito, em todos os níveis e graus do ensino. Para atingir esse objetivo, as famílias de baixa renda deverão receber meios, facultados pelo Estado, que lhes permitam garantir a seus filhos, desde o nascimento, o acesso e a permanência em creches, jardins de infância, escolas pré–primárias e escolas do primeiro, segundo e terceiro graus. A Lei regulará as modalidades dessa prestação de serviços públicos pelo Estado, sob a forma de fornecimento de material escolar, transporte, alimentação, assistência psicológica, médica e odontológica, orientação pedagógica e de bolsas de ensino, destinadas a substituir a contribuição do estudante à renda familiar ou a subvencionar a sua manutenção. Os recursos aplicados a esses fins não poderão ser retirados dos orçamentos alocados aos fundos escolares e ao financiamento dos programas do Plano Nacional de Educação. (Fernandes, 1989, pp.214– 215).
Nesta proposta caberia ao Estado garantir que as famílias de baixa renda tivessem acesso à educação escolarizada em todos níveis e graus do ensino, por meio da garantia de condições financeiras, de acesso a trans-
138 porte, de atendimento à saúde, entre outras, para a permanência na escola. Por esta razão, em vários dos textos analisados há uma defesa veemente de que as verbas públicas se direcionem exclusivamente para esse fim, para a educação pública. Em uma das propostas para os dispositivos constitucionais Florestan Fernandes (1989, p. 216) escreve que as entidades privadas “e suas mantenedoras ou proprietários estão taxativamente excluídos do acesso aos recursos públicos destinados à educação escolarizada e de isenções ou concessões fiscais de qualquer natureza”. Florestan esclarecia que a igualdade de oportunidades era um ideal de grande complexidade, que não poderia se restringir a patamares mínimos. A sua intervenção no debate à época, alertava que a defesa da democratização do ensino não poderia ser confundida com a universalização do ensino primário, mas de “[…] estabelecer um pólo popular e operário que compartilhe das mesmas garantias educacionais que se universalizaram nas classes médias e altas. Essa é uma revolução pedagógica strictu sensu” (Fernandes, 1989, p. 30). Nas passagens em que o autor realça essa prioridade pedagógica, ele a relaciona com a emancipação política do conjunto da população, em que a educação democrática poderia se converter em equivalente político da sociedade civil: Duas regras parecem ser imperativas. Primeiro, acabar com a exclusão do oprimido e varrer de seu corpo e de sua cabeça a aprendizagem que o socialize para ser um cidadão de segunda ou terceira categoria (ou um ser privado da consciência e da prática da cidadania). Segundo, fazer da integração à escola o centro de uma liberação crítica e total, que incentive a descoberta do eu e do nós coletivo do futuro trabalhador, como pessoa e como integrante de sua classe social. O fim dessa aprendizagem consiste em combinar igualdade com liberdade, para que o estudante destituído adquira uma concepção ética do mundo e aprenda que está a seu alcance fugir das regras do jogo, tornar–se socialista e agente histórico da transformação da sociedade.” (Fernandes, 1989, p. 263).
2. Fortalecimento da escola e a valorização de seus funcionários, professores e estudantes Florestan Fernandes defende um lugar estratégico para a escola, como o núcleo insubstituível da aprendizagem e da convivência escolar. A escola é vista desta maneira por ser o espaço onde se deve vivenciar a de mocracia, por meio da participação ativa dos agentes que a compõem nas decisões que lhe dizem respeito, uma vez que: […] “Uma escola que não seja capaz de funcionar como comunidade educacional não educa professor, não educa estudante e não educa funcionário. Deseduca a todos.”
139 (Fernandes, 1989, p.131). A escola também é tida como fundamental na ampliação do horizonte cultural, por meio dos conteúdos e da ciência mediada em seu interior: A escola é o grande e insubstituível núcleo da aprendizagem e da convivência escolar. É o centro de tudo. Nenhuma lei de diretrizes e bases pode ignorá–la. E para ter eficácia não se pode subestimar que se trata de uma comunidade, que possui um ser e uma orientação, voltada para o aluno, dinamizada pelo professor e outros agentes que convivem na escola, e cuja prática principal corporifica–se na ação com sentido pedagógico de todos eles (Fernandes, 1989, p.31).
Assim, a escola seria uma espécie de célula da democracia, espaço político–pedagógico onde as novas gerações exercitariam as relações democráticas próprias dessa instituição, aprimorando sua participação efetiva nas decisões mais abrangentes da sociedade. Isso só seria possível, segundo Florestan, se a escola assumisse a perspectiva de comunidade educacional, se todos os seus agentes corporificassem esse sentido histórico, reconhecendo a especificidade de seu papel no interior da instituição. Nesse ponto cabe apontar as diferenças entre a defesa de uma escola voltada para uma sociedade em mudança, para o desenvolvimento, conforme defendiam os escolanovistas e o papel que Florestan Fernandes lhe atribui. Para ele, como parte do tecido social, a instituição escolar situa–se “no eixo entre o sistema de ensino, que coordena tão harmoniosamente quanto possível a interdependência e a interação produtiva do conjunto de escolas assim concebidas, e a nação, que retira de ambos a seiva de sua mudança sociocultural e de sua comunidade política.” (Fernandes, 1989, p. 31). Florestan destaca que houve, no passado, “um certo fervor no ‘culto à escola’”, que se perdeu, dando lugar ao que ele chamou de obsoletização programada que se aprofundou com a ditadura instaurada em 1964. Segundo o sociólogo, a LDB 4.024, aprovada em 1961, “representou um sério golpe no ensino público” (Fernandes, 1989, p.128) e a políti ca voltada para a educação levada a cabo pela ditadura militar, anos depois, asfixiou o sistema público de ensino. Nesse processo, além “do reforço da acumulação do capital através do ensino concebido como mercadoria” (1989, p. 36), tivemos uma profunda degradação da posição social e econômica do professor, levando ele próprio, bem como da sociedade de modo geral, ao descrédito na escola pública. Pelo menos doze dos artigos analisados apresentam a defesa de Florestan Fernandes contra o aviltamento salarial dos professores. Em momentos de greves dos professores ou de cortes orçamentários nas Universidades estaduais paulistas, ele se pronunciava por meio de sua coluna no Jornal Folha de São Paulo, de-
140 nunciando a desvalorização do ensino expressa na penúria financeira dos professores. O resultado é que chegamos “ao último degrau de uma degradação deliberada e obsoletização programada” (Fernandes, 1989, p. 134). Assim, pensar a valorização da escola à luz das contribuições de Florestan Fernandes pressupõe valorizar efetivamente os seus agentes humanos, convertendo esta instituição social numa comunidade educacional, que ofereça ao trabalhador e aos seus filhos condições de acesso aos conhecimentos elaborados e com eles encontrem o nexo e o sentido de seu papel na transformação da sociedade.
3- A Autoemancipação pedagógica Em doze dos textos analisados, Florestan Fernandes trata diretamente da questão da autoemancipação pedagógica, como tema recorrente de suas intervenções no debate nacional, A autoemancipação pedagógica da universidade e dos demais níveis de ensino, adquire maior clareza quando a colocamos em contato com alguns dos aspectos políticos da dominação burguesa que caracterizam a realidade brasileira. O avanço capitalista no Brasil se deu a reboque dos interesses imperialistas e, simultaneamente, todas as pressões direcionadas à democratização da sociedade são fortemente freadas, isso se deveu ao papel desempenhado pelas classes burguesas voltadas à: 1) preservar e fortalecer as condições econômicas, socioculturais e políticas através das quais ela pode manter–se e revigorar– se; 2) ampliar e aprofundar a incorporação estrutural e dinâmica da economia brasileira no mercado, no sistema de produção controlado pelas nações capitalistas hegemônicas; bem como: 3) preservar e alargar os controles sobre a máquina do Estado. Desse modo, a burguesia garante o atendimento aos interesses imperialistas em consonância com sua dedicação em manter as bases que conferem altas margens para exploração do trabalho, conformando um “capitalismo selvagem” (Fernandes, 2006, p. 353). Nessa dinâmica, a universidade desempenharia um elo entre os centros externos de produção de saber e as elites culturais do país. A autoemancipação estaria relacionada com um enfrentamento desse padrão, vinculando a assimilação de técnicas de produção do saber à expansão autônoma do saber original produzido internamente a fim de responder às necessidades materiais do país, bem como voltar a pedagogia universitária para promover a consciência e a transformação da realidade nacional (Fernandes, 1975). Esta visão sobre o lugar que deveria ocupar a universidade para o avanço da sociedade brasileira foi desenvolvida ao longo da
141 participação de Florestan Fernandes nos debates sobre a Reforma Universitária no período ditatorial. Nas lutas dos anos de 1980 o tema reaparece, como uma das prioridades do desafio educacional: Os acordos MEC – USAID, os decretos do primeiro governo ditatorial na esfera do ensino e outras medidas posteriores, o estabelecimento de uma rede de interdependência entre sistemas nacionais de educação, tudo isso tornou o Brasil uma nação sem autonomia e sem soberania educacionais. O que havia, em processo de consolidação, na construção de centros de ensino, de pesquisa e de aplicação, foi sutilmente desbaratado e submetido a um eficaz controle externo seletivo. Por aí se faz a transmissão da ideologia dominante das nações e classes burguesas e se obtém dos professores e educadores brasileiros, a tolerância, a submissão ou a cooperação “coloniais” a uma lavagem de cérebro sem precedentes, a uma devastação iníqua de nossas potencialidades culturais criadoras e à perda de perspectiva do que deva ser o sistema educacional de uma nação capitalista, mesmo que seja, periférica e dependente. (Fernandes, 1989, p.14).
Florestan Fernandes chama a atenção para a necessidade da constituição de soberania educacional, como condição de autonomia para o país. Essas foram palavras de abertura da 2ª Conferência Brasileira de Educação, ocorrida em 1982, que teve como tema geral: “Educação: Perspectivas na Democratização da Sociedade”. O controle sobre a educação e a produção científica apareciam como uma das preocupações daquele contexto histórico em que se pensavam os limites da política educacional da ditadura e os desafios que se colocavam nesse âmbito na luta pela redemocratização e pela criação das condições para enfrentar o subdesenvolvimento de maneira autônoma: […] Os centros imperiais têm um núcleo, uma dinâmica própria e não se voltam para as nossas necessidades de conhecimento – eles se voltam para a necessidade da sua dominação cultural, do seu profissionalismo e de sua concepção de “cosmopolitismo na ciência”. É nos imperioso escapar a essa dominação cultural. Isso, no campo da ciência, significa produzir conhecimentos básicos para nós, o que nós temos que saber? Nós vivemos nas condições especiais de um povo subdesenvolvido, subnutrido, de capitalismo dependente, que enfrenta as maiores dificuldades em termos de descolonização, de revolução nacional, de revolução democrática. É preciso usar a ciência em termos exigentes, para produzir um conhecimento de alto nível, de alta qualificação naquelas áreas que são vitais para nós; as outras, que sejam cultivadas nos “centros avançados de investigação. (Fernandes, 1989, p. 192).
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Considerações Finais Portanto, no conjunto dos textos analisados, Florestan Fernandes faz com frequência um resgate dos embates históricos em que os educadores progressistas estiveram envolvidos para mostrar seus limites, incorporando seus avanços e buscando indicar as mudanças qualitativas dos desafios presentes na década de 1980 relativos ao fortalecimento dos trabalhadores como classe: […] as tarefas do educador, que se coloque em uma posição independente e crítica, consiste em dar um salto qualitativo revolucionário para acompanhar o processo histórico desencadeado pelo novo sentido da auto–afirmação como classe dos trabalhadores. Não se trata, hoje, de reatar os laços com o passado, de retomar as campanhas de defesa da escola pública, de desenvolvimento econômico e de reformas de base da década de 60. Esse passado não está morto. Ele renasce com a revitalização de processos histórico–sociais que pareciam banidos para sempre da cena histórica. Todavia, o que se fez naquela década (e anteriormente, inclusive nas pregações e realizações dos “pioneiros da educação nova”) não tem anda que ver com as atuais exigências da situação histórica. Hoje, não se trata mais, concretamente, de colocar o cidadão no eixo da reflexão pedagógica transformadora. Atualmente o que é necessário fazer para dar uma resposta criativa e um apoio decidido à regeneração da sociedade civil, provocada primordialmente pelas classes trabalhadoras em seu movimento orgânico e espontâneo, consiste em tomar como eixo da reflexão e da ação pedagógicas a revolução social que está se desencadeando, a qual põe o operário, o trabalhador agrícola e o homem pobre – em síntese, os oprimidos – como o sujeito principal do processo educativo. (Fernandes, 1989, p. 17).
Pudemos concluir a partir da análise das fontes, que as três prioridades pedagógicas apontadas por Florestan Fernandes, quando vistas em conjunto e articuladas, podem compor a síntese de uma proposta que percebe a centralidade da escola conectada aos processos históricos. Trata–se do processo histórico que coloca a revolução democrática como desafio à sociedade brasileira e que no plano educacional é entendida como […] um processo global de transformação da sociedade e de crescente distribuição igualitária das oportunidades educacionais, a descolonização, como auto–emancipação cultural da escola, do sistema de ensino e da nação; […] Desse modo a revolução nacional conecta–se à expansão da capacidade criativa, o que impõe exigências para os diferentes níveis de ensino, incluindo a universidade e à pesquisa voltados aos interesses da coletividade. (Fernandes, 1989, p. 32).
143 Interessa notar a centralidade que Florestan Fernandes atribui à escola nesse processo de transformação, já que se essas mudanças não florescerem dentro das escolas “não farão parte das estruturas mentais dos brasileiros. […] Isso também deve ser apreendido para que os estudantes e os adultos, que recebem uma educação pluralista, saibam qual é o significado da ordem vigente, de sua reforma ou de sua negação e destruição” (Fernandes, 1989, p. 32).
Referências BARÃO, G. de O. D. As contribuições educacionais de Florestan Fernandes: o debate com a pedagogia nova e a centralidade da categoria revolução. Tese de doutorado, Unicamp, Campinas, SP, Brasil, 2008. CHAVES, A. J. F. Florestan Fernandes: um sociólogo pensando a educação (ideias educacionais de Florestan Fernandes – Década de 1940 – 1960). Tese de doutorado. PUC: SP, São Paulo, SP, Brasil, 1997. FERNANDES, F. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa Ômega, 1975. ____________. O desafio educacional. São Paulo: Cortez, 1989. ____________. Tensões na educação. Salvador: Sarah Letras, 1995. ____________. A revolução burguesa no Brasil. 5. Ed. São Paulo: Globo, 2006. LEHER, R.. Florestan Fernandes e a defesa da escola pública. In: Revista Educação e Sociedade, vol.33 nº.121 Campinas Oct./Dec, 2012 pp. 1157–1173. SANFELICE, J. L. Florestan Fernandes: um intelectual da educação. In: Revista Histedbr on–line. v. 14, n. 56, 2014. 252–265. SAVIANI, D. Florestan Fernandes e a educação. In: Revista de Estudos Avançados. vol. 10 nº.26 São Paulo Jan./Apr, 1996. pp. 71–87.
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PARTE II Movimentos Sociais e Crises Contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico
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7– As raízes da regressão no mundo árabe Marcos Del Roio
I– Introdução Em 2011, na Tunísia, quando um jovem se entregou às chamas em protesto contra a situação social do seu País, uma onda de manifestações teve início e muitos analistas julgaram que havia começado ali um movimento geral de democratização do mundo árabe. Essa leitura – e hoje parece não haver mais dúvidas –– foi um equívoco sério na análise da correlação de forças, ainda que a necessidade da revolução democrática seja sensível. Na verdade, os povos da região identificada como Oriente Médio parecem mais ter encontro marcado com a tragédia em cada encruzilhada da História e essa, iniciada em 2011, é apenas mais uma. Essa sensação é fácil de ser assimilada para quem acompanha a história recente e a política cotidiana que envolve aquela realidade contraditória até o limite. No entanto, a compreensão dessa situação exige a lembrança de um processo histórico que acumula séculos.
II– O domínio turco A avassaladora expansão territorial dos turcos em meados do século XV culminou com o fim do Império Bizantino (que durava já mil anos). A fuga do clero cristão ortodoxo e parte da nobreza greco–bizantina para a Rússia traria repercussões geopolíticas no futuro, mas não ainda. Nesse fim de século XV e século XVI, os turcos forjaram um império nucleado no entroncamento de três continentes e de três mares, de modo que o comércio no mediterrâneo e o comércio da Ásia passava necessariamente por portos com domínio turco. O Império tinha o Irã na sua fronteira oriental, o Marrocos no Ocidente norte-africano, a Áustria na Europa balcânica, além da Espanha e Veneza na disputa pelo mar mediterrâneo. O Império era nucleado na capital Istambul, mas havia algumas cidades de importância basilar, como Alepo, Damasco, Beirute, Bagdá e Cairo. Além dessas Jerusalém, Meca, Medina tinham clara importância religiosa. As cidades mais distantes tinham um grau maior de autonomia,
148 como era o caso de Argel, Túnis e Trípoli na África do Norte. Em direção ao Maghreb e ao Oceano Índico o poder dos turcos otomanos era mais tênue, ainda que compusesse também a zona de influência. Tratava–se de um império multiétnico orientado pelo islamismo, mas que contava com significativas minorias de cristãos e judeus. Baseada na produção agrícola e manufatureira, no comércio e no poder militar, a Turquia nos séculos XVI e XVII apareceu para a Europa como grave ameaça. O século XVIII pode ser visto como a maturidade do Império, mas a situação geopolítica mudava com a ascensão evidente do Império Russo e de Inglaterra e França. As revoluções burguesas de fins do século XVIII no Ocidente e o apogeu do Império Russo no Oriente colocaram problemas para os quais a Turquia não se mostrou preparada.
III– O declínio imperial O desenvolvimento do capitalismo, com suas forças produtivas, com sua ciência, com sua força militar, com sua ideologia, começou a corroer o Império dos turcos otomanos. O levante grego de 1821 recebeu apoio de todo Ocidente, pois era a Grécia vista como berço histórico da “civilização ocidental”. A independência da Grécia estimulou o levante dos sérvios, que conseguiram a autonomia em 1830. A Sérvia passaria aos poucos a ser o polo de aglutinação dos povos eslavos do Sul e uma porta de saída possível da Rússia rumo ao Mediterrâneo. A Rússia já pressionava a Turquia pelo Mar Negro e havia incorporado a região da Crimeia. Na guerra entre turcos e russos de 1877– 1878, o Império turco teve que recuar drasticamente, deixando para trás o que viriam a ser a Bulgária e a Romênia, além de uma Servia plenamente independente. Nas guerras balcânicas de 1912–1913, a Turquia foi derrotada novamente, de modo a restar–lhe somente Istambul, a sua capital, em território europeu. Na África do Norte a França, enfrentando feroz resistência, se apoderou de Argel a partir de 1830. A Tunísia, por sua vez foi ocupada em 1881. Sempre em nome do livre–comércio os ingleses foram fortalecendo os seus interesses ao redor e dentro do Império turco, sempre com vistas a mercados e controle das vias de comércio (que eram a vértebra do próprio Império turco). Decisivo para os ingleses era o controle do Cairo e do rio Nilo, além do litoral Sul da península arábica. Na medida em que o Egito conseguia autonomia frente aos turcos a sua dependência se transferia para a Inglaterra, que praticamente se apoderou desse território em 1882. Quando, em 1885,o Congresso de Berlim, redesenhou o mapa da África,
149 para a Turquia restava apenas Trípoli, que lhe foi tomada pela Itália em 1911, ao se aproveitar da crise que estava para explodir nos Balcãs. Note– se como o colonialismo europeu se apossa de partes do império turco a partir das cidades mais importantes e das quais se originaria a atual multiplicidade de Estados. Difícil identificar a natureza da formação social turco otomana, mas podem–se perceber algumas características de similaridade com o Império russo e com o Império austro–húngaro: exploração do trabalho na base da servidão e até da escravidão, sociedade marcadamente hierárquica, poder nobiliárquico e clerical, força militar, caráter multiétnico e importância do comércio. Outra característica que aproxima esses Impérios foi a dificuldade de se adequarem aos novos tempos do desenvolvimento capitalista, de modo a todos eles entrarem em colapso nos desdobramentos da Guerra de 1914–1918, depois de séculos de domínio imperial. Não que não tenha havido o esforço de compreensão dos motivos do declínio e propostas para uma retomada do poder otomano. A questão é que o debate se ateve ao interior do islamismo. Muitos defenderam a necessidade de se retomar a pureza da origem, de se fazer uma reforma moral intelectual que resgatasse as origens, mas adequadas aos novos tempos. Ou seja, as questões candentes giravam em torno da ideologia religiosa. O islamismo que sempre predominara no Império turco foi o sunismo, mas esse se desdobrava em vertentes diferentes. Havia também uma minoria xiita na Mesopotâmia e na região de Damasco. No entanto, junto com canhões e comércio, do Ocidente europeu chegava também a ideologia burguesa do Estado nacional e do liberalismo, do pensamento laico. Essa ideologia burguesa contribuiu para a desintegração do Império otomano e para o surgimento da ideia de nação em uma franja intelectual dentro da incrível diversidade de povos e culturas que compunha o Estado islâmico. De imediato, porém, a política imperialista das potências europeias entendeu submeter aqueles povos ao seu domínio. De fato, ao iniciar–se o século XX, o Império estava constituído pelos turcos e pelos árabes da península arábica, com consistentes minorias cristãs e judias. A África do Norte e os Balcãs estavam irreversivelmente perdidos. O esforço para recompor as Forças Armadas e o próprio Estado possibilitou a criação de um movimento político-militar intelectual inspirado na filosofia positivista, que ficou conhecido como dos “jovens turcos”. O levante de 1908 fracassou, mas a lição politica e ideológica se fez sentir. De certo modo foi o declínio do Império turco que gerou as condições para a eclosão da guerra imperialista e o desenlace dos conflitos internos que corroíam o Estado islâmico.
150 As guerras balcânicas de 1912 e 1913 resultaram em ulterior recuo e enfraquecimento da Turquia e no fortalecimento da Sérvia. A pretensão da Sérvia de unificar os povos eslavos do Sul colocou esse reino em confronto com a Áustria–Hungria, com quem veio a se aliar o seu inimigo histórico, o Império turco, agora esfrangalhado. O conflito entre a Sérvia e a Áustria–Hungria generalizou a guerra, que se tornou “guerra mundial” de 1914 a 1918.
IV – Os árabes e o domínio do imperialismo europeu A derrota militar da Turquia, que havia se aliado com os impérios alemão e austro–húngaro, se concluiu com a sua desintegração final, assim como acabaram os impérios alemão, austro–húngaro e russo. A guerra, em vez de superar os conflitos internos no Império turco e faze–lo recuperar pelo menos algumas das perdas precedentes, só levou ao desenlace final. Perdida a guerra, a Turquia foi humilhada e um levante militar e popular, derrubou o Sultanato e instaurou a República da Turquia. Na guerra contra a Turquia, França e Inglaterra acabaram por envolver os povos árabes na luta. Desde 1916, aliados aos ingleses, os árabes lutavam contra a Turquia e puderam imaginar a situação de um Estado árabe independente que se estabelecesse no conjunto da península arábica. Também os judeus passavam a empreender um movimento de conquista de um Estado próprio. A Inglaterra estimulava ilusões e falava de compromissos que depois não assumiria. As antigas províncias otomanas da Ásia foram transformadas em protetorados de França e Inglaterra. Com a França ficaram a Síria e o Líbano e com a Inglaterra ficaram a Palestina, a Jordânia e o Iraque. O resto da península, com grau maior ou menor de autonomia, acabou tendo que suportar a presença britânica, a qual encaminhou por toda a parte a formação de reinos feudais vassalos. Na África do Norte, a França mantinha o controle firme de Marrocos, Argélia e Tunísia, a Itália ocupava a Líbia e o Egito continuou a carregar o peso do controle inglês. Os grupos políticos árabes procuravam falar em nome da nação e da tradição islâmica, mas não tinham força ou disposição para afrontar o colonialismo. O que se procurava fazer era apenas negociar condições melhores para os interesses locais frente o imperialismo. Já nos anos 20 era na Tunísia e no Egito onde se apresentavam forças politicas mais organizadas. O Destur foi ao fim das contas o movimento que fundou a Tunísia moderna e se manteve no poder por muitas décadas. No Egito o Wafd e a Fraternidade Muçulmana já existiam.
151 O Egito declarou–se uma monarquia em 1922, mas apenas como modo da ocupação militar britânica parecer menos opressiva. Na península arábica a disputa pela ocupação dos espaços deixados pela Turquia continuou. O reino iemita se reestabeleceu em 1918, e, em 1932, produto da fusão dos reinos de Hejaz e Nedjed, surge a Arábia Saudita. O resto da península continua com controle direto dos ingleses, mesmo o Iraque, que já era formalmente um reino desde 1921, e a Jordânia, desde 1923, ambos com fronteiras desenhadas pelos ingleses e com reis da família Hachemita, empossados pelos ingleses. A Palestina recebe um afluxo crescente de migrantes judeus originados da Europa e enfrenta o risco da partilha. O controle dessa região sempre fora importante por conta do comércio, mas agora essa importância ficava acrescida pela presença do petróleo, fonte de energia sempre mais indispensável na indústria. A cobiça da Alemanha sobre essa região era declarada desde fins do século XIX, mas as dificuldades eram demasiadamente grandes. A derrota do aliado turco em 1918 redundou na ocupação franco–britânica da parte árabe do extinto Império, piorando a situação. O interesse da Itália na construção de um império que estivesse presente no mediterrâneo oriental e no mar vermelho representava uma ameaça aos interesses ingleses, mas não tão significativa. De fato, a Itália ingressou mais fundo no deserto líbico e conquistou a Etiópia, mas ainda faltava muito para encostar–se aos territórios controlados pelos ingleses. No entanto, a eclosão da guerra na Europa novamente em 1939, fez da África do Norte e Oriente Médio um campo de batalha. Ingleses e alemães travaram uma batalha memorável, mas para os povos árabes, além da dor, a guerra trazia a possibilidade de ganhar a independência diante das potências imperialistas conflagradas. A derrota da Inglaterra poderia ter a independência como implicação, de onde as simpatias que a Alemanha chegou a despertar. Por outro lado era de se preocupar com o aumento da corrente migratória judaica em direção à Palestina. As colônias francesas se envolveram mais fundo na guerra com presença de combatentes nos campos europeus. Tendo sofrido do fogo alemão e também do preconceito francês, os argelinos, que pensavam renegociar as suas relações coma França, passada a guerra se decidiram a lutar pela efetiva independência. O empenho dos intelectuais na busca da identidade nacional havia avançado de maneira mais ou menos intensa, conforme as diversas regiões, desde um Egito que buscava se encontrar numa síntese que envolvesse o glorioso passado egípcio, a época árabe islâmica e as influências europeias, até uma Arábia Saudita, que se organizara em torno da adoção rigorosa da lei islâmica.
152 O mundo árabe preparava–se para a revolução burguesa, para a interiorização do capitalismo. O passo inicial seria conseguir uma efetiva independência nacional que redefinisse as relações com os centros imperialistas. O ambiente favorável criado no final da chamada II guerra mundial estimulou os movimentos pela independência, os quais foram reprimidos com grande força nas zonas francesas, cuja metrópole entendia não abrir mão de suas colônias no norte da África. No Oriente médio, no entanto, a França havia já dividido a Síria ao conceder a independência a um Líbano ampliado em relação à antiga província otomana. Tratava–se de um Estado feito a caráter para garantir a instabilidade política, com suas instituições definidas por crenças religiosas. A Síria, independente desde 1946, nunca aceitou a divisão do seu território e a França só desocupou o Líbano em 1947. Nas zonas inglesas o empenho estava, desde os anos 20, na organização de monarquias feudais vinculadas ao império britânico, projeto que não deixou de ser bem-sucedido, com a criação dos reinos da Arábia Saudita, Jordânia e Iraque, além de reinos ou emirados em toda a orla da península arábica. A questão mais complexa estava no que fazer em relação à antiga província otomana da Palestina.
V– a migração judaica e a entidade sionista. Desde fins do século XIX havia começado uma corrente migratória de judeus em direção à Palestina estimulada pela ideia de construir um Estado nacional. O nacionalismo se difundia na Europa e alhures como ideologia burguesa da era imperialista e também uma fração da intelectualidade de origem judaica abraçou–a para fundar o movimento sionista. A declaração oficial da Grã–Bretanha, de 1917, de reconhecer a legitimidade dessa reivindicação, plantou o problema em definitivo a partir de 1923, quando a ocupação do território palestino pelos ingleses se concretizou. Com a perseguição aos judeus em amplas partes da Europa, em particular na Alemanha, o fluxo migratório tendeu a engrossar. Em contraposição à ocupação inglesa e ao fluxo migratório por ela favorecida, a resistência palestina começou também a se manifestar, como no levante popular de 1936. Os embrionários Estados árabes, que nasciam com o influxo pesado do imperialismo anglo–francês, se manifestaram em uníssono contra a criação de uma entidade estatal judaica na Palestina, com o óbvio e simples argumento de que se tratava de migrantes recém– chegados. Esses migrantes, todavia eram dotados de recursos suficientes para comprar terras e casas para se instalarem desde já nas faixas mais al-
153 tas da hierarquia social, além de terem, em geral, uma qualificação cultural e profissional melhor, trazida da Europa. Claro que o genocídio contra os judeus (e outros povos) na Europa gerou uma onda de simpatia que em muito contribuiu para a criação de uma entidade sionista na Palestina. De fato, se a questão era de se livrar dos judeus, até mesmo a Alemanha nazista ajudou na migração para a Palestina (desde que pago um bom preço). Os judeus eram considerados desde há muitos séculos como uma alteridade interna perigosa no Ocidente cristão e por isso vítimas de marginalização e de perseguições. A “solução final” do nazismo foi tragicamente a garantia para a criação da entidade sionista, o Estado judeu. O mundo muçulmano (turcos, árabes, persas) para o Ocidente cristão tinha o significado de uma alteridade negativa externa ameaçadora desde os Balcãs até a península ibérica, de acordo com momentos históricos diferentes. A partir do século XIX essa zona passou a ser objeto de conquista por parte de um Ocidente cristão liberal imperialista. O judeu tendia a se diluir dentro do Estado liberal burguês, mas não nos Estados autocráticos da Europa central e oriental. Por outro lado, no mundo islâmico prevalecia o princípio da tolerância religiosa e também das ocupações voltadas ao comércio e ao estudo científico, de modo que os judeus sempre tiveram o seu espaço de expressão econômica e cultural. O que não se poderia tolerar era um fluxo de colonizadores europeus, que chegavam a número significativo à Palestina no momento mesmo em que se aguardava a retirada das potências imperialistas que ocupavam a região desde o fim do Império turco. Os palestinos e os Estados árabes entendiam que seria razoável a existência de um Estado binacional, mas a influência judaica na politica e economia dos EUA contribuiu decididamente para que prevalecesse a ideia de partilha do território em dois estados: uma partilha tremendamente desigual, bem se pode dizer. De fato, o Estado judeu nascia com 55% do território e 700 mil habitantes, enquanto que o Estado palestino aparecia com 45% do território e 1,4 milhões de habitantes. Mais grave ainda é que prevalecia a ideia da separação étnico–religiosa tão estranha aos árabes e muçulmanos. Essa proposta contou com a aprovação dos vencedores da guerra contra o nazifascismo e punia eventuais simpatias de setores árabes anticolonialistas pela Alemanha, ao mesmo tempo em que se fechavam os olhos à política sionista de expulsão dos palestinos de suas terras com métodos que lembravam exatamente o chauvinismo fascista. A guerra civil e o envolvimento dos novos Estados árabes na contenda foram inevitáveis. Porem, o apoio unanime das potencias liberal imperialistas e também da URSS, inclusive com armamento, decidiu o confli-
154 to em favor do novo Estado sionista, que ampliou o seu território. O Egito ocupou a faixa de Gaza e a Jordânia ocupou a Cisjordânia. Ficou claro desde logo que regimes políticos arcaicos nascidos com a proteção do imperialismo anglo–francês, exatamente com o fito de preservar a situação colonial, não poderiam fazer frente ao Estado sionista nascido já tendo o respaldo internacional politico e militar e também a tradição cultural do liberalismo do Ocidente, o que fez de Israel uma democracia liberal burguesa para os judeus, mas fascista para os palestinos. A vitória politica e militar permitiu a instauração da entidade sionista fortemente militarizada e já ampliada, em abril de 1948. Note–se que em 1949 na África do Sul, outra ex–colônia inglesa, aparecia um regime também de apartamento étnico cultural. Ambos, ao fim das contas, foram eficientes para o desenvolvimento capitalista, mais do que qualquer outro na África e no Oriente médio. A Turquia havia se integrado ao sistema militar do Ocidente liberal imperialista em 1949, já iniciada a chamada guerra fria, ou bipartição do mundo entre dois impérios, Ocidente e Oriente.
VI– A revolução burguesa A catástrofe que se abateu sobre o povo palestino fez ver a vários setores sociais que só uma revolução nacional burguesa seria capaz de adequar os Estados árabes às novas condições do mundo, com a presença de forte Estado judeu fundado por migrantes, o declínio do imperialismo anglo–francês, a guerra fria entre EUA e URSS e a transformação da região em zona volátil de confronto. Uma revolução democrática e a integração regional seria o caminho para elevar os povos árabes a um novo padrão de civilização e desenvolvimento. No entanto, as forças intelectuais capazes de refletirem essa necessidade eram insuficientes e com limitada representatividade frente as massas populares do campo e das periferias urbanas. Manifestações contra a monarquia começaram no Cairo já em 1948 e isso instigou parte do Exército, única força real capaz de levar o País na trilha de uma revolução burguesa (tal como ocorrera na Turquia). A queda da monarquia, em 1952, abriu uma fase politica voltada à industrialização e a reforma agrária. O Egito de Nasser passava a ser um exemplo dentro do mundo árabe para aqueles que se opunham às monarquias feudais. A nacionalização do canal de Suez pelo Egito, em 1956, redundou no ataque de Inglaterra, França e Israel contra o Egito. A pressão de EUA e URSS fez com que Israel recuasse do Sinai, mas as implicações do confli-
155 to foram de grande monta, pois que Inglaterra e França, na prática, se retiravam das contendas do Oriente médio e deixavam campo livre para os principais atores da guerra fria. Israel passava a ser sempre mais um enclave vinculado à politica imperial dos EUA e a URSS tentava contribuir com os Estados árabes de perfil “nacionalista”. De modo bastante tumultuado esse movimento alcançou a Síria e o Iraque, locais nos quais o partido Baath alcançou o poder com o objetivo de industrializar o País e de integrar a nação árabe em construção. Houve tentativas de integração política entre Egito e Síria e entre Iraque e Jordânia, ambas fracassadas. Mesmo as colônias francesas do norte da África já não eram mais possíveis de serem retidas. Em 1956 a Tunísia torna–se independente, mas a tentativa de instaurar uma monarquia fracassa e o partido Neo Destur, de perfil “nacionalista”, com Buorguiba à frente, assume o poder. Mas no Marrocos, também independente em 1956, a instauração da monarquia foi bem-sucedida. A mais importante colônia francesa, no entanto, era a Argélia, onde desde 1954 a Frente de Libertação Nacional travava a guerra anticolonial. Em 1962, a FLN assume o poder com um projeto nacional popular. Houve reforma agrária e nacionalizações de pontos estratégicos da economia. Em junho de 1967, Israel lança um ataque preventivo contra todos os países fronteiriços. O resultado militar foi espetacular e resultou na ocupação de todo o território da Palestina e de partes dos territórios de Egito, Síria e Líbano.A derrota gera convulsões políticas nos Países vizinhos e exacerba o sentimento antissionista. Na Síria, em 1970, Hafez Assad assume o governo e na Líbia, o Cel. Muamar Kadhafi derruba a monarquia feudal instalada em 1952 com as bênçãos da Inglaterra. Nesse ano ainda uma democracia popular, dirigida pela FLN, foi instaurada no Iêmen do Sul. No início dos anos 70 talvez possa ser dito que a revolução burguesa caminhava no mundo árabe, mas ao modo de uma revolução pelo alto, nas quais Estado e exército, em particular, desempenhavam papel essencial. Os únicos casos de revolução popular talvez tenham sido a Argélia e o Iêmen do Sul. Importante notar que nesses Países aqui considerados (Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Síria, Iraque, Iêmen do Sul) a questão religiosa era inteiramente secundária e prevalecia o nacionalismo pan–arábico, uma ideologia laica, própria de uma revolução burguesa. A península arábica – com exceção do Iêmen do Sul – continuava com tranquilo controle de reis e emires A guerra árabe contra a entidade sionista em outubro de 1973 talvez tenha sido o apogeu das forças sociais e politicas do mundo árabe que
156 buscavam a autonomia política e cultural da região frente ao imperialismo. Em caso de vitória, as forças árabes coligadas poderiam se embrenhar para alguma forma de unidade e seria estabelecido um Estado palestino, dando corpo a uma revolução burguesa que poderia contar com o protagonismo das massas e a integração regional. Mas, essa guerra, ao cabo de três semanas, levou Israel à vitória e à conquista de todo o território da Pa lestina e territórios do Egito, Síria e Líbano. Pode–se então dizer que a revolução burguesa se viu truncada na maior parte do mundo árabe, enquanto que em Israel o predomínio do poder politico passou às mãos de forças solidamente conservadoras. Começava a era neoliberal ou de crise estrutural do capitalismo a nível global e o mundo árabe absorveu essa crise de modo particularmente regressivo.
VII– O início da regressão Em 1975 tem início a guerra civil no Líbano, que pela primeira vez envolveu grupos sociais identificados pelo credo religioso, o que contribuía para ocultar os interesses materiais e de classe. As instituições políticas libanesas previam a partilha do poder entre maronitas, sunitas e xiitas, mas o crescimento demográfico dos xiitas e a forçada migração palestina romperam o equilíbrio de poder. O apoio sionista aos maronitas convergiu com a disposição da Síria de evitar uma revolução popular num território que julgava ter–lhe sido arrancado pela ação imperialista francesa. O resultado é que a Síria ocupou parte do Líbano e passou a manipular as suas instituições políticas. A invasão sionista de 1982 arrasou a resistência palestina sediada em Beirute e a retirada ocorreu somente três anos depois. Quando a “paz” foi restabelecida o princípio da partição do poder entre comunidades religiosas foi mantido. Nesse interim, porém, havia surgido o Hezbollah, agrupamento social e político-militar libanês xiita, que veio a ocupar lugar importante na resistência antissionista. A OLP – Organização pela Libertação da Palestina, que já havia siso expulsa da Jordânia, desta vez teve que migrar para a Tunísia. Enquanto se desenrolava a tragédia libanesa e palestina, dois acontecimentos importantes indicavam a rota subsequente da politica internacional no Norte da África e Oriente Médio. Em 1978 o Egito capitulava vergonhosamente frente a Israel e, com as bênçãos dos EUA, assina tratado de paz com os sionistas em troca da devolução da península do Sinai. O caminho é seguido pela Jordânia. A revolução nacional burguesa egípcia e árabe estava sepultada.
157 Pouco tempo depois, no Irã, eclode uma revolução democrática que colocou amplas massas em movimento. No entanto, após cerca de dois anos de disputa as forças laicas, democráticas e de esquerda foram inapelavelmente batidas pela direção política e pelo projeto conduzido pelo clero xiita. Se a capitulação do Egito fora uma vitória americana sionista, a revolução iraniana foi uma derrota bastante séria. Mas uma nova fase se iniciava para o mundo árabe (e islâmico). Essa nova fase se caracterizou pelo enfraquecimento da presença soviética, pelo enfraquecimento político das forças nacionais burguesas de inspiração ideológica europeia e, pelo contrário, pelo fortalecimento da presença americana, pelo fortalecimento do sionismo e pelo fortalecimento do islamismo e das politicas neoliberais. De uma maneira geral, o agravamento da situação material das massas e a crise da práxis social das esquerdas fizeram com que a religião islâmica –– e as políticas nela respaldada –– parecesse ser a única solução viável. O fato é que o mundo árabe adentrava a uma fase regressiva ao ter que enfrentar a globalização imperialista. A guerra entre Iraque e Irã (1980–1988), estimulada pelos EUA, foi devastadora para ambos os Países em termos de destruição humana e material, tendo se concluído por exaustão e sem vencedores. Nessa guerra a Síria se apartou do Iraque – que também era governado pelo partido Baath – e se aproximou do Iran em razão das alianças cerzidas com os xiitas no Líbano. Na ilegalidade em diversos Países cresce e se difunde a Irmandade Muçulmana, organização nascida no Egito em 1928. O crescimento ocorre por ter essa organização difundido um trabalho de assistência social que o Estado não cumpria, até por estar vinculado à orientação neoliberal ditada pelo imperialismo. Outras organizações sunitas surgem em vario lugares, inclusive na resistência palestina. O levante palestino de 1987 foi reprimido com a violência que é intrínseca a entidade sionista e custou expulsões e expropriações de casas e terras. A desintegração da URSS entre 1989–1991 representa um ulterior golpe nas forças árabes de oposição ao imperialismo americano sionista. Israel recebe cerca de um milhão de migrantes vindos da URSS e dá andamento ao seu projeto histórico de fazer de toda a terra palestina um Estado judeu. Nesse projeto é essencial a batalha demográfica, que Israel não tem como vencer e por isso busca na guerra a solução final, a expulsão do conjunto do povo palestino de suas terras. A Líbia, no decorrer dos anos 80 continuou bastante ativa na luta antissionista e anti–imperialista, ainda que com métodos bem discutíveis. Isso custou à Líbia o bombardeio americano de 1986 nas cidades de Trípoli e Benghazi. A Tunísia e o Egito se estagnavam com o peso de Ditadu-
158 ras corruptas, que tornavam viáveis o discurso e a prática de uma oposição islamista. A Argélia, por sua vez, desde fins dos anos 70 se aproximava de França e EUA abandonando o projeto nacional popular. Em 1989, com influência dos acontecimentos da Europa oriental uma reforma institucional possibilita a existência legal de outros partidos políticos que não a FLN. Foi a brecha para que a Frente Islâmica de Salvação vencesse as eleições de 1990 e 1991 e provocasse a reação do Exército, que instaurou uma ditadura militar e originou um largo período de alta instabilidade. Relativa estabilidade volta a prevalecer nos anos 2000, com o retorno da FLN ao governo, ainda que o cerco aos islamistas continuasse apertado.
VIII– O aprofundamento da regressão O fim do socialismo de Estado na URSS e na Europa oriental teve implicações sérias no mundo todo. Naqueles anos inicias da década de noventa do século XX tudo levava a crer que se realizava enfim o projeto histórico de um império universal orientado pelos princípios do liberalismo e conduzido pelos EUA. Não eram muitos os Países a se oporem abertamente a esse desígnio imperial, pois a ameaça de retaliação era bastante grande, ainda que fantasiada de “guerra humanitária”. A devastação da Iugoslávia seria um bom exemplo do desenho desejado pelo império: o enfraquecimento ou mesmo a fragmentação dos Estados hostis. A formação da União Europeia, em 1992, contribuiu para que Países desse continente voltassem a almejar algum protagonismo no mundo árabe. O Iraque, em sério erro de avaliação, entendeu que a crise do socialismo de Estado e a suspensão da guerra fria, além do recente apoio americano que obtivera na guerra contra o Irã, tornaria possível a incorporação do Kuwait ao seu território. Essa ação já fora tentada em 1961, mas, naquela ocasião, as tropas inglesas fizeram os iraquianos recuarem. A ocupação de 1990 gerou amplo movimento politico internacional de repudio, coordenado pelos EUA e resultou na chamada guerra do Golfo. O Iraque foi obrigado de novo a recuar e a partir dai sofreu um cerco comercial devastador que causou a morte por doença e desnutrição de cerca de 5% da população, principalmente crianças. Ainda em 1990, o Iêmen do Sul foi incorporado pelo Norte, mas a unificação do País ocorreu com a ditadura militar que então vigia. A crescente influência islamista induziu o regime a incorporar a Sharia na legislação nacional. Numa situação internacional fortemente negativa as revoluções burguesas no mundo árabe viram–se truncadas pela renovada ofensiva
159 imperialista. O resultado foi a derrota das forças nacionaisburguesas ou nacional populares e o fortalecimento de forças islamistas de variada tintura. A maior parte do mundo árabe ficara refém da economia do petróleo e do militarismo, o que alimentava e ainda alimenta a crise social permanente. À parte Líbia, Iraque, Síria e Líbano, todo o mundo árabe estava dominado por ditaduras militares e por reinos feudais submetidos aos EUA. Num cenário como este também a resistência palestina encarnada na OLP decidiu encontrar alguma forma de acomodação com a entidade sionista e tentou encontrar uma solução pela via da negociação mediada pelos EUA. A virtual capitulação favoreceu os interesses da burguesia mercantil palestina e criou uma anódina Autoridade Nacional Palestina. No entanto, o projeto sionista nunca deixou de ser a anexação completa de todo o território palestino, das colinas de Golã, do sul do Líbano. De fato, nos sonhos mais delirantes a ideia seria a de fazer um domínio que se estendesse do Nilo ao Eufrates, como se não existissem os povos árabes. Em 2001, os atentados ocorridos nos EUA ofereceram a justificativa para ataques militares contra Estados hostis. Na verdade, depois da revolução xiita no Iran, de modo crescente, o islamismo passa a ser observado como um perigo para o domínio imperial, até pela postura de repúdio ao Ocidente que assumira. O Estado islâmico instaurado no Afeganistão foi a vítima inicial do ataque das forças da OTAN comandadas pelos EUA. Os Talibãs foram derrubados do poder, mas a guerrilha persiste até hoje e a crise se espalhou para o Paquistão. Certo que o objetivo real dessa luta é o controle das fontes de gás natural que perpassam o Afeganistão. Passados dois anos, em 2003, depois de intensa e mentirosa campanha midiática que denunciava o Iraque por posse de armas químicas, tinha inicio outra longa guerra. Essas armas realmente existiram, foram fornecidas pelos EUA na época da guerra contra o Irã, mas haviam sido destruídas havia muito tempo. O festival de mentiras fez o seu efeito e os EUA conseguiram autorização da ONU para devastar de uma vez o Iraque e se apropriar do seu petróleo. Ocupados o Afeganistão e o Iraque, o objetivo estratégico de cercar o Irã estaria cumprido. As forças armadas do Iraque não puderam ser páreo para a alta tecnologia militar empregada pelos EUA, ainda que parte dos invasores fosse de mercenários. Derrotado e dissolvido o exército e a guarda republicana, a resistência passou para a forma de guerrilha. Mas logo a religião veio a prevalecer para expressar interesses de diferentes grupos sociais. O Iraque se dividiu em três partes e nunca mais conseguiu se configurar novamente como um Estado nacional unificado. No entanto, o objetivo dos EUA foi apenas parcialmente alcançado, pois os xiitas que ocuparam o po-
160 der nunca se declararam inimigos do Irã. Até hoje a violência cotidiana impera num País dividido e tomado pela miséria. A tentativa sionista de resolver o problema do Líbano, que enfim era a presença política e militar do Hezbollah, aliado da Síria e do Iran, na vida daquele País, fracassou estrepitosamente em 2006, quando a invasão foi rechaçada. As negociações entre Israel e ANP se encaminhavam para uma completa capitulação dos palestinos frente a Israel, mas as negociações não chegaram a termo. De fato o que acontece é a divisão do movimento nacional palestino entre a OLP e o Hamas, grupo sunita fundado em 1987 e com grande penetração em Gaza.
VIII– A crise capitalista e a tentativa democrática falhada. Em 2008 eclode mais um capítulo da crise estrutural do capital e o mundo árabe foi afetado de modo perverso por conta da sua dependência da exportação do petróleo. A situação social se torna mais grave e regimes políticos que duravam décadas atingem um ponto alto de desgaste. Na Tunísia tem início uma crise politica em 2011, que se difunde e vem a ser chamada pela mídia de “primavera árabe”. Havia de fato uma esperança de que uma revolução democrática estivesse para eclodir no mundo árabe. Em janeiro de 2011 a autoimolação de um jovem tunisino desencadeia a chamada “primavera árabe”, mas o que parecia ser o início de um processo de democratização do mundo árabe logo se mostrou a insurgência regressiva do islamismo sunita. Um levante popular provoca a fuga do ditador Ben Ali para a Arábia Saudita e um governo provisório se encarrega da dissolução da polícia politica e do antigo partido de governo, além da convocação de uma assembleia constituinte. As eleições mostram a força dos islamistas, que, no entanto, aparecem divididos. O setor que aceita princípios liberais, organizado no partido Renascença se alia ao Congresso pela República e o Ettakatol. A oposição salafadista insiste na proposição de um Estado Islâmico, mas é reprimida. De todo modo, a tensão entre islamistas (em geral) e forças democráticas e de esquerda continuam acirradas. O levante em Túnis estimulou a gigantesca manifestação no Cairo contra a ditadura de Mubarak e do Partido Nacional Democrático. Entre 25 de janeiro e 11 de fevereiro as manifestações se sucedem com afluência da juventude, em particular, com a presença de forças democráticas e de esquerda e também de islamistas. À renúncia de Mubarak se sucede a tomada do poder diretamente pelo comando das Forças Armadas, que dissolve o aparato policial de Mubarak e o PND, além de se compromissar
161 com a convocação de uma assembleia constituinte. A Irmandade Muçulmana se apresenta como Partido da Liberdade e Justiça, como islamistas liberais. Os Salafadistas, no entanto, desencadeiam a perseguição aos cristãos coptas e colocam a questão da religião no cerne da luta política. Quando ocorrem as eleições gerais, o resultado aponta ampla maioria dos islamistas “moderados” e boa representação dos salafadistas. As forças democráticas e de esquerda se apresentam divididas e sofrem séria derrota. A pressão pela efetivação de um Estado Islâmico era sempre mais forte. Com o andamento do processo as forças islâmicas se consolidam, com o PLJ elegendo o presidente e os salafadistas agindo por meio da violência. Tenta–se a submissão do poder militar e a desarticulação das correntes laicas. O Egito se aproxima da Arábia Saudita, da Turquia e das correntes politicas sunitas de todos os Países árabes. Na discussão sobre a elaboração da nova Constituição as divergências se aguçam. O risco da instauração do Estado Islâmico, a politica econômica neoliberal e a nova colocação internacional do Egito reagruparam as forças democráticas e de esquerda, que voltaram massivamente às ruas, até que o Exército decidiu–se pelo golpe militar e a perseguição aos islamistas. O equilíbrio de forças na vida social do País garante a permanência do Exército no governo do Estado e dificulta a instauração da democracia no Egito. Quando, em janeiro / fevereiro de 2011, amplas massas se atiraram às ruas das cidades tunisinas e egípcias, muito imaginaram que uma fase de revoluções democráticas se iniciava no mundo árabe. O que se percebe hoje, com clareza maior, é que não se contava com a intervenção imperialista e com a capacidade do islamismo sunita cavalgar o movimento social com forte respaldo da Arábia Saudita e do Catar. Mas naquele começo de ano as manifestações se espalharam pelo Marrocos, Argélia, Jordânia, Síria, Iêmen, Bahrein e mesmo Israel e Turquia. As motivações e as forças em campo não eram iguais, por suposto, mas todas reivindicavam democracia e direitos. No Marrocos, Argélia, Jordânia, Israel, o poder político vigente conseguiu neutralizar a mobilização social em troca de algumas concessões e promessas de reformas superficiais. No Bahrein o levante popular foi desencadeado pelo proletariado xiita contra a dominação sunita, mas a intervenção militar da Arábia Saudita encerrou a rebelião no sangue. Outras regiões, no entanto, são mais sensíveis do ponto de vista estratégico, como já foi visto. Governado desde 1990 por Ali Saleh e o seu partido, no Iêmen a revolta se inicia com a juventude estudantil, mas as forças democráticas e de esquerda são muito frágeis e a crise politica leva apenas a renúncia do presidente e a troca pelo vice–presidente. Forças is-
162 lamistas desencadeiam a ofensiva, o que obriga a intervenção militar dos EUA. Nesse caso houve apenas a fragilização do Estado e o aguçamento da crise social, com extensão da miséria, da fome, da doença. O Iêmen esta submetido a intervenção saudita, que respalda os sunitas na luta contra os xiitas, respaldado por sua vez, pelo Iran. Outro caso notório de intervenção imperialista aliada ao islamismo sunita centrado na Arábia Saudita foi a Líbia. Esse País tentava uma aproximação com a Europa dede 1993, em particular com a Itália (seu antigo poder colonizador), a fim de obter um canal alternativo de escoamento do petróleo e também de servir de ponte em direção ao coração da África. Os recursos da Líbia alimentavam muitos programas sociais em vários Países africanos o que poderia facilitar o seu papel de ponte. Essa situação não poderia agradar as antigas potências colonialistas, Inglaterra e França, que aproveitaram a manifestação regionalista da cidade de Benghazi contra o governo de Kadafi para concretizar a intervenção. Com apoio dos EUA e abstenção de Rússia e China, a Líbia foi envolvida pela guerra tribal e pela intervenção imperialista, auxiliada por milhares de militantes sunitas vindos de outras partes, como Arábia Saudita, Iêmen, Iraque, Afeganistão. A resistência não conseguiu barrar a agressão imperialista anglo–francesa e ao fim Kadafi foi barbaramente assassinado. A partir de então a Líbia se fragmentou em poderes tribais e deixou o seu petróleo disponível ao saque imperialista, em particular de Inglaterra e França, que voltaram a se propor como atores políticos dentro do mundo árabe. Esse modo de operar fora bem-sucedido, como se pode observar, no Líbano, Iraque, Iêmen, Líbia, (Afeganistão, Somália, Sudão) onde deixava um rastro de destruição, de fragmentação, de regressão social e politica. A particularidade a ser observada é que a ofensiva imperialista sionista, a partir de 2001, contra o propalado “terrorismo” islâmico, fortaleceu ainda mais o movimento sunita de resistência às ditaduras militares presentes no mundo árabe, fossem herdeiras da tradição laica ou com tinturas islâmicas. A Arábia Saudita, junto com o Qatar, conduz o que se poderia chamar de restauração islâmica, com os seus fortes traços reacionários e com ligações com o imperialismo (incluindo o sionismo e o “terrorismo”). Mas a Turquia, que é governada por um partido islamista sunita desde 2001, desenvolve um movimento de afastamento da Europa (e de Israel) e de aproximação com o mundo árabe em uma renovada inspiração imperial otomana. Essa ideologia, no entanto, sofre forte restrição mesmo dentro das classes dirigentes turcas, além do Exército. O golpe militar no Egito en-
163 fraqueceu esse projeto, com a repressão sobreposta a Irmandade Muçulmana. Logo os interesses dos Estados Unidos convergiram no interesse de desorganizar os Estados árabes existentes no Norte da África e no Oriente Médio. O Iraque já fora virtualmente destruído em 2003, mas agora era hora de tencionar outros Estados não governados por sunitas, como a Líbia e o Iêmen. Essa tarefa foi relativamente fácil, mas a questão na Síria mostrou–se mais complexa, pois a Rússia e a China exerceram o bloqueio que deixaram de fazer em relação Libia. A Síria é o atual campo de batalha e a encruzilhada estratégica dentro desse cenário bem mais amplo que se procurou rascunhar. Também na Síria, em começos de 2011, se desenrola a pressão de forças democráticas e de esquerda. O Governo e o Partido Baath se preparam para concessões com reforma na constituição e na legislação eleitoral, mas a crise econômica e social esgarça o pacto que dava sustentação ao regime político. Parte da maioria sunita (3/4 da população) passa para a luta armada, instigadas e sustentadas por EUA, Inglaterra, França, Israel, Turquia, Arábia Saudita, Qatar e Jordânia, além de sunitas do Iraque. Em defesa do Governo aparece um Exército forte (apesar das defecções), os xiitas, os cristãos, parte dos sunitas, tanto da Síria mesmo quanto do Líbano, além do Irã e da Rússia e China. Como Rússia e China impedem a invasão imperialista (como não fizeram na Líbia), a luta é travada entre o Exército nacional e uma plêiade de forças completamente díspares alimentadas por interesses externos conflitantes e que não conseguem se unificar. Os interesses em jogo giram em torno das águas e do petróleo da Síria, mas também de partes de seu território. No entanto, o esfacelamento da Síria teria o significado de romper o elo de aliança entre os xiitas do Irã, Síria e Líbano, tornando possível que a entidade sionista se apropriasse de vez do Golan e que pudesse atacar o Líbano com maior segurança. Por outro lado, a destruição da Síria também abriria caminho para o ataque ao Irã por parte da aliança americano– sionista, com a complacência dos sunitas. Hoje a Síria já se encontra devastada, mas graças ao seu Exército e ainda significativo apoio popular o governo se mantém. Toda tentativa de viabilizar uma invasão direta das tropas imperialistas foi contida pela posição contrária da Rússia e China. Por ora, os objetivos americano–sionistas se realizaram apenas parcialmente, mas o conflito e a destruição devem ser a tona no mundo árabe ainda pelos tempos que se seguirão. A mudança mais importante dos últimos tempos foi a direta intervenção da Rússia. Além de bloquear a possível invasão por terra de forças imperialistas, a Rússia deixou muito claro que o porto de Tartus seria de-
164 fendido, exatamente por ser a marca da sua presença no mar Mediterrâneo. As armas, assessoria técnica e força aérea da Rússia contribuíram muito para que o exército sírio ganhasse força e disposição para sair da defensiva. A aliança com os xiitas de outros lugares se consolidou, tendo– se observado a presença do Hezbollah libanês e da Guarda Revolucionária do Iran no campo de luta. A resistência dos curdos da Síria diante da barbárie dos grupos armados organizados e financiados pela Arábia Saudita, Qatar, Turquia, EUA, Israel, criaram uma zona liberada que aos turcos é inaceitável, assim como não aceita as pressões vindas da Europa pela repressão avassaladora ao golpe de Estado intentado contra Erdogan. A Turquia parece ter trocado de lado e se aproximado da Rússia. A guerra na Síria ainda será longa e os pontos de alta-tensão se espalham, se entrelaçam e nada aponta para uma solução negociada global para aquilo que se chama de Oriente Médio expandido, que nucleado, no momento, na Síria, tem vínculos com o que acontece na Turquia, no Afeganistão, na Transcaucásia, na Ucrânia. Ainda que a encruzilhada estratégica hoje esteja na Síria, o fato é que no Egito e na questão palestina é que a situação do mundo árabe terá a sua rota definida, i.é, se a revolução democrática terá condições de retomar folego e avançar em chave aintiimperialista e antissionista ou a regressão e o barbarismo acabarão por se impor.
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8– Um panorama dos novos movimentos sociais latino–americanos e a pedagogia do trabalho associado Neusa Maria Dal Ri
Introdução Desde a década de 1970, a conjuntura mundial vem sendo dominada pela economia política do neoliberalismo. A política neoliberal impõe uma gestão econômica de desregulamentação dos mercados em favor do capital, desmonta as conquistas sociais das classes trabalhadoras, reprime com violência os movimentos e as resistências populares, criminaliza os movimentos sociais e estudantis e inicia guerras contra os países que resistem. Essa ofensiva do capital vem atingindo as classes trabalhadoras, tanto do Norte como do Sul, mas em especial os povos da América Latina e África. No entanto, em especial na América Latina, a partir de 1989, foi possível observamos o início de várias reações contra os resultados da política neoliberal. Em 1989, na Venezuela explodiu o Caracazo em meio a uma grave crise financeira e protestos populares que resultaram em repressões e centenas de mortes. A partir dos anos de 1990, surgiram contestações de massas populares, com caráter de levantes, no Equador, na Bolívia e na Argentina. No Equador, as massas populares obrigaram os presidentes Bucarán (1997) e Gutierrez (2005) a deixarem o poder. Na Bolívia, em 2000, por meio da denominada guerra da água, a população se confrontou com a privatização dos serviços de água, o que gerou dezenas de mortos e centenas de detidos. Em 2003, ocorreram movimentos contra as privatizações na área de energia e, em 2005, as massas populares obrigaram o presidente Lozada e o seu sucessor Mesa a abandonarem o poder. Em 2001, na Argentina, que viveu grave crise econômica, social e financeira, com alto índice de desemprego que atingiu também a classe média, as movimentações populares culminaram com a renúncia do presidente De La Rúa. Essa mesma tendência à erupção social foi verificada nas populações de Oaxaca, no México, nos estudantes do Chile, nos trabalhadores da Colômbia e nos camponeses do Peru.
166 A intensidade desses protestos e manifestações populares foi desigual e variável em cada país. Porém, a matriz impulsionadora das contestações foi a mesma, ou seja, a demanda de fim da regressão social. A regressão social está ligada à desregulamentação e precarização do mercado de trabalho, ao desemprego e à expansão crescente da pobreza, que por sua vez estão ligados às políticas generalizadas de privatizações e concessões cada vez maiores às grandes corporations, especialmente as dos países hegemônicos. Essas lutas fizeram aflorar também um sentimento antiimperialista e, ao mesmo tempo, um novo nacionalismo de extração popular que aparece ligado à recuperação da dignidade e das riquezas nacionais. Além disso, as várias e variadas lutas ensejadas na América Latina, durante esse período, fizeram emergir novas organizações e movimentos sociais. Um elemento marcante e inovador que se pode observar nas organizações e nos novos movimentos sociais da América Latina é a exigência de que a democracia avance para além do formalismo vigente. Uma grande parte desses movimentos, numa singular inflexão histórica, afronta a democracia burguesa liberal. No passado, inúmeras lutas populares na América Latina foram travadas contra ditaduras militares. No presente, no entanto, presidentes eleitos representantes da ordem democrática liberal, de fato propulsores do neoliberalismo, foram obrigados a abandonar o poder, pressionados pelas manifestações das massas. A demanda por democracia real não se dirige apenas contra a democracia liberal burguesa. Aparece também interna às entidades e movimentos populares, nas quais são cada vez menos toleradas a hierarquização autoritária e o assenhoreamento das organizações por lideranças, quadros, grupos ou partidos, que no passado, como agora, com freqüência descolam–se das bases representadas. O descolamento entre a direção e bases, ou entre a organização e bases, ocorre por diversas razões. Algumas dessas razões advêm de interesses particularistas por poder e dinheiro para benefício de poucos, e outras em virtude de concepções organizacionais com deficiências democráticas estruturais que, se no passado foram vistas como normais, hoje parecem ser insatisfatórias. Segundo Dal Ri e Vieitez (2013), da década de 1980 para cá, houve uma expansão significativa de organizações de trabalho associado em muitos países, em especial nos da América Latina (AL). Essas entidades emergiram sob diversas formas organizacionais e nomenclaturas diferentes, como cooperativas populares, fábricas recuperadas, economia solidária ou social, fábricas de autogestão, fábricas ocupadas ou tomadas, dentre ou-
167 tras. Acrescentamos que no mesmo período ocorreu também uma expansão significativa de novos movimentos sociais. Tanto as organizações de trabalho associado como os novos movimentos sociais passaram a se organizar de forma diferenciada dos anteriores. Supomos que estas expansões estão ligadas a uma vertente popular que continua se posicionando contra as políticas capitalistas e que vem à tona da superfície social sob as mais diversas manifestações. Estas manifestações quase sempre têm como protagonistas as bases, ou seja, as pessoas que participam das organizações e dos movimentos sociais. Esse fenômeno parece indicar a presença de um anseio democrático mais profundo, que em muitos pontos remete– se às teses e práticas historicamente introduzidas pela Comuna de Paris. Os processos de derrubada de governos neoliberais na AL, como, por exemplo, o de Mesa na Bolívia e o de Gutiérrez no Equador, levaram a que os novos governos, de Evo Morales e Rafael Correia respectivamente, aplicassem políticas em seus países de independência em relação aos EUA, retomada da industrialização própria e de valorização da identidade nacional e popular. Esses processos geraram a instalação de Constituintes que ampliaram os mecanismos de democracia direta e promoveram o aumento da participação popular na política. É fato que nos últimos anos assistimos a execução de três golpes na AL, em Honduras em 2009, no Paraguai em 2012 e no Brasil em 2016, e eleições de governos neoliberais, como o de Macri na Argentina. Os golpes foram gestados nos parlamentos e judiciários, ancorados em setores sociais específicos e com um programa que visa o corte de direitos trabalhistas e sociais e ajustes econômicos como soluções para a crise internacional do capital. Os golpes retrocederam não apenas em relação à manutenção do sistema democrático formal liberal, no qual a grande maioria da população se quer está representada, mas inclusive com a volta do expediente do uso da repressão violenta para viabilizar os golpes e mantê– los. Mesmo diante desses fatos seria prematuro, para não dizer incorreto, afirmar que houve um influxo nos movimentos de resistência à política neoliberal, já que os movimentos sociais e organizações populares continuam operando e combatendo as regressões. Desse modo, temos por objetivo neste texto, a partir de dados coletados em bibliografia especializada e de pesquisas empíricas desenvolvidas na Argentina, Brasil, Bolívia, México e Venezuela, apresentar um panorama dos novos movimentos sociais da AL, analisar suas principais características e, em especial, sua relação com o trabalho e a educação, tomando os exemplos do Movimento Zapatista do México, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil.
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1. O que são movimentos sociais? Não há um consenso sobre a definição de movimento social. Em geral, os estudiosos concordam que movimento social (MS) é uma expressão usada para denominar organizações estruturadas com a finalidade de criar formas de associação entre pessoas e entidades que tenham interesses em comum, para a defesa ou promoção de certos objetivos perante a sociedade. (DAL RI, 2010). Os MS atuam no ambiente público, político e representativo e, geralmente, não se submetem às mesmas regras jurídicas e legais que os agentes políticos e associativos tradicionais, como partidos, sindicatos e cooperativas. Uma definição simplificada seria a de que movimentos sociais são formas de ação coletiva com algum grau de organização. E, para Gohn (2011, p. 333), “Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes”. Para o funcionalismo os MS são expressões de uma disfunção ou desequilíbrio do sistema social. Para o marxismo os MS emergem das contradições fundamentais da sociedade em seus aspectos econômicos, políticos e culturais. O MS tradicional é o movimento dos trabalhadores ou o Movimento Operário–popular (MOP), que nasceu praticamente junto com o capitalismo1 e cujas principais expressões são o sindicalismo, partidos socialistas e comunistas, conselhos de fábrica, movimento estudantil etc. Esse movimento cresceu, historicamente, sob a influência principalmente dos bolcheviques, com a ideia prático–teórica da vanguarda da classe operária2 e do partido de quadros3. De fato, a história do capitalismo, desde o seu aparecimento, é também a história das lutas de resistência e crítica aos seus valores e práticas (WALLERSTEIN, 2001). Desse modo, a história do desenvolvimento do capitalismo é também a história do movimento operário popular. 2 A teoria do partido como vanguarda da classe trabalhadora foi originalmente desenvolvida por Lenin em sua obra O que fazer?, publicada em 1902 (LENIN, 1979). “Nessa obra, Lenin procurou formular um modo prático de organizar a luta pela revolução, particularmente para as condições russas sob o tzarismo. O partido concebido como vanguarda da classe trabalhadora deveria reunir os militantes com maior consciência de classe, combativos, experientes e imbuídos do intuito revolucionário. Dessa proposição resultou uma organização disciplinada, praticamente constituída por quadros revolucionários, unificada pelo princípio do centralismo democrático, portadora de uma teoria e destinada a dirigir coletivamente a revolução socialista. Na Rússia tzarista essas idéias se concretizaram no partido Bolchevique que acabou sendo a força política dirigente principal naquele país” (DAL RI; VIEITEZ, 2013, p. 149). 3 Os quadros são dirigentes eleitos pelas bases ou massas e que se sobressaem por seus talentos políticos e organizativos. Mas, como mostra a história das organizações dos trabalhadores desse tipo, em geral, os quadros tomam gosto pelo poder, acabam centralizando as decisões e se distanciando das bases. 1
169 Após a Segunda Grande Guerra, vários países do Ocidente estiveram à beira da revolução social. Porém, a reconstrução econômica praticada sobre as ruínas da guerra, o lançamento da guerra fria contra a URSS, as políticas do Estado de Bem Estar Social no centro e o desenvolvimentismo na periferia conduziram o capitalismo à denominada época de ouro. A sublevação foi contida e a conflituosidade social enveredou por uma rota de descendência que se manteve quase até o fim do século passado. O descenso da conflituosidade foi especialmente acentuado na Europa, que se beneficiou da reconstrução operada pelo plano Marshall e o Welfare State. Foi nesse período que surgiram ou se fortaleceram no centro, e mais tarde se expandiram para a periferia, o que denominamos MS mais recentes. Os MS mais recentes são os movimentos de mulheres ou feministas, direitos humanos, ecológicos, etc. As políticas do Welfare State trouxeram um reforço à ideia de que seria do interesse dos trabalhadores labutar nos possíveis espaços estatais, para fazer avançar as políticas públicas e adquirir novos direitos sociais. Uma parte desses movimentos foi cooptada pelos Estados e transformaram–se em diversos tipos de organizações, como Fundações e ONGs, com financiamento de agências estatais, dentre outros. Quando considerada a trajetória histórica do MOP no Brasil, verificamos que a partir de 1985 os movimentos sociais denominados tradicionais entraram em refluxo. Esse fenômeno esteve em consonância com a linha descendente do MOP em âmbito mundial, que se iniciou como já apontamos, depois da Segunda Guerra com a implantação das políticas de bem–estar nos países centrais e desenvolvimentistas nos periféricos. Em 1970 iniciou–se uma crise de acumulação do capital que gerou, um pouco mais tarde, a elaboração e a implantação das políticas de globalização e neoliberais altamente adversas ao MOP. No início dos anos de 1990, a dissolução da União Soviética também foi um golpe para os MS e para a maior parte das entidades e organizações dos trabalhadores. Esses dois acontecimentos são as principais causas do descenso do MOP nos anos de 1980 e 1990 e ensejaram uma corrente de opinião sociológica e ideológica que prenunciou o fim da classe operária, da história e da centralidade do trabalho na sociedade capitalista (SILVER, 2005, p. 20). Contudo, a partir do fim do século XX ocorreram grandes convulsões em países da América Latina indicando que a ideia do fim da história não tem uma sustentação na realidade. No Brasil, com exceção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o MOP manteve–se ameno. Porém, esse fenômeno não significou que a energia política e organizativa gerada no final dos anos de
170 1970 e início de 1980, quando o país viveu um período de grandes mobilizações de massas, tenha se desvanecido completamente. É certo que o capitalismo neoliberal pesou decisivamente na relativa desarticulação dos movimentos. Entretanto, parte das energias dos movimentos e organizações populares dos trabalhadores foi cooptada e, portanto, contida por uma política de governabilidade do Partido dos Trabalhadores (PT) assentada, por um lado, sobre alguns elementos desenvolvimentistas e, por outro, em políticas sociais de tipo compensatório no âmbito da lógica da sociedade capitalista. No entanto, fruto da política neoliberal, ou melhor, de suas conseqüências, dos anos de 2000 em diante os MS retomaram certo patamar de mobilização. É a partir do final dos anos de 1980 e na década de 1990 que surgem o que denominamos de novos movimentos sociais (NMS). Os NMS são os movimentos dos sem–terra, dos desempregados, movimentos indígenas, étnicos, de trabalho associado, da economia solidária, fábricas bajo control obrero, etc. Em sua maioria, os NMS que foram surgindo na AL apresentaram características diferenciadas quando comparados aos tradicionais e aos mais recentes. Foram rejeitando as formas de organização clássicas e promovendo várias modificações no que diz respeito, principalmente, às formas de deliberação e de distribuição do poder.
2. O que é trabalho associado? A subordinação do trabalho ao capital dá–se sob diversas formas abrangendo os vários momentos do circuito econômico–social. Ainda no período de formação do modo de produção capitalista, os trabalhadores livres, destituídos de qualquer propriedade e os trabalhadores proprietários dos próprios instrumentos de trabalho em escala artesanal, procuraram resistir a essa subordinação criando para essa finalidade organizações próprias. (THOMPSON, 1977, p.17–28). As primeiras organizações de trabalhadores estiveram voltadas para a ajuda mútua e a luta contra as condições subumanas de trabalho e de vida impostas pelo capital. Subsequentemente, o movimento de resistência e oposição ao capitalismo expandiu–se a outras esferas da atividade social. Em 1844, os trabalhadores industriais da cidade de Rochdale, na Inglaterra, fundaram uma organização comercial com o objetivo de oferecer aos associados produtos de melhor qualidade a preços mais baixos. Essa sociedade assim constituída era uma cooperativa de consumidores que se tornou um marco na história do cooperativismo.
171 O movimento cooperativista internacional cresceu, mas nunca chegou a ser uma ameaça ao sistema capitalista. Ao contrário, os grandes empresários, principalmente os ligados aos latifúndios e ao agronegócio, também começaram a utilizar as cooperativas para organizar as compras e vendas. No entanto, subsistiu sempre um cooperativismo ligado aos trabalhadores. No início dos anos de 1990, um novo fenômeno começou a ser observados na conjuntura, em especial na América Latina. Esse fenômeno diz respeito ao trabalho associado. O alto índice de desemprego, a precarização do trabalho (trabalho basura) e a falta de perspectivas para o futuro foram as principais razões que levaram os trabalhadores a começarem a formar as organizações de trabalho associado. Trata–se da criação de organizações, tais como: cooperativas populares, empresas de autogestão, empresas recuperadas, empresas ocupadas, cooperativas agrárias dos sem terra, dentre outras. As cooperativas populares e aquelas ligadas ao MST são formadas pelos próprios trabalhadores. As empresas de autogestão, recuperadas e ocupadas são fábricas que estavam em processo de falência e são tomadas pelos trabalhadores. Esses trabalhadores não se conformaram em engrossar as fileiras de desempregados e decidiram lutar pelos seus postos de trabalho. Em vez de esperarem a justiça jurídica decidir pelo pagamento dos salários atrasados e demais direitos trabalhistas, decidem tomar a fábrica e gerenciá–la por si mesmos. O que nos interessa aqui também é a forma de organização e de gestão desses empreendimentos. O trabalho associado é uma forma de organização do trabalho que tem algumas características especiais, elementos inovadores que diferenciam essas empresas das empresas capitalistas, tais como: ausência de trabalho assalariado; gestão pelos próprios trabalhadores; democracia interna e direta com a prática das assembleias gerais; distribuição equitativa dos rendimentos; retiradas (salários) iguais para homens e mulheres; investimentos educacionais; diminuição e substituição das chefias por coordenações; ritmos de trabalho auto–regulados; algumas modificações no processo e na organização do trabalho; atos de solidariedade, entre outros. Tudo isso faz com que essas organizações tenham uma configuração e um modo operacional sui generis no mundo capitalista.
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3. Características dos novos movimentos sociais da América Latina A situação real do trabalho associado ainda é experimental e embrionária. No entanto, segundo Dal Ri e Vieitez (2013), podemos afirmar que o trabalho associado é portador de um postulado teleológico que é virtualmente revolucionário, na medida em que coloca as bases objetivas de uma nova concepção de mundo. A base dessa nova concepção de mundo é a de que os trabalhadores, os verdadeiros produtores da riqueza, são erigidos em protagonistas do processo de produção e reprodução da vida social. Desse modo, o protagonismo dos trabalhadores e, em especial, dos trabalhadores como produtores é uma tese geral para o trabalho associado. É uma tese que contempla, ao mesmo tempo, o plano prático e simbólico, a vida prática e a concepção de mundo. Na América Latina, a partir dos anos de 1990, foram aparecendo movimentos e organizações representativos da classe trabalhadora e com uma nova forma de organizar a política, o trabalho e a cultura. Como exemplos, citamos que no Brasil formou–se o chamado Movimento da Economia Solidária, na Argentina o Movimento das Fábricas Recuperadas e na Venezuela, com expressões também na Argentina e no Brasil, o Movimento das Fábricas Ocupadas. Ainda alguns movimentos sociais, como, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, do Brasil, e o Movimento Zapatista, do México, lançam mão do trabalho associado para organizar a produção. Esse fenômeno esteve ligado, em primeiro lugar, ao relativo ascenso dos movimentos sociais na AL e, em segundo, como vimos, ao surgimento dos NMS. Uma das razões desses movimentos serem denominados de novos está no fato de que, em geral, atém–se a novas problemáticas, como a exclusão histórica das populações indígenas, a luta pela terra e reforma agrária, a organização do trabalho associado, novo papel da mulher na sociedade, entre outras. Porém, o que denominamos NMS não está definido tanto pelas questões ou problemáticas sociais que os movem, mas sim pela forma como se organizam e funcionam, ou seja, com democracia direta e com horizontalidade na distribuição de poder. Há algumas características observáveis nos NMS, que ressaltamos a seguir.
173 a) Territorialização. O território é o espaço no qual os NMS constroem coletivamente uma nova organização social, onde os novos sujeitos se instituem, instituindo ao mesmo tempo seu espaço, sua produção material e cultural. Movimentos como o MST (Brasil), Zapatistas (México), fábricas ocupadas, recuperadas e bajo control obrero (Argentina, Brasil, Venezuela), Dario Santillan (Argentina), Cooperativas dos Mineiros (Bolívia) são exemplos para se observar a ocupação de espaços físicos recuperados ou conquistados. b) Autonomia. Os NMS buscam a autonomia tanto do Estado como dos partidos políticos. Antes essas populações dependiam totalmente dos patrões e do Estado. Mas, os NMS organizaram–se e trabalham de forma a conseguir a sua autonomia produtiva, política e cultural. Neste ponto fica evidente a importância da educação. c) Cultura. Os NMS lutam pela recuperação e pela revalorização de sua cultura, raízes, conhecimentos produzidos e língua. d) Trabalho. Os movimentos promoveram uma reorganização da produção e da apropriação dos excedentes e forjaram novas relações de trabalho. e) Gênero. Os NMS colocam em destaque o papel da mulher. Não apenas combatem as discriminações e violência contra as mulheres, mas aplicam de políticas de igualdade no trabalho e de incentivos à participação na política. Dos integrantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional, 47% são mulheres que tem igual proporção nas direções eleitas. O MST tem um Setor Nacional de Gênero que foi constituído para elaborar e ajudar a aplicar a política de igualdade de gênero. f) Preservação da natureza. Os movimentos possuem políticas de preservação da natureza e dos ecossistemas. O MST elaborou a denominada agroecologia, que é uma forma de produzir diferenciada, sem uso de agrotóxicos ou outros elementos que envenenam os alimentos e as águas. g) Contra os preconceitos. Os NMS elaboram e aplicam políticas contra os preconceitos étnicos, raciais e sexistas. h) Pela construção de uma nova educação. Os movimentos tradicionais dependiam de intelectuais que lhes transmitiam a ideologia crítica ou socialista de fora. Agora, os NMS lutam pela autoeducação e auto–organização, apresentando algumas características: formação de seus próprios intelectuais; de seus próprios educadores; formação voltada para a sua produção (quando é o caso); formação de acordo com a sua ideologia; formação para o intelectual + dirigente político. i) Pela construção de uma nova democracia. Ao invés da gestão de quadros, os NMS estão construindo uma nova democracia, com igual-
174 dade de poder, conselhos deliberativos, assembleias, democracia direta e gestão democrática ou autogestão. j) Ações de luta político–econômicas diferenciadas. A principal forma de luta dos trabalhadores sempre foi a greve. Os NMS, por suas características, em vez de greves, por exemplo, ocupam terras (MST e outros movimentos de sem terra), ocupam fábricas (Fábricas Recuperadas, Fábricas Ocupadas, Bajo control obrero, etc.), ocupam moradias e prédios e espaços urbanos (Movimento dos Sem Teto, Dario Santillan), ocupam las calles (Los Piqueteros e Las Madres de La Plaza de Mayo da Argentina). l) Movimentos antissistémicos que se confrontam com o capitalismo neoliberal. O relativo ascenso das lutas sociais na AL constituíram–se como acontecimentos dramáticos, sobretudo na Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela e México, com destituições de presidentes pelas forças populares, enfrentamentos dos movimentos com as forças de segurança, muitas mortes, feridos, etc. Mas, esse período de crise e de luta recolocou duas questões novas: o aumento e a visibilidade do trabalho associado e a emergência da questão educacional, tanto nas agendas governamentais dos governos populares, em termos de políticas públicas, como na agenda dos NMS.
4. Por que os NMS estão construindo uma nova educação? Lembremos rapidamente o papel da educação capitalista, ou seja, o tipo de educação oferecida pelos sistemas oficiais de ensino. A escola capitalista desempenha várias funções sociais. Dentre elas destacam–se a preparação da força de trabalho para o mercado, a legitimação da ordem social por meio da ideologia disseminada e outros mecanismos e a transmissão de conhecimentos culturais e científicos. A escola reproduz a estrutura social e ensina a cada indivíduo, de acordo com a origem de classe, o seu lugar na sociedade, até porque a escola para os trabalhadores é uma e a escola para as elites é outra. Aparentemente, a organização da escola não mantém nenhuma relação com os ensinamentos efetuados na instituição. No entanto, a vivência escolar é um enérgico mestre que ensina a obediência à autoridade, à hierárquica social e disciplina os alunos. Trata–se de um poderoso currículo oculto, que transmite na vivência prática os valores liberais. Por que os NMS estão forjando uma educação própria, inclusive de educação formal?
175 Porque o ensino oficial não lhes serve, não atende as suas necessidades de formar um novo organizador para uma nova sociedade. Não é comum encontramos MS que unam, além da luta pelos objetivos comuns aos membros, a organização da produção e da educação. Talvez os melhores exemplos de movimentos sociais que unem organicamente a economia, a política e a cultura sejam o MST e o Movimento Za patista.
4.1. NMS e a pedagogia do trabalho associado: Zapatistas e MST O Movimento Zapatista inspirou–se na luta de Emiliano Zapata contra o regime autocrático de Porfírio Diaz e na Revolução Mexicana em 1910. Os Zapatistas tiveram maior visibilidade para o grande público a partir de janeiro de 1994, quando se mostraram para além das montanhas de Chiapas com capuzes pretos e armas nas mãos dizendo: Ya Basta! Lutaram contra o acordo de livre comércio entre o México, Estados Unidos e Canadá (NAFTA), que foi criado em 01 janeiro de 1994, e que previa a comercialização das terras dos indígenas. O Movimento Zapatista defende uma gestão democrática do território, a participação direta da população nos assuntos públicos, a partilha da terra e da colheita com uma organização autônoma da produção, ou seja, por meio do trabalho associado. Nos caracoles ou províncias de bom governo funcionam várias cooperativas de trabalho associado, sobretudo organizadas por mulheres. Os Zapatistas desenvolvem um programa educacional e tem suas próprias escolas com ensino fundamental e médio. O seu sistema de educação é denominado La outra educación. As escolas zapatistas não são reconhecidas pelo Estado, que não as financia e não provê nenhum suporte técnico, matéria de professores. Quando os alunos terminam o ensino médio nas escolas zapatistas, não podem fazer o ensino superior, pois o sistema educacional zapatista ainda não possui esse grau de ensino. A maioria dos formados integra–se à produção e uma parte, além de produzir nas terras ou em outros setores, também trabalha como promotores da educação (professor) com os novos alunos. Os principais objetivos da educação zapatista são ensinar aos jovens a história, a língua e a cultura dos povos, bem como prepará–los para o trabalho nas comunidades.
176 O MST foi fundado em 1984 no 1º Encontro Nacional realizado na cidade de Cascavel, no Estado do Paraná, para lutar pela reforma agrária. Nos mais de 30 anos de existência, o MST cresceu muito e hoje tem um território próprio, com assentamentos e acampamentos em 23 estados do país e uma organização política e econômica. O MST distingue–se claramente de todas as demais organizações populares clássicas. Ele é um movimento de luta e ao mesmo tempo o demiurgo de uma economia distinta da economia burguesa dominante. É um sujeito ativo e até altissonante na luta de classes na ordem social brasileira. Mas, a sua luta, diversamente do que ocorre com as demais organizações populares, dá–se também no terreno da organização da produção. A reivindicação da reforma agrária, não é apenas de acesso à terra, de distribuição de terra para quem não tem, mas a exigência do direito de promover uma reorganização não capitalista das relações de produção num segmento da economia agrária. Esta reorganização dá–se no âmbito interno dos assentamentos e acampamentos nos quais foram criadas as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPA) e/ou outras organizações do MST. As relações de trabalho instauradas nas CPAs diferenciam–se das relações capitalistas de trabalho porque, dentre outras razões, o trabalho assalariado é substituído pelo trabalho associado. No entanto, as CPAs continuam integrando o sistema do capital na medida em que são unidades produtoras de mercadorias e, consequentemente, atuam no mercado. Praticamente desde que o MST foi formado, começou a criar seu sistema educacional, pois a educação do sistema oficial não servia aos seus propósitos. O MST criou um sistema educacional próprio que vai da escola de educação infantil ao ensino superior. Há escolas mantidas pelo próprio movimento, como escolas de educação infantil, escola de ensino médio integrada com cursos técnicos, cursos profissionalizantes e de ensino superior. Mas, ao seu sistema estão integradas escolas públicas de educação básica sobre as quais o movimento possui hegemonia e implanta o seu projeto político–pedagógico. O MST advoga a formulação de uma nova pedagogia que tem princípios educacionais, tais como: a educação para a transformação social; para o trabalho e a cooperação; para o desenvolvimento das várias di mensões humanas; relação entre prática e teoria, etc. Da educação do MST destacamos duas dimensões principais: a) junção do ensino com o trabalho produtivo; b) gestão democrática da educação que compreende a auto–organização dos alunos.
177 A união entre o ensino e trabalho produtivo foi uma proposta do Movimento baseada em teóricos, como Marx e Engels, e os educadores soviéticos, Pistrak, Makarenko e Krupskaia. Trata–se da aplicação do trabalho como princípio educativo. As escolas funcionam com a auto–organização dos alunos. Os estudantes são organizados em núcleos de base, que elegem coordenadores e discutem todos os assuntos importantes da escola. O órgão máximo de dec – Coordenação da escola cooperativa é de aluno – o órgão máximo de decisão nas escolas são as assembléias geral, da qual todos participam, professores, alunos, funcionários e muitas vezes também os pais. Gestão educacional e econômica. Nas escolas localizadas nos assentamentos ou próximas há forte participação dos pais e da comunidade e ainda, em geral, se organiza uma comissão de educação. A avaliação realizada com os alunos também é diferenciada das escolas oficiais, já que se promove uma autoavaliação dos estudantes e professores, da qual também os pais participam. Trata–se de uma educação da e para a classe trabalhadora, na qual se valorizam a história e as lutas dos trabalhadores como protagonistas. Por fim, o MST considera que a principal escola é o próprio Movimento. O Movimento com os seus princípios e lutas é considerado um educador coletivo, de um tipo de educação que não cabe em uma escola.
Conclusão O ascenso das lutas sociais na AL foram acontecimentos importantes em vários países, sobretudo, na Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela e México, com destituições de presidentes pelas forças populares. Um dos resultados dessas lutas foi o aparecimento de novos movimentos sociais na AL. Os NMS além de aterem–se a reivindicações, questões e problemáticas diferenciada, também apresentaram uma maneira diferente de organização, com democracia direta e distribuição do poder. Dentre as principais características dos NMS encontra–se a elaboração de uma nova pedagogia aplicada em escolas próprias. Uma das mudanças introduzidas na educação mais importantes é o modo de organização e funcionamento da escola. Um sistema de poder baseado em democracia direta, autogestão ou gestão democrática partilhado por alunos, professores e funcionários em condições de igualdade inusitada na ordem social, substitui a variante meritocrática da burocracia que
178 domina a escola pública ou o despotismo imediato da personificação do capital na escola privada. A articulação entre o ensino e o trabalho real é outra modificação importante. A categoria de estudante, típica da escola capitalista, tende a dissolver–se dando lugar à categoria de estudante trabalhador. Outra mudança diz respeito às funções sociais da escola. Uma das funções mais significativa da escola oficial é a habilitação da força de trabalho que compõe o mercado capitalista. As escolas dos Zapatistas e do MST não habilitam a força de trabalho para compor o mercado porque, no âmbito da economia desses movimentos, não existem essas categorias. O trabalhador estudante, uma vez terminado o seu curso, deverá ser trabalhador associado e não força de trabalho disponível no mercado. A intersecção entre a escola e as organizações econômicas não se dá pela mediação do mercado de trabalho, mas sim por meio do estabelecimento de relações diretas e orgânicas entre elas. Lembramos, ainda, a conexão existente entre a pedagogia e a prática política e econômica dos movimentos. A categoria de autogestão, na medida que expressa o controle da vida escolar pelos sujeitos imediatos da ação educativa, é demonstrativa das origens da educação de classe desenvolvida nas escolas dos movimentos. A liquidação do trabalho assalariado, assim como sua substituição pelo trabalho associado, assinala a razão pela qual desaparecem o mercado de trabalho e a função da escola como habilitadora da força de trabalho. A formação de organizações econômicas cujo objetivo e função primordiais é a reprodução da comunidade de trabalho rompe com o economicismo, o que possibilita a articulação solidária das cooperativas com as escolas e a conjugação do ensino com o trabalho real. As proposições pedagógicas do MST podem ser aplicadas porque ele tem controle sobre o seu território e, portanto, detém a autonomia para isso. Esse território, que não deixa de ter expressão social e política é, no entanto, excêntrico à ordem social. Ainda, ressaltamos as categorias principais da pedagogia do trabalho associado que são o enfoque de classe, a autogestão ou gestão democrática da escola e a conjugação do ensino com o trabalho produtivo. Por fim, poderíamos perguntar: há um potencial transformador nas ações e forma de organização dos NMS e em sua nova educação? Diante da derrocada do que aparecia como referência para o movimento popular mundial, o socialismo real, o que parece haver no momento são mais perguntas do que respostas. Mas, no processo de reflexão ora em curso seria conveniente observar o que Mészáros (2002) escreveu em sua obra Para além do capital. Em um esforço para tentar compreender o que houve de
179 errado com as revoluções populares realizadas e fracassadas, o autor afirma com toda a ênfase a importância da autogestão e que a emancipação dos trabalhadores será feita pelos próprios trabalhadores, ou não haverá emancipação nenhuma.
Referências DAL RI, N. M. Trabalho associado, educação e movimentos sociais – Mini– curso. Marília: Jornada do Núcleo de Ensino da Faculdade de Filosofia e Ciência, UNESP, Campus de Marília, agosto de 2010 DAL RI, N. M.; VIEITEZ, C. G. Protagonismo do trabalho associado e educação. In: SCHMIDT, C.; NOVAES, H. T. Economia solidária e transformação social. Rumo a uma sociedade para além do capital. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013. p.145–175. GOHN, M. G. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, mai./ago., p. 333–513. 2011 LENIN, V. I. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1979. MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. SYLVER, B. J. Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005 THOMPSON, E. P. La formación histórica de la clase obrera. Barcelona: Laia, 1977. WALLERSTEIN, I. Capitalismo histórico & civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 143 p.
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9– Luta por moradia e autogestão na América Latina – uma breve reflexão sobre os casos do Uruguai, Brasil, Argentina e Venezuela 1
Coletivo USINA2
Introdução No decorrer do século XX a América Latina sofreu um intenso processo de urbanização, a ponto de contar hoje com um dos mais altos índices de urbanização do mundo. Esta urbanização foi marcada pela expressiva concentração populacional em áreas metropolitanas, profundas desigualdades no acesso a bens e serviços e elevados níveis de pobreza, desemprego e violência. Neste processo, as cidades cresceram sem que a maioria da população tivesse o acesso à moradia e à terra urbanizada, caracterizando–se como uma urbanização concentradora de desigualdade. Neste processo de acelerada urbanização em contexto de extrema pobreza, grande parte das habitações foram construídas pelos próprios moradores, por fora das políticas públicas ou mercado imobiliário formal. A única opção à autoconstrução para a população de classificada como “baixa renda” foram conjuntos habitacionais inicialmente financiados pelo Estado e num segundo momento construídos pela iniciativa privada, em um regime de gestão tradicional imposto pelas empreiteiras, onde predomina a precariedade das condições de trabalho. Em comum com a autoconstrução, estes conjuntos têm a distância dos centros de economia dinâmica das cidades, com acesso restrito a infra–estrutura urbana e serviços públicos. Tanto a autoconstrução quanto os grandes conjuntos habitacionais desenharam as periferias nas grandes metrópoles latino–americanas. Em contraposição ao modelo estatista dos anos 60 e 70 e ao novo modelo de oferta privada e subsidiada à demanda nos anos 90 e 2000, se destacam as iniciativas autogestionárias de produção habitacional, levadas Publicado em “Movimentos Sociais, Trabalho Associado e Educação para além do capital”, RODRIGUES, F. NOVAES, H. T.; BATISTA, E. (orgs.) São Paulo: Expressão Popular, 2012. 2 A USINA é uma assessoria técnica interdisciplinar que apoia os movimentos de luta por moradia e sem–terra na produção de seu espaço construído (habitações, centros comunitários, escolas, praças etc). Foi fundada em 1990 e hoje é composta por doze arquitetos, um advogado, uma artista plástica, um documentarista e dois cientistas sociais. Participaram diretamente da redação deste texto: Flávio Higuchi Hirao, José Eduardo Baravelli, Kaya Lazarini e Leonardo Nakaoka. 1
182 a cabo pelos movimentos sociais urbanos em vários países da América Latina. Este artigo pretende dar um breve panorama da luta por moradia e autogestão na América Latina, a partir de alguns exemplos significativos no Uruguai, Brasil, Argentina e Venezuela. A experiência uruguaia tem papel central pelo histórico da FUCVAM (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua), que possibilitou que o cooperativismo se tornasse uma das principais formas de produção habitacional no país. A experiência da FUCVAM foi fundamental para a luta por habitação no Brasil, sobretudo para os mutirões autogeridos realizados na cidade de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990, a maioria vinculados à UNMM (União Nacional dos Movimentos de Moradia). A FUCVAM também influenciou a luta na Argentina, em que se destacam as experiências realizadas na cidade de Buenos Aires, pelo MOI (Movimiento de Ocupantes e Inquilinos) e mais recentemente no Chile e Venezuela. Na Venezuela, os princípios autogestionários dos movimentos latinoamericanos convergem para uma realidade política distinta dos outros países do continente, por alguns denominada “Socialismo Venezuelano do séc. XXI”. O principal movimento que pauta a autogestão é o MPP (Movimiento de Pobladoras e Pobladores). Os quatro movimentos fazem parte da Selvip (Secretaría Latinoamericana para la Vivienda Popular), fundada em 1991 com a finalidade de estruturar uma rede latino–americana de luta por moradia e autogestão, agregando outros países e movimentos. Trata–se de buscar uma articulação em nível continental para uma luta por habitação e autogestão que assume características distintas no contexto político, social e econômico de cada país. A este artigo caberá apresentar quatro dessas organizações que fazem parte da Selvip – FUCVAM (Uruguai), UNMP (Brasil), MOI (Argentina) e MPP (Venezuela). Assim, o percurso do texto será de desvendar quais foram as raízes dos processos autogestionários em habitação na América Latina, a partir da experiência da FUCVAM, e fazer uma breve apresentação dos outros três movimentos, que se originaram desta experiência.
A experiência pioneira do Uruguai Em meados do século passado, o ciclo de reformas modernizantes do batllismo transformou o Uruguai na imagem mais próxima que a América Latina teria de um Estado de bem–estar social. De 1915, quando José Batlle y Ordóñez conclui seu segundo mandato como presidente da república, até 1952, quando conclui o mandato seu sobrinho Luís Batlle
183 Berres, o país consolidou uma complexa rede de instituições econômicas e sociais, em que se sobressaem a infra–estrutura exportadora, a regulação do sistema financeiro, a universalização do ensino público e a implantação de legislação trabalhista e previdenciária 3. Em 1956, o PIB per capital uruguaio alcançou um dos valores mais elevados do mundo, quando este país relativamente pequeno era o maior exportador mundial de produtos derivados da criação de gado, principalmente carne, couro e lã. O sucesso comercial da pecuária (ganadería), atividade que emprega pouca mão–de– obra no campo e necessita de muito beneficiamento, foi um dos principais incentivadores da urbanização precoce do país4. Foi uma urbanização acompanhada de um crescimento populacional lento, mas que aconteceu com antecedência em relação aos demais países latino–americanos: em 1908, viviam em Montevidéu 30% dos uruguaios e, em 1970, 80% da população do país já residia em áreas urbanas. A duplicação da população residente nas cidades uruguaias entre 1920 e 1960 é acompanhada da quadruplicação do estoque de imóveis no mesmo período5. A partir de então, a curva de crescimento da urbanização uruguaia começa a ser menos acentuada, quando no Brasil ela começa a atingir taxas cada vez mais altas. Portanto, a atual estagnação sócio–econômica do Uruguai só revela sua gravidade quando confrontada com a precocidade do desenvolvimento do país. Segundo Daniel Chávez e Susana Carballal, trata–se de uma arrefecimento econômico iniciado já nos anos 1960, “al agotarse la coyuntura favorable que había postergado la caída del mercado ganadero, cuando se produjo un reordenamiento al variar las condiciones de producción en los países que competían con el Uruguay”6. Na virada do século XXI, os níveis de desemprego já tinham levado para fora do Uruguai cerca de 10% de seus habitantes. Em 2002, o quadro recessivo se converteu numa crise financeira que atingiu em cheio a tentativa do governo uruguaio de criar vantagens comparativas ao país por seus serviços bancários. A crise de confiança junto a operadores finanO “batllismo” se torna uma corrente hegemônica dentro do partido Colorado para representar os interesses da classe média urbana e imigrante contra o partido Blanco, dominado por proprietários de terra do interior. Apenas dois eventos vão suplantar este bipartidarismo oriundo das guerras civis que formaram o Uruguai no século XIX: a ditadura militar de 1973–1985 e a ascensão da Frente Ampla (el Frente Amplio – concordando com o gênero masculino em espanhol), conglomerado de partidos de esquerda que se tornou a principal força política do país quando o ex–presidente da república Tabaré Vázquez foi eleito Intendente de Montevidéu em 1990. 4 RIAL, Juan; KLACZKO, Jaime. Uruguay, el país urbano. Montevideo: Clacso–EBO, 1981. 5 TERRA, Juan Pablo. La vivienda. Montevideo: Nuestra Tierra, 1969. 6 CHÁVEZ, Daniel; CARBALLAL, Susana. La ciudad solidaria. Montevideo: Nordan–Comunidad, 1997. 3
184 ceiros internacionais – apenas em parte decorrente da moratória da dívida pública argentina em 2001 – arrasou os bancos privados uruguaios e fragilizou ainda mais o parque industrial do país. Naquele ano, a taxa de desemprego chegaria a 19%. Apesar do crescimento econômico que se esboça nos anos seguintes, a taxa de desemprego não mais se reduz do patamar de 13%, num quadro que é assustadoramente chamado pelos economistas uruguaios de crecimiento sin empleo. É um quadro compatível com a crescente informalidade do mercado de trabalho uruguaio, que envolvia 36,3% dos trabalhadores ocupados en 1998 e, em 2004, chega a 40,7%. Não é de surpreender que a renda média domiciliar (ingresos medios de los hogares), que é essencial para o planejamento de uma política de financiamento habitacional, tenha caído 30% entre 1999 e 2004 7. Um contexto sócio–econômico para o desenvolvimento das cooperativas de habitação por ajuda mútua no Uruguai não pode se completar sem uma análise em separado da urbanização de Montevidéu. É lá, na capital uruguaia, que a história das cooperativas de habitação está se confrontando com os efeitos urbanos do desemprego estrutural, cujo similar só pode ser encontrado em metrópoles de outros países latino–americanos, entre as quais se destaca São Paulo. O Censo Demográfico uruguaio de 2004 quantificou a população da área metropolitana de Montevidéu em 1.668.335 pessoas, mais da metade da população uruguaia de 3.241.003 pessoas. Desde 1990, todos os Intendentes do Departamento de Montevidéu foram políticos do conglomerado de partidos de esquerda Frente Ampla e estes procuraram ganhar escala na administração de uma cidade única em tamanho e importância no Uruguai através da descentralização do planejamento em Centros Comunales Zonales (CCZ), para os quais está em implantação um orçamento participativo no modelo de Porto Alegre8. A tabulação em 2005 dos dados censitários referentes à condição socioeconômica das moradias, revelou um fenômeno de despovoamento da cidade consolidada, que teve como principal causa a pura e simples desocupação das residências: os imóveis vazios em Montevidéu (rubricadas na pesquisa como viviendas desocupadas) duplicaram entre os censos de 1996 e 2004, passando neste período de 28.374 para 57.709 unidades. A análise da população bairro a bairro revela também que a parte da cidade que não se esvazia e, pelo contrário, cresce em termos populacionais, o faz INE – Instituto Nacional de Estadística de la República Oriental del Uruguay. Encuesta nacional de hogares ampliada. Edição online no sítio www.ine.gub.uy consultada em março de 2006. 8 LEITÃO, Karina. Gestão participativa e qualificação urbana. São Paulo: Dissertação de mestrado – Prolam/USP, 2003. 7
185 principalmente pela ocupação informal de terras pela crescente população empobrecida. É uma equação conhecida em São Paulo, onde o esvaziamento da cidade consolidada se dá concomitantemente ao adensamento da cidade precária. Assim, nos bairros que crescem, o aumento populacional é resultado principalmente do aumento de residências em asentamientos irregulares, denominação oficiosa para o que os uruguaios chamam de cantegriles9. Em 2004, a população dos cantegriles atingiu um décimo dos moradores da cidade (10,1% ou 135.545 pessoas). Não são migrantes expulsos do campo, mas trabalhadores urbanos expulsos da cidade formal e consolidada. As novas condições econômicas afetaram um movimento com grande participação na economia do Uruguai: o cooperativismo. Segundo o último recenseamento da Cudecoop (Confederación Uruguaya de Entidades Cooperativas), em 1999 havia no Uruguai, com população pouco maior que 3 milhões de pessoas, a impressionante quantia de 844.928 associados em 1.241 cooperativas. Nascidas da força do sindicalismo uruguaio, o desmonte do assalariamento em massa e dos seus correspondentes sistemas de financiamento tinham empurrado as cooperativas para a disputa por políticas compensatórias e assistencialistas, um lugar que nunca foi confortável para movimentos sociais baseados na valorização do trabalho. O momento preciso em que as cooperativas de habitação se tornam interlocutoras das instituições técnicas e políticas do setor habitacional foi a elaboração e promulgação em 1968 da Lei Nacional de Habitação uruguaia, Ley Nacional de Vivienda, até hoje o mais importante marco legal da urbanização uruguaia10. Segundo Daniel Chávez e Susana Carballal, é uma lei oriunda de mobilizações de classe (não só operárias como também empresariais) que se incrementavam não pela consolidação de uma sociedade salarial no Uruguai, mas sim pelo início da deterioração da sua economia: La Ley Nacional de Vivienda se promulgó en un contexto político definido por un significativo avance de los trabajadores en sus movilizaciones, que marcaba una inflexión en la historia nacional de la lucha
Este nome, dado nos anos 1970 pelos próprios habitantes de uma das primeiras favelas de Montevidéu, revela uma ironia precisa em relação à segregação social. “Cantegril” é o nome de um bairro de residências de luxo no balneário de Punta del Leste, onde passam as férias milionários de todo o mundo. Seria algo como chamar nossas favelas de “Costa do Sauípe” ou “Búzios”. 10 Para um arquiteto brasileiro, acostumado com as letras mortas da nossa legislação urbana, é um tanto comovedor observar o apego a este texto legal de tantos anos por parte de todos os envolvidos na política habitacional uruguaia. É possível ouvir citações acuradas da Ley de Vivienda da boca de estudantes de arquitetura ou de qualquer integrante de cooperativa. 9
186 de clases y el inicio de un acelerado proceso de profundización de la crisis económica11. Não apenas por seu nascimento num contexto inflacionário, mas há muitas semelhanças entre a Lei de Habitação uruguaia e a formação do Sistema Financeiro da Habitação brasileiro. Ela constitui um fundo público – Fondo Nacional de Vivienda – que, à maneira de nosso FGTS, é composto principalmente pela apropriação de parte da massa salarial do país através de um Impuesto a la Retribuciones Personales (IRP), popularmente conhecido entre os uruguaios como “impuesto a los sueldos”. Também à maneira de nosso BNH, um banco de financiamento seria o operador deste fundo público: o Banco Hipotecário del Uruguay (BHU). Fundado em 1912 e posteriormente nacionalizado, o BHU atravessa o período de vigência da Lei de Habitação expandindo seu controle sobre os financiamentos habitacionais em relação ao órgão de governo que deveria ser o agente gestor da política habitacional no país, a Dirección Nacional de Vivienda (Dinavi). Em 1991, o deficitário BHU é retirado da concessão de empréstimos subsidiados para a habitação social e passa a atender exclusivamente a demanda solvente do país. Ainda assim, “el BHU destinaría más fondos a cubrir sus gastos operativos que a la construcción y financiación de viviendas”12. Entre as várias similitudes com bases legais das políticas de habitação de outros países, o que é uma absoluta singularidade na Ley Nacional de Vivienda uruguaia é o seu Capítulo 10, que proporciona um marco legal e de crédito para as cooperativas de habitação por ajuda mútua 13. Neste marco legal, o primeiro ponto a observar é que as cooperativas que operam através da ajuda mútua de seus associados são instituídas como entidades complementares às cooperativas de vivienda por ahorro previo, cooperativas de habitação cuja contrapartida ao financiamento pelo fundo habitacional é uma poupança previamente formada pelos membros cooperados. São complementares porque, do ponto de vista da lei, a ayuda mutua é tratada como um investimento não monetarizado que cumpre o papel de contrapartida ao financiamento para as famílias cuja renda é suficiente apenas para amortizar uma dívida de longo prazo, mas não para formar uma poupança antes de obter uma moradia. CHÁVEZ, Daniel; CARBALLAL, Susana. La ciudad solidaria. Montevideo: Nordan–Comunidad, 1997. 12 NAHOUM, Benjamin. "De la autoconstucción individual a las cooperativas pioneiras". In: Nahoum, Benjamín (org.) Las cooperativas de vivienda por ayuda mutuas uruguayas. Sevilla/Montevideo: Junta de Andalucia / Intendencia Municipal de Montevideo, 1999. 13 Três experiências pilotos realizadas em 1966 pelo “Centro Cooperativista Uruguayo” (CCU) foram decisivas para elaboração deste capítulo pelo legislador Juan Pablo Terra, arquiteto e docente da Universidad de la República. 11
187 As cooperativas por ahorro previo não são essencialmente diferentes do que se denomina no Brasil de “cooperativas de habitação”, nas quais os associados formam uma cooperativa para contrair empréstimos em condições vantajosas e comprar a habitação que é oferecida no mercado ou encomendar sua construção através de empresas particulares. São cooperativas de consumo combinadas com cooperativas de crédito mútuo, enquanto que na cooperativa de habitação por “ajuda mútua” o consumo da habitação será alcançado pela cooperação da capacidade produtiva dos seus associados. Portanto, o capítulo sobre cooperativas de habitação da Ley de Vivienda permite, através de uma figura jurídica incomum que é uma cooperativa de produtores habitacionais desvinculados da construção civil, que famílias de baixa renda tenham uma nova opção de acesso ao crédito habitacional ao invés do consumo subsidiado. Para tanto, devem criar segundo princípios cooperativistas uma empresa que é uma união de força–de– trabalho em vez de uma união de capacidade de consumo e através dela formalizar o financiamento estatal, obter em seu nome terra urbana, comprar insumos e contratar o assessoramento técnico previsto em lei, além da mão–de–obra especializada que esta determinar. As mesmas famílias, isoladamente, não poderiam assumir nenhuma destas responsabilidades e ficariam relegadas a uma política compensatória (que de qualquer forma não se confunde com a autoconstrução nas cidades brasileiras). Quanto aos aspectos estatutários, não são impostos às cooperativas de habitação por ajuda mútua obrigações muito diferentes do que o previsto na legislação comercial do Uruguai. O número de associados é de no mínimo 10 e no máximo 200 pessoas, que devem integrar uma estrutura decisória composta de comissão fiscal, comissão de formação cooperativista e conselho de direção, além de participar da instância máxima da cooperativa, a assembleia geral. Grupos maiores podem ser formados como entidades intercooperativas e se tornaram comuns nos grandes conjuntos de cooperativas dos anos 1970. O organograma deve garantir que a atividade econômica realizada obedeça aos princípios básicos do cooperativismo: a incorporação e distribuição do excedente e gestão democrática e igualitária, com decisões tomadas em assembleia geral sem que nenhum associado tenha direito a mais que um voto, não importa sua contribuição para o capital social da cooperativa. De qualquer forma, a parte do fundo público instituído pela Lei de Habitação que é destinada às cooperativas por ajuda mútua permanece fora do campo de atuação de empreiteiras e chega até as demais empresas que constituem o setor da construção civil de forma muito filtrada, quase que exclusivamente pela compra de insumos de pouco valor agregado
188 para a construção de alvenarias e lajes. A mão–de–obra externa (sempre contratada formalmente e pagando leyes sociales que representam 95% do valor dos salários) é a de pequenas equipes de autônomos, o que não impede que em algumas fases de construção e em cooperativas pequenas chegue a ser metade da mão–de–obra em atividade 14. Mesmo as equipes de assessoramento técnico (que serão objeto de análise no próximo capítulo) são legalmente obrigadas a se constituírem numa rede de Institutos de Asistencia Técnica sem fins lucrativos, o que retira do cooperativismo as gerenciadoras e projetistas ligadas a empreiteiras. É por isso, adverte Benjamín Nahoum, que “no era este, sin embargo, el sistema que servía a los grupos de empresarios que habían presionado para que la Ley de Vivienda fuera votada”: Estos sectores propulsaban la construcción de viviendas por el régimen de promoción privada, en el que el Estado proporciona créditos a inversores privados para construir viviendas que luego serán vendidas en el mercado, o por el sistema público, que implica la construc ción por empresas privadas de proyectos administrados por el Estado. Para propiciar estos sistemas, para regular las inversiones y proveer los recursos necesarios, para poner en marcha, en fin, el vasto plan de construcciones que las empresas requerían luego de una década de crisis de esa industria, es que se vota la Ley. Dentro de esa estrategia, el sistema cooperativo aparecía como un capítulo marginal, integrado al proyecto más para facilitar su tránsito parlamentario que para apoyar verdaderamente en él un intento serio de solucionar los problemas habitacionales 15. No entanto, em 1975, metade das solicitações de financiamento feitas ao Banco Hipotecário Uruguaio correspondiam ao sistema cooperativo, 70% delas para a formação de cooperativas por ajuda mútua. A disputa em torno dos fundos públicos de habitação que estes empreendimentos mantiveram contra o centralismo estatal atravessaram toda história subseqüente do cooperativismo de habitação uruguaio. Ao analisar a origem das cooperativas habitacionais na Europa do século XIX, Johnston Birchall destaca que a habitação é o primeiro empreendimento de alto valor a se tornar uma das atividades cooperadas. Até então, estas se limitavam ao consumo de bens de uso doméstico, à comercialização de pequenos produtores rurais, ao fornecimento de crédito mútuo e à organização de trabalhadores autônomos. Tudo isso é diferente numa cooperativa dedicada à obtenção de uma moradia: By its very naA mão–de–obra contratada é especializada até mesmo em cooperativismo por ajuda mútua: muitos trabalhadores externos nas obras moram em cooperativas e, naturalmente, integraram a mão–de–obra por ajuda mútua que as ergueram. 15 NAHOUM, Benjamin. "De la autoconstucción individual a las cooperativas pioneiras". In: Na houm, Benjamín (org.) Las cooperativas de vivienda por ayuda mutuas uruguayas. Sevilla/Montevideo: Junta de Andalucia / Intendencia Municipal de Montevideo, 1999. 14
189 ture it requires a large investment at the start of its useful life, which then turns into a long–term financial commitment. Working–class people have never been able to make the initial commitment […] Then the cost of servicing a loan or a landlord’s investment, of maintenance and refurbishment, may all be too high for many people to afford 16. O resultado desta combinação, continua Birchall, é que “in contrast to other forms of co–operative, housing co–ops have nearly always needed state aid to get started”. Segundo este historiador do cooperativismo, o consumo da habitação foi o primeiro campo em que o cooperativismo enfrentou a interferência do poder do Estado. É basicamente para contrarrestar* esta interferência que se formou uma instituição tão essencial para o cooperativismo habitacional uruguaio quanto a Ley de Vivienda: a Federação Uruguaia de Cooperativas de Habitação por Ajuda Mútua – FUCVAM.
A Federação Uruguaia de Cooperativas de Habitação por Ajuda Mútua A FUCVAM (Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua) unifica a representação das atuais 490 cooperativas de habitação por ajuda mútua do Uruguai numa proporção capaz de se contrapor à concentração de poder do Estado ou das entidades empresariais da construção civil. Sem esta unificação, dificilmente o cooperativismo teria sobrevivido às diversas derrotas que sofreu na disputa pela gestão do fundo de habitação ou se renovado através de suas poucas vitórias. Em paralelo às campanhas populares, a FUCVAM desenvolve um trabalho permanente de capacitação de quadros de direção e de organização da demanda por moradia que, de outra forma, não poderia ser realizado apenas entre cooperativas e entidades de assessoria técnica. Com a diminuição de grupos formados previamente em sindicatos, a FUCVAM se torna cada vez mais a organizadora de cooperativas a partir de vínculos comunitários e oriundos de redes de trabalho informal. Há também uma dimensão produtiva entre suas atividades permanentes de apoio à ajuda mútua, que é a compra, manutenção e rodízio de equipamentos de construção civil entre cooperativas. Esta atividade de apoio à produção é um resquício de um papel mais amplo que a FUCVAM chegou a assumir em duas frentes durante a forte expansão do cooperativismo de habitação no início dos anos 1970. A primeira frente foi orBIRCHALL, Johnston. The international co–operative movement. Manchester: Manchester University Press, 1997. 16
190 ganizar um sistema centralizado de compras de insumos de construção – central de suministros – que obtinha para todas as cooperativas preços compatíveis com um maior poder de compra. A segunda frente foi construir uma fábrica de componentes construtivos, destinada a fornecer com ganhos de escala a todas as cooperativas elementos pré–fabricados em argamassa armada. Estas duas frentes de apoio produtivo (e não apenas administrativo ou institucional) que a FUCVAM promovia para suas cooperativas foram desmontadas no maior enfrentamento que a federação manteve em sua história com o Estado uruguaio: a defesa da propriedade coletiva nas cooperativas por ajuda mútua, instituto atacado pelo regime militar de 1973/1985. Em termos práticos, tal “propriedad colectiva” significa que a propriedade das unidades habitacionais é escriturada em definitivo para a cooperativa de habitação depois que esta conclui as fases de compra do terreno e edificação das moradias, quando o procedimento comum no mercado habitacional é fracionar e transferir para indivíduos a propriedade de cada unidade habitacional. Portanto, nas cooperativas de habitação por ajuda mútua, a pessoa jurídica criada para contrair o financiamento e viabilizar a construção das habitações não é dissolvida quando estas terminam de ser construídas. Segundo a presidente de uma das mais emblemáticas cooperativas de Montevidéu – Covimt 9 – “esto impide en gran parte lo aislamiento de la gente, porque la verdad es que la cooperativa sigue construyendo”. Melhor dizendo, “sigue construyendo” com as tarefas de manutenção das áreas comuns (que não são mais apenas as áreas fora das moradias) e, fora dos limites do terreno, ajudando ou mesmo assumindo a construção de equipamentos comunitários como escolas e postos de saúde (policlínicas), frequentemente cedidos posteriormente para uso público. Do ponto de vista da Ley de Vivienda, o prolongamento da pessoa jurídica cooperativa e de seu patrimônio após a fase de obra corresponde apenas a uma passagem, prevista no Artigo 130, do seu objetivo principal, que é “proveer de alojamiento adecuado y estable a sus asociados”, para seu objetivo secundário, que é “proporcionar servicios complementarios a la vivienda”. Segundo a jurisprudência uruguaia, nenhum destes objetivos implica na transferência de propriedade para os associados17. Do ponto de vista dos cooperados, o regime de propriedad colectiva os converte em usuários em vez de proprietários, uma vez que passam O regime de propriedade coletiva igualmente se disseminou entre as cooperativas de consumo por “ahorro previo” filiadas à federação Fecovi. O texto da “Ley de Vivienda” pode ser consul tado em “www.parlamento.gub.uy/leyes/ley13728.htm” 17
191 a ser detentores de um derecho de uso sobre a residência que a cooperativa lhes designar. Dois artigos da Lei de Habitação dão as principais condições para exercício deste direito: Art. 144 – Las unidades cooperativas de usuarios sólo atribuyen a los socios cooperadores derecho de uso y goce sobre las viviendas. Derecho que se concederá sin limitación en el tiempo, que se trasmitirá a los herederos y aún podrán cederse por acto entre vivos, pero sujeto a las li mitaciones que se establecen en la presente ley […] Art. 151– Los asociados deberán destinar la respectiva vivienda adjudicada para residir con su familia y no podrán arrendarla o cederla, siendo nulo todo arrendamiento o cesión, salvo lo dispuesto en los artículos siguientes. Si el usuario no destinara la vivienda para residencia propia y de sus familiares, será causa bastante para la rescisión del contrato de uso y goce, y la expulsión de la cooperativa. Assim, “mientras las partes cumplan sus obligaciones” como diz a legislação uruguaia, o direito de uso tem “una duración indefinida”, e sua transmissão por herança implica também na transmissão das obrigações da condição de usuário. A primeira delas é a do herdeiro se incorporar ao quadro associativo da cooperativa, uma vez que o direito de uso deriva desta condição. É esta a base jurídica para impedir sua locação ou mesmo sua cessão gratuita: só a cooperativa (quer dizer, o conjunto de todos os usuários que são seus associados) pode transferir o direito de uso que toca a seu patrimônio. Outro artigo trata do ponto mais sensível do direito de uso num país que entra numa fase de desemprego estrutural e sustenta uma das maiores taxas de emigração da América Latina: a sua transmissão por vontade do morador e com assentimento da cooperativa: Art. 153 – Si el retiro se considerara justificado el socio tendrá derecho a un reintegro equivalente al valor de tasación de su parte social, menos los adeudos que correspondiera deducir y menos un 10 % (diez por ciento) del valor resultante A cessão do direito de uso significa a saída do morador do quadro associativo da cooperativa, o que não dá direito ao valor de uma venda de imóvel, mas sim ao valor das cotas de capital que ele levou à cooperativa para que esta pagasse os juros e amortizações do financiamento habitacional. “La vivienda así disponible, es adjudicada a una nueva familia, seleccionada entre los interesados presentados a la cooperativa por los mismos usuarios. Se preservan así las características básicas del colectivo” (Chávez; Buroni, 1996: 12). A retenção permanente de 10% da cota social de um cooperado serve para compor diversos fundos sociais da cooperativa. Um destes fun-
192 dos, chamado de Fondo de Socorro, é o grande responsável pela baixa inadimplência e rotatividade de moradores nos empreendimentos por ajuda mútua. Ele serve para cobrir as prestações devidas por uma família em situação de desemprego ou enfermidade. Funciona como um seguro comunitário, capaz de atender as necessidades econômicas de uma família vulnerabilizada socialmente com mais agilidade do que um programa assistencialista e com mais eficiência do que as precauções dos contratos privados. Deflagrado o golpe militar em 1973, as cooperativas de habitação por ajuda mútua e seu regime de propriedade coletiva se tornaram imediatamente um foco de conflito contra a nova orientação da política habitacional, na qual o “el Estado se convertía en el mero financista y administrador de obras construidas por empresarios capitalistas”18, aproximando definitivamente o arcabouço legal da Ley de Vivienda do SFH brasileiro. Até então, o cooperativismo de habitação uruguaio teve sua maior expansão. As 43 cooperativas filiadas naquele momento à FUCVAM tomaram emprestado um terço de todo o fundo de habitação entre 1968 e 1973. Nos anos que se seguiram, a expansão das cooperativas de habitação sofre dois ataques. Em 1975 deixam de ser concedidos financiamentos habitacionais e, em 1976, se inicia o longo período em que não é mais concedido “personerías jurídica” para as cooperativas de habitação, impedindo definitivamente a expansão da FUCVAM. A primeira reação nacional articulada pela FUCVAM acontece em 1983. Depois que o Banco Hipotecário determinou um aumento linear de 15% nas amortizações dos financiamentos habitacionais, a FUCVAM organiza entre suas filiadas uma “huelga de pagos”, que não era propriamente um calote generalizado, porque os valores seriam depositados em contas bancárias não vinculadas ao BHU. A esta “greve de pagamentos” se juntaram rapidamente outras entidades de mutuários do banco, no que se tornou o primeiro questionamento popular de uma medida do regime militar. Inaugurou–se uma fase de acontecimentos que Daniel Chávez e Susana Carballal analisam sob o sugestivo título de “FUCVAM: un problema de seguridad nacional”19. A resposta do regime militar foi um projeto de lei que obrigava as cooperativas de ajuda mútua a aderir ao regime de propriedade individual das moradias, individualizando o financiamento habitacional. Sabendo que o projeto de lei não encontraria oposição num legislativo controlado, a CHÁVEZ, Daniel; CARBALLAL, Susana. La ciudad solidaria. Montevideo: Nordan–Comunidad, 1997. 19 CHÁVEZ, Daniel; CARBALLAL, Susana. La ciudad solidaria. Montevideo: Nordan–Comunidad, 1997. 18
193 direção da FUCVAM aproveita–se de um instrumento de democracia direta preservado na constituição uruguaia e pede a plebiscitación da lei. Se o pedido fosse subscrito por pelo menos 500 mil eleitores, obrigava que uma lei aprovada no legislativo só entrasse em vigor depois de uma consulta popular. Em poucos dias de fevereiro de 1984 foram recolhidas 600 mil assinaturas de apoio ao regime de propriedade coletiva nas cooperativas, no que se tornou uma campanha nacional com adesões de diversas organizações sociais e forças políticas proscritas. A mobilização contra a lei de propriedade deixou de ser uma luta apenas de um setor da esquerda e passou a acionar todo o campo opositor à ditadura 20. Segundo Gustavo Sotto e Javier Vidal Alaggia, a participação das cooperativas de habitação na queda do regime militar formou uma identidade para a FUCVAM reconhecida em toda sociedade uruguaia: Una de las consecuencias notorias va a ser la fuerte presencia de FUCVAM en el imaginario colectivo. La Federación va a ser asociada de manera permanente a “lo cooperativo”, a “las viviendas” y al desarrollo comunitario componente de una noción de hábitat integral y complejo 21. Em novembro de 1984, o fim do regime militar uruguaio é iminente e o novo legislativo retira o projeto de lei não sem antes impor mais um ataque ao cooperativismo. As cooperativas deviam resolver, não através de sua máxima instância decisória (como reconhecida pelas legislações cooperativistas de todo o mundo) – as assembleias gerais – mas por voto secreto de cada associado, se desejavam ou não alterar o regime de propriedade coletiva. Pela grande maioria dos votos secretos de seus membros, todas as cooperativas da FUCVAM optaram pela permanência do regime de propriedade coletiva. Um manifesto da FUCVAM publicado pouco depois afirma o seguinte: Si no existe la propriedad individual de la vivienda es por la sencilla razón de que en asamblea general los socios cooperativistas resolvieron ser usuarios, pero cuentan con la posibilidad de dejar de serlo, renunci ando y recuperando lo aportado. Pero sucede que esta primera decisión, de cuando aún no teníamos la vivienda, se ha visto abonada por la experiencia de todos estos años, en los que gracias a ser usuarios pudimos enfrentar los reajustes del BHU, la desocupación que asoló y asola los hogares de los trabajadores, los miserables salarios y jubilaciones, hemos podido conservar ese techo que tanto sacrificio nos ha costado (apud Chávez; Carballal).
CHÁVEZ, Daniel; CARBALLAL, Susana. La ciudad solidaria. Montevideo: Nordan–Comunidad, 1997. 21 SOTO, Gustavo; ALLAGIA, Javier Vidal. A la luz del dia. Montevideo: Fucvam, 2004 20
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O mutirão autogerido em São Paulo: um caso brasileiro O crescimento industrial brasileiro entre as décadas de 1930 e 1970 foi acompanhado de um intenso movimento migratório do campo para as cidades. Se no começo do século XX, 10% da população morava nas cidades, em 1980 este número chega a 68,86% 22. Esta industrialização, estruturada e controlada a partir de capital internacional, alterou as relações de trabalho que ainda mantinham aspectos herdados da produção rural colonial, que se realizou sobre “bases escravocratas, patrimonialistas e burocráticas no que tange à implantação de políticas públicas” 23. Manteve e deu novas formas a uma sociedade extremamente desigual. O contingente de mão–de–obra formado pelo que foi chamado de “industrialização de baixos salários” reside basicamente numa cidade autoconstruída, em que se desrespeitam todas as dimensões de direitos sociais ligadas à moradia digna: amparo legal à habitação, apoio técnico, acesso a serviços e equipamentos urbanos. Apesar deste quadro, o período da ditadura militar brasileira elegeu a questão da habitação popular como um de seus “problemas fundamentais”. Para o Estado a moradia seria prioridade básica sobre a qual se concentraria um grande esforço econômico, enquanto que a casa própria tornava–se símbolo de sucesso e ascensão social no imaginário da classe média e do operariado urbano. Neste ano foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH) para gerir as operações de crédito (em grande parte do FGTS) para a construção de unidades habitacionais numa escala nunca vista no país. Os objetivos deste banco eram gerar empregos, dinamizar a indústria da construção civil e aumentar a produtividade no setor para conseguir rebaixar o preço de produção da habitação. Na prática o que se observou foi uma parte da classe média e agentes privados fazendo do desenho das habitações e da cidade um lucrativo negócio, pois cabia a estes a decisão sobre a construção e a localização dos empreendimentos conforme o jogo especulativo de compra e venda de terrenos. Além disso, a lei brasileira obrigava que as ações do BNH fossem intermediadas por agentes financeiros (sociedades de crédito imobiliário e bancos privados) que, além de drenar parte dos rendimentos, era responsável pela arrecadação de recursos que, pelo seu
MARICATO, Ermínia. A política habitacional durante o regime militar. Petrópolis: Vozes, 1987. BOLAFFI, Gabriel. Habitação e urbanismo: o problema e falso problema. In: MARICATO, E. (org). A produção capitalista da casa (e da Cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Alfa–ômega, 1979. 22 23
195 formato, dificultava a entrada da população de renda mais baixa (de 0 a 5 salários mínimos)24. Assim, sem industrializar a construção civil e reproduzindo um modelo de mercantilização da terra, num período de 22 anos foram produzidas 4,8 milhões de unidades apinhadas em gigantescos conjuntos habitacionais que confinavam a população migrante na periferia das cidades, criando para o Estado um déficit até hoje não sanado em obras de expansão das redes de infra–estrutura. A recessão econômica da década de 1980 gerou inflação, desemprego, violência e queda nos níveis salariais. A crise reduziu as arrecadações do FGTS e das poupanças e aumentou a inadimplência devido à incapacidade de pagamento dos mutuários frente aos aumentos das prestações. Famílias que buscavam fugir de um valor de aluguel desproporcional aos salários, tiveram que recorrer à formas ainda mais precárias de moradia como cortiços e favelas. “No município de São Paulo, por exemplo, segundo a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, a população moradora de favelas representava perto de 1% em 1973. Já no fim da década seguinte, em 1980, essa proporção era de 8% e, em 2005, passa de 11%.” (Maricato, 1995) O sistema do BNH do regime militar pedia drásticas mudanças e suas críticas passam a se articular com a luta pela democracia. Este contexto propiciou a formação de organizações sociais que reivindicavam soluções ao poder público, entre elas os movimentos populares. A partir do processo de redemocratização e com a extinção do BNH em 1986, estas entidades se fortaleceram e se articularam com grupos universitários, Comunidades Eclesiais de Base, sindicatos, grupos de esquerda que faziam parte da luta pela redemocratização e ligados ao surgimento do PT, e passaram a participar da formulação de políticas públicas numa instância não mais nacional e sim descentralizada em municípios e Estados25. A intermediação de agentes privados na arrecadação dos recursos financeiros fez com que o BNH funcionasse na verdade como um “grande dinamizador do processo de acumulação de capi tal” (Maricato, 76), concentrando lucros obtidos a cada unidade produzida nas mãos de agentes privados. MARICATO, Ermínia. Autoconstrução, a arquitetura possível. In: MARICATO (org). A produção capitalista da casa (e da Cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Alfa–ômega, 1979. 25 Na Região Metropolitana de São Paulo a provisão de habitação popular é promovida principalmente pela COHAB/SP (municipal) e a CDHU (estadual) que até 2006 haviam construído cerca de 290 mil unidades habitacionais (Brito apud Nobre, 2008). Devido ao custo da terra em São Paulo e aos poucos recursos vindos do Poder Público a atuação destas companhias nunca chegou a atender uma quantidade substancial da demanda da metrópole. NOBRE, Eduardo A. C. Precariedade do habitat e política de habitação de interesse social: o caso da Grande São Paulo. ln: PEREIRA, P. C. X. & HIDALGO, R. (eds.) Producción Inmobiliaria y reestructuración metropolitana en América Latina. Santiago: Pontificia Universidad Católica de Chile/FAUUSP, 2008. p. 245–256. 24
196 Foram estas entidades da sociedade civil que buscaram novas formas de programas habitacionais, como urbanização de favelas e assentamentos precários, construção de moradias novas por mutirão e autogestão, apoio à autoconstrução e intervenções em cortiços e em habitações nas áreas centrais26. São alternativas surgidas no contexto da Constituição de 1988, que priorizam o “desenvolvimento sustentável, diversidade de tipologias, estímulo a processos participativos e autogestionários, parceria com a sociedade organizada, reconhecimento da cidade real, projetos integrados e a articulação com a política urbana.”27. Nesse modelo em que a sociedade civil assumiu maior protagonismo na produção do habitat, a expressão mais relevante foi a de São Paulo durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989–1992). Nesse período, os movimentos populares geriram 100 mutirões de habitação popular com o apoio de 23 assessorias técnicas para a produção de 11 mil unidades habitacionais (das quais apenas 2 mil foram concluídas naquela gestão, e as demais 9 mil foram concluídas até 2004 28). Apesar das limitações, esta experiência despertou a possibilidade da ação do movimento popular, da população voltar a atuar na “centralidade do processo político, por meio do instrumento denominado autogestão.” (Moreira, 2009) Trabalhava–se e discutia–se o mutirão autogerido como uma experimentação de novas formas de habitar as cidades, testando novas formas de trabalho em que trabalhadores passavam a tentar comandar o sentido da sua história. As entidades encontravam no mutirão a prática e o instrumento para a realização do trabalho de base e de conscientização da população, construindo autonomia e poder popular. A experiência inicial de como construir uma nova relação entre poder público, população organizada e assessorias técnicas nos projetos habitacionais foi o mutirão da Vila Nova Cachoeirinha, projeto em que o jovem engenheiro Guilherme Coelho trouxe para os movimentos de moradia de São Paulo a experiência da FUCVAM e seus princípios autogestionários. Aspectos de desenho e organização da obra eram desenvolvidos em conjunto com a comunidade e ser tornaram uma referência principalNa periferia da Região Metropolitana de São Paulo, a diminuição de lotes populares e a deficitária rede de equipamentos de infra–estrutura nas periferias provoca um contra–fluxo de trabalhadores em direção ao centro acentuado na década de 90. Em busca de serviços urbanos e trabalho, passam a ocupar, de forma precária, uma série de edifícios vazios. Muitas dessas ocupações são organizadas por Movimentos de Moradia no Centro que reivindicam a requalificação e a conversão de cortiços para uso habitacional. 27 BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula,mimeo, 2008. Extraído do site: www.usjt.br 28 ARANTES, Pedro. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefebvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. 26
197 mente para as obras dos movimentos de moradia que tinham na UMM (União dos Movimentos de Moradia) um polo político importante. Fundada em 1987, a UMM surgiu para tentar articular os diversos movimentos por moradia da cidade de São Paulo. Bastante influenciada pelos princípios das Comunidades Eclesiais de Base, a UMM contabiliza cerca de 30 mil unidades construídas em mutirão. Até hoje lutam pela construção por autogestão, pelo direito à cidade, a Reforma Urbana e a participação na produção de políticas públicas. Em 1989, diversos movimentos de moradia se articulam para a criação do Sistema, do Fundo e do Conselho Nacional por Moradia Popular e fundam a União Nacional por Moradia Popular, cuja função é articular e mobilizar movimentos de moradia do Paraná, Minas Gerais e São Paulo. A UNMP luta por iniciativas habitacionais em âmbito nacional pressionando diretamente o Governo Federal como, por exemplo, para a aprovação do Estatuto das Cidades e para a realização da Conferência das Cidades. O Estatuto das Cidades foi emblemático como conquista institucional da luta pela Reforma Urbana ao trazer instrumentos legais de regularização fundiária para assentamentos precários, leis e taxações contra a especulação imobiliária e instrumentos de democratização da gestão urbana para garantir a participação dos movimentos em processos decisórios. Em 2005, durante o governo federal de Lula (2002–2010) houve um grande aquecimento do mercado imobiliário em parte pelas políticas implementadas pelo Ministério das Cidades. As empresas imobiliárias cresceram e se internacionalizaram através da abertura de capital. Como uma forma de minimizar os efeitos da crise imobiliária de 2008, o governo injetou mais 60 bilhões de reais (Arantes, 2011) para a construção de 1 mi lhão de moradias no programa Minha Casa, Minha Vida. Com esta medida anticíclica o Estado aquece o mercado imobiliário, capitaliza grandes construtoras e retoma o discurso ideológico do “sonho da casa própria” herdado do período da ditadura militar. É um processo de privatização da política habitacional em que apenas 3% de seus fundos públicos são destinados para empreendimentos autogeridos, o suficiente para manter apaziguados os movimentos de moradia e restringir os movimentos à luta institucional, no sentido de que buscam cada vez mais recursos para empreendimentos em vez de promover conscientização e luta política emancipadora. A proposta autogestionária dos movimentos sociais no Brasil se mantém como uma alternativa marginal, em desvantagem nas regras e divisão dos recursos públicos. A sobrevivência de poucas experiências autogestionárias e a precariedade das suas condições de trabalho são sinto-
198 máticas. Mesmo assim, são referências muito importantes como contraposição ao modelo de gestão e construção habitacional dominante.
A luta por moradia em Buenos Aires: um caso argentino A experiência argentina recente do MOI – Movimento de Ocupantes e Inquilinos, que se alimentou das ideias da FUCVAM, vem se destacando entre as experiências de autogestão do habitat, com importantes conquistas em termos arquitetônicos, urbanos e organizativos, e novidades em relação às experiências uruguaias e brasileiras. O contexto argentino do início do século XXI foi favorável ao crescimento das práticas autogestionárias na produção do habitat e na luta pelo direito à cidade, iniciando no combate ao neoliberalismo extremo “Menemista” até a queda do presidente De La Rua, quando os trabalhadores passaram a ocupar fábricas, edifícios, ruas e praças em um processo de autogestão urbana sem precedentes na América Latina pós–ditaduras militares. É esse momento político e social favorável à imaginação e às práticas transformadoras que permite o crescimento das ações autogestionárias em Buenos Aires, como a que será apresentada a seguir. Durante a redemocratização da Argentina nos anos 1980 e a expansão e consolidação das atividades industriais, a pobreza urbana se expandiu territorialmente através da expansão da periferia (autoconstrução de bairros originados por ocupação de terras). O presidente Carlos Menem é eleito no final dos anos 1980 pelo Partido Justicialista (peronista), com amplo apoio popular. Seu governo é marcado, por um lado, por manter as antigas práticas peronistas (populistas) ligadas ao clientelismo (fonte famosa) e, por outro, pelo reajuste estrutural econômico através de privatizações, abertura aos capitais estrangeiros, paridade cambial e reformas. Nessa fase a Argentina presenciou um leve surto seguido de um considerável aumento das taxas de desemprego e das disparidades sociais. O segundo mandato de Menem experimentou o surgimento das bases indignadas com as más condições da população. Surge a CTA – Central de Trabajadores Argentinos – que agregava diversos sindicatos, e progressivamente tomam forma os movimentos de desempregados (piqueteros). Além dos piqueteros, que formaram o maior grupo de desempregados em ação política conjunta da América Latina, a Argentina vivenciou
199 um período de explosão de revoltas da população 29, indignada com os rumos neoliberais dados ao país. O ápice da crise se deu em dezembro de 2001, portanto, dez anos atrás. Em 4 meses, a Argentina teve mais de quatro presidentes. O momento político histórico de redemocratização aliado às péssimas condições sociais que a população estava submetida impulsionou o surgimento de diversos grupos organizados. É neste período que surgem organizações de bairro, como Tupac–Amaru, em Jujuy, e organizações sociais como a Federación de Tierra, Vivienda y Habitat (FTV), a Frente Popular Dario Santillán, o Movimiento Teresa Rodriguez, e as Madres de Mayo, que tiveram importante papel inclusive na construção de habitação por mutirão, em Buenos Aires. No contexto da produção autogestionária do habitat se destaca o MOI – Movimiento de Ocupantes y Inquilinos – de Buenos Aires, organização social nascida no início dos anos 90, que tem como princípios o direito à cidade, a moradia digna e a autogestão para construção de outras bases para a sociedade argentina. As experiências fundacionais do MOI estão ligadas às ocupações de edifícios vazios, sobretudo fábricas abandonadas, na área central da cidade de Buenos Aires. Entre 1991 e 1998 cerca de 500 famílias constituídas em cooperativas organizadas pelo Movimento realizaram uma série de ocupações a edifícios nos bairros de San Telmo, San Cristóbal, Barracas e Caballito. As ocupações impulsionaram os processos de regularização das questões relativas à posse desses edifícios e mobilizaram agentes públicos para a questão dos edifícios vazios no centro. Aproximadamente 200 famílias desse grupo formaram as atuais cooperativas Perú, La Unión, Yatay, Fortaleza, entre outras. Antes mesmo deste período de expansão do movimento, em setembro de 1990, o MOI é convidado para conhecer a experiência da FUCVAM, que naquela ocasião comemorava 20 anos de existência. Nesse momento os argentinos conheciam as experiências cooperativas de origem sindical uruguaias, o seu caráter autogestionário e de propriedade coletiva, explicitamente marcados pelo capítulo da Lei Nacional de Habitação de 1969. A partir deste encontro, realizado nas instalações municipais do Parque Rivera, o MOI passa a se apropriar da história que estavam construindo os uruguaios. Além dos piquetes, outras formas de manifestações populares, como os escraches e as assembleas barriales, alimentaram o surgimento de uma outra consciência política na população argentina. Os escrachos eram ações direcionadas aos torturadores do período da ditadura; as assembleas barriales eram articulações políticas autônomas entre moradores de um mesmo bairro que reivindicavam formas de democracia diretas e deliberativas. 29
200 Filiado à CTA, Central de Trabalhadores da Argentina (importante organização sindical que congrega outros movimentos sociais) 30, o MOI é uma das principais organizações sociais de luta por moradia da cidade de Buenos Aires. Reúne técnicos interdisciplinares e a população organizada proveniente de diversos países31. A organicidade dos profissionais ao movimento é um ponto de contraste com os movimentos no Brasil, onde os profissionais, em grande parte dos casos, são independentes dos movimentos. Do ponto de vista estatal, a criação e implementação de marcos legais de iniciativa popular, impulsionados pelo MOI acompanhado de outros movimentos, estimulam a produção por meio de regimes autogestionários para habitação popular. Entre eles está o programa federal voltado para construção de habitações emergenciais, conhecido como Techo y Trabajo, que tem como objetivo construir novas unidades habitacionais por meio de cooperativas de trabalho, através do Fonavi (Fondo Nacional de la Vivienda). O programa busca contribuir para o desenvolvimento econômico, através do estímulo ao trabalho para a população desempregada, além de melhorar as condições habitacionais. É importante lembrar que o programa Techo y Trabajo foi posto em prática em 2003, a partir da chegada de Néstor Kirchner à presidência, fazendo parte de uma política de “recentralización y elevado protagonismo del nivel nacional” (Rodriguez, 2007). Uma das principais conquistas do MOI e de outras entidades ligadas à luta por moradia foi a implantação do Programa de Autogestión de la Vivienda (PAV) através da promulgação da Lei 341. Em linhas gerais, a Lei 341 da Cidade Autônoma de Buenos Aires tem como propósito instrumentalizar políticas de acesso à habitação para lugares onde os recursos são escassos e a situação habitacional é precária. Contempla tanto destinatários individuais como pessoas incorporadas em processos coletivos, através de cooperativas ou associações sem fins lucrativos. La Ley 341 se enmarca en los lineamientos planteados en el artículo 31 de La Constitución de la Ciudad (“promoción de los planes autogestionados”). Su principal y significativo avance es la inclusión de las organizaciones sociales como sujeto de crédito. Asimismo, financia distintos tipos de intervenciones (obra O CTA agrega diversos sindicatos e federações. Além do MOI, a FTV – Federación Tierra y Vivienda, o MTL – Movimiento Territorial Liberación e a MTA – Asociación barrial Tupac Amaru, de Jujuy, levam à CTA as questões relacionadas ao Direito à Moradia e à Cidade. 31 RODRIGUEZ, María Carla; VIRGILIO, María Mercedes Di; VIO, Marcela. Política del hábitat, desigualdad, y segregación socio–espacial em el Área metropolitana de Buenos Aires. Buenos Aires: El autor, 2007. Uma das lideranças é o arquiteto Néstor Jeifetz, e possui em sua equipe técnica outros seis arquitetos, seis técnicos sociais, três profissionais da área legal e três da área contábil. 30
201 nueva, rehabilitación, mejoramiento) (artículo 4) y establece la possibilidad de asignar subsídios para el completamiento de las cuotas (artículo 9) a los grupos de más bajos ingresos, dado que no fija restricciones al acceso al crédito.”32 É importante ponderar que a Lei 341, apesar de representar um avanço para as políticas públicas ligadas à autogestão em Buenos Aires, ainda está muito aquém de marcos legais como o Estatuto da Cidade, do Brasil, ou a própria Lei Nacional de Habitação uruguaia. Atualmente existem 23 cooperativas em andamento no MOI, e trataremos aqui de alguns pontos específicos de algumas cooperativas. Cada uma delas possui especificidades, porém todas trabalham sob os princípios da autogestão. Os tipos de intervenção são combinações de restauro dos edifícios existentes e obras novas. Os projetos procuram manter a memória das fábricas, utilizando elementos como os tijolos aparentes, fachadas com esquadrias generosas e as antigas chaminés para que permaneça presente a história daqueles edifícios. O projeto arquitetônico se destaca pela qualidade dos espaços, tanto coletivos quanto das unidades habitacionais. Contrapõe–se arquitetonicamente diretamente às unidades usualmente produzidas para baixa renda. A qualidade das tipologias vão desde o tamanho dos apartamentos, de um a quatro dormitórios, de acordo com a necessidade da família, até as grandes área iluminadas por esquadrias generosas, pés direitos duplos seguindo a altura original das fábricas e varandas. Outra questão que chama a atenção nos projetos desenvolvidos pelo MOI é a disputa pela localização. A centralidade dos projetos de habitação de interesse social, muitas vezes implantados em bairros centrais e por vezes de alto padrão, são contrastantes, sobretudo para as experiências brasileiras, onde grande parte dos conjuntos foi construída nas periferias das cidades. Lefebvre defende que o direito à cidade é o direito à centralidade, ao lugar dotado de infraestrutura, equipamentos públicos e de lazer e amplas redes de transporte público. Dessa forma, todas as cooperativas estão localizadas em bairros centrais, e por vezes reconhecem a gentrificação nos seus vizinhos mais próximos. Dois dos projetos desenvolvidos pelo MOI, a cooperativa La Fabrica e Yatay, estão localizados no bairro de Barracas, e destacam a disputa pela localização. Em frente às obras das duas cooperativas, outro projeto de restauro de uma antiga fábrica abandonada está sendo erguido com o mesmo uso – habitacional, porém por outro agente – o mercado imobiliário – e, sem dúvida, para outro público – a classe média argentina. RODRIGUEZ, María Carla; VIRGILIO, María Mercedes Di; VIO, Marcela. Política del hábitat, desigualdad, y segregación socio–espacial em el Área metropolitana de Buenos Aires. Buenos Aires: El autor, 2007. 32
202 A cooperativa La Fabrica, constituída em 2000 por famílias de cooperativas esparsas e trabalhadores de sindicatos pertencentes à CTA, tem a particularidade de ser a primeira cooperativa que compra um imóvel na cidade de Buenos Aires, sob o marco da recém-criada Lei 341 33. A compra se concretizou em 2001, em plena crise nacional, e impulsionou a mudança do estatuto interno da Cooperativa, definindo o sistema de propriedade (coletiva, em nome da cooperativa) e o sistema de execução (por autogestão e ajuda mútua)34. A questão da propriedade coletiva, como no caso da FUCVAM, é uma das reivindicações centrais do Movimento. A cooperativa El Molino marca, junto com La Fabrica, uma significativa troca de escala para cooperativas, com maior número de sócios e complexos habitacionais com um número maior de unidades35. Nasceu em maio de 2003, também com a fusão de duas cooperativas, formadas anteriormente por famílias residentes em hotéis subsidiados pelo Governo da Cidade de Buenos Aires. A cooperativa La Unión é o primeiro exemplo de requalificação de edifício em área central e um dos mais emblemáticos. Nasceu no próprio edifício que as famílias ocupavam na Rua Azopardo 920, em San Telmo, antes ocupado por uma fábrica de produtos hidrófugos e de propriedade do Estado. Localiza–se ao lado de Porto Madero, projeto fruto de um modelo de renovação urbana feito no período menemista. Ao mesmo tempo que o projeto de renovação do porto ia sendo erguido pelo capital imobiliário e empresas privadas, transformando os galpões originais em edifícios de escritórios ou restaurantes voltados para o turismo, a cooperativa ia erguendo na antiga fábrica de hidrófugos as unidades habitacionais em regime de ajuda mútua e autogestão. Além das unidades que estão sendo construídas pelas cooperativas do Movimento, parte das famílias permanece, durante a obra, em moradias provisórias, especialmente se moram em locais onde há risco ou se pagam alugueis excessivos. Essas moradias provisórias são edifícios reformados pelo Movimento, e além de ser a habitação de muitas famílias ao longo da obra, colaboram pedagogicamente para que a dinâmica política e de convívio do grupo seja fortalecida no cotidiano. “ Definitivamente nuestro pueblo através de la organización popular es capaz de dar solución a las condiciones para reproducir su vida. Eso implica obviamente desarrollar organización social, pero también implica Ley 341 de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires año 2000 y su modificación del año 2003, Ley 964. Buenos Aires, 24 de fevereiro de 2000. 34 RODRIGUEZ, María Carla. Autogestión, políticas Del hábitat y transformación social. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2009. 35 O programa arquitetônico da Cooperativa El Molino contempla 100 unidades habitacionais, espaços e equipamentos comunitários para uso do bairro com salões e uma praça. 33
203 construir perspectiva de poder, implica construir perspectiva de lo que es el Estado… Nosotros creemos que la organización social construida desde una sectorialidad como la vivienda es una herramienta de construcción de poder político transformador” Homero Ramírez integrante do MOI36
A autogestão em habitação na Venezuela bolivariana Um marco importante da influência das experiências latino–americanas para os movimentos de moradia da Venezuela foi o Fórum Social Mundial de 2006, sediado em Caracas. Nesta ocasião os movimentos puderam estreitar os laços com outras organizações da América Latina. A partir de então o Movimiento de Pobladoras e Pobladores (MPP) se tornou membro da Secretaria Latinoamericana de la Vivienda Popular – Selvip. Para o MPP, a Selvip “há sido una herramienta fundamental de fortalecimento de nuestras luchas, a través del intercambio permanente com organizaciones que tienen décadas de experiencia en el campo de la vivienda popular, la producción social del hábitat y la lucha por el derecho a la ciu dad”.37 Segundo Milton Santos, dentre os países modernos da América Latina foi a Venezuela o último a modernizar–se em escala nacional. Essa modernização, iniciada por volta de 1940–1950, foi bastante rápida e acompanhou–se de uma urbanização acelerada38. Se em 1940 apenas 33,5% da população vivia em área urbana, proporção próxima à média da América Latina (34,70%), duas décadas depois 62% da população venezuelana morava em cidades, enquanto a média latinoamericana subira para 49,40%. A urbanização na Venezuela, como em outros países da América Latina, se concentrou nas grandes metrópoles, sobretudo na capital Caracas, que concentrava em 1990 cerca de 20% da população do país. Assim como na maioria das grandes cidades latinoamericanas, a população pobre assumiu a construção de suas habitações – 45% das mo-
BARBAGALLO, José. MOI Movimiente… en movimiento: la lucha por la casa em la ciudad de Buenos Aires: uma experiencia autogestionaria. – 1ª ed. – Buenos Aires: Asociación Civil MOI, 2007. 37 Movimiento de Pobladoras y Pobladores. Manifiesto por la Revolución Urbana. Unidad del Pueblo por la Ciudad Socialista y Revolución Urbana. Caracas, 2010. Movimiento de Pobladoras y Pobladores, 2010. 38 SANTOS, Milton. La urbanización dependiente en Venezuela. In Castells, Manuel (org.). Imperialismo y urbanizacion en América Latina. Barcelona. Gustavo Gili, 1973. 36
204 radias nos últimos 20 anos foram produzidas desta maneira, que representa hoje 50% de toda a população urbana39. Parcela significativa desta autoconstrução se deu na formação das favelas, os barrios. Em fins dos anos de 1950, viviam em barrios 17% dos caraquenhos, número que chegou a superar os 50% no final dos anos de 1970 e veio a estabilizar–se, a partir da década de 1990, entre 40 e 50. Em Caracas se localizam algumas das maiores favelas do mundo, como a Libertador, com 2,2 milhões de habitantes 40. Se até os anos 1970 a classe dominante conseguia manter o pacto de dominação através dos recursos do petróleo, o mesmo não pode ser dito nos anos 1980. Foi no final desta década que ocorreu uma importante rebelião popular, conhecida como Caracazo. Em relação ao cooperativismo, apesar das importantes experiências cooperativistas no âmbito habitacional41, quando se inicia o período do governo de Hugo Chávez em 1998 a Venezuela era um dos países com menor quantidade de cooperativas – em fevereiro de 1999 existiam apenas 813 cooperativas registradas. Neste momento a Venezuela se encontrava em uma crise estrutural, em que a quota de emprego no setor informal subira de 34,5% em 1980 e 56% em 1998. A proposta de democracia participativa implementada pela chamada “Revolução Bolivariana” prevê, como instrumentos fundamentais para sua realização, a autogestão, a co– gestão e as cooperativas. Com esta diretriz, o governo incentivou a formação de cooperativas, que aumentaram de 813 em 1990 para 262.904 no final de 2008. Também foram criadas as Cooperativas Comunales, estabelecidas em comunidades organizadas, com trabalhadores que provêm da mesma comunidade, que decide, por meio dos Conselhos Comunais, quais cooperativas necessitam e quem trabalhará nelas. Finalmente, foram criadas as Empresas de Producción Social (EPS), que podem ser cooperativas, empresas AROCHA, Alejandro. Repensando la actuación pública y privada en desarrollo urbano y vivienda. In GENATIOS, Carlos. Venezuela en Perspectiva. Caracas: Fondo Editorial Question, p. 288, 2004. 40 DAVIS, Mike Davis. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. 41 “Venezuela tiene el privilegio de haber sido, de acuerdo a la Oficina Internacional del Trabajo, la pionera del movimiento cooperativo de vivienda en America Latina al constituirse aquí la primera cooperativa de vivienda del continente en 1903 (“Sociedad Cooperativa de Ahorros y Construcciones de Porlamar” en Isla Margarita), seguida de otra en Argentina en 1905”. No entanto, o movimento cooperativo de moradia se inicia com mais força em 1959, com a criação da Cooperativa de Construccion Los Castores, no Estado Miranda, com 667 famílias. Desta obra nasceu a idéia de criar a Fundação INVICA, hoje desaparecida e que foi escola e gestora de programas associativos de moradia dirigidos a mais de 6 mil famílias. URANGA, Leandro. Primeras Jornadas Iberoamericanas de la Vivienda Cooperativa. Red XIV D. Alternativas y Políticas HABYTED – Subprograma XIV Tecnologia para Viviendas de Interes Social. CYTED – Programa Ibero Americano de Ciência y Tecnologia para el Desarollo. Asunción, Paraguay, 2001. 39
205 do Estado, mistas e até empresas privadas, que se voltam mais ao benefício social do que privado, orientando sua produção para as necessidades sociais. Uma EPS deve também se integrar às comunidades, através dos Conselhos Comunais, e investir parte de seus lucros no social e na infra– estrutura das comunidades, apoiando cooperativas e intregrando cadeias produtivas42.
CTU´s: ensaio de autogestão territorial Em relação à moradia, o governo Chávez avançou sobretudo na regularização e urbanização de favelas, a partir da formação dos CTU´s. Os CTU´s são organizações comunitárias dos barrios43, reconhecidos a partir de fevereiro de 2002, apesar de existirem “há décadas” 44. Os Comitês são o reconhecimento institucional de um processo histórico de organização e mobilização dos habitantes das favelas. Foram criados a partir da aprovação do Decreto Executivo 1.666 de fevereiro de 2002 que, segundo Andrés Antillano, “inicia o processo de regularização da terra dos assentamentos urbanos populares, vincula o acesso à terra com os programas de reabilitação e melhora dos assentamentos, cria a Oficina Técnica Nacional para a Regularização da Posse da Terra Urbana, como organismo técnico na matéria e se promove a organização popular para sua participação na regularização, através da criação dos Comitês de Terra Urbana em distintas localidades”45. Na Venezuela existem cerca de 7000 CTU´s, sendo que cada Comitê representa uma poligonal com uma quantidade próxima a 200 famílias46. Os Comitês são eleitos em assembleias públicas em sua comunidade, entendida como um território “não maior do que 200 famílias e que por sua origem, idiossincrasia, espaço geográfico, constitua uma unidade”47, ou seja, um território limitado onde seja possível haver uma identificação enquanto comunidade. Sobre os CTU´s, Antillano explica que “sua AZZELINI, Dario. Economia Solidaria, Formas de Propriedad Colectiva, Nacionalizaciones, Empresas Socialistas, Co–y Autogestión en Venezuela. In ORG & DEMO, Marília, v.10, n.1/2, p. 5–30, jan./dez., 2009. 43 O equivalente às favelas brasileiras. Na Venezuela cerca de 45% da população vive em assentamentos informais ou não regularizados com habitações autoconstruídas. Elisenda, 2004: 366. 44 MADERA, Hector. Comités de Tierra Urbana. In Cities for All: Experiences and Proposals for the Right to the City, SUGRANYES, A. y MATHIVET C., HIC, Santiago, 2010. 45 ANTILLANO, Andrés. Comités de Tierra Urbana. In RIBES, Maria Ramírez (compiladora). Lo mío, lo tuyo, lo nuestro… visiones sobre la propiedad. Club de Roma. Capítulo Venezoelano. 2006. 46 Madera, 2010: 223. 47 Antillano, 2006: 203. 42
206 participação no processo de regularização urbana integral fizeram a base para uma nova forma de poder, construída sobre a participação direta das pessoas, a relação ‘cara a cara’ sobre um território definido, para decidir sobre problemas comunitários e cotidianos, e sua superação. Se trata de criar uma relação ‘convivencial’ de participação e poder, longe das formas burocráticas e formalistas tentadas até agora” 48. Tanto os CTU´s quanto as diversas formas de produção cooperativista, indicam a tentativa, ainda que incompleta, de efetivar a proposta de democracia participativa. Compreender a história e importância dos CTU´s é fundamental para acompanhar os acontecimentos recentes, sobretudo a fundação do Movimiento de Pobladoras e Pobladores, organização que deve muito de sua origem ao histórico de luta dos Comitês. O Movimiento de Pobladoras e Pobladores (MPP)49 é uma agremiação que consegue articular uma diversidade notável de organizações ligadas à luta pelo direito à cidade em seu sentido mais amplo. É composto pelas seguintes organizações50: – Comités de Tierra Urbana (CTU), que lutam pelo reconhecimento e inclusão dos barrios, e pela sua regularização integral (jurídica, física, urbana), – Conserjes Unidos por Venezuela, agrupamento de zeladores de distintas partes do país, a maioria mulheres, “enfrentados a patronos que restringen sus posibilidades de organización”. Se organizam para defender seus direitos como trabalhadores e trabalhadoras que vivem e trabalham em condições de sobre–exploração. – Campamentos de Pioneros y Nuevas Comunidades Socialistas, que articulam famílias sem–tetos na luta pelo acesso ao solo urbano, para a produção de novas comunidades e construção de um projeto de vida coletivo, sobre um modelo autogestionário de planejamento participativo de projetos integrais de habitat e moradia, propriedade coletiva e trabalho solidário, – Red Metropolitana de Inquilinos, formada por famílias ameaçadas de despejo, especulação nos altos custos de aluguéis, e alto custo de moradias antigas, – Movimiento de Ocupantes de Edificios Organizados, agrupa os ocupantes de edifícios ociosos, abandonados, promovendo a articulação das famílias que habitam os edifícios da zona central de Caracas, Antillano, 2006: 204. Segundo o site do movimento, “La unidad del movimiento es a partir de las instancias de articulación territorial u organizativa, donde se realizan aportes para la construcción de planes y líneas políticas comunes que se concretan en el Encuentro Nacional del Movimiento de Pobladoras y Pobladores (inicialmente de CTU) que se realiza desde el 2004”. 50 Movimiento de Pobladoras y Pobladores, 2010. 48 49
207 – Frente de Grupos Organizados por el Buen Vivir, reúne famílias em moradias danificadas ou em risco, assim como os Comités Populares de Vivienda de refúgios, que lutam pelo direito à cidade e à moradia dos que perderam suas casas nas chuvas do final de 2010, Um dos princípios do MPP é a “reivindicação do povo como produtor do habitat”, em contraposição à produção privada da cidade. O movimento pauta expressamente em seu programa a construção do socialismo e do poder popular. A congregação desta variedade de atores permite que a pauta política do movimento não se restrinja apenas à produção de novas moradias, ampliando a luta para o direito à cidade e englobando as mais variadas esferas da vida urbana. Uma importante mobilização do MPP se deu em defesa da propriedade coletiva, que culminou na aprovação de lei que cria este tipo de propriedade na Venezuela. Esta lei estabelece a propriedade familiar e a propriedade multifamiliar. A propriedade multifamiliar é indivisível, imprescritível, impenhorável e inalienável. A lei também prevê a formação de Comitê Multifamiliar de Gestão, como órgão de decisão e análise dos problemas comuns da comunidade habitacional. Os Comitês podem integrar os Conselhos Comunais e Comunas em formação51. O intercâmbio entre as experiências autogestionárias é verificado sobretudo entre os movimentos sociais, como a UNMP (Brasil) e MOI (Argentina). No entanto, a intercâmbio entre os governos brasileiro e venezuelano prioriza outra política habitacional, centrada na produção privada de moradia. Em 2010 foi firmado termo de cooperação habitacional Brasil– Venezuela, em que foi assinada Carta de Intenção entre o Ministério de Obras Públicas e Habitação da Venezuela e a construtora brasileira Noberto Odebrecht SA, para a execução de planos de desenvolvimento urbano e construção de moradias. Além da Odebrecht, a empresa brasileira Consilux Tecnologia foi designada para a realização de obras em Ciudad Bolívar52. Em junho de 2011, foi selado acordo comercial com o BNDES, no qual o banco brasileiro se comprometeu a emprestar US$ 637 milhões para a criação de um fundo de US$ 4 bilhões para obras de infra–estrutura no país, sendo que, segundo o jornal Folha de São Paulo 53, “um dos plaLey del Régimen de Propiedad de las Viviendas de La Gran Misión Vivienda Venezuela. Número 6021 /2011. 52 No primeiro semestre de 2011, operários da Consilux que trabalhavam na obra entraram em greve de fome para exigir o pagamento de salários e benefícios atrasados, resultado da falta de repasse do governo venezuelano à empresa. 53 Folha de São Paulo. Brasil quer ampliar participação em programa habitacional da Venezuela. 10/05/2011. 51
208 nos é viabilizar o programa Gran Misión Vivienda Venezuela, nos moldes do brasileiro Minha Casa Minha Vida.” O Gran Misión Vivienda Venezuela é atualmente um dos programas prioritários do governo venezuelano. Dentro deste programa foram reunidas diversas formas de produção habitacional; além da produção autogestionária proposta pelos movimentos, estão contempladas a produção privada de moradias e as Petrocasas 54. Esta diversidade de formas produtivas, muitas vezes conflituosas entre si, revela as contradições a que está submetida até mesmo uma das mais ousadas propostas políticas da América Latina.
Conclusões Dependendo dos processos sociais envolvidos, a habitação tem a capacidade ambígua de amplificar ou apaziguar as lutas sociais. Como exemplo claro de apaziguamento, o lema do “sonho da casa própria” difundido durante o regime militar brasileiro fazia da casa o fim de uma luta, que terminava na formação de novos pequenos proprietários – que passavam a morar em bairros distantes, sem nenhuma infra–estrutura, mas que ainda assim tiveram seu sonho realizado. Como contraposição a essa política clientelista, emergiram em toda a América Latina importantes movimentos sociais de luta por moradia, que demonstraram um alto grau de politização no enfrentamento ao Estado e especuladores imobiliário, mesmo guardando algumas contradições. Neste amplo espectro dos movimentos de moradia, alguns definharam depois da conquista do objetivo principal, a habitação, enquanto outros tiveram na casa apenas o início de outras lutas – por educação, trabalho, saneamento, equipamentos públicos, transporte, etc. Na sede de um dos movimentos venezuelanos, pode–se ler um cartaz: “habitação é apenas um pretexto”. As experiências mais ousadas dos movimentos aqui analisados demonstram o potencial anti–sistêmico da proposta autogestionária dos movimentos de moradia. Ao assumir a propriedade coletiva, como no Uruguai, na Argentina, e recentemente na Venezuela, os movimentos invertem o significado mercadológico da habitação, fazendo com que o valor de uso se sobreponha ao valor de troca. Ao assumirem o “protagonismo” na produção, ou seja, ao serem produtores de suas próprias casas, os trabalhadores/moradores recusam o papel passivo de “demanda habitacional”. Na posição ativa de produtores, 54
Casas construídas a partir de componentes pré–fabricados com derivados de petróleo.
209 acessam as políticas públicas, sem com isso deixar de contestá–las – momento em que se questiona a divisão desigual dos recursos públicos, estes normalmente a favor daqueles que já são historicamente favorecidos. A autogestão na habitação se distingue da autoconstrução que dominou as periferias das grandes cidades latino–americanas. A autoconstrução ocorreu como uma das formas mais precárias de abrigar a população trabalhadora, cujo gasto com a casa se deu em prejuízo de outros gastos básicos, como alimentação, saúde, educação, etc., assim como consumiu o tempo de lazer do trabalhador – que passou a ser utilizado na construção da moradia. A autoconstrução normalmente não gera a organização de coletividades, pois se dá de forma individual, e pressupõe outras formas de precariedades, como o acesso irregular à terra, a falta de financiamento público, a falta de projeto, qualidade urbana, etc. A luta autogestionária por habitação, nos diversos países latino– americanos, se dá enquanto movimento pela reforma urbana, acesso aos fundos públicos, assistência e acompanhamento técnicos, projeto e planejamento de obra, qualidade urbana e fortalecimento político da comunidade, se constituindo como experimentação prática de outra formação político-social. “A autogestão é um processo onde se recupera a autodeterminação coletiva. Implica em uma disputa permanente, cotidiana e integral, contra os setores que hegemonizam o poder econômico e o poder político, os aparatos de comunicação, os meios de produção, e os processos de formação e reprodução ideológica. Neste sentido decidimos enfaticamente que a autogestão não é a autoconstrução; é autogoverno, é produção social do habitat, buscando apropriar–se dos meios de produção com critérios coletivos” 55. A luta destes movimentos, ao pautarem a autogestão e defenderem uma “ciudad democrática sin expulsores ni expulsados”, fazem da habitação, que tantas vezes serviu como apaziguadora das lutas sociais, um elemento importante na luta anti–capitalista.
55
Declaração do 11º Encontro da Selvip em 2007 – Buenos Aires.
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10– Las empresas recuperadas por los trabajadores en Argentina: límites y potencialidades de una experiencia de autogestión Andrés Ruggeri
Introducción La autogestión es un concepto complejo, a veces difuso, que tiene diversas interpretaciones de acuerdo a corrientes políticas y teóricas, pero se vuelve más concreto en la práctica de las organizaciones que desarrollan formas de trabajo por fuera de la relación asalariada formal o informal. La autogestión desde este punto de vista es un fenómeno de trabajo colectivo, en el que las estructuras organizacionales se recrean para suplir la ausencia de la estructura jerárquica y de la presencia del capitalista, aunque en este último caso no necesariamente se logran cortar los lazos capitalistas que se mantienen a través de la interacción en el mercado. El caso que vamos a presentar, el de las empresas recuperadas por los trabajadores (ERT) en la Argentina, plantea una serie de ejes problemáticos para el análisis de los procesos autogestionarios de trabajo, en las particulares circunstancias de su formación, en la que los trabajadores como colectivo se hacen cargo de una empresa previamente existente como empresa capitalista clásica. Por lo general, estas situaciones se dan en un contexto de crisis provocada por las consecuencias de las políticas neoliberales, que llevan a cierre masivo de unidades productivas, mayormente en forma fraudulenta y dejando a sus colectivos laborales en la calle y sin empleo.
Origen del proceso de recuperación de empresas por los trabajadores en la Argentina En la Argentina de fines de los años 90, después de una década de capitalismo neoliberal extremo en el que se aplicó a rajatabla las reglas del Consenso de Washington, surgió la práctica de la autogestión obrera en las llamadas (por sus propios protagonistas) empresas recuperadas por sus trabajadores). Se trató de una respuesta necesaria de algunos colectivos de trabajadores frente a la situación social desesperante provocada por el cierre de fuentes productivas y la condena a la desocupación estructural
212 que la destrucción del sistema económico–social del llamado «Estado de Bienestar» significó para millones de personas. La ausencia casi total de redes de seguridad social sumergió a las víctimas de estas políticas en la indefensión y la necesidad imperiosa de organizarse para luchar por sus derechos y, antes que nada, por la subsistencia. Ni en Argentina ni en ningún país sudamericano existían para esa época seguros de desempleo dignos de ese nombre, a lo que se sumaba el desmantelamiento de la salud y la educación pública, el congelamiento de los salarios de los que continuaban desempeñándose en la actividad económica formal, y una ausencia de organización defensiva de los trabajadores mayoritariamente abandonados por sus estructuras sindicales (Basualdo 2002; Kulfas 2003; Trinchero 2009). Apesar de estas características, la lucha por el control colectivo de unidades productivas sólo comenzó a emprenderse cuando los trabajadores comprendieron que las herramientas tradicionales de su puja contra los patrones habían perdido fuerza, pues eran los capitalistas los que decidían desprenderse de ellos. Este contexto que llamaremos defensivo es el marco en el que hay que comprender y analizar la experiencia de las empresas de autogestión obrera en Argentina y en algunos otros países de Sudamérica. Partiendo desde esta base, llama la atención la profundidad y extensión del fenómeno autogestionario en el país con posterioridad a la crisis de 2001. La tradición del movimiento obrero argentino en el último medio siglo discurrió a través de grandes etapas de lucha y movilización alternadas con períodos de represión brutal, pero sus principales líneas de acción estuvieron mayormente orientadas a los conflictos salariales, a la lucha política encuadrada casi en su totalidad en el movimiento peronista y a la demanda de acción protectora del Estado 1. La oleada de neoliberalismo de los años 90 encontró a los trabajadores sin capacidad de respuesta y adaptación a una nueva realidad en la que la clase dominante no tenía más motivos para negociar con los sindicatos, pues el modelo económico adoptado implicaba el despido de millones de trabajadores y la formación de un colchón de desempleados suficiente como para hacer inútil cualquier resistencia frente al efecto disciplinador de la conversión del empleo en un bien escaso. La destrucción de los entramados de seguridad social y las modificaciones de las leyes laborales para dejar manos libres a los capitalistas para manipular a su antojo la fuerza de trabajo (la llamada «flexibilidad laboral») hizo el resto. Esta situación angustiante es, al mismo tiempo, La relación entre movimiento obrero, estructuras sindicales y Estado, especialmente a partir del período peronista (1943–1955) han sido objeto de numerosos trabajos sobre todo a partir de los años 70. Podemos citar entre los más significativos a Portantiero y Murmis (1972), Godio (1990), James (2005) y Schneider (2005). 1
213 la causa por la que miles de trabajadores emprendieron el camino de la autogestión como una salida inimaginada y desesperada, pero llamativamente exitosa si consideramos estas circunstancias críticas. En la actualidad, el movimiento de las empresas recuperadas, pasada más de una década de la gran crisis, no sólo continúa sino que crece. Los trabajadores, sin ser necesariamente unos convencidos ideológicos de la autogestión, recurren a ella cada vez con mayor frecuencia en caso de cierre de fábricas y establecimientos de todo tipo que amenazan la fuente de trabajo. El proyecto neoliberal que se impuso en las elecciones de fines de 2015 con el triunfo de Mauricio Macri reactualiza este desafío en condiciones que recuerdan bastante a las de los años 90, como veremos (Ruggeri et al., 2016).
El contexto neoliberal La denominación empresa recuperada fue acuñada por los trabajadores de los primeros casos que, a fines de la década del 90, se encon traron en el trance de intentar mantener abiertas sus fuentes de trabajo. Para ellos, no sólo se trataba de recuperar sus medios de vida, sino también una parte importante de la cadena productiva que se estaba destruyendo ante la inacción de muchos y la política deliberada de gobernantes y empresarios. Sin embargo, la idea autogestionaria o de control obrero no tenía presencia significativa en la tradición del movimiento obrero argentino ni entre las distintas vertientes de la militancia popular. El cooperativismo tradicional, por su parte, altamente burocratizado e institucional, era visto por los trabajadores como otra modalidad del empresariado, ajeno a su clase. No faltaban razones para ello. Las cooperativas estaban presentes en la Argentina desde fines del siglo XIX, constituyendo uno de los movimientos cooperativistas más antiguos del continente, pero su origen en el viejo movimiento obrero socialista y anarquista (en este caso enfocado a las sociedades de ayuda mutua) era un recuerdo lejano. La estructura actual del cooperativismo incluye grandes consorcios que actúan bajo la forma legal de la cooperativa pero que emplean ampli amente mano de obra asalariada, es decir, son patronales con una estructura jurídica y organizativa diferente a la empresa capitalista por acciones, pero su práctica económica y social, más allá del discurso de la solidari-
214 dad, no encuentra mucha diferencia con la empresa puramente capitalista2. La dictadura militar de 1976–83 no fue ajena a la profundización de este fenómeno, al modificar la ley de cooperativas tendiendo a la concentración y a la eliminación de los instrumentos de financiamiento cooperativo, provocando la quiebra y desaparición de miles de cooperativas populares. El gobierno neoliberal de Carlos Menem profundizó la crisis de las viejas cooperativas, la mayor parte de ellas pequeñas y medianas empresas cuya actividad económica se daba en el mercado interno. Por último, el golpe de gracia para que los trabajadores no sintieran ninguna afinidad con el cooperativismo fue el uso amplio de la figura de la cooperativa de trabajo, amparada en la complicidad de las autoridades de aplicación, para la tercerización empresaria, la precarización y el fraude laboral. Grandes y medianas empresas forzaron a los trabajadores a renunciar a sus puestos estables y asociarse a falsas cooperativas para ser recontratados en penosas condiciones. De esta manera, haciendo el mismo o peor trabajo, el empresario disponía de mano de obra barata, por la que no debía pagar cargas sociales y que podía despedir con sólo cortar el contrato con la «cooperativa». Esta política fue posible por la masiva desindustrialización de la economía argentina (Aspiazu y Schorr 2010), que provocó una masa de desempleados lo suficientemente grande y desesperada como para que las condiciones de los trabajadores que aún continuaban como asalariados se deterioraran rápidamente con poca posibilidad de defensa. Los sindicatos, La literatura crítica sobre el movimiento cooperativo no es demasiado numerosa en la Argentina, no así las denuncias por fraude laboral ante los juzgados del fuero laboral y los conflictos sindica les de los empleados de cooperativas (como el caso de la Federación de Trabajadores de la Energía de la Rep. Argentina–La Pampa en 2007; FeTERA semanal, marzo de 2007). Las fuentes del propio movimiento cooperativista son numerosas, y brindan algunos indicadores sobre su naturaleza en gran parte diferente del concepto usualmente aceptado de autogestión en tanto gestión democrática de un colectivo de trabajadores. Según el Instituto Nacional de Asociativismo y Economía Social (INAES), el organismo público bajo cuya jurisdicción se encuentran las cooperativas y las mutuales, en la Argentina en 2008 había cerca de 15 millones de asociados agrupados en 12.760 cooperativas. Sin embargo, a pesar de que el 60% de las cooperativas son cooperativas de trabajo, el grueso de los asociados pertenecen a las cooperativas de servicios, vivienda, crédito y agropecuarias. El dato llamativo es que, de las 12.760 cooperativas registradas, sólo 5.100 tienen una actividad económica declarada e identificable. El 87, 9 % de estas se distribuye entre servicios públicos, finanzas, salud y agropecuaria, la mayoría son cooperativas formadas por socios que no trabajan en ellas sino que son aportantes y beneficiarios de sus servicios, o asociaciones de productores privados como el caso de las cooperativas agropecuarias. De los casi 15 millones de asociados, sólo 112.000 lo son a cooperativas de trabajo, es decir trabajadores cooperativistas. Prácticamente 1 de cada 10 de estos últimos corresponden a socios de ERT. En los últimos dos años se crearon cerca de 100.000 puestos de trabajo nuevos en las cooperativas del plan gubernamental Argentina Trabaja, que reciben un sueldo fijo del Estado, por lo que más allá de sus formas legales representan empleo estatal encubierto. Pero además, existen unos 170.000 empleados asalariados de cooperativas, sin voz ni voto en las cooperativas (INAES 2008). Para una historia del cooperativismo en la Argentina, ver Montes y Ressel (2003). 2
215 como consecuencia de este fenómeno, desarrollaron una amplia desconfianza hacia la formación de cooperativas de ex trabajadores, no pudiendo discernir claramente – por su falta de inserción y confianza entre sus propias bases– cuándo se trataba de una cooperativa patronal y cuándo de una herramienta de defensa obrera. A su vez, todo este proceso no se daba sin resistencia popular. Hasta mediados de los 90, el neoliberalismo había vencido con extraña facilidad todo intento de oposición a sus políticas. Pero, promediando la década, estas resistencias empezaron a aflorar, principalmente porque los resultados de tales políticas estaban a la vista de todo el que las quisiera ver: hambre, marginación, desocupación estructural y permanente, desaparición de pueblos enteros al cerrarse fábricas, ramales de ferrocarril, refinerías de petróleo, obras de infraestructura pública, etc. Comenzaron así a darse las llamadas «puebladas», levantamientos populares que apelaron al corte de las vías de circulación como una forma posible de exteriorizar los conflictos, ya que huelgas y otro tipo de manifestaciones carecían de sentido fuera del lugar de trabajo perdido. La organización creciente del movimiento «piquetero» comenzó a presionar sobre la estructura política y económica del Estado, al punto que el gobierno de Carlos Menem debió comenzar a interpretar la parte del libreto neoliberal que no había cumplido, las llamadas «políticas sociales», en realidad no otra cosa que medidas desesperadas de contención social, combinadas con altas dosis de represión (Svampa y Pereyra 2003). Claramente estas estrategias de contención resultaron insuficientes y el movimiento de resistencia comenzó a crecer en todo el país. Es aquí donde aparecen las primeras empresas recuperadas. Para los trabajadores protagonistas de estos casos, la opción era clara y desesperante: había que evitar a toda costa el cierre de la empresa, o pasar a formar parte de la gran masa de desempleados y marginados sociales. O se luchaba dentro de la fábrica, o había que tratar de remontar la situación en la calle, junto con millones de ex trabajadores en la misma situación. A partir de este momento, los trabajadores se enfrentaron con la posibilidad de la autogestión. Se trataba de un camino impensado e, inclusive, no deseado, porque la perspectiva de la lucha inmediata era la conti nuidad del trabajo asalariado. La autogestión se da, como ya señalamos, en un contexto claramente defensivo y en el cual, para estos trabajadores, cualquier otra opción era peor. La pregunta es, entonces, cuál es la viabili dad y la potencialidad de un proceso autogestionario con estos orígenes y estas condiciones. La respuesta, parcial y contradictoria, la podemos ir apreciando al ver la evolución de más de una década de estos procesos conocidos actualmente como ERT.
216 Fue la enorme crisis que, como corolario lógico de estas políticas caracterizadas por la voracidad de la clase dominante, se desató en los últimos meses del año 2001, la que puso de manifiesto la profundidad y extensión de las ocupaciones de establecimientos por sus trabajadores. El gobierno neoliberal de Menem fue reemplazado en 1999 por la Alianza, una coalición entre el viejo partido radical y el conglomerado centroizquierdista FREPASO, que llevó como candidato a presidente a Fernando de la Rúa. El gobierno fue más conservador que el anterior y absolutamente impotente para controlar la debacle financiera que la política neoliberal hacía inevitable. A fines de 2001, una abultada deuda externa que obligaba al país a enormes pagos de intereses a los acreedores internacionales, una desocupación que superaba largamente el 20%, enormes protestas sociales y la instalación del «corralito», una confiscación de depósitos bancarios que buscaba evitar la «corrida» bancaria, provocó una rebelión generalizada que hizo caer al gobierno y una rápida sucesión de cinco presidentes en pocos días. Las jornadas del 19 y 20 de diciembre fueron una rebelión de los sectores más pauperizados de la sociedad, llevados por el hambre y la desesperación, y los sectores medios y medio–altos, víctimas del corralito pero, al mismo tiempo, conscientes de que el modelo al que muchos de ellos habían apoyado con entusiasmo estaba llevando al país al desastre. En ese contexto crítico, la quiebra masiva de empresas, la mayoría en condiciones fraudulentas facilitadas por las nuevas leyes laborales que se diseñaron como instrumentos a exclusivo beneficio de la voracidad capitalista, se vio enfrentada por la resistencia obrera en el marco de una extraordinaria movilización social. Los distintos casos se empezaron a conocer entre sí y ese ejemplo daba esperanza a cada colectivo que emprendía esta lucha. Si bien la empresa recuperada reconocía importantes antecedentes en los años anteriores, es la extensión de la crisis de 2001 la que le dio la característica de movimiento y las hizo visibles para otros sectores sociales y para el resto de los trabajadores, llamando también la atención internacional sobre este fenómeno que los trabajadores argentinos estaban generando en un país que, de ser el alumno modelo del FMI, pasó a ser el paria de la escena económica internacional. La visibilidad adquirida en estos conflictos fue posible también por la enorme solidaridad social que despertaron y que aún continúan teniendo. En una sociedad que había tenido como ideal de vida el paradigma del «pleno empleo», impuesto en la mitad del siglo XX por las políticas más o menos keynesianas del primer peronismo y luego por el desarrollismo, la debacle laboral que significó el neoliberalismo salvaje colocó al trabajo como un valor escaso, y la defensa del empleo como un objetivo de enorme legitimidad para las mayorías sociales. Los trabajadores que resistían
217 con sus cuerpos y con la voluntad de trabajar el cierre de fábricas abandonadas por los patrones lograron, entonces, un enorme consenso social, lo que se tradujo en una capacidad de movilización solidaria que multiplicó varias veces su capacidad de resistencia y, en la mayoría de los casos, logró evitar o incluso rechazar las instancias represivas que intentaron el de salojo de las ocupaciones. El lema «ocupar, resistir, producir» que embanderó el naciente Movimiento Nacional de Empresas Recuperadas, inspirado en la consigna del Movimiento de los Sin Tierra brasileño, fue la síntesis de este momento de definiciones que consolidó definitivamente la existencia de las ERT.
Concepto de empresa recuperada y diferentes enfoques en la literatura especializada Hemos definido anteriormente a la empresa recuperada por los trabajadores como un proceso mediante el cual una unidad económica, sea de producción de bienes o de servicios, se transforma a través de una cierta diversidad de mecanismos desde una gestión capitalista a una gestión colectiva de los trabajadores que la constituyen (Ruggeri 2006; 2009a; 2014a; 2014b). Esta forma de definir a la empresa recuperada como un proceso y no como un hecho consolidado la distingue de una caracterización que pase por determinadas particularidades de su conformación o funcionamiento (como, por ejemplo, la autogestión, o el hecho de haber sido ocupada por los trabajadores) o, por el contrario, por la adscripción a una figura normativa (por ejemplo, la forma cooperativa, o haber sido beneficiada por leyes de expropiación), o distintas características que tengan relación con las legislaciones específicas de países, provincias o incluso de niveles locales. Al poner el acento en el proceso, la idea de la “recuperación” pasa a pensarse como una dinámica social, histórica, relacionada con distintos aspectos sociales y económicos que le dan racionalidad en un contexto determinado, en lugar de un hecho pasible de ser reducido a una situación que pueda ser formalizada y uniformizada. Esta perspectiva, por supuesto, abre numerosos aspectos a analizar y que han sido tratados de forma diferenciada por distintos autores, que examinaremos brevemente aquí. Al referirnos a un proceso de transformación de una unidad económica determinada, es importante discernir de qué tipo de organización económica estamos hablando, qué tipo de propiedad es la que se recupera. Cuando el movimiento de empresas recuperadas argentino adquirió visibilidad, tanto para la opinión pública como para los investigadores, en el
218 momento más agudo de la crisis de 2001–2002, lo que se identificó generalmente como empresa a fábrica recuperada eran mayoritariamente establecimientos privados cuyos propietarios habían abandonado o quebrado en forma fraudulenta. La absoluta mayoría de las ERT está conformada por este tipo de casos en la Argentina, Brasil y Uruguay (Tauile et al, 2005; Chedid Henriques, 2013, 2014, Rieiro, 2014, Martí, 2006), los tres países sudamericanos donde se puede identificar un movimiento de empresas recuperadas claramente constituido, pero pronto empezaron a conocerse otros procesos que eran en todo similares salvo por el carácter de la propiedad de la empresa que atravesó el proceso de recuperación. En las primeras aproximaciones al tema en el caso brasileño, por ejemplo, José Ricardo Tauile (2005) habla de “emprendimientos autogestionarios provenientes de empresas fallidas o en proceso de quiebra”, señalando desde la misma denominación del proceso el origen en empresas privadas quebradas o por quebrar. En otros países, no siempre es la quiebra de la empresa lo que lleva a la recuperación, aunque sí se trata de empresas en crisis. Para el caso argentino, los datos de los cuatro relevamientos del Programa Facultad Abierta muestran unanimidad en este sentido (Ruggeri et al., 2005; 2011; 2014), constatándose una situación similar en Uruguay (Rieiro, 2014; 2016) y en investigaciones más recientes en Brasil (Chedid Henriques et al, 2013). El proceso más alejado de estas situaciones es el venezolano, en el que la mayoría de las empresas recuperadas fueron cerradas o abandonadas por los empresarios como una medida política de oposición al gobierno bolivariano, y ocupadas posteriormente por los trabajadores y, en algunos casos, expropiadas por el Estado (Azzellini, 2011; Salazar et al., 2016). No necesariamente, a pesar de ser la situación ampliamente mayoritaria, la recuperación comienza a partir de una empresa de gestión capitalista típica. En algunos casos, se trata de empresas ya anteriormente constituidas como cooperativas, que han atravesado un proceso de recuperación similar a las de las empresas de gestión privada, cooperativas recuperadas o “recooperativizadas”, de los cuales el más conocido es uno de los emblemas del movimiento de empresas recuperadas de la Argentina, cabeza visible de una de sus organizaciones históricas (el Movimiento Nacional de Empresas Recuperadas, MNER), la metalúrgica IMPA (Ávalos, 2009; Rofinelli, 2014). Si bien una cooperativa, en términos legales, no deja de ser una propiedad privada (cuyos propietarios son sus asociados) 3, En la Argentina solo existe propiedad estatal y propiedad privada, pero en países como Venezuela se han reconocido distintas formas de propiedad, algunas de las cuales se han utilizado para empresas autogestionadas, como la propiedad social, que puede ser directa o no, la propiedad comunal, o una combinación de ambas. 3
219 la transformación que se opera en el proceso no es en la forma de la propiedad sino en el plano de la gestión y en el control colectivo del usufructo de esa propiedad. También podemos encontrar empresas de propiedad estatal que pasan a ser cooperativas de trabajadores. Por supuesto, una empresa estatal no es necesariamente una empresa con participación de los trabajadores en su control o en algún aspecto de la toma de decisiones, ya que no de su propiedad. En contrapartida, en numerosas ocasiones y dependiendo del momento histórico, los sindicatos tienen un peso y una posición estratégica4 en la compañía que suele ser más poderoso que en las empresas privadas. Para no extendernos sobre las complejidades de este tipo de casos, que además llevan al debate de las posiciones teóricas de la izquierda clásica acerca del “control obrero” y casos históricos de gestión colectiva de empresas nacionalizadas, podemos constatar que existen episodios concretos de sectores de empresas estatales que fueron cooperativizados por los trabajadores en la Argentina como defensa de sus puestos de trabajo frente a privatizaciones o cierre de esos establecimientos, atravesando a partir de esa situación procesos similares a los de las empresas recuperadas provenientes de establecimientos privados. Un caso emblemático es, también en la ciudad de Buenos Aires, la Cooperativa Obrera Gráfica Campichuelo (COGCAL), que está conformada por los antiguos talleres gráficos del Estado Nacional –donde se imprimían documentos y formularios públicos– que iban a ser o cerrados o privatizados durante la presidencia de Carlos Menem en 1992. Lo que marca la diferencia entre el caso de Campichuelo y otras ERT provenientes de la propiedad del Estado con respecto a la cooperativización de activos estatales en otro tipo de procesos, tanto en la Argentina como en otros países, es el proceso de lucha que llevaron sus trabajadores para continuar gestionando su propio trabajo y las dinámicas que fue desarrollando su gestión, que a más de veinte años de su fundación continúa manteniendo las características colectivas originales. Esto es importante para poder distinguir estos casos de las cooperativizaci ones forzosas que se dieron en algunos ámbitos de empresas públicas privatizadas, generalmente en connivencia con las cúpulas sindicales a cambio de complicidad en el proceso privatizador. El caso más notorio son las cooperativas de tercerizados ferroviarios que salieron a la luz con el caso del asesinato de Mariano Ferreyra en 2010 (Basualdo et al., 2014). El debate sobre la “estatización bajo control obrero” como solución de los problemas que tienen las empresas recuperadas, por un lado, pero más específicamente como camino al cambio estratégico y estructural Usamos el concepto “posición estratégica” en el sentido desarrollado por John Womack Jr. en su libro “Posición estratégica y fuerza obrera” (2007). 4
220 de la economía capitalista caracterizó fuertemente el debate político en relación a las empresas recuperadas en los primeros tiempos después de la crisis de 2001 y vuelve a aparecer recurrentemente como idea fuerza reivindicada por sectores de la izquierda partidaria y corrientes intelectuales a ella vinculadas, tanto en la Argentina como en otros países (Heller, 2004; Aiczicson, 2009, Lombardi Verago, 2011). En ese sentido, debe ser tenido en cuenta por sus implicancias teóricas para analizar la cuestión de la propiedad estatal como origen de la empresa recuperada o, más ampliamente, como punto de partida de procesos de autogestión o participación y control de los trabajadores. A pesar de su repercusión en la militancia, no deja de ser un debate marginal dentro del conjunto de los trabajadores que protagonizan los procesos, si bien en otros países latinoamericanos que vale la pena tener en cuenta para el análisis aparece con fuerza la cuestión del Estado como actor, como en Venezuela (como “control obrero”, “empresas nacionalizadas”, “fábricas socialistas”, “empresas de propiedad estatal/social”) (Azzellini, 2011; Salazar et al., 2016) y en Cuba (donde se impulsa la cooperativización de determinados sectores productivos urbanos hasta hace poco en manos de un férreo sistema de planificación central de propiedad estatal) (Piñeiro Harnecker, 2011).
Una breve caracterización de las empresas recuperadas como emprendimientos de autogestión: Para brindar un panorama sintético de las principales características de las ERT como sector, utilizaremos algunos de los datos de los dos últimos relevamientos realizados por el Programa Facultad Abierta 5, coordinados por el autor en los años 2010 y 2013, junto con el informe de situación que actualiza los datos básicos a mayo de 2016 (Ruggeri et al., 2011; 2014 y 2016). En marzo de 2016, de acuerdo a estos datos, existían en la Argentina 367 empresas recuperadas, que ocupaban a 15.948 trabajadores y trabajadoras. Desde la aparición de los primeros casos, las ERT fueron creciendo en cantidad y en diversidad, y la tendencia al crecimiento se ha mantenido con posterioridad al auge de los procesos de recuperación duEl Programa Facultad Abierta, coordinado por el autor de este texto, viene realizando desde el año 2002 una serie de relevamientos nacionales de las empresas recuperadas por sus trabajadores. Estos relevamientos tienen como objetivo construir información lo más completa posible sobre el universo total de las empresas recuperadas por los trabajadores (ERT) en Argentina. Para ello se ha visitado a una gran cantidad de empresas recuperadas en todo el país y se ha recolectado información a través de una encuesta que se fue ampliando y complejizado a lo largo de los años. Se realizaron relevamientos en 2002, 2004, 2010 y 2013 (los informes están disponibles en www.recuperadasdoc.com.ar). 5
221 rante los últimos años de la década del noventa y la crisis de 2001, con un estancamiento durante los años de mayor recuperación económica en el período kirchnerista (hay una notable desaceleración de las recuperaciones después de 2005 hasta mediados de 2008, pero sin que haya dejado nunca de haber casos nuevos; también es el período en el que se verificaron más cierres de ERT [Ruggeri et al., 2016:16]). A partir de 2008 empezaron a volver a proliferar las recuperaciones y los conflictos por el cierre de empresas, manteniendo desde ese momento un ritmo sostenido que, si bien estuvo lejos de tener la masividad del período 2001–2003, se aproximó a un promedio anual de unos 15 casos por año hasta 2015. El viraje neoliberal provocado por la asunción del nuevo gobierno no alteró del todo esta dinámica que reflejaba el contexto político y macroeconómico vigente hasta el 10 de diciembre de 2015. Si durante 2016 encontramos varios cierres de ERT, en abril de 2017 nuestro equipo había constatado el surgimiento de cerca de 15 nuevas ERT (informes de campo aún no publicados). Al mismo tiempo, se observa una escalada represiva que ha provocado ya el desalojo violento de tres ocupaciones de fábrica y a impedido varias ocupaciones mediante un masivo despliegue policial. De esta manera, podemos distinguir en la curva del surgimiento de las ERT distintas etapas vinculadas a los cambios en el contexto macroeconómico, político y social. Los primeros casos de recuperación de empresas por los trabajadores (sin incluir acá algunos casos históricos que continúan en funcionamiento como la gráfica COGTAL, que proviene de la década del 50), se dan ya en el contexto de transformación neoliberal durante los años noventa. Un segundo momento, que es el de expansión, consolidación y visibilización del fenómeno corresponde a la crisis de 2001 (entre los años 2000 y 2003). Podemos caracterizar una tercera etapa durante la consolidación de la recuperación económica post–convertibilidad, entre los años 2004 y 2008. Y una cuarta etapa registra, con los coletazos de la cri sis financiera global y en el marco de la política contracíclica y de protección del mercado interno de ambos gobiernos de Cristina Fernández de Kirchner, un sostenido y constante crecimiento de las recuperaciones (con un pico en 2008–2009, un descenso en la segunda etapa de crecimiento y un nuevo repunte a partir de 2012), pero concentradas en sectores no industriales o, entre las manufacturas, en sectores de alta precarización, con debilidad sindical o vulnerables a los cambios tecnológicos que requieren gran inversión. Una nueva etapa, por último, se inició con el comienzo del gobierno de Mauricio Macri, aunque su caracterización, hecha brevemente más arriba, es aún provisoria. En relación al perfil de las ERT en la Argentina de acuerdo al sector de actividad, los datos relevados para 2016 señalan que el 50,5 % per-
222 tenecía a industrias metalúrgicas u otras manufacturas industriales, un 27 % al ramo de la alimentación (incluyendo gastronomía) y el resto a servicios como salud, educación y hotelería, entre una enorme diversidad de ramos de actividad (Ruggeri et al., 2016:10–12). A pesar de que las manufacturas industriales constituían la mitad de los casos, de entre estas las metalúrgicas, aun cuando seguían manteniéndose como el sector más numeroso, fueron disminuyendo su importancia relativa en el total desde el primer registro en 2002 (del 30 al 19%). En cambio, se observaba una gran diversificación de sectores económicos, convirtiendo al proceso de recuperación de empresas cada vez menos en un fenómeno mayoritariamente industrial. Es decir, aparece ya como un proceso que atañe a todos los sectores de la economía donde existe trabajo asalariado. Esto lo lleva más allá de la conocida imagen de la “fábrica ocupada”, que sedujo a activistas e intelectuales en la crisis del 2001, y más cerca de la profunda realidad de la diversidad de la clase trabajadora del capitalismo contemporáneo. Por otra parte, las ERT se encuentran diseminadas en todo el país, y su distribución no es aleatoria, sino que tiene estrecha relación con la estructura económica de la Argentina y con los sectores más golpeados por la ofensiva neoliberal de los noventa. Esto se refleja en que casi un 50 % se agrupan en el área metropolitana de Buenos Aires, y otro grupo menor en el área industrial de la provincia de Santa Fe. En la Ciudad de Buenos Aires, se ha pasado de 22 casos en 2004 a 39 en 2010, 56 en 2013 y 70 en 2016 (Ruggeri et al., 2005; 2011; 2014; 2016). Además del área metropolitana de Buenos Aires, hay casos en el resto de la provincia de Bs. As, y en el resto de las provincias del país, con la excepción de Formosa y Santa Cruz (Ruggeri et al., 2016:8–9). Agrupan además una mayoría de empresas pequeñas y medianas según el número de trabajadores, con un promedio algo más de 40 miembros (Ruggeri et al., 2016:12), superando en más de un 75 % los 35 años de edad y un 20% los 55, mayoritariamente masculino (Ruggeri et al., 2011). Estas características permiten tipificar un perfil de trabajador en gran medida especializado, pero de poca capacidad de reinserción fuera de la industria en que desarrollaron su vida laboral. La presencia femenina está mediada por las características del mercado laboral argentino, con ciertos rubros y puestos dentro de la organización del trabajo ocupados casi absolutamente por hombres (tal es el caso de las metalúrgicas o las gráficas, donde las escasas mujeres forman parte del personal administrativo o de limpieza) o, por el contrario —aunque mucho menos numerosos —, con mayoría del género femenino, como las instituciones educativas o de salud, y la industria textil.
223 Dentro de este panorama general, hay ciertas características comunes que facilitan o perjudican el tipo de empresas que se convierten en recuperadas. Como acabamos de señalar, es difícil encontrar grandes establecimientos, tratándose en su mayoría de pequeñas y medianas empresas. Las razones son bastante transparentes. Residen no sólo en la mayor dificultad de poner en marcha grandes fábricas, cuyas necesidades de insumos, mantenimiento, distribución, comercialización y logística requieren sumas importantes de capital para arrancar la producción una vez que ésta se ha paralizado, sino que además son negocios que los capitalistas y sus guardianes judiciales y políticos no dejan escapar tan fácilmente. En todo caso, la defensa de la propiedad privada se vuelve más laxa frente a empresas menores que en circunstancias de la lógica «normal» del mercado cerrarían o serían adquiridas a precio de chatarra por otros empresarios, pero se torna un campo de batalla decisivo si afecta a las grandes propiedades y grandes negocios. Las pocas empresas de importantes dimensiones que se hallan en manos de los trabajadores pasaron por procesos conflictivos muy difíciles y traumáticos, como Gatic, la antigua licenciataria de Adidas y otras marcas trasnacionales de calzado deportivo, de cuyas 12 plantas originales sólo cuatro se encuentran en manos de cooperativas obreras y las otras o cerraron o fueron adquiridas por otras grandes empresas del ramo6. Otro caso significativo es el Hotel Bauen, un gran establecimiento hotelero en pleno centro de Buenos Aires, que nunca pudo obtener hasta el momento un estatus mínimo de legalidad, a pesar de estar funcionando con normalidad bajo gestión de los trabajadores desde marzo de 2003 (Ruggeri, Alfonso y Balaguer, 2017). Esto marca la frontera que la clase dominante parece decidida a no dejar traspasar. Otro factor que influye en las posibilidades de triunfo de una ERT es el contexto de movilización social que las rodea. Está claro que en los momentos más agudos de la crisis no sólo la economía se desplomó, sino principalmente el potencial disciplinador de las instituciones estatales. La vulnerabilidad de la llamada clase política, repudiada en forma generalizada por la ciudadanía, facilitó que los reclamos sociales, incluyendo los de los trabajadores de las recuperadas, tuvieran un eco bastante fácil en los niveles legislativos y ejecutivos del Estado. Los diputados de la Legislatura de la Ciudad de Buenos Aires, por ejemplo, se mostraron llamativamente presionables, y los trabajadores lograron la votación de leyes de expropiación a su favor, que le daban de esa manera legalidad a la acción de los obreros, que de otra forma chocaban con la ley de quiebras, absolutamenHemos relatado la historia de la recuperación de la planta de Pigüé en el libro “Cooperativa Textil Pigüé. Historia de la recuperación de una fábrica de Gatic” (Ruggeri, Bourlot, Marino y Pélaez, 2014). Es interesante ver también la versión patronal de ese proceso (Bakchelián 2004). 6
224 te adversa para ellos. Este contexto marcó precedentes para la elaboración de un camino de procedimientos ad hoc que los trabajadores fueron elaborando a partir del ensayo y el error, hasta constituirse en la forma «regular» de formar una ERT. El procedimiento jurídico es bastante complejo e irregular, pero se lo puede describir como una salida política a los juicios de liquidación de la empresa fallida, en la cual el Estado, a través de mecanismos legislativos, expropia el bien a través de la declaración de «utilidad pública» y lo cede en comodato a la cooperativa de los trabajadores 7. La intervención estatal por lo general se limita a este acto, por lo que después no tiene injerencia sobre la gestión obrera, ni en forma de control de sus actos ni mucho menos de financiamiento de su actividad. Esta salida se contrapone con el reclamo de algunas de las ERT que tomaron como propia la consigna de algunas organizaciones de izquierda a favor de la estatización bajo control obrero. En ningún caso el Estado atendió a este reclamo, que presuponía el control de los trabajadores a partir de la propiedad y financiamiento estatal. En cambio, las expropiaciones conformaron una suerte de nacionalización, pero a cargo de los trabajadores, y también a su riesgo y cuenta. La derecha argentina tomó nota de este mecanismo, y Mauricio Macri, tanto como jefe de gobierno de la Ciudad de Buenos Aires como desde la presidencia del país, ha apelado al veto para acabar con las leyes de expropiación8. Esto proceso incluye la adopción de la forma de cooperativa de trabajo, la única que permite el desarrollo de prácticas verdaderamente colectivas, por lo menos en el marco de la legislación argentina. A pesar de que, como ya hemos dicho, la cooperativa de trabajo ha servido para amplias maniobras de fraude laboral, es la que se adapta mejor a la gestión colectiva, desde el momento en que su principal principio normativo es que solamente son asociados los trabajadores y no se permite que desempeñe rol laboral alguno quien no sea socio. El 95% de las ERT se han constituido de esta manera (Vieta, 2009). Una vez lograda la matrícula de la cooperativa, el grupo de trabajadores se halla en condiciones de obtener la tenencia o la continuidad productiva del establecimiento, sea a través de leyes de expropiación, de permisos judiciales o, con mecanismos bastante tortuosos, por la ley de quiebras reformada en 2011. Pero el factor principal para poder asegurar cualquiera de estas salidas es la resistencia de los trabajadores y el no Este mecanismo está previsto en la Constitución argentina, aunque la primera vez que se lo usó para la resolución de conflictos con sectores populares fue en ocupaciones de tierras para asentamientos urbanos en la década de los 80. El gobierno de Cristina Fernández de Kirchner apeló al mismo recurso para la nacionalización de la empresa petrolera YPF. 8 El más notorio fue el caso del hotel Bauen a fines de 2016, con numerosos antecedentes en la Ciudad y la provincia de Buenos Aires. 7
225 abandono del lugar de trabajo, sea ocupándolo o manteniendo un campamento en la puerta. Es decir, más allá de estas conquistas legales, es la lu cha obrera el último garante de la conservación de la fuente de trabajo. Este hecho es claramente reconocido como fundamental por los protagonistas. Y en ello tiene bastante que ver la solidaridad de sus pares, trabajadores de otras empresas recuperadas, miembros de sus sindicatos (aunque este tema es más complejo, como veremos), movimientos sociales (en especial en los años 2001 y 2002), universitarios, la comunidad barrial, y una enorme variedad de actores, que a veces incluye a distintos estamentos estatales con acción en la zona. Esta es la fuerza principal que impide el aislamiento y fortalece a grupos de trabajadores que en ocasiones son muy reducidos. Podemos poner por caso a una de las más emblemáticas de las ERT, la imprenta Chilavert, cuyos trabajadores al momento de la ocupación eran solamente ocho. La enorme resistencia de vecinos, militantes sociales, estudiantes, otros trabajadores, impidió el desalojo y garantizó el éxito de la ocupación, en el contexto altamente movilizado del año 2002. Toda esta gran corriente de solidaridad popular no solo fue decisiva para el momento de la ocupación, sino para su sostenimiento incluso después del principal momento de conflicto. La legitimidad que esta movilización dio y sigue dando a las ERT es una parte fundamental de su lucha por la sobrevivencia y motivó a gran parte de las empresas autogestionadas a realizar o ceder espacio en sus plantas para emprendimientos solidarios, centros culturales, bachilleratos populares y una enorme variedad de expresiones de militancia social. Estas circunstancias no siempre fueron igualmente favorables ni se reprodujeron de la misma manera en todas las regiones del país. En los primeros tiempos, solamente en la ciudad y la provincia de Buenos Aires se lograron leyes de expropiación a favor de los trabajadores, y en otras provincias de importancia como Santa Fe y Córdoba las leyes protectoras recién se empezaron a lograr en 2004, a pesar de que, especialmente en la primera, se dieron numerosos casos de ERT. En el caso de una de las más importantes fábricas autogestionadas, la muy conocida FaSinPat (Fábrica Sin Patrones), ex Zanón, sólo la enorme dimensión de la movilización de apoyo, hábilmente motorizada por los trabajadores y el sindicato de ceramistas, logró impedir violentos intentos de desalojo durante varios años, hasta que en fecha tan tardía como 2009 obtuvieron la ley de expropiación. Es decir, el contexto político y la capacidad de movilización y resistencia de los trabajadores, junto con la solidaridad de otros sectores sociales, tiene importancia decisiva en el éxito, por lo menos para el primer y fundamental paso, que es asegurarse el control del establecimiento y la liberación de los obstáculos jurídicos para ponerlo en marcha.
226 La gran mayoría de las empresas recuperadas, a pesar del esfuerzo de sus miembros, no han logrado alcanzar el máximo rendimiento productivo de la capacidad instalada en los emprendimientos. Si bien hubo una mejora importante entre la situación de inicio y los dos primeros años de trabajo, la expansión posterior es problemática, lenta, y a veces los trabajadores llegan a un nivel de estancamiento. Las razones para esta situación son variadas, entre ellas la desastrosa situación del estado de la maquinaria e instalaciones en la mayor parte de los casos, lo que obliga a los trabajadores a hacer grandes inversiones para volver a ponerlas en condiciones operativas. Esas inversiones son casi imposibles en condiciones de ausencia de capitales y acceso al crédito, por lo que se dan situaciones de gran sacrificio en que los obreros aportan su fuerza de trabajo sin percibir en los primeros tiempos ingresos que superen un umbral de supervivencia. La dificultad para la inserción en el mercado es argumentada por la mayor parte de las ERT que ya llevan varios años de funcionamiento como explicación de la situación de no haber alcanzado los niveles productivos ideales. La mayor parte de los trabajadores jerárquicos y administrativos que se ocupaban de este aspecto dejaron la empresa en el momento del conflicto y son los obreros de producción los deben asumir en forma colectiva sus tareas. En algunos casos, se recurre al llamado trabajo a façon, una tercerización de la producción en manos de un capitalista externo a la empresa, que aporta materia prima e insumos y paga un precio fijo por el producto final. Como la comercialización del producto queda en manos de este empresario, el nivel de rentabilidad para la cooperativa es muy bajo. Sin embargo, esta modalidad permite el inicio del trabajo en algunos casos muy difíciles. Uno de los problemas que ronda esta situación es el papel del Estado, que podría ser un factor de fundamental importancia para que estos problemas no se conviertan en obstáculos que pueden llevar al fracaso a la experiencia. Además de un sistema judicial hostil y un legislativo muy vulnerable a los cambios de humor de la «opinión pública», el Poder Ejecutivo en sus distintos niveles no ha desarrollado durante los gobiernos de Néstor y Cristina Kirchner más que instrumentos de ayuda parcial y poco efectiva. Algunos subsidios llegaron a las ERT y representaron un apoyo importante, aunque no decisivo, sin que hubiera una política pública definida ni consecuente con una concepción que fortaleciera la autogestión de los trabajadores. Persiste, en cambio, una carencia de marco jurídico que, por una parte, deja demasiadas cosas libradas a la interpretación de los jueces y, por la otra, coloca a las ERT en una situación de ilegalidad o preca riedad. Coherentemente con esta situación, no hay programas de desarrollo ni de formación para los trabajadores que, partiendo de su realidad, les
227 facilite herramientas para la gestión colectiva. Todo esto se profundizó y tomó un sesgo contrario a las empresas recuperadas con el gobierno de M. Macri a partir de diciembre de 2015. Aunque este panorama se muestra como bastante negativo, mucho peor fue el punto de inicio: empresas cerradas, represión, trabajadores sin ingresos con el que alimentar a sus familias, instalaciones ruinosas, ausencia de capital, prescindencia del Estado, fraudes empresarios y otros elementos que condicionaron el comienzo de estas empresas.
La formación de la gestión colectiva Desde estas prácticas y relaciones sociales concretas que conforman los procesos de autogestión, las empresas recuperadas nos muestran algunos procesos que nos interesa destacar. El primero es el hecho decisivo de la conformación de un colectivo de trabajadores que pueda llevar adelante el conflicto, triunfar en la resistencia a las dificultades y los intentos represivos y, por último, constituirse como un sujeto capaz de organizarse con moldes muy diferentes a los acostumbrados como asalariados. Por lo general, el proceso previo al cierre de la empresa es conducido por los empresarios de forma tal de desgastar e ir sometiendo la fortaleza de los trabajadores a través de la precarización de las relaciones laborales, tratando de dividir al grupo, separando el personal de planta de los administrativos, intentando la complicidad de delegados sindicales y personal calificado, generando una situación de angustia y agotamiento entre los trabajadores, con el objetivo de debilitar el plantel, conseguir reducir el número de empleados y facilitar el cierre fraudulento. En este proceso, además, se abandona por lo general el mantenimiento de la maquinaria, se la traslada o intenta trasladar a lugares donde incluso se arma una nueva planta sin los viejos empleados, se toma deuda y no se pagan salarios o se lo hace en forma espaciada. Cuando el conflicto estalla, sea porque los trabajadores reaccionan y se dan cuenta de cuál es la estrategia patronal, o frente a las puertas sor presivamente cerradas de la fábrica, si el colectivo obrero no se mantiene firme las posibilidades de éxito son muy reducidas. Lo más frecuente es que el personal jerárquico y administrativo abandone a su suerte al resto, confiando en su mayor cualificación para conseguir otro trabajo, y son los obreros de planta, los más viejos y los que no tienen adonde ir quienes deben enfrentar todo el proceso. En los casos que ahora son ERT, este momento es decisivo en la conformación del futuro colectivo autogestionado.
228 Las antiguas relaciones entre asalariados se disuelven en un nuevo grupo donde los viejos liderazgos (laborales o sindicales) deben ponerse a prueba o reemplazarse, y una nueva igualdad, impuesta de hecho por las circunstancias, se forma y anula las viejas jerarquías. Es interesante ver como la mayoría de los que actualmente se desempeñan en los consejos de dirección de las cooperativas no tenían puesto ninguno en la vieja empresa, ni eran representantes sindicales. No faltaron los casos en los que los antiguos delegados fueron expulsados y reemplazados por trabajadores elegidos por asamblea. La organización pasa a ser asamblearia y allí se forman nuevos liderazgos. Aquí es donde por lo general se igualan las relaciones entre compañeros e incluso se establecen nuevas solidaridades entre trabajadores que bajo patrón no se conocían o tenían vedado relacionarse entre ellos9. La segunda prueba de fuego es, una vez ocupado el establecimiento, la reanudación productiva. Es en este momento donde el colectivo formado en la resistencia debe dar pruebas de madurez y visión colectiva. La tarea de la gestión es, por definición en el régimen capitalista, exclusivi dad del capital, y absolutamente ajena al trabajador. Reemplazar esa tarea esencial del capitalista implica la reformulación de la propia concepción del trabajo y del trabajador, pero además la adaptación a condiciones de funcionamiento que implican pensar y dirigir la estrategia empresarial en forma colectiva. Esto no es de ninguna manera fácil, requiere pensarse como sujeto colectivo capaz de tomar decisiones y asumir responsabilidades. Y, además, insertarse en relaciones de competencia de mercado, por lo general, en inferioridad de condiciones. La supervivencia juega, además, una presión sobre el colectivo difícil de soportar, pues cuando aparecen los primeros resultados del trabajo la presión para repartir los escasos ingresos, llevados de la desesperación, puede impedir la consolidación de la ERT y condenar al fracaso el intento. Es enorme la voluntad de sacrificio que deben sostener los obreros en estos casos, soportando las presiones de sus propias famitas y de los compañeros más urgidos. Aquí es donde se forja y fortalece la igualdad del colectivo. Pero si este momento decisivo, donde la reciente empresa autogestionada corre el peligro de «comerse» a sí misma, es superado, el camino a la consolidación de la autogestión aparece mucho más claro. Como ya hemos puntualizado, las circunstancias de origen para que la ERT comience su actividad productiva distan mucho de las ideales y difieren sustancialmente de las oportunidades que las reglas de juego del sistema capitalista brindan a cualquier empresario que decida invertir capiEste tema es explorado en el capítulo 6 del informe del Tercer Relevamiento de Empresas Recuperadas del Programa Facultad Abierta. (Ruggeri 2011: 71–88) 9
229 tal en un emprendimiento determinado. Los trabajadores no están decidiendo, en verdad, otra cosa que intentar continuar la explotación de un establecimiento fracasado, a veces por circunstancias macroeconómicas que el propio capitalista no pudo resolver, la mayoría por decisión de los patrones, que intentaron sacarse de encima el negocio a costa de sus empleados y, generalmente también, de proveedores, de clientes y del Estado. Queda fuera del alcance de los trabajadores la posibilidad fundamental de tomar autónomamente la decisión de qué tipo de unidad económica crear o desarrollar. En ese sentido, están reducidos a intentar hacer funcionar para su supervivencia una unidad económica previamente condenada por las reglas de juego del mercado. También son numerosos los ejemplos donde la solidaridad ha contribuido en forma decisiva a superar estos obstáculos. Muchas ERT ya en funcionamiento han aportado financiación, préstamos o incluso donaciones para las nuevas con dificultades para recomenzar la actividad. Complementariamente, la lucha del movimiento y su visibilidad social han provocado que desde algunos estamentos gubernamentales se desarrollase una política de subsidios que pueden ser vitales en esta difícil etapa. Estas líneas suelen ser insuficientes, pero en algunos casos son un impulso importante en el corto plazo. Pero el gran problema es que las empresas autogestionadas deben competir en un nicho del mercado, es decir, someterse a la lógica de la competencia capitalista para sobrevivir. Se trata de empresas, pero empresas de trabajadores, que deben vender sus productos subsumidas a las reglas del mercado de competencia. Esta demanda presiona sobre los tiempos de trabajo, la rentabilidad, la capacidad de tomar decisiones estratégicas y, en ocasiones, sobre las normas de funcionamiento interno. El debate es viejo, ya se dio en la Primera Internacional acerca de las cooperativas de la época, se planteó entre Rosa Luxemburgo y Eduard Bernstein que ya hemos nombrado (Luxemburgo, 1985; Cole, 1959) en la polémica sobre el reformismo en la socialdemocracia alemana de fines del siglo XIX, reaparece en cada ocasión en que formas económicas autogestionarias o asociadas deben desarrollarse en el seno del mercado capitalista. ¿Cómo desarrollar una lógica de relaciones solidarias y democráticas al interior de una empresa que debe competir por fuera de sus puertas con los valores capitalistas para poder mantenerse? ¿Es posible y deseable esto? ¿Puede haber otro mercado, inspirado en reglas de intercambio que no busquen imponerse sobre el otro? Por ahora, debemos trabajar manteniendo estos interrogantes y constatar que, en las ERT argentinas, este problema se mantiene encapsulado, en una suerte de tregua dada por la necesidad de supervivencia de las empresas y de los propios trabajadores. La ERT está
230 en principio obligada a tratar de reconstruir sus redes de demanda o, de no poder o querer hacerlo, construir otras. Esta demanda, por el momento, está necesariamente mediada por el mercado capitalista, incluyendo a aquellas que tienen al Estado como cliente. La cuestión es cómo, a pesar de esto, se pueden preservar lógicas de funcionamiento interno que logren escapar a esta presión.
Palabras finales A diferencia de las experiencias históricas más conocidas y radicales surgidas en contextos de crisis revolucionarias, las empresas autogestionadas por trabajadores surgidas en Argentina y en otros países latinoamericanos constituyen procesos que son, en cierta forma, consecuencia de las transformaciones regresivas de la propia economía capitalista. La etapa de la globalización neoliberal provocó la expulsión de millones de trabajadores de las relaciones salariales. La autogestión y la autoorganización productiva, aun en este marco desfavorable, representa una respuesta activa de la clase trabajadora a esta situación. Acuciada por la necesidad de supervivencia, pero siendo claramente consciente de que las demás alternativas sólo llevan a la marginalidad estructural, la defensa del trabajo se vuelve la defensa de la propia vida y la búsqueda de mecanismos de regeneración de relaciones sociales y económicas propias del movimiento social. Más allá de cuál sea finalmente la evolución de las empresas de autogestión, presionadas por la lógica de las relaciones sociales y económicas en las que deben necesariamente desarrollarse, la experiencia ha tenido el importante papel de reactualizar la discusión y la necesidad de desarrollo de la práctica y la teoría de la autogestión. La crisis capitalista pone a los trabajadores del mundo frente a este debate. Las propias limitaciones de la experiencia argentina nos ponen frente a problemas que deben ser pensados y pasar a formar parte del análisis y la discusión sobre las formas alternativas del trabajo.
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11– Reflexões sobre a questão agrária no Brasil e a trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Angelo Diogo Mazin Marcio Jose dos Santos Selma de Fatima Santos
Apresentação O presente texto tem como objetivo tratar, de forma geral, da Questão Agraria do Brasil, da História do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e do Programa de Reforma Agrária Popular. Para lograr tal objetivo, organizamos a reflexão em três partes. Na primeira procuramos refletir sobre a Questão Agraria no Brasil, como se constituiu a organização do território brasileiro na forma predominante da grande propriedade da terra, ou do latifúndio. Tal modelo predominante está relacionado a forma capitalista de produção à qual insere o latifúndio e a produção de commodities no bojo da produção de mercadorias com o intuito de consolidar o Brasil na divisão internacional do trabalho como grande produtor de mercadorias primárias. Desde o período colonial até nossos dias, pouco se alterou nas condições de inserção do Brasil na chamada divisão internacional do trabalho. A estrutura fundiária nos últimos anos se adequou a produção de mercadorias no campo, permitindo atualmente a entrada de capital estrangeiro na aquisição de terras no país. No ano de 2003 os produtos com alta tecnologia representavam 18% da pauta de exportação, enquanto as commodities representavam 37%. Já em 2010 as exportações de produtos com alta tecnologia somou um total de 9%, sendo as commodities responsáveis por 51% das exportações. No segundo capítulo buscamos desenvolver uma reflexão sobre a trajetória histórica do MST a partir do contexto de sua fundação em janeiro de 1984 até o período dos governos petista, nos esforçando em produzir uma reflexão critica sobre esse período. Governos esses, que provocaram vários impasses nas organizações políticas dos trabalhadores, sendo que muitas dessas caracterizaram, e ainda caracterizam com governos “pós–neoliberal”, “progressista”, “democrático popular”, mas que em suma, atuou estabelecendo uma política de conciliação de classes, que du-
236 rou até o Golpe de 20161. Durante esse período o BNDES assume um papel fundamental no financiamento de setores da burguesia brasileira. No ano de 2010, foram desembolsados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) 687 milhões de US$, disponibilizando 870 US$ no ano seguinte, atingindo 1 bilhão de US$ em 2012. Em 2013, BNDESPar (BNDES participações), tinha participação acionária em 22 das 30 maiores empresas multinacionais brasileiras. Além de ter sido a principal fonte do PAC I e do PAC II, cumpriu com um papel fundamental, no ano de 2014, financiando o total de 6,5 bilhões R$ para a instalação de 51 novas usinas para a produção de etanol, além de iniciar a construção de um alcoolduto de 920 quilômetros que liga Campo Grande até o Porto de Paranaguá. A construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, que recebeu 7,2 bilhões R$ do BNDES. A Barragem Salto do Rio Verdinho, obra da Votorantim, implementada no Estado de Goiás, recebeu o financiamento do BNDES de 250 milhões de R$. Em 2007, os empréstimos aprovados pelo Banco para financiar a construção de hidroelétricas cresceram 207% em relação a 2006, totalizando 13 R$ de Reais. Em 2003 foi destinado para o Programa Bolsa Família 0,11% do PIB, passando para 0,44% em 2010. No mesmo passo, entre 2003 e 2010 foram enviados para exterior 130,2 bilhões de dólares a título de lucros e dividendos. Os lucros dos cinco maiores Bancos do país elevaram–se de 11,1 bilhões de Reais em 2003, para 46,2 bilhões em 2010. A concentração de renda aumentou no período do Governo Lula em números alarmantes: 10% da população controlavam 75% da riqueza produzida no Brasil (Fonte: DIEESE). Os Bancos brasileiros e seus lucros: o lucro do Banco Itaú em 2002 foi de 2,377 bilhões de R$. Em 2010 foi de 13,232 bilhões de R$. No ano de 2008, período da crise, atingiu um lucro de 10 bilhões de R$. Em segundo lugar vem o Bradesco, que saltou de 2,022 bilhões de R$ em 2002 para 10,022 bilhões de R$ em 2010. Em terceiro lugar foi o Banco do Brasil, que saiu de 2,028 bilhões R$ em 2002 para 11,703 bilhões R$ em 2010. O Banespa/Santander passou de 2,818 bilhões R$ em 2002 para 3,823 bilhões R$ em 2010. Se somarmos o acumulado de 2000 até 2010 o lucro total dos Bancos no Brasil foi de 269,345 bilhões R$. Os Bancos que citamos acima, ou seja, 04 centralizaram 196,905 bilhões de R$, equiGolpe Institucional orquestrado pela burguesia brasileira alinhada com a burguesia internacional, contra a Presidente Dilma Rousseff, utilizando taticamente da figura do vice–presidente Michel Temer, onde juntas operam diversas manobras que resultaram no impeachment e o afastamento de Dilma. Tal façanha teve como objetivo acelerar as reformas que vinham acontecendo lentamente, como as trabalhista, previdenciária, e aprovar diversas medidas provisórias e emendas constitucionais que garantissem os ganhos lucrativos do capital em detrimento e desfavorecimento dos direitos trabalhistas, os quais foram e continuam sucessivamente sendo destruídos. 1
237 valente a 73.10% do total. Além disso, o patrimônio dos grupos empresariais que atuam no setor financeiro cresceu 71,7% entre 2003 e 2008, enquanto o PIB cresceu 28% no mesmo período (Paulani, S/D, p. 95). No terceiro capítulo tratamos do Programa Agrário do MST, que aprovou no seu VI Congresso, realizado em março de 2014 o Programa de Reforma Agrária Popular. Nesse Congresso, que reuniu mais de 17.000 trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra, definiu–se como “grito de ordem” (lema do Congresso): Lutar, Construir Reforma Agrária Popular. Para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Reforma Agrária só será possível se organizarmos os trabalhadores e trabalhadoras na luta. A questão agrária no Brasil no contexto da luta de classes
Despejo das 2500 famílias acampadas na fazenda Jangada, Getulina–SP, 1994 Fonte: Bernardo Mançano Fernandes (1994)
Para compreender a dinâmica da Luta pela Terra e pela Reforma Agrária no Brasil, faz–se imprescindível exercitar a relação entre a particularidade e a totalidade, invertendo a lógica pós moderna, onde as partes ganham independência e autonomia, já que esta teoria/leitura da realidade, preconiza o fim da totalidade. É próprio da pós modernidade afirmar que atualmente não existe conexões entre as particularidades, e entre as particularidades e a totalidade. Assim, classificam categorias dos trabalhadores como “povos” seguidos de adjetivos como: “do campo”, “da cida-
238 de”, “das águas”, “das florestas” e etc. É como se cada “povo” vivesse contradições próprias e independentes do Modo de Produção Capitalista. No Manifesto Comunista, Friedrich Engels e Karl Marx afirmam que: “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes (2010, p. 40)”. A reflexão que Engels e Marx elaboram a partir do conceito luta de classes, é que existem duas classes fundamentais em disputa na sociedade burguesa: produtores e parasitas, ou nas suas próprias palavras: “burguesia e proletariado”, ou seja, aqueles que produzem riquezas e outros que se apropriam destas por deterem os meios de produção, essenciais para a produção da vida na sociedade capitalista. Embora existam categorias entre os trabalhadores, podemos afirmar que essas, mesmo que operem trabalhos distintos, não estão em oposição uns com os outros e, portanto, tais adjetivos não ajudam na compreensão da dinâmica da luta de classes. N’O Capital, Karl Marx, ao analisar a formação do modo de produção capitalista na Europa, especificamente a constituição/formação do Capital na Inglaterra, afirma que: A separação entre o produto do trabalho e o próprio trabalho, entre as condições objetivas do trabalho e sua força subjetiva de trabalho, era a base realmente dada, o ponto de partida do processo de produção capitalista (Marx, 1996, p 203).
A relação capitalista de produção se sustenta na contradição, como dissemos acima estabelecida entre o Capital e o Trabalho. Essa relação não é natural, pelo contrário, foi fruto de um processo histórico real, que foi gerado por acontecimentos históricos concretos a partir do Século XV, com a dissolução das relações feudais no continente europeu e a gestação de uma nova forma de sociabilidade, o Modo de Produção Capitalista. A conformação da Questão Agrária no Brasil deve ser compreendida no desenrolar da luta de classes neste território, num período de gestação do Capitalismo. E mais do que analisar os conflitos que aqui se estabeleceram com a chegada do invasor europeu, a partir das varias lutas que desenvolveram nesse território: resistência indígena, negra, dos imigrantes, até as lutas dos Sem Terra, é compreender que a partir desse fato histórico: a conquista do colonizador se desenvolve duas classes sociais principais: proprietários dos meios de produção e das terras, e os que vivem da venda da força de trabalho. A partir de 1532, iniciaram–se no Brasil as primeiras formas de agricultura visando o mercado externo. No processo de colonização do Brasil, Caio Prado Junior (1994, p.119–120), destaca três características: "a grande propriedade, monocultura, trabalho escravo, são formas que se
239 combinam e completam”. Seja para controle territorial, ou visando mesmo os lucros oriundos do sistema colonial de produção, a forma de exploração é baseada no seguinte tripé: trabalho escravo, monocultura e exportação. Ciro Flamarion Cardoso (Cardoso, 1988), Jacob Gorender, (Gorender, 2005), entre outros, caracterizaram as grandes propriedades escravistas e monocultoras, como plantations. As plantations escravistas foram implantadas nas várias colônias europeias na América, a começar pelas colônias inglesas, e estavam diretamente vinculadas ao mercado internacional. Na obra Historia Econômica do Brasil, Caio Prado Junior analisa a formação brasileira, e sua inserção na divisão internacional do trabalho: Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão–de– obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, mercantil, constituir–se–á a colônia brasileira (Prado Junior, 1978, p 14).
A “conquista” da América foi fundamental para a gestação do Capital e do Modo de Produção Capitalista, se deu com o processo de colonização que ocorre no século XIV, e foi imprescindível para o processo que Marx caracterizou como “Acumulação Primitiva do Capital”. Sem sombra de dúvidas, a espoliação que foi promovida nesse continente, foi de essencial importância para consolidar o Modo de Produção Capitalista. Um elemento central nesse sistema de colonização foi a exploração da força de trabalho sob a forma da escravidão. Até porque, o ser humano nesse caso se transformou numa mercadoria, que naquele período de florescer do capitalismo comercial possibilitava uma grande acumulação de riqueza. O “Tratado de Aciento”, por exemplo, dada dava aos ingleses o exclusivismo na exploração do tráfego negreiro entre a África e a América Espanhola: A Inglaterra obteve o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4 800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial para o contrabando britânico. Liverpool teve grande crescimento com base no comércio de escravos. Ele constitui seu método de acumulação primitiva. E até hoje a “honorabilidade” liverpoolense continuou sendo o Píndaro do comércio de escravos, o qual — compare o escrito citado do dr. Aikin de 1795 — “eleva o espírito empresarial até a pai xão, forma famosos marinheiros e traz enormes somas em dinheiro”. Li-
240 verpool ocupava, em 1730, 15 navios no comércio de escravos; 1751: 53; 1760: 74; 1770: 96 e 1792: 132 (Marx, 1996, p. 378).
Celso Furtado (2003, p. 49) estimava que no Brasil, no final do Século XVI, havia em torno de 20 mil escravos. Sobre o tema do tráfico de negros, Marx afirma que: Em meados do Século XVI se embarcava na África com destino a América em torno de 10.000 negros por ano. Esta cifra foi crescendo ininterruptamente passando de 0/40.000 anualmente no Século XVII, e a 60/80.000 anualmente no Século XVIII, e em torno de (flutuando para mais ou para menos) de 100 mil anualmente no Século XIX, sendo que esta ultima cifra já me pleno contrabando sendo que esse comercio era oficialmente ilegal (tradução própria do espanhol para o português) (Marx, 1973, p. 118).
A exploração do trabalho através da escravidão moderna aparece como um fato novo na história. Mas vale lembrar que em 1550, “10% da população de Lisboa era constituída por escravos negros” (Prado Junior, 1978, p. 22). Sem sombra de dúvidas não seria possível pensar no desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista sem analisar a importância que teve as colônias entre os Séculos XIV à XVIII. Há duas questões, dentre outras, que gostaríamos de destacar na formação da Questão Agrária no capitalismo: 1. a concentração e centralização das terras; 2. a dissociação dos trabalhadores das terras, através de um êxodo rural constante no capitalismo. Esses dois elementos nos coloca uma questão para ser refletida: que é permanência dos trabalhadores que vivem no campo hoje. Quando analisamos o desenvolvimento do Capital e a Questão Agrária, podemos deduzir que há uma tendência histórica: a concentração e a centralização das terras. No decorrer do Século XX, de maneira muito generalizada, essa concentração deu–se a partir da expansão das fronteiras agrícolas, mudanças na legislação que “flexibiliza” as reservas naturais aumentando a área agricultável, desestruturação de comunidades indígenas, camponesas, quilombolas, através das políticas de créditos, repressão armada a partir do Estado e etc., ou seja, para o Capital não existem adjetivos, senão a expulsão de trabalhadores de diversos seguimentos para manter seus níveis de acumulação. Um elemento é verificável enquanto característica comum na história do capitalismo: a concentração e centralização de terras e de capitais. O latifúndio no Brasil pode ser considerado, tomado num primeiro momento, como uma forma de distribuição/organização territorial. Essa forma de distribuição do território sofreu variações no espaço e no tempo.
241 Entretanto, há uma predominância histórica dessa forma de organização da propriedade, que é a concentração das terras, sob a forma do latifúndio. Embora há continuidade, no decorrer da história do Brasil, observamos um processo que foi classificado por Alberto Passos Guimarães (1977) como modernização conservadora. Modernização, pois no latifúndio no Brasil na atualidade não mais encontramos a forma de trabalho escravo2, pelo contrário. O latifúndio brasileiro é responsável pelo consumo da tecnologia de ponta na atualidade. Na década de 50 já se falava em biotecnologia. Atualmente o latifúndio utiliza a nanotecnologia para a produção de sementes e etc. Conservadora, pois sua estrutura territorial continua concentrada. Historicamente foi através da produção de açúcar que o Brasil se inseriu no mercado internacional. No final o do século XIX houve uma nova reinserção no mercado internacional através da exportação desse produto, devido ao desenvolvimento das forças produtivas deste setor o que ocasionou um barateamento desta mercadoria transformando o mesmo num artigo de consumo de massa. Entretanto, a concorrência com o açúcar oriundo da beterraba, e a produção em alguns países da América Central e Caribe derrubou a participação do Brasil no mercado internacional de 10% em 1850 para 0,5% em 1910. Agora, um país nas proporções do Brasil, com um imenso território e recursos naturais variados, se inseria no mercado internacional com a produção de uma única mercadoria: o café (DEAN, 2008, p. 672). Entre 1889 a 1929 o café foi a principal mercadoria destinada à exportação brasileira. Entre 1889 a 1897 o café foi responsável por 67,6% das exportações, sendo que o açúcar na mesma época representava apenas 6.5%. Entre os anos de 1898 à 1910 correspondia à 52,7% sendo que o açúcar, cacau, mate, fumo algodão, borracha, couros e peles correspondia juntos a 43,1% das exportações. Já nos anos de 1911 à 1913, 61,7% das exportações eram de café, chegando entre 1924 à 1929 à 72,5% das exportações (FAUSTO, 1996 p. 292), sendo que o principal importador desta mercadoria nesse período fora os Estados Unidos da América. Um aspecto interessante que merece destaque é que na colheita de 1901/1902 o Brasil produziu 82% do café mundial (SILVA, 1976, P. 66). É através da simbiose latifúndio, exportação de commodities (divisão internacional do trabalho) e superexploração do trabalho que se estrutura a Questão Agrária brasileira. Situando o latifúndio no espaço e no tempo, observamos que nos vários períodos que o Brasil transmuta de sistema político, há sempre a Entre 2007 à 2016 foram libertados 1.807 trabalhadores rurais em situação de escravidão no Brasil (CPT, p. 24, 2017). 2
242 conservação de velhas estruturas da sociedade. Sem sombra de dúvidas, o latifúndio é uma dessas estruturas. Embora seu conteúdo se conserve (for ma de propriedade privada baseada na concentração de terras), ele altera em alguns momentos a sua forma de existência. Nesse momento, assistimos diariamente a propaganda na Rede Globo, que afirma que o Agro é Pop, ou seja, o latifúndio no Brasil é Pop. Outro exemplo desta afirmação, basta comparar a forma de propriedade baseada nas sesmarias e a partir de 1850 com a promulgação da Lei de Terras 3. A forma como a propriedade privada da terra se modifica, também é determinada pela forma de agricultura desenvolvida no Brasil. No início do século XX, segundo Nelson W. Sodré (sem data, p. 11 e 12): A superioridade agrícola – e de agricultura voltada para o mercado externo – não era, entretanto, o elemento fundamental da estrutura de produção. O elemento fundamental era latifúndio. Ainda segundo os dados de 1920, a vida, no Brasil, 463.879 de estabelecimentos agrícolas (na verdade, não são agrícolas, mas rurais; agrícola, no caso, é simples eufemismo), com área inferior a 100 hectares, correspondendo a 9,9% da área (área total desse tipo de estabelecimento: 15.717.994 hectares, com área média de 33,95 hectares); os estabelecimentos com área entre 100 e 1000 Ha, em número de 157.959, correspondiam a 30,6% do total da área (48.555.545 hectares de área total do tipo, de área média do tipo alcançando 307 hectares); mais aqueles que se enquadrava amplamente no conceito de latifúndio eram apenas 26.318 – isto é, com área entre 1000 e 25000 hectares cada, correspondendo a 59,5% do total da área (94.668.870 hectares de área total de latifúndio, e a área média de 4.060 hectares). Assim, mesmo definindo latifúndio com extrema tolerância, o Brasil rural, em 1920, tinha 60% do total de suas terras nessa categoria. Se considerarmos apenas as propriedades com área superior a 5000 hectares, havia 1010 delas, em Goiás; 741, em Mato Grosso; 395, no Rio Grande do Sul; 394, em MG; 313, no Pará; 287, no amazonas; 191, em São Paulo; 1 e 67, no Piauí; 130, na Bahia.
Se somarmos à questão jurídica da forma de propriedade com o que e como se produz na mesma, concluiremos que as transformações ocorridas na forma de produção na agricultura a partir do século XX, fortaleceram a existência do latifúndio no Brasil. Basta recorrermos às transformações ocorridas da década 50 que ficaram conhecidas como: Revolução Verde. Após a II Guerra Mundial, há no campo brasileiro o desenvolvimento de uma política que posteriormente foi chamada de Revolução Verde, que passou a utilizar as sobras da Guerra (tanques de guerra, venenos utilizados para destruir as florestas A Lei de Terras número 601 foi promulgada em 18 de setembro de 1859, significou a introdução, do ponto de vista jurídico, da propriedade privada da terra no Brasil. Foi a transformação das terras em mercadorias. A partir de então, as terras poderiam ser compradas e vendidas. 3
243 que serviam de camuflagem para os soldados), adaptados para a agricultura. Essa forma de desenvolvimento econômico e político no campo brasileiro se caracterizou pela modernização do campo. Com o advento da Revolução Verde um novo enfoque foi dado à agricultura nos países desenvolvidos; o que resultou em aplicação de larga escala dos agrotóxicos e fertilizantes, na utilização e desenvolvimento da maquinaria adaptada a agricultura, na homogeneização da produção afim de facilitar a mecanização. No nosso país, o resultado foi além da chamada “modernização do campo”, um tremendo êxodo rural4. Não seria possível pensar a existência do latifúndio no Brasil, sem considerar o Estado como um instrumento de conservação desta estrutura fundiária. Áspacia de Alcântara Camargo5 afirma que: Se pudéssemos definir o “modelo” político brasileiro por seus sucessivos reajustes no curso da História, diríamos que uma das suas características básicas é a de ter secretado uma classe política simultaneamente vinculada aos interesses agrários e ao desempenho das funções do Estado. Essa classe adquiriu a indispensável coesão que a fará presidir um longo processo de transição social […]. Uma das consequências diretas de tal simbiose foi a garantia do monopólio da terra, acompanhada de um rígido enquadramento das populações rurais (Camargo, 2004, p. 123).
Podemos observar na atualidade, a composição majoritária no Congresso brasileiro, da chamada bancada ruralista, também conhecida como bancada do boi. No nosso século, observamos mais uma mudança de forma no latifúndio brasileiro. No campo brasileiro, não encontramos aquela “figura do latifundiário tradicional”, que explora a força de trabalho, de maneira “familiar”. No lugar desta figura, encontramos grandes empresas transnacionais que se apropriaram das terras e de outros recursos da natureza, como a água, por exemplo, e subordinaram a produção agrícola para atender os interesses do grande capital. Intensificaram a produção baseado na utilização de técnicas agrícolas que destroem o meio ambiente: intensificando a utilização de agrotóxicos que prejudicam a saúde humana e de outras espécies de animais; modificando o código genético das plantas e animais procurando aumentar a produtividade de ambos (transgenia). José Graziano da Silva (2004, p. 137), afirma que: […] a agricultura brasileira evoluiu basicamente daquilo que poderíamos chamar de vários complexos rurais, grandes fazendas, grandes proprieEm 1940 a participação relativa da população economicamente ativa rural na força de trabalho total era 66,7 %. Em 1960 era de 54,5 %, sendo que em 1980 era de 30,1 %. Já no ano de 1990 representava apenas 24,0 % (Fonte FIBGE apud ROMEIRO, Ademar Ribeiro. Reforma Agrária e Distribuição de Renda. 5 Vale ressaltar que a autora citada se situa no campo politico/ideológico conservador. 4
244 tários que tinham nível de consumo interno e produção de subsistência interna na propriedade, para aquilo que chama complexos agroindustriais.
Essa forma de produção na agricultura estabelece também novas formas de trabalho. Já não é mais o trabalhador africano submetido a forma de escravidão. Muito menos o imigrante europeu que se submete a diferenciadas formas de subordinação. Segundo Tomaz Junior (2007): A expansão e consolidação das monoculturas, além de degradarem o meio ambiente, por exemplo, com a prática da despalha da cana–de– açúcar através das queimadas e a exposição dos trabalhadores à fuligem e as populações circunvizinhas aos canaviais à sujeira e compostos químicos que provocam vários problemas de saúde pública, implementam práticas de exploração do trabalho que descumprem e ignoram a legislação trabalhista, os contratos de trabalho e os direitos civis prescritos na Constituição Federal. Também desmontam as formas de vida comunitárias, por meio da desterreação das nações indígenas, a destruição dos territórios camponeses, aumentando ainda mais as desigualdades sociais no campo, incrementando o êxodo rural, e, consequentemente, a pobreza urbana.
Implica em dizer que as relações capitalistas de produção, moderniza a agricultura, segundo os parâmetros da própria modernidade, ja que a estrutura agrária brasileira mantém determinadas características no decorrer da nossa história, quais sejam: a territorialização sob a forma do latifúndio; a super exploração do trabalho seja na forma das relações escravagistas, seja na forma de assalariamento; a produção de comoditties voltada para a exportação; os expropriados da terra (trabalhadores sem terra); expropriação privada da Renda da Terra; o Estato como indutor de políticas que fortalecem o latifúndio; conflitos de classes, seja na forma de exploração do trabalho, ou na luta pela posse da terra. Essa forma da organização da propriedade da terra no Brasil, produziu no decorrer da sua história as condições para a implementação do seu oposto, ou melhor dizendo, do seu contrário: as possibilidades de destruição do latifúndio por uma medida caracterizada como Reforma Agrária, desenvolvido de forma organizada através da luta pela terra. Ao analisar tais lutas no tempo e no espaço, percebemos que ela muda de qualidade, na medida em que o latifúndio se transfigura. Tomamos a definição de Reforma Agrária de João Pedro Stédile, na afirmativa ao definir a Reforma Agrária (Stedile, 2012, P. 657), como um “programa de governo que busca democratizar a propriedade da terra na sociedade e garantir o seu acesso, distribuindo–a a todos que a quiserem fazer produzir e dela usufruir”. A primeira medida que uma política de
245 Reforma Agrária é o acesso à terra, a partir de um Programa que possibilite esse acesso. Outro importante estudioso da questão que também nos aportaremos é Ariovaldo Umbelino (2007 p. 63) define a Reforma Agrária da seguinte maneira: A reforma agrária constitui–se, portanto, em um conjunto de ações governamentais realizadas pelos países capitalistas visando modificar a estrutura fundiária de uma região ou de um país todo. Ela é feita através de mudanças na distribuição da propriedade e ou posse da terra e da renda com vista a assegurar melhorias nos ganhos sociais, políticos, culturais, técnicos, econômicos (crescimento da produção agrícola) e de reordenação do território. Este conjunto de atos de governo deriva de ações coordenadas, resultantes de um programa mais ou menos elaborado e que geralmente, exprime um conjunto de decisões governamentais ou a doutrina de um texto legal.
Sendo assim, concluímos que no Brasil nunca houve um processo de democratização da terra, o que levada por afirmações tais como (idem, p. 663) “que no Brasil nunca houve um processo de Reforma Agrária”. Na contra mão de uma política de democratização da terra no Brasil, nos últimos 10 anos, observamos um processo caracterizado como “reconcentração das terras”. O número de propriedades rurais, caracterizada como Grande Propriedade7 (Teixeira, 2010) em 2003 era 112.463 unidades, sendo que em 2010 evoluiu para 130.515 unidades. A área concentrada respectivamente evoluiu de 214.843.868 hectares para 318.904.739 hectares. Em 2003, a Grande Propriedade concentrava 51,6 % das terras disponíveis para a agricultura, sendo que em 2010 passou a concentrar 56,1 %. Faz–se importante considerar que concomitantemente ao processo de reconcentração de terras, o desenvolvimento e aprofundamento de uma nova forma produtiva, pautada numa matriz tecnológica que é o Agronegócio. Assim, podemos concluir que, segundo o projeto da classe economicamente dominante no Brasil, a questão agrária no país já esta resolvida. O fato é que o tema: “Reforma Agrária”, sempre foi bastante emblemático. Dos gritos de ordem “Reforma Agrária: na Lei ou na Marra” à sua atualidade e necessidade histórica, muitas divergências, convergências foram produzidas entre seus defensores. Independente da tipologia da Reforma Agrária, sua necessidade é pulsante. A justificativa da realização da Reforma Agrária no Brasil encontra apoio em várias literaturas no Brasil, Segundo Teixeira (2010, pag. 06): “o número de imóveis rurais cresceu de 4.288.672, em 2003, para 5.167.476, em 2010, e as respectivas áreas cadastradas, de 416.112.784 hectares, para 568.258.741 hectares (36.5%)”. Grande Propriedade: correspondente a 5 módulos, possuindo uma área média no Brasil de 2440 há (INCRA). 7
246 produzidas por autores que se filiam em diferentes correntes interpretativas. Embora defendida por vários segmentos, nunca ocorreu no Brasil um processo de Reforma Agrária, pelo contrário. Analisamos no decorrer da história, um processo inverso à realização de um programa de Reforma Agrária (que pressupõe como uma das primeiras e necessárias medidas: a democratização da terra), que é a concentração das terras. Entretanto, observamos que no decorrer da história do Brasil, principalmente a partir da segunda metade do Século XX, o surgimento de várias Organizações Sociais, que através da instauração de conflitos no campo, forçaram o Estado a desenvolver políticas de assentamentos, com o intuito de democratizar o acesso à terra. Entretanto, não podemos considerar que tais políticas de implementação de assentamentos, seja a realização de um projeto de Reforma Agrária. Essas políticas de assentamentos se desenvolvem num contexto desfavorável, pois coincidem com o fortalecimento do Agronegócio no Brasil, num momento de expansão do Capital que se territorializa ao dominar a agricultura em diversas partes do planeta. Para Eduardo Girardi (2008, p. 313): O agronegócio pode não ser tão problemático nos países desenvolvidos, mas nos países subdesenvolvidos onde se instala só contribui para aumentar a desigualdade e é mais uma forma de reafirmar a divisão internacional do trabalho, que afronta a inteligência dos povos até recentemente colonizados de forma declarada. […] Esse sistema é totalmente contrário à soberania alimentar, que pressupõe que um povo deve ter as possibilidades de produzir seu próprio alimento e somente o excedente ao atendimento das necessidades deste povo deve ser exportado.
No decorrer da história brasileira, observamos, fruto da pressão da Luta pela Terra, o desenvolvimento de uma política de assentamentos de famílias, que foram desenvolvidas de formas diferentes através do conflito na sua maioria, e também como uma ação do Estado a fim de expandir a fronteira agrícola através de processos de colonização, que teve variações a depender do tempo e do espaço. O fato incontestável, analisado a partir do numero de famílias assentadas nos últimos anos, é que tal política não foi uma prioridade nos governos, principalmente, durante os governos petistas:
247 ANO
FAMILIAS ASSENTADAS
1993
19.442
1994
22.516
1995
42.746
1996
74.965
1997
63.110
1998
106.481
1999
81.640
2000
44.927
2001
40.146
2002
89.958
2003
111.447
2004
71.884
2005
57.868
2006
69.484
2007
38.827
2008
37.075
2009
16.936
2010
25.369
2011
23.145
2012
23.301
2013
30.888
2015
38.789
Fonte: DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2016.
120000 100000 80000 60000 40000 20000 0
Gráfico elaborado pelos autores
248 Além de um declínio absoluto do número de famílias assentadas, se observa também a evolução da concentração fundiária. Ou seja, por não haver nenhuma política ou programa de reforma agrária consistente e contínuo, e, com o intenso processo de valorização e rentabilidade da agricultura capitalista, nota–se um aumento na concentração fundiária no Brasil, representado pelo aumento também do índice de Gini, como nos demostra Mendonça: O mais recente Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2006, revela que as propriedades com menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área rural, enquanto as propriedades com mais de 1.000 hectares representam 43% do total… O Censo revela que a concentração da propriedade da terra medida através do índice de Gini aumentou de 0,852 em 1996, para 0,872 em 2006. Portanto, o Brasil é “campeão” mundial em concentração de terra e tem um dos piores índices mundiais em concentração de renda. (Mendonça, 2010, p. 5).
Contexto de lutas e formas organizativas do MST Por ser uma Organização Política que organiza os trabalhadores na Luta pela Terra e Reforma Agrária, pautado por uma orientação Socialista, cuja organicidade traz em seu cerne o conteúdo construído pelo legado socialista dos processos revolucionários; precisa se confrontar com uma realidade histórica em que o que se constrói no hoje não é determinado pela força de vontade, mas pela realidade objetiva imediata: construir um novo ser social com bases em relações emancipadoras a partir do trabalho requer desconstruir o estranhamento em que historicamente o trabalhador e o trabalho foi moldado. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) tem sua gênese no final dos anos 70 e início dos anos 80 com o reacenso das lutas populares ainda durante a ditadura militar, quando as forças populares do país retomavam seus processos de luta interrompidos com a ditadura civil– militar de 1964. Assim, nasce trazendo como herança de muitos processos de luta operaria e camponesa da nossa história brasileira. Apreende e recebe influência dos processos de luta pela terra desde a resistência indígena até a luta das Ligas Camponesas, massacrada pela Ditadura Civil Militar. É herdeiro também das lutas urbanas. No início dos anos 80 reinicia–se a articulação dos trabalhadores rurais com forte participação de uma pequena
249 parte da igreja católica, ligada a Teologia da Libertação8, como é o caso da CPT (Comissão Pastoral da Terra), CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base). Esses setores iniciaram a organização dos pobres da terra com o intuito de lutar por justiça social e influenciava na forma de organizar os tra balhadores do campo e da cidade. Em 1984 realiza–se o primeiro Encontro Nacional do MST, em Cascavel/PR onde o Movimento é formalizado como um movimento social de luta pela terra, de caráter popular, autônomo (desvinculado de partido político, igreja e sindicato) e com três objetivos principais: a luta pela terra (luta contra a concentração e o monopólio da terra no Brasil para que ela fosse democratizada e pertencesse a quem nela trabalha e vive). O segundo objetivo é a realização da reforma agrária, já que apenas a distribuição da terra não é suficiente: a luta pela terra é combinada com luta por escola, meios de produzir na terra, a organização social com base na resistência na área conquistada, a consolidação de experiências de trabalho cooperado, produção de alimentos saudáveis, consolidando experiências de produção com base em outra matriz tecnológica pautada na agroecologia. Um conjunto de medidas eram (e são) necessárias para a realização da reforma agrária. Havia o entendimento de que o Estado burguês não faria tais mudanças e que elas demandavam mudanças estruturais na sociedade brasileira, a começar pelo latifúndio da terra e concomitantemente outros tipos de latifúndio sendo que reformas profundas deveriam ser feitas para a consolidação da reforma agrária. Aliado aos dois primeiros objetivos, o terceiro é o da transformação da sociedade. Entendia–se e entende–se que a revolução brasileira, de caráter socialista, ainda necessária, não está superada no Brasil e para tanto os três objetivos definidos na fundação do MST seria uma estratégia de luta no seu conjunto e ambos deveriam ser dialetizados numa luta única. Portanto, esses objetivos continuam vigentes ainda hoje, mesmo tendo transcorrido 30 anos de luta, dado que nenhum deles foi realizado. E não há realização plena desses três objetivos na sociedade do capital sob o controle da burguesia. Por isso, entende–se que reforma agrária não basta. É necessário um conjunto de mudanças profundas. A década de 80, portanto, foi marcada pelas ocupações de terra com o lema: “Terra para quem nela trabalha e vive!” ou “Reforma Agrária na lei ou na marra!”.
Setor progressista da Igreja Católica, vertente de esquerda com uma parcela com viés marxista. Em sua opção pelos pobres numa retomada da proposta original de Cristo, organizavam e conscientizavam os pobres na luta por seus direitos. A Teologia da Libertação cumpriu com papel importante na América Latina nos anos 60, 70, 80. 8
250 O MST dá os primeiros passos na organização dos trabalhadores, fazendo ocupação da terra e através dos acampamentos de lona preta cria sua forma mais eficaz de combate ao latifúndio e de pedagogia da luta aos deserdados, aos “desgarrados da terra”. Organiza–se criando um modelo de organização interna com base na Teoria Leninista da Organização: nascem assim os núcleos de base, os setores, coordenações, numa organicidade com direção centralizada e com princípios coletivos definidos. Nos anos 80 o MST inicia sua luta por escola e a partir das experiências com educação auto–gestionária, sem depender do Estado criou uma pedagogia própria, um modelo educacional próprio, desenvolvendo o embrião de uma “Pedagogia do MST9 a qual avançou para a chamada Pedagogia Socialista recuperando principalmente o legado da pedagogia socialista da Revolução Russa”. Ademais, definiu claramente seus inimigos no campo da luta de classes, criou um jornal próprio de comunicação com a base que chama “Jornal Sem Terra”, e a “Revista Sem Terra”, alfabetizou, educou, formou consciência política internamente, criou alternativas de rompimento com a exploração do trabalho para milhares de famílias Sem Terra. A década de 90 foi marcada por grandes lutas pela realização dos três objetivos, e também foi o momento da construção e consolidação da organicidade interna do MST a nível nacional. O MST criou uma identidade própria a partir do método da ocupação do latifúndio como principal forma de luta e enfrentamento. A bandeira vermelha com o símbolo do homem e da mulher juntos (ombro a ombro) na luta, empunhando o facão, as músicas, poemas, teatro, construídos a partir da luta, assim como a própria letra do hino10, a lona preta, foram formando “identidade Sem Terra, e fortalecendo a ideologia do socialismo” (BOGO, 2008, p 19). A mística foi desvinculando pouco a pouco de uma encarnação divina e tomando materialidade prática com arte e estética com viés da luta de classes a qual foi fundamental para a construção da unidade interna e também no apoio da sociedade ao MST. Com uma estética política Ver Roseli Caldart (2004) – Pedagogia do MST, Expressão Popular. Letra do Hino do MST: “Vem, teçamos a nossa liberdade/ braços fortes que rasgam o chão/ sob a sombra de nossa valentia/ desfraldemos a nossa rebeldia e plantemos nesta terra como irmãos! Vem, lutemos punho erguido/ nossa força nos leva a edificar/nossa pátria livre e forte/construída pelo poder popular. Braço erguido, ditemos nossa história/ sufocando com força os opressores/ hasteemos a bandeira colorida/ despertemos esta pátria adormecida/ o amanhã pertence a nós trabalhadores! Nossa força resgatada pela chama/da esperança no triunfo que virá/ forjaremos desta luta com certeza/ pátria livre operária camponesa/ nossa estrela enfim triunfará!”. (Letra de Ademar Bogo em 1989, com melodia de Willy Correa de Oliveira (maestro da Orquestra da Usp). O hino foi gravado com o coral da USP em forma de marcha. Ver: STEDILE. João Pedro. FERNANDES. Bernardo Mançano. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. Editora Fundação Perseu Abramo. 1999. 9
10
251 própria nas suas formas de lutas, onde a subjetividade combinada com a materialidade é trabalhada de maneira a contribuir na formação da consciência de classe, a mística passou a ser ferramenta de trabalho de base com conteúdo revolucionário. Nesse período de gestação o MST recebeu influências de dois principais acontecimentos no continente: A Revolução Nicaraguense e a Revolução Cubana11. Uma das preocupações da Revolução Nicaraguense em relação a reforma agrária realizada em 1981 e que influenciou o Movimento na organização das CPAs foi a de que: Dentro de uma visão de longo prazo, a reforma agrária pode ser vista como parte de um projeto amplo de transformação da sociedade. Assim ela deve levar em conta que a Nicarágua se caracteriza hoje como um estado de transição, que é uma etapa no longo caminho para o desenvolvimento da nova sociedade. Dentro dessa perspectiva de transformação, uma das preocupações básicas da reforma agrária deve ser: levar o camponês individualista, o camponês “artesão”, com uma visão estreita e primitiva, as formas mais associativas, mais coletivas de produção, a uma forma superior de organização social. […]. A reforma agrária deve evitar incentivar formas atrasadas de produção como o minifúndio ou a pequena propriedade familiar, sendo sempre preferível a cooperativização do camponês. Esses cuidados dizem respeito principalmente a política de distribuição de terras (Bornstein, 1982, p. 58 e 59).
As dificuldades da coletivização e da construção de trabalho associado estão diretamente relacionadas com um processo de revolução social, como é o caso da Nicarágua, Cuba, China, Iugoslávia ou da URSS. Isso porque tais tentativas se deram ou devem se dar, nos marcos de uma reforma agrária radical. Em sua trajetória o MST edificou uma organização gigantesca que se tornou uma fortaleza na luta popular, especialmente na luta por terra e reforma agrária: a partir da teoria leninista de organização, como já fora dito, formulou seus pilares de organização com princípios organizativos que levam em conta a direção centralizada e coletiva como pilar central, os núcleos de base, o vínculo com as massas, o planejamento (planejamento a partir de uma análise coletiva, distribuição de tarefas, execução, avaliação do planejamento e replanejamento), crítica e autocrítica, método de direção, estudo permanente da realidade, trabalho de base constante, entre outros12. Palestra de Ademar Bogo, um dos fundadores do Movimento Sem Terra, no Encontro Nacional do MST realizado em São Miguel do Iguaçu/PR, em fevereiro de 2002. 12 obre essa temática ver “Princípios Políticos e Organizativos do MST”. Cartilha número 09. 1995. 11
252 Sofreu a perseguição sistemática não só do latifúndio, mas a violência do Estado Burguês na defesa da propriedade privada através da polícia armada nas diversas situações (despejo, prisões, perseguições), violência do latifúndio física (emboscadas, assassinatos) e simbólica (os pareceres da justiça sempre favoráveis ao proprietário). O poder judiciário atua cumprindo com seu papel de classe também na defesa jurídica da propriedade privada e quase sempre contra a luta social. Promove o preconceito da sociedade, o descaso dos órgãos públicos na resolução dos conflitos e na consolidação dos assentamentos. Fundamenta em leis o ódio de classe da burguesia contra o MST13 desmascarando a farsa da imparcialidade, mostrando que o Estado de Direito tem posição ideológica sim a favor dos grandes proprietários. O Movimento esteve no palco das principais batalhas na luta pela terra e reforma agrária até o início dos anos 2000. Foi protagonista, se tornou respeitado especialmente por sua coerência política. Em meados dos anos 90 iniciou um processo de escolarização da juventude em parceria com as universidades públicas brasileiras e também com o governo cubano e venezuelano. Até o momento, milhares de jovens concluíram o ensino médio e estão cursando se graduando em nível superior nas diversas áreas do conhecimento. O MST organiza, entretanto, a entrada coletiva14 na universidade. As turmas ocupam literalmente latifúndios simbólicos no campo do conhecimento que está elitizado e centralizado numa redoma do saber que é a universidade e produzem conhecimentos uteis 15 ao campo de luta popular. Atualmente calcula–se que aproximadamente 7.000 Sem Terra participaram de algum processo de escolarização em cursos de nível superior. Em 2004, fruto de um rico processo de formação política de sua base, juventude militante e quadros, o MST concebe e constrói 16 a Escola Nacional Florestan Fernandes. A ENFF leva o nome do sociólogo FloresSobre essa temática ver documentos: Relatório sobre os Direitos Humanos e a Violência no Campo. Comissão Pastoral da Terra. 2012 e 2013. 14 Entrada coletiva na universidade tem a ver com o rompimento da entrada individualizada e competitiva rompendo com a lógica do vestibular. Também porque representa a ocupação de latifúndio simbólico, por isso a ocupação também é coletiva, dado o tamanho das rupturas e o tamanho da resistência que terão que enfrentar dentro da universidade. Assim a apreensão e produção de conhecimento para os Sem Terra do MST é obra coletiva e não deve ser motivo de vaidades acadêmicas, ou objeto de utilidade apenas individual e sim produção de conhecimentos que sejam uteis para a causa. 15 Os trabalhos de conclusão de curso são propostos pelo MST como uma espécie de síntese de conhecimentos adquiridos e produzidos durante o curso. As temáticas são ligadas a realidade do educando e a escrita faz parte de exercício de sistematização e produção do “concreto pensado” refletido na práxis militante. Muitos temas são pesquisados e produzidos conhecimentos novos para a luta e para o desenvolvimento dos assentamentos. O conhecimento sempre está ligado a uma finalidade coletiva. 13
253 tan Fernandes devido a sua história de vida e sua coerente postura política com a necessidade da revolução socialista como condição de superação de nossa dependência, devido ao subdesenvolvimento a que fomos constituídos, cuja natureza é de base agrária, calcada no latifúndio, na monocultura, na exploração do trabalho por uma burguesia autocrática, e no envio de matérias primas baratas para continuar enriquecendo as potências centrais do capitalismo desenvolvido. Ela (a Escola) é a referência não só para o MST e para organizações de esquerda no Brasil, mas para a América Latina e em alguns países do continente africano, europeu, asiático e em algumas regiões do Oriente Médio, no trabalho de formação política. Atualmente recebe lutadores sociais de várias partes do mundo, organizando cursos de curta, média e longa duração. O MST em três décadas foi protagonista de emblemáticas marchas como, por exemplo, a de 1997 que reuniu cem mil (100.000) pessoas em Brasília (DF). A marcha foi organizada em três colunas, numa caminhada que durou mais de três meses em resposta ao Massacre de Eldorado dos Carajás em Abril do mesmo ano. Nesse contexto, o MST fica conhecido internacionalmente, devido ao Massacre e a impressionante Marcha que organizara. Nos anos 2000, no bojo do descenso da luta de classes, e com o acomodamento da esquerda em geral, fruto do processo eleitoral que leva o PT – Partido dos Trabalhadores a ocupar o cargo da presidência da República, o MST vivencia um de seus piores momentos da sua trajetória. No ano de 2002, ocorre no Brasil um acontecimento que podemos destacá–lo como: acontecimento histórico. A eleição de um Presidente do Partido dos Trabalhadores é resultado de uma construção histórica, que vai desde a criação do PT17, até 01 de Janeiro de 2002, com a posse do Lula. Em 2003, o Governo Federal apresentou o II PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária), que estabeleceu metas para a Realização da Reforma Agrária no Brasil entre os anos de 2003 à 2006 (2003, p. 38): Uma grande Reforma Agrária se faz com grandes metas. As diretrizes do II PNRA desdobram–se em metas que demonstram o compromisso com uma Reforma Agrária massiva e de qualidade, capaz de produzir uma profunda transformação no meio rural brasileiro e impulsionar um novo padrão de desenvolvimento com igualdade e justiça social, democracia e sustentabilidade social. Meta 1: 400.000 novas famílias assentadas; Meta 2: 500.000 famílias com posses regularizadas; Meta 3: 150.000 famílias beneficiadas pelo Crédito Fundiário; Meta 4: Recuperar a caMetodologia de construção brigadas e técnica solo cimento com recursos doados por Sebastião Salgado, junto com o CD Terra – Chico Buarque e José Saramago. 17 O Manifesto de Fundação do PT foi lançado no dia 10 de Fevereiro de 1980, sendo publicado no Diário Oficial no dia 21 de Outubro do mesmo ano. 16
254 pacidade produtiva e a viabilidade econômica dos atuais assentamentos; Meta 5: Criar 2.075.000 novos postos permanentes de trabalho no setor reformado; Meta 6: Implementar cadastramento georreferenciado do território nacional e regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais; Meta 7: Reconhecer, demarcar e titular áreas de comunidades quilombolas; Meta 8: Garantir o reassentamento dos ocupantes não índios de áreas indígenas; Meta 9: Promover a igualdade de gênero na Reforma Agrária; Meta 10: Garantir assistência técnica e extensão rural, capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias das áreas reformadas; Meta 11: Universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas reformadas. (grifos nossos)
Ao se eleger em 2002 o governo Lula mantinha um leque de alianças chamado “Governo de Coalizão”, onde a composição ia desde representantes do capital financeiro internacional, multinacionais do agronegócio, grandes industriais, banqueiros, grandes comerciantes aos setores médios. Em relação a classe trabalhadora, o governo Lula colocou em prática as medidas compensatórias do programa neoliberal, que eram propostas pelo governo anterior Fernando Henrique Cardoso. Esses programas chamados “Bolsa Família”, por exemplo, entre outras modalidades de bolsas, é uma pequena quantia em dinheiro que as famílias pobres recebem como alívio imediato a pobreza. É um paliativo que remedia a situação do trabalhador pobre, causando um acomodamento dos mesmos. No programa de governo de 2002, denominado “Programa de Governo 2002 – Coligação Lula Presidente – Um Brasil para Todos” 18, no item sobre o Programa de Reformas, na página 21, subitem 59 aparece a Reforma Agrária. O programa de reforma agrária diz respeito ao fortalecimento da agricultura familiar, de caráter capitalista desenvolvida por políticas públicas dentro dos marcos do Estado burguês. No mandato do governo Dilma, foi ainda mais conservadora a postura e a relação do mesmo com o MST, não se colocando a disposição para o dialogo, não cumprindo as metas do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), cortando orçamento financeiro do Ministério Agrário. As principais conquistas das áreas de reforma agrária conquistadas anteriormente foram solapadas, como por exemplo: recursos para desenvolvimento dos assentamentos (casas, créditos, poços artesianos, estradas, energia elétrica), recursos para arrecadação de novas áreas, corte nos programas de comercialização (PAA – Programa de Aquisição de Alimentos e PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar), e com isso enfraquecimento das cooperativas e associações de trabalhadores. Mas o principal problema foi a não realização de um programa de reforma agrária no país, a qual Ver site: http://novo.fpabramo.org.br/uploads/programagoverno.pdf – visitado em 28 de fevereiro de 2016. 18
255 sempre fora um compromisso histórico do governo do Partido dos Trabalhadores, desde sua origem, mas claramente abandonado como estratégia de governo, mesmo antes de vencer as eleições. A base social do influxo moderado do PT, e que torna possível a prevalência de um horizonte pequeno burguês no projeto desse partido está na burocracia partidária e sindical formada nesse processo. Para Mauro Iasi: As mudanças verificadas no corpo das resoluções do partido, formas de manifestação de momentos do movimento da consciência de classe, expressam uma transformação significativa de perfil de um estrato que descola da classe trabalhadora, da qual se origina, para formar uma camada burocrática composta de uma série de funções associadas ao processo de institucionalização, e depois burocratização, das organizações criadas pela classe trabalhadora em seu processo de luta nas últimas três décadas. (Iasi, 2006, p. 561).
Sobre a especificidade da reforma agrária, por exemplo, a meta de governo do PT de realização da mesma sumiu do discurso do partido, e, muitos dirigentes afirmavam que a reforma agrária já era uma bandeira superada. Assim, o Partido foi levando os movimentos de luta pela terra “em banho Maria”, mas assumindo compromissos claros com a classe dominante. Iasi acrescenta ainda que: Novamente a classe trabalhadora viu o produto de sua ação distanciar– se, objetivar–se em algo que se tornara cada vez mais estranho a ela. No entanto, é esta a sina desta classe quando submetida a sociedade do capital. Da mesma forma que os produtos do trabalho convertidos em mercadoria se afastam daqueles que o produziram e voltam como uma força estranha, de modo que os produtos dominam os produtores, na ação histórica do ser social convertido em classe, primeiro em si e depois para si, são produzidas e objetivadas organizações e instituições que em um momento corresponderam ao movimento livre da práxis, expressaram a fusão de classe e deram guarida ao seu juramento, mas que podem igualmente se distanciar e se estranhar novamente, condenando de novo aqueles que as construíram à serialidade estranhada, transformando os sujeitos da história novamente em objetos (Iasi, 2006, p 563).
Dessa maneira, observa–se que o MST se tornou um exemplo emblemático desse estranhamento e que fora transformado em mero objeto, uma vez que sempre foi base aliada e ajudou a construir o partido desde os anos 80. O MST apostou todas as suas expectativas em um programa democrático popular alimentando reais expectativas com a possibilidade
256 de uma reforma agrária, mesmo nos moldes clássicos, realizados pelo governo do PT. No ano 2002 quando Lula assume a presidência, espontaneamente milhares de famílias engrossam as fileiras do MST, contrariamente ao método sempre utilizado do trabalho de base feito pela militância do movimento, dessa vez, ocorreu aumento significativo de trabalhadores que espontaneamente foram para os acampamentos. Somente nesse ano, mais de 150 mil famílias se somaram aos acampamentos nas beiras das estradas. Acreditava–se que o Lula cumpriria com sua promessa de campanha que era a realização da reforma agrária. Não houvera assentamentos e no período de dois anos essa massa que fora espontaneamente desiste da luta e retorna para as cidades. O MST sofreu grave derrota no âmbito de um plano de reforma agrária; e além disso, a falta de conquistas concretas para a base social (acampamentos com mais de 10 anos embaixo da lona preta sem perspectivas de novos assentamentos), ao mesmo tempo, as famílias assentadas tem suas conquistas sucateadas, como é o caso dos recursos/créditos para produção, moradia, entre outros. Por outro lado, se consolida e se torna hegemônica a agricultura moderna capitalista custeada com recursos do Estado brasileiro, com apoio político do governo. Na primeira década dos anos 2000, apesar de todas as contradições que significou o governo Lula para o MST, inclusive de retrocesso para o avanço da luta pela Reforma Agrária empreendida até então, pois o governo freou a luta com clara tentativa de amortecimento da mesma, bem como, protagonizou as condições de amoldamento e apassivamento dos setores populares. Mesmo diante da inércia e da não realização da Reforma Agrária, enquanto pactos foram gestados e concretizados em total consonância com os interesses do capital e com as frações burguesas da classe dominante como foi com o capital financeiro e o agronegócio, o MST foi às ruas defender a Reforma Agrária. Exemplo disso foi a Marcha Nacional que o Movimento organizou em 2005 de Goiânia à Brasília, onde mobilizou 12.000 mil marchantes. Foi uma das maiores mobilizações que o MST empreendeu na sua história, sendo um dos maiores deslocamentos humanos tendo a duração de um mês. Na parte da manhã os marchantes caminhavam sendo que a parte da tarde era dedicada ao estudo de temas ligados a Questão Agrária, Reforma Agrária, Estado, Luta de Classes e Conjuntura. Cada marchante tinha um rádio com fones de ouvidos e havia uma rádio itinerante que transmitia notícias relacionadas ao trajeto, informações sobre a Marcha, conjuntura, músicas e etc. Foi organizada uma ciranda infantil e uma escola para as crianças, para que os pais, e principalmente as mães, pudessem participar dessa grande luta. Uma
257 equipe de infraestrutura móvel saía cedo, calculava o trajeto a ser caminhado e montava antecipadamente no período da manhã as “cidades de lona preta” (acampamento com capacidade de banheiros, cozinha, ciranda, escola, colchões para um publico de 12 mil habitantes). Estava tudo pronto e organizado aguardando os marchantes que chegariam cansados e com os pés cheios de bolhas, descansarem e “repousarem da batalha”, onde tomariam banho, se alimentariam e iriam para os núcleos de base fazer estudo e debates. Ainda havia ânimo para algum forró nas noites culturais! A base social do MST na atualidade é de aproximadamente 450 mil famílias assentadas e em torno de 90 mil famílias acampadas no Brasil e reúne uma mescla de proletários agrícolas (rurais) e urbanos – que são provenientes da indústria ou da agroindústria. São trabalhadores que durante muitos anos de sua vida trabalharam sob a forma de assalariados ou semi–assalariados. Embora haja casos de outras formas de relação trabalhista: meeiros, parceiros, posseiros, boias–frias, entre outros, a forma predominante é de trabalhadores assalariados, geralmente desempregados. Nos anos 90, grande parcela do proletariado que aderia ao Movimento na luta pela terra estava desempregada. Isso possibilitou um forte trabalho organizativo nos acampamentos, pois ao fazer a ocupação do latifúndio, montar acampamento, transferia–se com a família para viver no espaço de luta e resistência. Ali a família passava por todos os tipos de situações: despejos violentos, reocupações de novos latifúndios, precariedade de comida e itens básicos, o que fortalecia a solidariedade e os laços de união entre os acampados, lutas de enfrentamento ao latifúndio, ao Estado, realização de ações simpáticas à sociedade, entre muitas outras ações. Gérmens de nova consciência começavam a germinar durante essa fase de enfrentamento. Tal público desempregado, massivamente, não tinha para onde ir, já que não podia pagar aluguel, pagar dívidas, comprar comida, etc. O acampamento, ainda que em situação difícil, muitas vezes era a única solução para elas. Em geral essas famílias passavam em torno de 05 a 10 anos acampados até serem assentadas – com poucas exceções – devido à morosidade do Estado na atribuição do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) – organismo do Estado, que tem a responsabilidade de legalizar o processo do assentamento, bem como investir em infraestrutura (estradas, poço, agua, casas, saneamento, eletrificação, construir área social, liberar os créditos agrícolas, (que são irrisórios), assistência técnica…). Os assentamentos em geral, são extremamente precarizados (falta infraestrutura, apoio para produção, assistência técnica), entre outros. Mas ainda assim, são comunidades que se construíram a partir da luta
258 e resistência e valorizam as conquistas, ainda que parcas. O elo de unidade e companheirismo em grande medida contínua presente nos laços comunitários.
Elementos para o debate da Reforma Agrária Popular Toda essa construção histórica do MST, bem como as dificuldades decorrentes da não realização da reforma agrária em nosso país, e por ela ser tratada como uma política marginal, desnecessária em tempos de boom do agronegócio brasileiro. Diante de um quadro tão adverso para a reforma agrária, o MST, (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), vem desenvolvendo nos últimos anos um esforço em atualizar a análise sobre a questão agrária, e propor uma reforma agrária de acordo com seu tempo histórico. A grande questão que paira, sobre o modelo de reforma agrária a ser defendido é a superação definitiva a respeito da chamada “Reforma Agrária Clássica” que segundo o MST: No processo de desenvolvimento do capitalismo industrial, o desafio de desenvolver o mercado interno para suas fábricas confrontou–se com a enorme concentração da propriedade da terra e o fato de que a maioria da população vivia no campo e sem renda, estava excluída desse mercado. Para resolver essa contradição, as burguesias industriais, que controlavam as estruturas do Estado, impuseram contra os interesses das oligarquias da propriedade da terra aos camponeses. (MST 2013, p. 22).
Este foi o grande argumento para a realização da reforma agrária no Brasil, ou seja, uma reforma que antes mesmo de resolver o problema de acesso à terra pelos camponeses, pudesse atender as demandas do próprio capital, uma vez que a reforma agrária clássica seria uma etapa da industrialização e do desenvolvimento pleno do capitalismo, como aponta a análise do MST: Essas mudanças nas estruturas fundiárias, feitas pelo Estado burguês, são chamadas reformas agrárias clássicas burguesas… em comum, elas têm as seguintes características básicas: eram realizadas pelas burguesias industriais; potencializavam o mercado interno através da democratização da propriedade da terra; e, buscaram transformar os camponeses em produtores e consumidores de mercadorias. (MST 2013, p. 22).
O problema é que no Brasil, na totalidade de seu território, esta etapa nunca foi posta em questão pelo próprio capitalismo, deixando órfãos os defensores deste tipo de reforma, pois, se a mesma é uma bandeira do capital industrial, e este capital empreende uma coexistência pacífica e
259 harmoniosa com o latifúndio, os anseios por reformas não encontram ressonância, por alguns motivos chaves como aponta o movimento. A burguesia industrial brasileira nunca se constituiu como uma burguesia nacionalista, que queria desenvolver a nação; a indústria brasileira já nasceu dependente (do capital estrangeiro e de um mercado não de massas; a burguesia precisava ter ganhos com a superexploração da mão de obra fabril, e para isso era preciso ter um enorme exército industrial de reserva, formado pelos camponeses que migravam todos os anos para as cidades e pressionam os salários para baixo. (MST 2013, p. 25).
Outro fator determinante está relacionado à herança colonial brasileira que alicerçou todo o processo de desenvolvimento do capitalismo baseada na grande exploração latifundiária, produtoras de monoculturas a fim de encontrar vantagens comparativas na divisão internacional do trabalho. Até o início do século XXI, o MST, principal movimento de luta pela reforma agrária no Brasil, ainda se pautava pela reforma agrária clássica, pois, apesar de saber que ela não se apresentava como uma necessidade do capital doméstico, ainda mantinha a esperança de que, com a eleição de um governo do campo popular, pudesse alterar minimamente as correlações de forças na sociedade, minimizar as influências externas e convencer uma parte da burguesia nacional da necessidade histórica de se implementar uma reforma agrária para desenvolver um capitalismo interno, menos dependente e mais estável e menos concentrador. O problema é que o dito governo popular fez exatamente o contrário, alicerçou ainda mais as antigas bases latifundiárias, ao eleger como setor fundante da economia exatamente o agronegócio. Com esse modelo, a burguesia, o Estado e os governos assumem plenamente a posição política de que não é mais necessária uma reforma agrária burguesa para o desenvolvimento das forças produtivas na agricultura brasileira… então passam a combater a reforma agrária, mesmo a de versão clássica… e os movimentos populares que lutam pela terra… Ou seja, do ponto de vista do capital, considera–se que a questão agrária no Brasil está resolvida. (MST 2013, p. 30).
O que fazer então diante de tal dilema? Seria trágico se os movimentos de luta pela reforma agrária sucumbissem diante de tal cenário, pois, como analisamos, a reforma agrária independente da vontade da burguesia e de governos, é uma necessidade de primeira ordem, inclusive para corrigir anomalias históricas do processo de desenvolvimento do capital neste território, na qual submetem a maioria absoluta da população a uma eterna penúria diante da concentração absoluta da terra e da riqueza. Algumas organizações de trabalhadores, diante deste cenário, abrem mão da luta e tentam se encaixar de alguma forma nesta realidade,
260 abrindo mão de bandeiras históricas e contentando–se com seduções feitas pelo capitalismo ou pelo próprio Estado através dos governos. Estas seduções estão materializadas no processo de dominação do capital à agricultura familiar, no arrendamento das parcelas dos camponeses para as agroindústrias do agronegócio, na aceitação de políticas públicas mínimas para atenuar as desigualdades, e na cooptação dos setores populares do campo para se adaptar como mão de obra para o agronegócio e desistirem da luta pela terra, sendo que, agora é possível amenizar a fome aguda com os programas de auxílio social a exemplo das “Bolsa Família”. O MST, inserido Nesta conjuntura, realizou durante anos uma ampla consulta em sua base social e ciente destas políticas, lança uma proposta concreta, como cunha tática de combate a homogeneização do campo imposta pelo agronegócio, lançando em seu VI congresso um programa agrário que rompe definitivamente com o pensamento de reforma agrária clássica e propõe uma nova plataforma de luta em torno da reforma agrária. Para isso reforçam a urgência histórica de uma ampla reforma agrária que transforme radicalmente as bases da estrutura fundiária brasileira e: Um novo projeto de país que precisa ser construído com todas as forças populares, voltado para atender os interesses e necessidades do povo brasileiro. Buscando assim, com a luta pela reforma agrária popular, acumular forças, obter conquistas para os camponeses e derrotas para as oligarquias rurais, organizar e politizar nossa base social, ampliar e consolidar o apoio da sociedade à nossa luta. É dessa forma que iremos construir nossa participação nas lutas de toda a classe trabalhadora para construir um processo revolucionário, que organize a sociedade e um novo modo de produção, sob os ideais do socialismo. (MST 2013, p. 33, 34).
O documento em questão rompe no sentido de que supera uma proposta de reforma agrária que parta da necessidade do capital, ao contrário, parte da necessidade dos trabalhadores em antagonismo ao capital, entendendo que este, não precisa de reforma agrária. Na prática a Reforma Agrária Popular também não é um programa socialista, como bem reconhece o MST, mas já não repousa também sobre uma estratégia capitalista, por isso apontamos como uma “Cunha Tática” de reprojetar a Reforma Agrária a partir de interesse dos trabalhadores. O MST demonstra estar antenado com o tempo histórico a qual vivenciamos, que aponta para um período de ausências de reformas estruturantes por parte do Estado burguês, ao contrário, o que se aponta no hori-
261 zonte da luta de classes é um longo período sem reformas. Estamos nos referindo às reformas que propiciem concessões do Estado Burguês à classe trabalhadora, pois, reformas que vão a contramão disso, com certeza serão efetivadas, ou seja, aquilo que no passado foi caracterizado como contrarreformas. Este é mais um dos elementos fundantes da reforma agrária popular, ou seja, reconhecer que reformas vindas do Estado Burguês com algum grau de concessão, já não é mais possível dentro do regime neoliberal. Isto significa que as reformas não serão feitas por concessões e sim por radicalidade política dos trabalhadores, que terão que ter a capacidade de projetar lutas que sejam capazes de romper com esta tendência neoliberal e garantir conquistas importantes, que, mesmo que tímidas e limitadas como é um assentamento de reforma agrária, mas que sinaliza a capacidade de resistência, de organização e de luta dos trabalhadores. No caso dos assentamentos de Reforma Agrária, outra dimensão importante a ser analisada é que esta conquista se materializa na apropriação territorial por parte dos trabalhadores, evidente que a luta por saúde, educação, previdência também são lutas que quando os trabalhadores acumulam vitórias, devem ser encaradas como lutas territoriais da classe, no entanto, a conquista de uma fração delimitada do espaço geográfico possibilita uma maior capacidade de gestão do território, que como já dito anteriormente, não significa que seja estático ou definitivo, ao contrário, estará permanentemente permeados pelos conflitos internos ou externos, ocasionando processos de territorialização, desterritorialização, reterritorialização. O ingrediente território é um elemento novo que o MST apresenta como conteúdo político e organizativo da luta pela terra no contexto da projeção da reforma agrária popular, a rigor, quase não se mencionava o território como processo organizativo, em geral, nos debates internos que presenciamos ao longo de anos de inserção orgânica no movimento, o território era tratado como localização de um assentamento, orientação geográfica ou mesmo pra definir um campo de atuação de um coletivo. No âmbito da reforma agrária popular, o MST incorpora o conceito território como uma fração do espaço geográfico conquistado através da luta de classes, entre trabalhadores camponeses contra os latifundiários capitalistas. Esta fração do espaço geográfico deve se conformar como uma relação econômica, política, cultural e social que expresse uma relação de poder alternativo e superior humanisticamente ao território do capital, ou seja, o território conquistado pelos trabalhadores deve se pautar por relações coletivamente construídas e que busquem referências anticapitalistas, mesmo dentro da ordem capitalista.
262 Neste contexto, elementos como a agroecologia em antagonismo à monocultura, transgênico e agrotóxicos; espaços comunitários em antagonismo à propriedade privada, cooperação do trabalho, ou trabalho associado em antagonismo à separação trabalhador e meios de produção, combatendo assim a lógica da proletarização e assalariamento; educação de classe, amparado na realidade do campo em oposição à lógica da educação compartimentada, da educação como amoldamento e adestramento para a reprodução das relações sociais de produção. Enfim, o MST incorpora vários elementos políticos/organizativos que buscam superar a reforma agrária clássica como medida distributiva/produtivista e projeta uma reforma agrária balizada por pautas populares, buscando construir um modelo que desenvolva um processo de ruptura com o modelo de agricultura adotado e reproduzido pelo agronegócio. Os fundamentos da reforma agrária popular foram sistematizados pelo MST em 13 tópicos. A seguir listaremos alguns deles para evidenciar a superação das propostas de reforma agrária clássica, em relação a proposta defendida pelo MST: 1. A terra e todos os bens da natureza em nosso território precisam estar a serviço de todo o povo brasileiro, impedindo a concentração da propriedade privada, estabelecendo tamanho máximo de propriedade e eliminando o latifúndio. 2. Construir a soberania alimentar, produzindo alimentos saudáveis em cada região do país, para atender todas as necessidades do povo, de acordo com seus hábitos alimentares e culturais. 3. O desenvolvimento da produção agrícola deve ser diversificado, utilizando–se de técnicas de produção agroecológicas e máquinas agrícolas socialmente adaptadas. 4. Preservar, multiplicar e difundir as sementes crioulas, sejam as tradicionais ou melhoradas, de acordo com a diversidade do nosso clima e biomas, para que todos os agricultores tenham acesso a elas; e se mantenha a soberania nacional da produção. 5. A água e as florestas nativas são recursos da natureza e eles devem ser tratados como um direito de todo cidadão. Não pode ser considerado uma mercadoria e nem objeto de apropriação privada. 6. Implementar as formas diversas de cooperação agrícola, para desenvolver as forças produtivas e as relações sociais no campo. 7. Respeitar e demarcar todas as áreas pertencentes ou de usufruto das comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e de pescadores artesanais. 8. Impedir que o capital estrangeiro se aproprie de terras, territórios, água, minérios e outros recursos da natureza.
263 9. Todas as pessoas que vivem no meio rural tem direito a educação pública, de qualidade, em todos os níveis, assim como desenvolver sua cultura e identidade social. Enfim, no nosso entendimento estes pontos pautados pelo MST, coloca a luta pela terra em outro patamar, faz com que a luta evolua de uma reivindicação economicista/distributivista para abranger pautas mais gerais de interesse dos trabalhadores e da maioria da população. A lógica destrutiva do capital exige com que as organizações de trabalhadores evoluam de suas reivindicações corporativas e comecem a pautar questões a longo prazo, cremos que o MST através do debate da reforma agrária popular dá um passo importante nesta perspectiva. O MST, portanto, que continua a defender (defendeu em todos os seus Congressos) a estratégia da revolução socialista, precisa trazer para o centro da discussão, que tipo de organização do trabalho servirá de base para a superação do trabalho estranhado e para a organização dos proletários rurais na luta pela terra, na luta por reforma agrária e pelo socialismo a partir daquilo que é chamado “comunidades de resistência”? Como construir de fato a hegemonia dos trabalhadores Sem Terra a partir de novas relações de trabalho nos “territórios livres” conquistados pela luta? Como avançar na Reforma Agrária Popular feita pelos próprios trabalhadores, sem a ilusão em governos reformistas. Como realizar a Reforma Agrária Popular mesmo na existência de um “governo democrático popular”, como foi caracterizado por setores da esquerda os governos petistas, que a leve a cabo? Só com a organização de milhares de trabalhadores que conquiste através da luta seu pedaço de chão!
Considerações finais A Luta pela Terra, pela Reforma Agrária deve fazer parte de uma estratégia de superação da ordem do Capital. Esta evidente para os lutadores e lutadoras sociais que organizam os trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra, que nos marcos do capitalismo não é possível a conquista da terra, se essa luta não estiver associada à estratégia socialista. Basta analisarmos os números e perceberemos que a tendência histórica do Modo de Produção Capitalista é a concentração dos meios de produção de da terra. A realização de uma Reforma Agrária só é possível quando a sociedade brasileira estiver consciente que essa mudança na estrutura fundiária é de fundamental importância para o conjunto dos trabalhadores, não só do campo, mas também das cidades.
264 A produção capitalista tem como característica a destruição. Basta analisarmos os “acidentes” que as empresas produzem nos últimos anos na busca insaciável dos lucros. A ameaça a existência humana é uma realidade. Não existe morro, rios, biodiversidade que não possa ser destruída. E para alcançar seus objetivos a classe dominante articula seus instrumentais, tais como a legislação, o parlamento, o judiciário, o poder executivo. E através destes, fica evidente também, que não há saídas para as demandas da classe trabalhadora, senão superá–los através da saída revolucionária. O golpe que os trabalhadores sofreram no Brasil em 2016, se deu no sentido de acelerar os ajustes que a burguesia necessita fazer para garantir suas taxas de lucros. A flexibilização das leis trabalhistas, os ajuste nas leis de terceirização, a criminalização dos movimentos sociais, a reforma da previdência, são medidas que atendem a necessidade do Modo de Produção Capitalista para continuarem e expandirem a extração da Mais Valia. Especificamente no campo, a aprovação da Medida Provisória 759, prevê a regularização das terras griladas sob a forma de grandes lati fúndios pelas empresas nacionais e multinacionais, a legalização da compra de terras por empresas estrangeiras, e titularização dos assentamentos, substituindo o Contrato de Concessão Real de Uso pelo Título Privado da Terra, oque possibilita a venda de lotes nos assentamentos. Em síntese são medidas que em curto e médio prazo possibilitará a concentração de terras nas mãos de poucos burgueses. Atualmente existem em torno de 1.500.000 pessoas assentadas em todo o território nacional. Organizadas pelo MST são em torno de 450.000 famílias assentadas nesses 33 anos de luta do Movimento. Se somarmos esses territórios, são aproximadamente 48 milhões de hectares de terra, oque significa uma extensão do tamanho do Estado de São Paulo. São territórios que produzem na sua maioria alimentos diversos, biodiversidade, alimentos agroecológicos, orgânicos, livre de agrotóxicos. Organizam experiências de comercialização direta, excluindo as grandes redes de atravessadores, supermercados, possibilitando o exercício do encontro dos produtores com seu meio de trabalho e de autonomia sobre a produção do seu modo de vida. O MST hoje é o maior produtor de arroz agroecológico do continente americano: 650 mil sacas na safra 2015/2016. Organiza mais de 100 cooperativas, onde constrói com muitas contradições experiências de trabalho associado visando a elevação do nível de consciência. Existem 1.9 mil associações nos assentamentos conquistados e 96 agroindústrias distribuídas nos 26 Estados da Federação onde o Movimento esta organizado.
265 Na II Feira Nacional da Reforma Agrária realizada no Parque da Agua Branca entre 03 à 07 de maio de 2017 foi comercializado mais de 300 toneladas de alimentos sem agrotóxicos. Nos territórios conquistados foram organizadas mais de 3 mil escolas do campo, onde desenvolve uma pedagogia critica, com bases socialistas. Nesses 33 anos de existência retirou das fileiras do analfabetismo mais 50 mil adultos (www.mst.org.br). Mesmo assim, muitos desafios estão colocados para os Sem Terra. O principal é conscientizar o conjunto dos trabalhadores, e não apenas sua categoria, que a luta pela Reforma Agrária é uma luta de todos e todas! E é uma medida imprescindível para o conjunto da classe trabalhadora, mas que só será alcançada, se estiver alinhada com um conjunto de transformações necessárias para a população brasileira. E principalmente, como uma tática alinhada a estratégia da revolução socialista. Só assim, derrotaremos o agronegócio que a cada dia que passa “abocanha” as terras para produzir commodities explorando e extraindo o sangue e suor dos assalariados rurais, visando o mercado externo e, principalmente, visando o lucro privado da burguesia.
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267 THOMAZ JĂ&#x161;NIOR, A. Trabalho, Reforma agrĂĄria e Soberania Alimentar (Elementos para Recolocar o Debate da Classe Trabalhadora e da Luta de Classes no Brasil): Presidente Prudente, SP: maio de 2007.
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12– Corporações transnacionais, a agenda agroecológica do MST e as escolas de agroecologia Henrique Tahan Novaes João Henrique Souza Pires
Introdução A “revolução verde” na agricultura deveria ter resolvido de uma vez por todas o problema da fome e da desnutrição. Ao contrário, criou corporações–monstro, como a Monsanto, que estabeleceram de tal forma seu poder em todo o mundo, que será necessária uma grande ação popular voltada às raízes do problema para erradicá–lo. Contudo, a ideologia das soluções estritamente tecnológicas continua a ser propagandeada até hoje, apesar de todos os fracassos (István Mészáros, O poder da ideologia)
Quando começamos a escrever este capítulo fomos “surpreendidos” por duas notícias: a) a fusão da Bayer com a Monsanto, duas “corporações–monstro” agora como uma corporação muito maior; b) a ONU anunciou que o Sudão do Sul entrou no mapa da insegurança alimentar 1. Segundo outro relatório da ONU, 5 bilionários detém a riqueza equivalente a metade da população mundial e cerca de 1 bilhão de pessoas passam fome diariamente (Ziegler, 2013). Ao que tudo indica, não há nenhuma perspectiva de melhoria, ao contrário, os estudos da área apontam para o aumento da pobreza, a concentração da renda e a intensificação de catástrofes em níveis jamais vistos 2. “A ONU informou nesta segunda–feira (20) que mais de 100 mil pessoas estão sofrendo de fome no Sudão do Sul e que cerca de 1 milhão está à beira da insegurança alimentar no país. “A fome tornou–se uma realidade trágica em partes do Sudão do Sul, e os nossos piores temores foram re alizados”, disse o representante da FAO no país, Serge Tissot, em comunicado à imprensa emitido em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA). “Muitas famílias têm esgotado todos os meios que têm para sobreviver”, acrescentou, explicando que essas pessoas são na maioria agricultores que perderam seu gado e até mesmo suas ferramentas agrícolas. A situação é a pior catástrofe de fome desde que os combates estouraram, há mais de 3 anos, entre as forças rivais – o Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA); as partes leais ao presidente Salva Kiir; e o Exército de Libertação do Povo do Sudão em Oposição (SPLA– IO). De acordo com a FAO, o UNICEF e o PMA, 4,9 milhões de pessoas – mais de 40% da população do Sudão do Sul – precisam de assistência urgente de alimentos e necessitam de ajuda para cultivar plantas” (ONU, 2017). 2 Ver também o capítulo de Paulo Lima Filho neste livro e Sampaio Jr. (2013). 1
270 As “corporações–monstro” estão cada vez mais livres para avançar na mercantilização da vida, no domínio de territórios e na livre circulação das suas ações nas bolsas de valores. Nos relatórios da ONU se fala em “administração da pobreza” e não mais “superação da pobreza” ou em “estratégias de desenvolvimento”. Com o avanço das políticas neoliberais baseadas na privatização direta e indireta de serviços públicos, isto é, o Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital financeiro, a barbárie só ganhará mais combustível: teremos o surgimento de mais e mais favelas, o aumento das taxas de desemprego e subemprego, destruição da vida dos servidores públicos, guerras de baixa intensidade, ressurgimento do fascismo, dentre outros3. No Brasil, tivemos um golpe parlamentar, mais complexo e difícil de ser compreendido que os golpes anteriores. Em 2 anos queimamos mais de 2 milhões de empregos, inundando as taxas de desemprego, que hoje somam cerca de 14 milhões de desempregados, de acordo com as estatísticas oficiais4. No meio rural, voltam a aparecer acampamentos à beira das estradas e na cidade as lutas dos sem–teto crescem a cada dia. Estas são manifestações de um povo que realiza lutas seculares para ter direito a terra, ao trabalho, à educação, à saúde e à vida. Este capítulo de livro pretende refletir sobre a) o papel das corporações transnacionais, especialmente aquelas que fazem parte do chamado agronegócio, b) as lutas pela construção da agroecologia, especialmente impulsionadas pelo MST e c) o papel das escolas de agroecologia do MST na transição agroecológica.
As Corporações–monstro e o fetichismo da “revolução verde” Em outros textos já nos pronunciamos sobre a ofensiva das corporações transnacionais desde os anos 1960 5. Vimos que Jean Ziegler (2013) – no livro “Destruição em massa – geopolítica da fome” – chama as corporações capitalistas de “Tubarões–Tigre”. Trata–se de um nome bastante sugestivo para representar a ofensiva das corporações em todas as esferas da nossa vida. Como vimos, Mészáros (2004) as denomina de “corporações–monstro”. Outros preferem denominá–las de “Polvos”, cheios de tentáculos agarrando territórios e pessoas. Atuando como verdadeiros Estados Nacionais, sendo muitas delas mais fortes que muitos países, as corporaVer Ziegler (2013), Mike Davis (2007), Netto (2008) e Lima Filho, Novaes e Macedo (2017). Evidentemente que estas estatísticas estatais tendem a subestimar o avanço do desemprego e subemprego. Sobre isso, ver Mészáros (2011). 5 Ver Novaes (2017), Novaes e outros (2015). 3 4
271 ções transnacionais jogam seus tentáculos ou seus dentes vorazes e afiados em tudo e em todos. Na virada do século XIX para o século XX, como nos mostrou Lenin (2003) em “Imperialismo – fase superior do capitalismo” – há o surgimento das grandes corporações capitalistas. Já não estamos mais diante do capitalismo concorrencial registrado por Karl Marx em “O Capital”, quando este descreveu e analisou o capitalismo da primeira revolução industrial. No século XX as gigantes corporações capitalistas monopolistas e oligopolistas lançaram novos produtos no mercado, novas formas de gerir a força de trabalho, criaram novas tecnologias, promoveram guerras, derrubaram governos, assassinaram lideranças de movimentos sociais, roubaram terras, provocaram inúmeros desastres socioambientais, dentre outros. No filme “A corporação” (The Corporation) é possível ver a ascensão das corporações e seus tentáculos em todas as dimensões da vida. Juridicamente são impessoais, mas têm por trás bilionários, fundos de pensão, gestores que buscam a incessante autovalorização do capital. A partir dos anos 1960, dentro do projeto de expansão rumo à América Latina, à China, e de destruição do Estado de Bem Estar Social na Europa, há uma nova investida das corporações capitalistas. Através do desenvolvimento tecnológico que gerou novos produtos e novos processos de trabalho, com pesquisas científicas para manipular a mente humana para o consumo, e aumentar o engajamento dos trabalhadores no chão de fábrica, os “tubarões tigre” passam a ter um verdadeiro sistema de controle social, uma espécie de “Big Brother Corporativo” em paralelo aos sistemas de informação dos Estados Nacionais. Nos dias de hoje, o controle realizado pelas corporações capitalistas em nossas vidas é estarrecedor. Elas controlam tudo que fazemos no trabalho, nosso e–mail, descobrem hábitos de consumo com sites espiões, usam drones para matar e fazer entregas. No Facebook acompanham a sua “imagem” e atuam rapidamente se algum problema vier a acontecer 7. Um dos autores deste capítulo esteve em algumas obras do “Plano de Aceleração do Crescimento – PAC” e nelas é possível perceber o enorme poder das grandes corporações no campo da produção e da vida social em geral. Visitamos as Usinas de Santo Antônio e Jirau (Rondônia). As empreiteiras exploram trabalhadores, confinam os mesmos em alojamentos de péssima qualidade, roubam a vida de ribeirinhos, promovem deslocamentos em massa de trabalhadores para as obras. As obras trazem inúPara mais textos sobre as corporações transnacionais, ver Petersen (2013), Sevá Filho (2013), Campos (2009), Bruno (1999), Bernardo (2002), Sebastião Pinheiro (2005), Fontes (2010), Ploeg (2008), Pinheiro Machado e Pinheiro Machado Filho (2014) e Panitch (2014). 7
272 meros impactos na fauna e na flora, surgem centros de prostituição, mulheres grávidas abandonadas, há o deslocamento de atingidos por barragens, dentre inúmeros aspectos que não poderemos desenvolver neste capítulo. Como braços do capital, surgem nas regiões ONGs, Institutos e Fundações para abrandar os impactos das obras8. Em nome do “progresso” da região, de fazer “nascer uma nova Amazônia”, do “emprego para o desenvolvimento da região e do país”, “de atração de indústrias” os tubarões–tigre tem como objetivo a “auto– valorização do capital” – cada vez mais financeirizado 9. Com a mão direita ganham lucros exorbitantes e roubam o território, com a mão esquerda – “devolvendo” um bilionésimo do que roubam da região, geram “empregos locais”, aquecem a economia, levantam hospitais, creches, escolas, dentro do discurso da “responsabilidade social empresarial”. Da mesma forma, muitas corporações capitalistas de altíssimo calibre das indústrias de agrotóxicos, transgênicos, tratores e implementos agrícolas e na comercialização de commodities, produzem inúmeros danos para a classe trabalhadora, como roubo de terras, envenenamento dos produtores e consumidores, aumento das alergias, endividamento de pequenos e médios produtores, etc. No site de uma dessas corporações aparece que ela é produtora de “defensivos agrícolas” e que contribui para “matar a fome da humanidade”. Em Minas Gerais, a Vale coproprietária da Samarco, gerou uma verdadeira irresponsabilidade social empresarial em 2015 10. Ainda em 2015, as corporações promoveram outra “irresponsabilidade” no Brasil, jogando 2 milhões de trabalhadores/as no desemprego. Segundo Bhagavan (1987), que faz uma análise da chamada revolução verde e seu fetichismo: A irrigação, os fertilizantes, os pesticidas, a mecanização agrícola e as instalações para o bom armazenamento dos grãos são os ingredientes Michel Torres (2017) nos mostra como o braço das corporações, isto é, Fundações, Institutos e ONGs a) produzem relatórios nada ingênuos de como “resolver” a questão social; b) realizam seminários, fóruns, encontros, para construir e delinear a estratégia de intervenção social, c) formulam políticas de privatização da assistência social, de concessões, de criação de escolas charter, parcerias público–privadas, etc.; d) formulam estratégias para aumento do desempenho dos servidores públicos; f) formam ou reúnem mensalmente os gestores, secretários, supervisores dos sistemas de ensino e gestores da assistência social para pensar estratégias educacionais, de “desenvolvimento solidário” e “desenvolvimento local”. 9 Para saber mais sobre a financeirização da economia, ver Delgado (1984), Villaça (1986), Coutrot (2005), Godoi (2006), Fattoreli (2007), Campos (2009), Brunhoff (2009), Chesnais (2010 e 2011), Lapyda (2011), Fix (2011), Arantes (2012) e Galzerano (2016). 10 Lira Itabirana: “O Rio? É doce. A Vale? Amarga. Ai, antes fosse. Mais leve a carga. Entre estatais. E multinacionais, Quantos ais! A dívida interna. A dívida externa. A dívida eterna. Quantas toneladas exportamos. De ferro? Quantas lágrimas disfarçamos. Sem berro?” Carlos Drummond de Andrade. 8
273 tecnológicos essenciais na estratégia da alta–variedade–de–produção (high–yieldind–variety, HYV) da revolução verde. Os ingredientes econômicos essenciais são a disponibilidade de crédito e bons preços de insumos para os fazendeiros. A disponibilidade desigual desses ingredientes tecnológicos e econômicos produziu um grande aumento nas disparidades existentes entre os estados e entre as diferentes classes de fazendeiros nos estados. Os estados com boa irrigação, em que os fazendeiros de nível médio constituem a maioria dos agricultores… mostraram índices de crescimento anual na produção de cereais… A maior parte da revolução verde ocorreu nesses três estados. Os estados com pouca irrigação, com pequenos e marginais camponeses e trabalhadores sem terra compondo a maioria rural… registraram índices muito baixos de crescimento da produção de cereais… Falando de modo geral, não mais de meia dúzia dos 22 estados da índia (excluindo–se os nove territórios federados) têm se beneficiado da estratégia da HYV, e neles os benefícios atingiram principalmente os médios e grandes fazendeiros (Bhagavan, 1987, p. 63–64 apud Mészáros, 2004, p.140)11.
As consequências da “revolução verde” foram narradas por pesquisadores, documentaristas, cientistas, intelectuais orgânicos de movimentos sociais, dentre outros 12. Ziegler (2013), no livro “Destruição em massa – a nova geopolítica da fome” se pronuncia sobre a “revolução verde” e nos mostra o irracionalismo da produção de commodities, isto é, a produção voltada para acumulação de capital e todas as consequências que o modo de produção capitalista traz para a humanidade 13. Rogério Macedo (2015), dialogando com Ziegler, observa que está havendo a “destruição da força de trabalho” e isso tem nome: catástrofe humanitária. Para ele: O fenômeno possui duas dimensões: uma sistêmica e uma específica. A primeira diz respeito à conversão de todo o sistema do capital em máquina de destruição em massa, pela subtração das condições mínimas de reprodução da classe trabalhadora global , processo regido pela clássica lei absoluta geral da acumulação capitalista . A essa dimensão, denomina–se complexo sistêmico destrutivo dos trabalhadores: em tudo Para um resgate da crítica de Mészáros a produção destrutiva, ver Mészáros (2002), Mazalla Neto (2014), Rego (2016) e Novaes (2010). Para os limites do “desenvolvimento sustentável”, ver Foladori (2001) e Foster (2005). 12 Para a contribuição marxista a questão socioambiental, ver Duarte (1986), Foster (2005), Frederico (2007), Lowy (2003), Kovel e Lowy (2003), Altvater (2007), Sevá Filho (2013) e Sevila Guzmán (2013), Rego (2016). Para a contribuição marxista ao debate da agroecologia, ver Rego (2016), Guhur (2015), Novaes, Mazin e Santos (2015), Guzman e Molina (2011) e Rego (2016). Para as contribuições da esquerda ao debate da agroecologia e da questão ambiental, ver Sachs (1986), Primavesi (1986), Petersen (2013) e Ploeg (2008) e Marques (2015). 13 Ziegler é suíço e foi secretário da ONU. Seu livro vem sendo muito utilizado por todos aqueles interessados em compreender o papel das corporações na fase atual do capitalismo e para a compreensão do aumento da fome mundial. Para os limites e a potencialidade da teoria de Ziegler, ver o prefácio do livro feito por José Paulo Netto (2013). 11
274 agravado pela presença determinante da crise estrutural. A segunda dimensão consiste em parcela pontual do supracitado complexo (igualmente regida pela lei geral da acumulação) que é a responsável imediata pelo bloqueio das positividades envolvidas com o crescimento da produção e comercialização de alimentos. A ela, dar–se–á a denominação complexo da fome e da degradação dos hábitos alimentares. Portanto, são duas dimensões mutuamente determinadas, uma contida dentro da outra: todas profundamente destrutivas, determinadas pela crise estrutural, levada a tal pela mundialização do capital. Esquematicamente, pode–se dizer: a destruição em massa da força de trabalho é a consequência; o referido complexo da fome e da degradação dos hábitos alimentares é parcela do sistema do capital; seus mecanismos são as epidemias da fome e a degradação dos hábitos alimentares. (Macedo, 2015, p. 311–312)14.
Não bastasse a produção “tradicional” de mercadorias, agora as corporações transnacionais do agronegócio têm um setor “verde”, que poderíamos chamar de “mercadorias verdes”. As corporações capitalistas perceberam este novo mercado e se adequaram as bandeiras “ambientalmente sustentáveis”. Como tudo na sociedade se transforma em mercadoria, a agenda “verde” atraiu as classes médias e uma parcela da população, em alguma medida consciente dos riscos do pacote da revolução verde15.
Lutas pela agroecologia e a agenda agroecológica do MST Os movimentos sociais dos anos 1930–60 foram destroçados pela ditadura de 1964–1985. Na segunda metade dos anos 1970 surgiram inúmeras lutas puxadas pelos trabalhadores. Lutas contra a fome, por habitação, emprego, melhores salários, melhores condições de trabalho para o funcionalismo público, lutas dos bancários, lutas por terra e teto, creches, saneamento básico, lutas por educação e democratização da escola pública, lutas dos atingidos por barragens, etc. eclodiram em todos os cantos do país16. No fim das contas, o capital saiu vitorioso com a sua “transição gradual, lenta e segura”. Não conseguimos as diretas já. O capital esteve
Ver também o capítulo de Paulo Alves de Lima Filho neste livro. Para os limites da bandeira do “consumo responsável”, ver o livro organizado por Mazin, Novaes e Santos (2015). Cabe lembrar também que as teorias dominantes sobre a questão ambiental têm colocado a “culpa” da destruição ambiental nos indivíduos, sem colocar evidentemente o holofote no principal determinante da produção destrutiva: as corporações capitalistas. 16 Ver – por exemplo – Sader (1988) e Dal Ri e Vieitez (2008). 14 15
275 no controle desta transição, a ponto de Florestan Fernandes (1986) se perguntar se estávamos mesmo entrando na fase da “Nova República” 17. No que se refere as lutas contra a revolução verde, para Mészáros esta “criou corporações–monstro, como a Monsanto, que estabeleceram de tal forma seu poder em todo o mundo, que será necessária uma grande ação popular voltada às raízes do problema para erradicá–lo” (Mészáros, 2004). Para nós, o MST é um dos movimentos sociais que está promovendo a denúncia do pacote da “revolução verde”. Já mostramos em outros textos que o MST incorporou a agenda agroecológica nos anos 2000. Para nós, a agenda agroecológica do MST é composta de algumas dimensões, das quais destacamos: a) a soberania alimentar; b) a reforma agrária popular, c) a denúncia do pacote da “revolução verde”; d) questões de gênero, e) o trabalho associado, f) a comercialização popular; g) a modificação da agenda de pesquisa, ensino e extensão das instituições públicas18, dentre outras. Já analisamos muitas dessas dimensões em outros textos 19, por isso não retomaremos neste momento. Teceremos apenas alguns comentários sobre as dimensões de Gênero e a Reforma Agrária Popular.
Questão de classe e gênero nas lutas agroecológicas Semana retrasada [março de 2017] as mulheres de vários movimentos sociais do campo saíram às ruas contra a temerosa reforma da previdência, contra o machismo, o capital e o agronegócio. Tudo leva a crer que estamos vivendo tempos de luta, que as trabalhadoras e trabalhadores, do campo e da cidade irão se levantar e combater essa nova ofensiva do capital. Em março de 2006, depois de muito planejamento organizativo, as mulheres do sul resolveram destruir os viveiros de transgênicos da Aracruz. Foram tachadas de “anti–progresso”, “ludditas”, “vândalas” e “baderneiras” pela mídia do capital (Novaes, 2012). Tentamos mostrar que elas lutavam pela soberania alimentar, pela desmercantilização das sementes, e inconscientemente por uma Ciência & Tecnologia a favor da vida, dos movimentos sociais. De lá para muitas ações foram realizadas contra inúmeras corporações, contra o Estado capitalista e contra a atual divisão de trabalho nos assentamentos e no lar. Para isso, ver também Netto (2010), Sampaio Jr (2013), Minto (2015) e Deo (2014). Ver também Dagnino (2010), Moura (2014) e Barbosa de Oliveira (2014). 19 Ver, por exemplo, Novaes (2012), Pires (2014), Novaes et. al. (2015). 17 18
276 Pesquisadoras como Maria Orlanda Pinassi e Kelli Mafort (2012), Bruna Vasconcellos20, Emma Siliprandi (2009) e Marcia Tait (2013) têm nos mostrado que nestes tempos de luta a agroecologia surge vinculada a autonomia econômica das mulheres, as demandas por participação política nos assentamentos, contra a transgenia e as corporações e por uma nova divisão do trabalho entre mulheres e homens 21. Movimento das Mulheres de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), Rede Xique–xique, são expressões desses novos tempos de luta. O MST, que surgiu em 1984, tem desde 1995 um setor de gênero, configurando uma espécie de luta dentro da luta. Na luta por terra surgem inúmeras lutas na terra, como a ambiental, a de gênero, por cooperação e estímulo ao cooperativismo, contra a transgenia, pela soberania alimentar, etc. Hoje todas as instâncias do movimento são compostas por homens e mulheres22. Os desafios das mulheres camponesas e trabalhadoras do campo ainda são imensos, mas já percorreram um longo caminho. Nos tempos de luta recentes, elas lutaram contra a ditadura, mas isso foi esquecido. Lutaram pela “visibilização” do trabalho doméstico, pela igualdade substantiva entre homens e mulheres, lutaram pelos direitos sociais no meio rural e contra a opressão de gênero. Como nos mostra Bruna Vasconcellos (2015), num texto que mostrou a relação entre Trabalho Associado e Agroecologia: A aproximação entre Trabalho Associado e Agroecologia, desde uma perspectiva feminista, são potenciais espaços à transformação das relações de gênero, não apenas porque questionam as formas capitalistas de produção, mas também porque representam a possibilidade de repensar a reprodução da vida, o lugar do trabalho, do saber tradicionalmente constituído como feminino, e das mulheres na sociedade capitalista. A partir da aproximação às críticas da Economia Feminista, a Agroecologia e Trabalho Associado são vistos como potenciais espaços de ressignificação do trabalho reprodutivo, são a possibilidade de rearticular produção e reprodução da vida. E no entanto, é justamente na ruptura dessa divisão onde é mais difícil perceber as mudanças acontecendo”.
Mafort e Pinassi (2012) observam que: Vivemos, assim, um tempo histórico no qual o sistema sócio–metabólico do capital só pode afirmar–se na completa desefetivação do ser humaVer o capítulo de Vasconcellos neste livro. Para o debate da transgenia, ver também Benthien (2010) e Moura (2014). 22 Sobre o surgimento do MST, ver Rodrigues (2012) e o capítulo de Mazin, Santos e Santos neste livro. 20 21
277 no. E a questão dos agrotóxicos e da transgenia, como incremento indispensável à lógica deste sistema, está perfeitamente inserida num complexo que só se importa com o aumento da produtividade e, consequentemente, com sua autorreprodução. Neste contexto, a necessidade humana por alimentos é absolutamente secundária, tanto quanto o combate à fome e à pobreza não passa de uma apologética comprometida com a valorização do capital envolvido no agronegócio (Pinassi e Mafort, 2012, p. 82).
E completam, trazendo a relação entre classe e gênero na perspectiva da Via Campesina: […] a perspectiva feminista da Via Campesina traz um componente inovador no cenário da luta de classes. As ações que realizam contra os agrotóxicos, a transgenia e o agronegócio vão muito além da crítica ou da mera proposição reivindicativa; são formas político–ofensivas de enfrentamento do Estado e do grande capital, porque expõem os limites absolutos do sistema, o caráter mais nefasto da crise estrutural: sua total incompatibilidade com a vida em amplo espectro. Além disso, na medida em que essas manifestações costumam sofrer toda sorte de acusações no interior de suas próprias organizações, a ousadia dessas mulheres trabalhadoras expõe, ainda, a sociabilidade deformada da própria classe a qual pertencem, classe que, negando–se à autocrítica, se põe, infelizmente, a negociar, por intermédio do Estado, com o algoz de si e de toda a humanidade. Essas mulheres impõem, enfim, que pensemos urgentemente numa alternativa radical ao sistema, uma alternativa que se constitua no reino da liberdade e da igualdade substantiva (Pinassi e Mafort, 2012, p. 88)23.
Vimos em Novaes e outros (2015) que – se o capital promove a igualdade formal – os movimentos sociais anticapital tendem a lutar pela construção da igualdade substantiva de gênero em alguma medida combinando com a luta para a superação do Estado capitalista e da exploração do trabalho. Não é por mero acaso que as mulheres do MST organizam lutas pela independência econômica, não subordinação ao marido, se envolveram ao mesmo tempo questões de classe, de gênero, de etnia e ambientais, numa interessante imbricação, que merece mais pesquisas 24.
Nota de rodapé: “Quando comemos comida envenenada e damos o peito aos nossos filhos, ao invés de alimentarmos a vida transmitimos a morte. No entanto, o mesmo governo que faz campanhas para incentivar as mulheres a amamentar, financia o agronegócio que produz a comida envenenada para o povo pobre, contaminando o leite da maioria das mães brasileiras”. (MST, 2010, apud Pinassi e Mafort, 2012). 24 Ver também Angela Davis (2014) e Andreia Galvão (2011). 23
278
A Reforma Agrária Popular e a construção da Revolução na América Latina Certamente a agroecologia não avançará sem a conquista da terra. Sem uma ampla reforma agrária, infelizmente não há agroecologia. Sem a superação do trabalho explorado–alienado, não há agroecologia. Como vimos nas páginas anteriores, sem o avanço do feminismo, não há agroecologia. Seguindo nessa linha, sem uma completa desmercantilização da sociedade e sem soberania alimentar, não há agroecologia. A conquista dos meios de produção tornou–se tarefa vital no século XXI. Mais que isso, a conquista e o controle dos meios de produção pelos trabalhadores tendo em vista a construção de uma sociedade governada pelos produtores livremente associados, totalmente desmercantilizada, tornou–se tarefa vital no século XXI. O MST tem defendido uma Reforma Agrária Popular. Tudo leva a crer que as classes proprietárias brasileiras não aceitarão uma reforma agrária, muito menos uma reforma agrária de caráter popular. Como um grande produtor de riqueza e de miséria, o Brasil tornou–se um dos maiores celeiros da humanidade, mas também um dos maiores celeiros de miséria. O Brasil produz milho para porcos e frangos, mas não tem milho para alimentar os filhos da classe trabalhadora 25. Segundo David Harvey (2004) e Walter Gonçalves et al (2016), o Brasil é um dos palcos centrais da “acumulação por espoliação”. Roubo de terras públicas, cercamento ilegal de terras, roubo de terras de posseiros, pequenos produtores, faxinalenses, etc. tornaram–se mais comuns do que imaginamos. Nesse sentido, a soberania alimentar, isto é, a luta contra a produção e a exportação de commodities ganha um papel primordial na medida em que o que está em questão é a alimentação adequada dos seres humanos, e não a “alimentação dos lucros do capital”. Ao que tudo indica, nesta nova fase do capitalismo surgirão inúmeras lutas contra o fechamento de escolas, lutas por terra e teto, por habitação, transporte público barato e de qualidade, acesso à universidade pública, saúde pública. As parcas conquistas republicanas duramente arrancadas pelos trabalhadores estão sendo destruídas, numa espécie de “desproclamação da república”. Diante deste contexto de ofensiva do capital e destruição de tudo o que é público, qual é então o desafio para os movimentos sociais anticapital? 25
Ver o interessante artigo de Walter Porto Gonçalves et al. (2016).
279 O primeiro de todos – no caso brasileiro – é reestabelecer a nossa democracia e acabar que este golpe institucional o mais rápido possível. Além disso, fazer avançar as lutas anticapital. Aparentemente lutar contra o fechamento de escolas, contra a destruição da saúde pública, lutar por terra, moradia e melhores salários/direitos trabalhistas são lutas reformistas. Mas no contexto de ofensiva do capital elas ganham um caráter radical, por mais difícil que isso possa parecer. No entanto, acreditamos que nossas lutas precisarão avançar rumo a bandeiras anticapital mais precisas: a autogestão, a cooperação, a desmercantilização, o ecossocialismo, terra de trabalho (e não terra de negócios), a soberania alimentar, a igualdade substantiva, a educação para além do capital. Lutas pelo definhamento do Estado capitalista e sua burocracia, a unificação das lutas da classe trabalhadora e a propriedade comunal, a construção da nossa revolução, são bons exemplos do que estamos teorizando. Sem elas dificilmente caminharemos rumo a uma revolução na América Latina. Na falta dessas bandeiras, as classes proprietárias poderão até ceder aqui ou ali, mas a essência do sociometabolismo do capital estará preservada. Na falta dessas bandeiras, a luta pela terra irá se tornar agricultura familiar, a luta por teto irá se tornar no máximo um puxadinho de Minha Casa Minha Vida, sob o comando das corporações. A luta pela agroecologia permanecerá no terreno do “consumo responsável” e assim por diante. Nossas lutas também não poderão ficar no terreno eleitoral. Como nos alerta Mészáros (2008) as lutas do século XXI devem ter como base as lutas extraparlamentares: […] a força extraparlamentar original e potencialmente alternativa do trabalho transformou–se, na organização parlamentar, permanentemente desfavorecida. Embora esse curso de desenvolvimento pudesse ser explicado pelas fraquezas óbvias do trabalho organizado em seu início, argumentar e justificar desse modo o que havia realmente acontecido, nas atuais circunstâncias, é apenas mais um argumento a favor do beco sem saída da social–democracia parlamentar. Pois a alternativa radical de fortalecimento da classe trabalhadora para se organizar e se afirmar fora do Parlamento – por oposição à estratégia derrotista seguida ao longo de muitas décadas até a perda completa de direitos da classe trabalhadora em nome do “ganhar força” – não pode ser abandonada tão facilmente, como se uma alternativa de fato radical fosse a priori uma impossibilidade (Mészáros, 2008, p. 18).
Para nós, a luta no século XXI deve estar centrada nas ruas, no trabalho de base, na música crítica, no cordel, na unidade dos movimentos sociais, nas festas populares, etc. sempre tendo em vista a superação do trabalho alienado e sua forma de política correspondente, igualmente alienada.
280 A história nos mostra também a necessidade de uma revolução. As lutas na América Latina não comportam o gradualismo e o reformismo típicos dos partidos de esquerda das últimas décadas. Não é possível se aliar conciliar as classes, se aliar ao capital. Vimos o desfecho do lulismo: com o aprofundamento da crise econômica a aristocracia operária foi “ejetada” do Governo, num perfeito golpe parlamentar–jurídico. Evidentemente que uma revolução necessita de uma teoria revolucionária adequada para o século XXI e adequada para as especificidades da América Latina. Sendo assim, a conquista da terra na América Latina pelos camponeses, indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais somente se dará dentro de um quadro revolucionário. Na falta dela, como vimos, a agenda agroecológica dos movimentos sociais avançará a passos lentos, muito provavelmente na forma de um ecocapitalismo tolerável pelas classes dominantes, ou na forma de um agronegócio “verde” 26. O avanço da agroecologia dentro de uma estratégia ecocomunista e autogestionária depende da luta política, ou melhor, do avanço das lutas anticapital dos movimentos sociais e da formação da consciência revolucionária. Na América Latina, o sujeito revolucionário é múltiplo e mais complexo do que os operários e camponeses do século XX. A construção da unidade das lutas dos indígenas, quilombolas, camponeses e camponesas, trabalhadores rurais, da classe trabalhadora urbana assalariada, formal e informal, e da nova classe trabalhadora terceirizada, não será nada fácil, mas é imprescindível. Com a degradação dos serviços públicos nos últimos anos na América Latina, “novos personagens entraram na cena” das lutas urbanas: trabalhadores docentes do ensino médio, do ensino superior e fundamental reagiram a precarização do trabalho docente, servidores da saúde, assistência social, dentre inúmeros outros que passaram a entrar na lista dos lutadores do século XXI e portanto fazem parte da nova classe trabalhadora. A ascensão do movimento indígena na Bolívia, no Equador e no México também não pode ser desprezada. No Brasil, o processo de avanço da nova fronteira agrícola pelo agronegócio está levando ao surgimento de novas lutas dos índios, quilombolas, posseiros, etc. 27. Na América Latina como um todo, eclodiram inúmeras lutas por terra, habitação, água, saneamento básico, saúde, educação, controle dos recursos naturais, dentre outras. Em geral, elas lutas “estacionaram” em demandas pontuais, especialmente porque a ofensiva do capital não permitiu aos trabalhadores a sua ultrapassagem, ao contrário, tendeu a jogar os trabalhadores como um todo na miséria ou na defensiva. Mas também é preciso destacar que nos falta uma teoria adequada da transição ao comunismo na região. 27 Segundo o Relatório da CPT (2017), de 2010 a 2016 o avanço do agronegócio fez dobrar o número de assassinatos no campo. Saltamos de cerca de 30 para 61. Se incluirmos as tentativas de assassinato, os números são estarrecedores. Isso para não falar do trabalho análogo ao escravo 26
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Ilhas de Resistência Educacional: a experiências dos Centros de Agroecologia do MST A pequena quantidade de escolas de agroecologia vinculadas aos movimentos sociais deve ser compreendida dentro do contexto de ofensiva do capital28. Mônica Molina, Lizete Arelaro e Wolf (2015) nos mostram o incisivo assédio de empresas monoculturas – vinculados ao agronegócio – às escolas do campo. Em Teodoro Sampaio, a empresa denominada “Usina Odebrecht Agroindustrial”, a partir de diferentes estratégias de envolvimento do poder público municipal, de membros da comunidade, de lideranças e de agentes da escola, através do “Programa Energia Social para a Sustentabilidade Local”, tem conseguido se inserir nas escolas do campo da região disseminando e promovendo contra valores entre os docentes, os discentes e a comunidade, enaltecendo os “benefícios” do agronegócio para o território, dificultando a compreensão das imensas contradições que sob este modelo agrícola se escondem. Uma das mais perversas tem sido o convencimento da juventude das áreas de Reforma Agrária da região, de abrir mão da maior vitória alcançada com a luta pela terra, que significa o domínio deste meio de produção, convencendo esta juventude a vender sua força de trabalho a estas empresas monocultoras, conseguindo inclusive, que muitas famílias acabem arrendando seus lotes para estas mesmas empresas (Molina; Arelaro; Wolf, 2015). Do outro lado da luta de classes, a construção dos Centros de Agroecologia do MST no Paraná está ligada aos objetivos fundadores do Movimento Sem Terra: “lutar pela terra, lutar por reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país” e a disputa pela matriz produtiva na questão agrária. Tendo em vista uma proposta alternativa de educação da classe trabalhadora os principais objetivos dos Centros de Agroecologia do MST no Estado do Paraná são: – Ser um espaço de formação para as organizações da classe trabalhadora; em pleno século XXI … 28 Poderíamos ir até mais longe, pois a ofensiva do capital impede o surgimento de escolas de movimentos sociais e ao mesmo tempo fecha escolas. Ver por exemplo, o excelente documentário “Granito de Arena” sobre o fechamento de escolas técnicas rurais no México, e os inúmeros artigos que saíram sobre as ocupações de escolas no Brasil nos últimos anos. Vale a pena consultar os textos da Seção 22, dos professores do sul do México e dos docentes de Neuquén (Argentina).
282 – Ser um espaço para os encontros do Movimento Sem Terra e outras organizações, que buscam os mesmos objetivos de transformação social; – Ser uma referência no desenvolvimento de experiências na área de produção agroecológica, apresentando resultados concretos para os agricultores/as; – Ser um espaço de desenvolvimento de valores humanistas socialistas, desenvolvidos através da vida coletiva; – Aperfeiçoar o método de formação técnica e política e escolarização desde o ensino fundamental, como também no ensino médio e superior; – Ser espaços de desenvolvimento de experiências científicas e tecnológicas, voltados à realidade camponesa; – Ser um espaço de incentivo e vivência da cultura popular, resgatando especialmente cultura camponesa; – Ser um espaço onde as pessoas possam conviver, educando – se, trabalhando, divertindo–se e construindo perspectivas de futuro (MST–PR, 2004; LIMA, 2011, p. 87).
Para nós, a criação dos Centros de Agroecologia do MST no Paraná representa: a) um espaço importante, em construção, na formação de quadro militante; b) na socialização do conhecimento histórico e científico produzido pela humanidade; c) na aproximação dos trabalhadores do campo e da cidade, apoiando a construção de ações coletivas de comum interesse (Lima, et. al. 2012, p. 194; Pires, 2016). Os fundamentos teóricos metodológicos que norteiam o Projeto Político–Pedagógico (PPP) dos cursos desenvolvidos nos Centros de Agroecologia do MST estão fundamentados na práxis política e educativa dos princípios da pedagogia socialista, da educação popular, do materialismo histórico dialético e da Pedagogia do Movimento Sem Terra (Caldart, 2004, 2015; Guhur, 2010; Lima et. al., 2012; Pires e Novaes, 2016). Consultando a obra de Caldart (2004, p. 315), constata–se que a formação do sem–terra tem como principal sujeito pedagógico o MST, “como uma coletividade em movimento, que é educativa e que atua intencionalmente no processo de formação das pessoas que o constituem”. Dentro disto, a Pedagogia do Movimento, tem sua matriz formativa desenvolvida sob cinco dimensões: a) pedagogia da luta social, b) pedagogia da organização coletiva, c) pedagogia da terra, d) pedagogia da cultura e e) pedagogia da história. Buscando articular trabalho, educação, escola e comunidade a proposta educativa dos cursos de agroecologia desenvolvida nos Centros além da Pedagogia do Movimento Sem Terra, também tem como referen-
283 cia o conceito de “trabalho socialmente necessário” desenvolvido pela pedagogia socialista de Viktor Shulgin (2013). Dessa forma, o “trabalho socialmente necessário” propõe a base da vida escolar, não como uma mera adaptação, adestramento das mãos e/ou método de ensino, mais ligado organicamente e estreitamente com o ensino. Tornando–se cada vez mais complexo, deve ser a luz que supera os limites da situação imediata, possibilitando o conhecimento da vida e das mais diversas formas de produção. Seguindo com a influência da pedagogia socialista mais agora com Pistrak (2010), o ensino em complexo não se reduz a um simples método que pode proporcionar melhor forma de assimilação de conteúdo, se trata de algo mais profundo, que está relacionado à essência do problema pedagógico e com o conhecimento dos fenômenos reais e suas relações, isto é, a concepção marxista da pedagogia. Nesse contexto os Projetos Políticos Pedagógicos dos Centros de Agroecologia vão ser construídos com base na Pedagogia do Movimento Sem Terra, bem como, os princípios e conceitos desenvolvidos pelos pedagogos soviéticos, entre eles Pistrak e Shulgin. Nessa perspectiva o trabalho, a auto–organização, a relação com a comunidade são princípios que compõem seu PPP e seu Projeto Metodológico (Promet) como podemos ver no caso da Escola José Gomes da Silva (EJGS) apresentado no Quadro 1: Quadro 1 – Princípios Pedagógicos da Escola José Gomes da Silva Princípios
Descrição
Direção coletiva
Todas as instâncias serão formadas por comissões de trabalhadores/as com igual direito e poder. As decisões serão tomadas, prioritariamente, por consenso político.
Divisão de tarefas
Estimular e aplicar a divisão de tarefas e funções entre os sujeitos dos coletivos valorizan do a participação de todos e evitando a centralização e o personalismo.
Profissionalismo
Todos os membros dos setores e coletivos devem encarar com profissionalismo suas fun ções. Considerando profissionalismo sob dois aspectos: a) transformar a luta pela terra e a organização do Movimento como sua profissão militante. Ter amor e dedicar–se de corpo e alma por ela; b) Ser um especialista, procurando aperfeiçoar–se cada vez mais, naquelas funções e tarefas que lhe forem designadas, tendo em vista o conjunto da organicidade do Movimento.
Disciplina
Aplicar o princípio de que a disciplina é o respeito às decisões do coletivo, desde o cum primento de horários, mas, sobretudo de tarefas e missões.
Planejamento
Aplicar o princípio de que nada acontece por acaso, mas tudo deve ser avaliado, definido e planejado a partir da realidade e das condições objetivas da organização.
Estudo
Estimular e dedicar–se aos estudos de todos os aspectos que dizem respeito às atividades do Movimento. A organização que não formar seus próprios quadros políticos não terá autonomia para conduzir as lutas.
Vinculação com as Massas
A vinculação permanente com as massas de trabalhadores/as é a garantia do avanço das lutas e da aplicação de uma linha política correta. Das massas devemos aprender as aspirações, anseios e a partir de sua experiência, corrigir nossas propostas e encaminhamen tos.
Crítica e autocrítica
Aplicar sempre o princípio da avaliação crítica de nossos atos e, sobretudo ter a humilda de e grandeza de fazer a autocrítica, procurando corrigir os erros e encaminhar soluções.
284 Por meio destes princípios, propõe–se que a formação seja desenvolvida desde um trabalho pedagógico que aprende a vivência, a tomada de decisões, o trabalho e o aprendizado em uma dimensão coletiva e participativa, que tenha vínculos com a classe trabalhadora, que seja crítica buscando avançar com a organicidade29 e demandas do MST. Partindo da organicidade os educandos e educandas que participam dos de técnico em agroecologia, por exemplo, vão ser organizados em Núcleos de Base e equipes de trabalho. O trabalho aparece “como provocador de novas aprendizagens, com o paradigma prática–teoria– prática, produzindo conhecimento sobre a realidade” (PPP, 2010, p. 11). Para uma compreensão mais didática do papel das equipes no processo formativo, na estrutura do curso e do Centro, apresentamos no quadro abaixo as equipes criadas para uma turma de curso técnico em agroecologia e médio integrado realizado na Escola José Gomes da Silva. Quadro 2 – Papel das equipes de trabalho na EJGS EQUIPES
DESCRIÇÃO
Saúde/Esporte/Lazer
Terá a tarefa de organizar as atividades relacionadas à saúde, preparando remédios naturais, em casos de encaminhamentos ao médico (hospital ou posto) somente em casos urgentes, encaminhar com a equipe pedagógica. Planejar atividades que contribuam para a melhoria da higiene e limpeza como parte da saúde preventiva, bem como realizar seminários de temas relacionados à saúde. Também se responsabilizará pela escala de limpeza e acompanha mento dos espaços de uso coletivo garantindo limpeza, organização e embelezamento. Tam bém terá que coordenar o uso dos materiais e produtos de limpeza utilizados. Organizar o tempo esporte e lazer com atividades recreativas para o bem–estar do grupo. Deverá planejar atividades diversificadas que envolvam a participação de todos os educandos/as e realizar exercícios físicos para que todos preservem a saúde física e mental.
Relações Humanas
Esta equipe terá a responsabilidade de orientar e zelar pela disciplina consciente entre todos os integrantes. Em casos de indisciplinas deverão ser encaminhados atividades educativas com o intuito de conscientizar sobre seus limites perante o coletivo buscando assim a supera ção. Também terá a tarefa de zelar pelo cumprimento de acordos coletivos no que se refere a horários, normas do Curso e Escola, assim como pela boa conduta e relacionamento entre todos militantes.
Comunicação/ Cultura e Mística
Realizar atividades de animação da turma, especialmente nos tempos aulas; Acompanhar e desenvolver atividades culturais nos tempos destinados a isto. Também será responsável para a preparação dos tempos notícias e organização do mural informativo, e a ornamentação dos espaços educativos. Será responsável pelo uso dos equipamentos eletrônicos de som e vídeo com o coordenador da unidade pela EJGS–ITEPA.
Relatoria e Sistematização
Se responsabilizar pela memória do curso, realizando e sistematizando relatórios diários sobre o desenvolvimento das atividades que acontecem cotidianamente. Os avanços e desafios a serem superados pela turma nos aspectos organizativos, de aprendizagem, participação e práticas.
Produção e Infraestrutura
Ajudar no planejamento e acompanhamento do tempo trabalho, como também na parte de monitorar e encaminhar alguém para arrumar as estruturas físicas da escola quando for preciso. A equipe também ficará com a responsabilidade de planejar a jardinagem da Escola.
Fonte: Organização do autor, com base no PROMET (2010). O termo organicidade é bastante usado nos debates internos do MST, seu significado e conteúdo abrangem: ampliar a participação, elevar o nível de consciência das famílias, formar militantes – quadros, ter o controle político do espaço geográfico, implantar os círculos orgânicos, manter–se permanentemente vigilante, afastar os inimigos, acumular forças. Tudo isso ajudará na elaboração da estratégia na luta política pela Reforma Agrária, dando condições de fazer a disputa política na sociedade brasileira. Para maiores informações sobre a organicidade do MST ler: Método de Trabalho e Organização Popular. Setor Nacional de Formação – MST (2005). 29
285 Os educandos/as inseridos nas equipes propõe sua inserção na realidade local e no próprio curso. Primeiro através do autosserviço, onde os educandos são fundamentais nos processos de manutenção, produção e cuidados com as pessoas e com as estruturas e equipamentos da Escola, bem como, os processos educativos do tempo escola, onde os mesmos são responsáveis pela disciplina, comprometimento e respeito da turma com os educadores e com os demais tempos educativos. Segundo, participando e contribuindo nas unidades produtivas da Escola, a inserção nas unidades produtivas são feitas com o acompanhamento do responsável pelo setor e pela CPP. O objetivo da participação nestas atividades são possibilitar aos educandos/as os conhecimentos práticos, que devem ser analisados criticamente e aperfeiçoados, além de contribuir com a produtividade e, consequentemente, com o autossustento da Escola e do curso. Terceiro, a organização dos tempos educativos em consonâncias com as outras esferas de ensino e aprendizagem nas equipes de trabalho (autosserviço) e nas Unidades produtivas da Escola (autossustento), conforme apresentamos no Quadro 3:
286 Quadro 3 – Descrição dos Tempos Educativos da Turma “Revolucionários da Terra” TEMPO EDUCATIVO
DESCRIÇÃO
Tempo aula
É o tempo em que são desenvolvidas as disciplinas e eixos temáticos nas áreas do conhecimento do currículo do curso. Os eixos temáticos referem–se a: disciplinas do momento de escolarização dos educandos, temas do caráter técnico entre outros. Podendo haver algumas mudanças, pois é preciso conciliar com as agendas dos educadores/as.
Tempo leitura
Atividade destinada à leitura e estudos dirigidos individuais, orientados pela necessidade de cada educando de se apropriar de determinados assuntos, com objetivo de construir um méto do adequado do estudo e desenvolvimento do hábito de leitura, da pesquisa e desenvolvimen to intelectual, proporcionando momentos de socialização das mesmas no conjunto da turma.
Tempo trabalho
É definido em vista às demandas internas da EJGS, contribuindo para a produção e manutenção nos diversos setores/ unidades do Centro/escola e atividades necessárias ao bem estar da comunidade e a formação de valores sociais e humanistas. Nesse sentido o tempo trabalho deve acontecer como elemento formativo que desenvolve a coletividade, a organização e a co operação. A inserção dos educandos/as também cumpre papel de realizar pesquisas produtivas contribuindo no planejamento das atividades e na construção orgânica dos setores
Tempo oficina e seminário
Destinado ao aprendizado e desenvolvimento de habilidades específicas aos focos de capacitação da turma. É o tempo previsto para que os educandos dominem novas atividades. Também pode ser usado para qualificação do trabalho nas unidades de produção. É Organizado conforme a dinâmica das aulas e leituras.
Tempo mística
A mística é a alma da identidade Sem Terra. A EJGS tem a tarefa de resgatar o amor ao traba lho e a pertença do educando e da comunidade Sem Terra à classe trabalhadora. A mística é mais do que um tempo, é uma energia que perpassa o cotidiano. Por isso precisa–se dela no início de grandes atividades e, resgata–la em vários momentos do dia. Esta atividade é de res ponsabilidade dos núcleos de base. Deve–se aprender a trabalhar e vivenciar a mística, cultivar a luta dos trabalhadores, datas importantes e conquistas. Também é o tempo de conferência dos núcleos de base e de informações.
Tempo reflexão escrita
Destinado ao registro das vivências e experiências que cada educando vai extraindo do processo educativo do Centro e do curso, que contribuirão na sua militância. É o momento que o educando tem para refletir sobre sua prática cotidiana e os desafios a serem superados. Para isto cada um terá um caderno específico, esta tarefa será feita cotidianamente, a partir da orga nização de cada sujeito. O mesmo será solicitado pela coordenação pedagógica para acompanhamento semanalmente.
Tempo cultura e lazer
Destinado para atividades culturais, teatros, danças, visitas, músicas, cultura camponesa entre outras. A equipe de comunicação e cultura terá a responsabilidade de coordenar este tempo. Este tempo será organizado conforme as demandas apresentadas pela turma.
Tempo núcleo de base
Destinado à discussão e encaminhamentos gerais da turma e do curso, sendo também um espaço de estudo e debate para a auto–organização dos educandos nos processos de organicida de da EJGS e do MST
Tempo notícia
É o momento destinado para acompanhar os noticiários através da televisão, jornais, revistas, fazendo uma reflexão crítica sobre os fatos que são noticiados pela mídia. Incluem–se também vídeos, documentários e palestras. Esta atividade será de inteira responsabilidade da unidade de cultura junto a equipe de comunicação e com orientações da CPP.
Tempo estudo complementar
A intenção deste momento é proporcionar aos estudantes espaço de auto–organização para os estudos individuais e/ou coletivos, realizações de trabalhos das disciplinas e outras atividades.
Tempo mutirão
Visa contribuir com o cuidado da Escola, com a valorização das pequenas tarefas, com embelezamento do espaço público coletivo. Também é usado para fazer uma limpeza geral nas depen dências da escola. É discutido conforme a dinâmica e demanda da EJGS.
Tempo comunidade
Os objetivos deste tempo são: Realizar atividades delegadas pela organização no qual o edu cando faz parte; comprometer–se com a execução das linhas de produção alternativa; desenvolver atividades orientadas pelos educadores das disciplinas e pela coordenação pedagógica, desenvolver práticas de campo. A cada etapa esse trabalho será avaliado e reencaminhado. Os educandos desenvolverão as atividades que serão acompanhadas pela coordenação política pedagógica do curso, técnicos, coletivos dos setores do MST e direções das brigadas.
287 Tomando como referência os apontamentos de Shulgin (2013) sobre o “trabalho socialmente necessário” observa–se que a PPP dos Centros do MST propõe três pontos básicos importantes: 1) orientado para melhoria econômica e da vida; 2) pedagogicamente valioso e 3) estar em conformidade com as forças e particularidades dos adolescentes. Os tempos educativos, descritos no quadro acima, reforçam os princípios de que a “escola é um lugar de formação humana, e por isso as várias dimensões da vida devem ter lugar nela, sendo trabalhada pedagogicamente”. Dessa forma, “os tempos educativos contribuem no processo de organização dos educandos levando–os a gerir interesses, estabelecer prioridades e assumir responsabilidade” (PPP, 2007, p 12). Cada tempo educativo além de ser parte estruturante da formação do futuro técnico, tem a característica de ser holística quando apresenta a intencionalidade de fazer com que eles vivenciem e compreendam a Escola e o curso como um todo, por meio do princípio prático do “trabalho socialmente necessário”. Portanto, compreende–se que os cursos de técnicos em agroecologia dos Centros do MST tem o objetivo de: […] formar profissionais comprometidos com a implantação de modelos de desenvolvimento rural sustentável, na sua forma multidimensional”, ou seja, profissionais que tenham uma compreensão de uma variedade de dimensões do conhecimento como a “agricultura orgânica, biodinâmica, permacultura, entre outros (Pires, 2016, p.115).
Destaca–se também, a atenção dada no objetivo de “desenvolver o hábito da leitura, da pesquisa, do estudo e da elaboração escrita”, com o intuito de “promover a integração entre os diferentes níveis de conhecimento”. Na mesma vertente, aponta a intencionalidade de formar profissionais pesquisadores com “visão humanista, valores éticos e holísticos, conscientes e socialmente comprometidos, além de inseridos como sujeitos ativos nas lutas dos movimentos sociais” (Guhur, 2010; Lima, 2011; Pires, 2016). E terceiro a inter–relação entre o trabalho, a auto–organização e a relação com a comunidade, os cursos funcionam no regime de alternância, articulado em dois tempos complementares: o tempo escola (TE) e tempo comunidade (TC), que até certo ponto podem ser compreendidos como uma organicidade intencional com respeito a superar as formas de ensino que Shulgin (2013) denominou de “complexos sentados” 30. Nesse sentido, Guhur (2010) sobre os cursos do MST salienta que: Os complexos sentados são a formação promovida pelas instituições de ensino baseando–se unicamente no ensino teórico e livros didáticos, faz referência a uma leitura da realidade, contudo, não se inserem numa vivência prática da realidade estudada (Shulgin, 2013). 30
288 Os cursos formais do MST são organizados no regime ou sistema de alternância, combinando períodos de atividades na escola (e também atividades de campo promovidas pela escola), o Tempo Escola (TE), que é um tempo/espaço presencial; e períodos nas comunidades de origem dos(as) educandos(as), o Tempo Comunidade (TC), que pode ser entendido como um tempo/espaço semi–presencial. Importante salientar que “comunidade de origem” está aqui diretamente vinculada ao movimento social ao qual o educando pertence; é no TC que a Pedagogia do Movimento, […], atua com mais força. Assim, “para os Sem Terra, o MST é o pedagogo do TC” (Iterra apud Guhur, 2010, p. 156).
Além das atividades que compõem o tempo escola, caracterizado como a participação orgânica e colaborativa entre a Coordenação Política Pedagógica, as famílias que residem no Centro e os próprios estudantes na condução dos processos pedagógicos de manutenção, produção e auto– organização da escola e do ensino31. Dominique Guhur (2010, p. 156) coordenadora da Escola Milton Santos diz: No TC, os (as) educandos (as) desenvolvem trabalhos dirigidos pela escola, tais como: leituras, registros, pesquisas de campo, estágios, experimentações e cursos complementares. Além disso, devem participar ativamente na organicidade e nas lutas do Movimento Social de que fazem parte, e manter o enraizamento na comunidade ou coletivo de origem, participando de suas atividades (às vezes, o Movimento Social responsável pode enviar os educandos a outra comunidade em determinados TC, ou os educandos podem permanecer na escola, contribuindo para sua construção ou manutenção).
Entende–se que o TC é o tempo em que os educandos e educandas seguindo orientações dos tempos educativos, dos educadores e das demandas locais durante o (TE), inserem–se em sua localidade com a intenção de aproximar os conhecimentos adquiridos, fazendo o enfrentamento entre a contradição do real com o ideal, ou seja, a transição do paradigma da “revolução verde” ao agroecológico. Na articulação do processo formativo entre o TE e TC está a importância dos espaços de formação vivenciados e sistematizados, como oportunidade da classe trabalhadora se apoderar do conhecimento que lhe foi retirado, mas, também, do conhecimento gerado no local, na ótica de quem está vivendo as contradições do capitalismo. De maneira geral, os cursos formais de educação profissional – tomada aqui em sentido alargado – representa o lócus “[…] onde mais o MST, como um conjunto, expressa sua concepção de escola, nas suas tensões, Para uma leitura mais centrada na questão da gestão participativa dos Centros/Escolas de Agroecologia do MST no Paraná ver a dissertação de Laís dos Santos (2015). 31
289 contradições e reafirmação de princípios, geralmente no contraponto com a lógica de suas instituições parceiras (MST apud Lima et. al. 2012, p.193–194)
Assim, utilizando a Pedagogia do Movimento Sem Terra, dos princípios da pedagogia socialista e do materialismo histórico dialético, os Centros de Agroecologia são Ilhas de Resistência rodeada por um grande deserto verde que tem como objetivo formar técnicos, pesquisadores e militantes para enfrentar o deserto verde e materializar outra matriz de desenvolvimento para a agricultura, fundamentada em uma base tecnocientífica denominada de Agroecologia.
Considerações finais A Era da Barbárie está trazendo problemas mais complexos para a humanidade do que “A Era dos Extremos”. No Brasil, poderíamos destacar a nova fase da acumulação primitiva, que tem resultado na escalada dos assassinatos. Chico Mendes, trabalhadores do massacre de Corumbiara, Eldorado dos Carajás, Doroty Stang, dentre inúmeros outros que não poderemos citar nesse espaço são vítimas da Era da Barbárie. No mês de maio de 2017, quando encerrávamos este capítulo, vieram à tona os incidentes do Vale do Rio Doce (assassinato de uma liderança do MST), de Colniza, dos índios maranhenses e a chacina de 10 sem terra em Redenção no Pará. Enquanto isso, as corporações transnacionais do agronegócio jogam os seus tentáculos em todas as dimensões da nossa vida e cinicamente intensificam a propaganda das soluções estritamente tecnológicas.
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13– Bordando uma história de luta das mulheres populares na América Latina Bruna Mendes de Vasconcellos
Introdução As mulheres populares estiveram historicamente engajadas em diferentes formas de organização social para contribuir com o processo de emancipação da América Latina, seja nos movimentos sociais, nos partidos e sindicatos, em movimentos de mulheres, em organizações informais ou como parte de associações e redes politicamente engajadas. Dizer que essas mulheres constituem um sujeito político, no entanto, não é algo banal. Desde diferentes frentes da literatura e da mobilização social, é possível observar a pouca visibilidade dada ao papel e à atuação das mulheres no contexto da luta popular. Somando esforços para situar a atuação histórica das mulheres populares no continente até o surgimento das organizações contemporâneas ao redor do trabalho associado, fazemos neste artigo uma breve introdução à literatura sobre o movimento de mulheres na América Latina e Caribe. Destacamos especialmente as leituras de Alvarez (2000) e de Vargas (2008), voltadas a compreender o papel das mulheres populares nesse contexto e quais são as rupturas geradas por sua organização. Há de se enfatizar desde o princípio que a ação dessas mulheres é extremamente heterogênea e plural, como consequência da diversidade de formas organizativas, mas também das diferenças entre as próprias mulheres populares relacionadas a raça, etnia, geração e zona territorial, entre outros. Apesar disso, a literatura que se apresenta nesse trabalho evidencia que há elementos comuns de suas motivações, contribuições e relações com a luta popular. Adentramos ao contexto mais recente de organização política das mulheres rurais no Brasil e dos movimentos urbanos nos quais elas estão envolvidas para traçar alguns indícios históricos sobre como, ao longo das últimas décadas, vai tomando forma uma atuação concreta na organização coletiva de atividades produtivas. São processos, de um lado, impulsionados pelo novo contexto político e econômico – demarcado pelo acirramento das condições de flexibilização do trabalho – e de outro como fruto do reconhecimento público de formas de organicidade históricas por elas vi-
298 venciadas, coletivizando a subsistência nos contextos de crise econômica. Começamos aqui a delinear suas contribuições a um processo de politização do cotidiano, dos trabalhos reprodutivos e do cuidado.
Movimento de mulheres na América Latina e Caribe A emergência dos chamados novos movimentos sociais na década de 1980 no Brasil e noutros países da América Latina abarca uma diversidade de experiências de organização de setores da sociedade civil que abre um campo analítico e de atuações bastante complexo. O novo nesses movimentos reside justamente em romper com as formas mais tradicionais de organização política, no caso os partidos e sindicatos (DURHAM, 1984; EVERS, 1984). De acordo com Evers (1984), sua diferenciação com relação à política tradicional é a busca pela ruptura com práticas de tutelagem, manipulações populistas e a ideia de uma vanguarda iluminada que comandaria os processos. Almeja–se, assim, construir práticas de organizações mais horizontais. São movimentos que ampliam o conflito social para outras áreas e iniciam um processo de politização de todas as relações sociais, justamente porque não estão necessariamente organizados ao redor da inserção dos sujeitos no processo produtivo (DURHAM, 1984). Mouffe (1988) analisa esses movimentos como reflexo da expansão da ideia de democracia para outras subjetividades do sujeito. Ou seja, se eu posso ter direitos iguais na minha condição de pobre num sistema organizado por classes sociais, por que não posso questionar então as desigualdades presentes na minha condição de mulher? Surgem nesse contexto movimentos como feminista, ambientalista, negro, LGBT, étnico, entre outros, cuja atuação leva a um processo de ampliação das demandas de transformação social e passa principalmente por uma compreensão da cultura como política. Não há que se estabelecer uma dicotomia entre luta política e cultural: não se trata de ratificar a ideia de que essas lutas são separadas (e hierarquizadas). Partimos da compreensão gramsciana de que o cultural é político e, portanto, o papel desses movimentos é publicizar e tornar evidente a política na cultura (MOUFEE, 1988). A luta pela emancipação feminina é uma das disputas emblemáticas desse momento histórico latino–americano (assim como em alguns países do Norte). Sua organização e a publicização de uma série de questões, fruto da subordinação das mulheres no âmbito privado, configuraram uma das principais pautas do movimento. “O pessoal é político” talvez seja a
299 bandeira mais representativa da contribuição do movimento de mulheres no sentido de politizar o privado e colocar novos desafios à compreensão da cultura como política. En la ultima década las mujeres de America Latina hemos hablado. Después de habernos sentido confinadas por demasiado tiempo a espacios privados e invisibles las mujeres de todo el continente estamos invadiendo las calles, plazas y demás lugares públicos exigiendo ser escuchadas, em diferentes formas, com diferentes voces, gritando o susurrando, en lo que corresponde ya a una significativa rebelión histórica. (VARGAS, 2008, p.31–32)
A experiência de organização das mulheres tem contribuído não apenas para mudar nossa vida cotidiana, mas também para confrontar as estruturas de poder estabelecidas na sociedade e trazer à tona uma nova visão sobre os conflitos e a transformação social, ampliando dessa forma o espectro de suas demandas. Trazendo desafios aos paradigmas tradicionais de análise social e política, esses novos movimentos, incluindo o de mulheres, evidenciam a complexidade da dinâmica social, composta de muitas áreas de conflitos para além daquelas vinculadas a classe social (MOUFFE, 1988). Segundo Mouffe (1988), o traçado dessa estreita relação entre a vida cotidiana e as relações sociais de poder é uma contribuição marcante desses novos movimentos sociais. Eles fazem surgir na cena pública e social setores sociais tradicionalmente excluídos, e assim como uma multiplicidade de sujeitos políticos e sociais que também contribuem com novas estratégias para alcançar a mudança política. Sua atuação não só traz novos temas à tona, mas também dá interpretações diferenciadas a antigos problemas e desenvolve a partir daí novas práticas sociais, inclusive de ação política. Na América Latina e Caribe, a organização das mulheres foi um sujeito político importante nas ressignificações da ação política. A definição de um Movimento de Mulheres na América Latina e Caribe não reflete um processo homogêneo ou politicamente unificado. É preciso destacar desde já que sua ação é demasiadamente heterogênea e definida em grande medida pelo contexto social e político no qual atua. Vargas (2008) chega inclusive a se perguntar se não seria mais adequado falar de vários movimentos de mulheres. Para fins analíticos, escolhe falar de um movimento cuja principal característica é a heterogeneidade, e aqui faço coro a essa abordagem. Dentro dessa heterogeneidade, a literatura situa três grandes correntes do movimento que surge na América Latina nos anos 1980 1. Uma Considero aqui os trabalhos de Vargas (2002, 2008), Alvarez (2000), Jaquete (1994) y Nijeholt, Vargas e Wieringa (1996), entre as quais há uma concordância em destacar as três correntes aqui 1
300 delas é a vertente feminista propriamente dita, que empreende esforços explícitos no sentido de denunciar a existência de relações de gênero que subordinam as mulheres e de criar uma agenda específica para transformar o sexismo existente nos diferentes âmbitos da sociedade. Há também a organização das mulheres populares, na qual a experiência peruana tem muito impacto na literatura. Essa organização é caracterizada pelo conjunto de mulheres que buscam satisfazer suas necessidades e demandas mais básicas, desde seu papel social enquanto mães e cuidadoras. Ações antes fragmentadas e individuais, cumpridas pelas mulheres no espaço doméstico, são tornadas públicas e transformadas em coletivas. Apresentamos elementos na tese para argumentar que essa corrente do movimento de mulheres, ao trazer as demandas da reprodução da vida humana ao espaço público, contribui com a luta feminista politizando o cuidado e gerando deslocamentos nos padrões que dão centralidade à produção da vida humana – ainda que por vezes suas vozes não sejam escutadas e seu papel seja pouco visibilizado. Uma terceira forma de atuação das mulheres é a militância dentro das estruturas mais tradicionais de mobilização social: sindicatos e partidos. São mulheres que tentam modificar esses espaços e exigem sua maior inserção nos processos de decisão, lutando por reconhecimento público dos direitos femininos2. Essa separação analítica, no entanto, não deve ocultar a complexa teia de inter–relações estabelecidas entre as diferentes correntes com mulheres militantes e populares assumindo–se como feministas, ou feministas assumindo políticas de certos partidos, ou mulheres que estão nos partidos e em grupos de mulheres3, e assim por diante. Além disso, essa categorização não pode ocultar a tremenda diversidade e pluralidade das mulheres, suas formas de organização e ação política. Essa heterogeneidade inerente ao movimento é um dos elementos paradoxais e que desencadeia contraexplicitadas. 2 Vargas (2008) destaca que nem todas as mulheres presentes nesses espaços fazem parte do movimento de mulheres, uma vez que algumas não estão preocupadas em colocar as demandas acima citadas, mas, ao contrário, seguem de maneira estrita a lógica tradicional de funcionamento dessas organizações. Em seu trabalho, a socióloga Maxine Molyneux (2003) inclui ainda entre das vertentes do movimento as mulheres liberais organizadas no âmbito religioso fundamentalista como um tipo de ação coletiva feminina que vem ganhando força. A própria autora não consegue entrar no debate dos detalhes e contradições dessa vertente, e portanto aqui não privilegiamos essa abordagem. 3 Essa chamada dupla militância era bastante recorrente na organização do feminismo da região, uma vez que a maior parte das organizações feministas nasce de mulheres que já estão nos partidos políticos e para as quais o feminismo deveria estar atrelado a um processo de luta social amplo. Assim, buscando superar as tensões colocadas entre feministas e os partidos, encontravam na dupla militância a saída para essas questões. (ALVAREZ, 2000)
301 dições profundas na construção de uma identidade feminista no contexto latino–americano (ALVAREZ, 2000). No período de organização dos anos 1980, as preocupações centrais do feminismo eram sobretudo desvelar o significado de ser mulher numa situação de opressão e enfatizar o caráter político de sua subordinação no mundo privado. É o momento em que se pauta a politização do mundo privado, gerando–se a partir daí uma série de novas categorias e dando–se nome para eventos até então invisíveis, como violência doméstica, assédio sexual, estupro no casamento, feminização da pobreza e outros (VARGAS, 2002). As feministas questionaram limites discursivos e politizaram novos problemas, levando esses debates a públicos mais amplos (FRASER, 1995) Seguindo Alvarez (2000) e Vargas (2008), esse período é também caracterizado por um processo de construção identitária do qual fazia parte uma política de autonomia definida pelo critério da distância, na qual era desejado um claro afastamento do Estado e havia relações extremamente tensas com os partidos políticos, dando ênfase à necessidade de construção de espaços e discursos próprios das mulheres. Era uma característica compartilhada pelo conjunto dos novos movimentos sociais que se constituíam “dando as costas para o Estado”, que representava o puro autoritarismo e um projeto político a ser refutado (DAGNINO; TATAGIBA, 2010). O processo de redemocratização latino–americano e as propostas de democracia participativa subjacentes e esses eventos, no entanto, levaram a uma mudança radical dessas posturas e trouxeram uma série de novas contradições, cisões e formas de atuação para o centro do movimento de mulheres (ALVAREZ, 2000). Alvarez (2000) argumenta que o movimento de mulheres, a partir de sua inserção nas disputas pela democratização participativa, se transformou radicalmente, sobretudo complexificando as divergências e pluralidades internas. A autora analisa cinco grandes tendências da política feminista a partir dos anos 1990: a multiplicação dos espaços e lugares onde as mulheres se consideram feministas; a absorção de elementos (mais digeríveis) dos discursos e agendas feministas por organizações da sociedade civil e política e pelas agências internacionais; a “onguização” do movimento e sua profissionalização e especialização de setores; a crescente articulação de redes entres diferentes espaços e lugares; e por fim a transnacionalização de discursos e práticas feministas. Seguindo essa análise, houve uma crescente diversificação da ação das mulheres, e as diferenças internas ficaram mais evidentes na medida em que passaram a ter voz e a reivindicar seu espaço as mulheres negras, lésbicas, populares, intelectuais feministas, profissionais de ONGs, direto-
302 ras de órgãos governamentais e inclusive teólogas (das Católicas pelo Direito de Decidir) e feministas liberais. Uma das principais características dessa diversidade de ações foi uma mudança radical da postura “autonomista” da década anterior para uma nova forma de ação que privilegia intervir diretamente sobre o Estado e suas políticas públicas, assim como de dialogar com partidos e pautar a agenda feminista no âmbito das políticas internacionais. As feministas passaram a querer influenciar uma ampla diversidade de políticas a partir da ótica do gênero (VARGAS, 2002). De acordo com Alvarez (2000), na década de 1990 quase todos os governos latino–americanos criaram órgãos especializados preocupados em melhorar a situação das mulheres. Sendo assim, muitas feministas foram incorporadas aos quadros dos governos locais e às instâncias internacionais de decisão, encarregando–se de contribuir na construção de políticas específicas para as mulheres. A autora, no entanto, chama a atenção para o fato de que a ação das feministas, longe de ser um processo de “cooptação”, é uma escolha política de intervir desde o Estado: A noção de absorção – enquanto oposta a cooptação – implica atuação ou agenciamento. Isto é, as feministas latino–americanas que optaram por trabalhar principal ou exclusivamente dentro de burocracias governamentais, parlamentos e sindicatos não são sempre meras “ingênuas” que foram compradas ou se venderam para culturas políticas masculinas. (..) essas arenas se tornaram arenas cruciais para a luta feminista. (ALVAREZ, 2000, p. 399)
Há, no entanto, uma escolha seletiva das agendas feministas de fato incorporadas pelas políticas públicas e pelas agências internacionais. Schild (2000) é bastante crítica nesse ponto e argumenta que muito da ação dessas feministas vive em processo de confluência com o projeto neoliberal, por exemplo. Assim, enquanto algumas celebram esse passo como uma nova conquista, resultado da luta feminista para pautar as políticas de gênero, outras condenam aquilo que consideram uma estratégia estreitamente “estadocêntrica”, que também pode diminuir “a importância da luta feminista contínua nos domínios do fomento da consciência de gênero e da contestação das normas culturais patriarcais” (ALVAREZ, 2000, p. 409). Em resumo, o feminismo deixa de ser uma luta marginal e ganha espaço e poder, e esse processo tem custos para o próprio movimento. O central nesse conflito gerado pelas novas dinâmicas de funcionamento, que aqui apenas comecei a enunciar, é que elas têm implicações diretas sobre as relações de poder entre as mulheres envolvidas. Analisando essa situação, Alvarez (2000) argumenta que uma das grandes consequências dessa nova estratégia política – de privilegiar o diálogo com o Estado e nas
303 arenas políticas internacionais – é que deixaram–se para trás os esforços de transformar as representações de gênero e especialmente os processos de organização e mobilização das bases. Uma das consequências disso é a distância em relação às bases e o “aumento das suspeitas dos grupos de base e setores menos institucionalizados dos movimentos de mulheres, que se viam ainda mais afastados das arenas políticas nacionais e internacionais e das fontes de financiamento” (ALVAREZ, 2000, p. 412). Estabelece–se um terreno de disputa dicotômico, no limite irreal, entre as políticas (femocratas) que acham que a luta maior pela igualdade das mulheres deve ser travada desde a política partidária e o Estado, e aquelas que insistem em manter estruturas independentes para salvaguardar o potencial emancipador do movimento (SCHILD, 2000). É inegável que o processo de incorporação das pautas feministas e suas militantes pelo Estado e pelos partidos deixa muito mais complexo o âmbito da ação do movimento de mulheres, acirrando as desigualdades inerentes ao próprio movimento. Nesse cenário, Alvarez (2000) argumenta que as mulheres populares se tornam uma voz dissonante e menos privilegiada no bojo das articulações e pautas políticas. Suas ações, argumenta Vargas (2008), teriam menos visibilidade e seriam tratadas de forma subalterna diante das políticas constituídas pela luta feminista mainstream. Apesar disso, há intensa mobilização das mulheres populares em território latino–americano. No entanto, sua atuação nem sempre ganha registro ou análises mais globais. Na literatura sobre o movimento de mulheres na América Latina, é possível encontrar casos pontuais de organizações que ganharam notoriedade no continente, e que nos dedicamos aqui a explorar na medida em que guardam paralelos com a ação das mulheres que hoje no Brasil se organizam através do trabalho associado.
Aprendendo com algumas experiências latino–americanas Os registros sobre a atuação das mulheres populares na América Latina refletem o papel socialmente constituído delas como cuidadoras. Assim como no contexto indiano e africano analisados anteiormente, na América Latina essas mulheres tendem a se organizar ao redor daquelas que são suas funções sociais primordiais, como as que garantem a reprodução da vida humana. Em cenários de crise elas se organizam para garantir a subsistência e a sobrevivência de suas famílias e comunidades. Sendo assim, as articulações das mulheres emergem ao redor da tentativa de enfrentar problemas ligados às necessidades mais básicas de sobrevivência. Seja como massa das bases dos movimentos populares, em movi-
304 mentos de mulheres ou como grupos informais que se estruturam para garantir coletivamente a alimentação, saúde ou educação dos filhos e comunidades, essas mulheres deixam suas marcas e contribuições no processo de resistência histórica da luta daqueles à margem do sistema capitalista (FREITAS, 2008; VARGAS, 2008). A luta das mulheres peruanas e sua atuação na periferia de Lima durante o processo de constituição desses bairros nos anos 1970 são uma marca importante da força e da dimensão da ação coletiva das mulheres (SILVEIRA, 2008; VARGAS, 2008). Como forma de resolver o problema da fome de uma população extremamente marginalizada no processo de constituição das cidades, as mulheres organizaram os chamados “comedores populares”, nos quais cozinhavam coletivamente para baratear o custo da produção de alimentos no âmbito familiar e distribuíam a comida para as pessoas do bairro. Essa iniciativa ganhou força, ampliou–se, chegou a ter apoio do governo, mesmo que de forma bastante incipiente, e persiste até hoje. Os dados indicam que são cerca de 7.000 comedores populares em todo o país, com o envolvimento de mais de 100.000 mulheres (SILVEIRA, 2008). O programa vaso de leche (“copo de leite”), criado pelo governo municipal na região onde surgiram os primeiros comedores, foi também responsável pela organização e atuação das mulheres populares. Seu principal objetivo era distribuir um copo de leite ao dia para todas as crianças com menos de 6 anos. De acordo com Vargas (2008), sua atuação é uma das que têm maior capacidade de mobilização das mulheres da região. É possível encontrar outras iniciativas de mulheres populares organizadas – na Argentina, por exemplo. Em consequência da crise dos anos 2000, também foram organizados comedores populares, mobilizando uma série de mulheres não só para dar conta do problema da falta de alimentação, mas também para enfrentar de forma coletiva outras questões, como o cuidado das crianças, a alfabetização da população e outros temas (FREITAS, 2008). As Mães da Praça de Maio, organizadas para reivindicar justiça aos filhos mortos ou desaparecidos na ditadura, são outro exemplo de organização feminina na Argentina, talvez aquele que mais ganhou visibilidade pública4 (JAQUETE, 1994). Um exemplo mais recente de organização de mães populares está acontecendo na Colômbia. As chamadas “Madres de Soacha” ou “Madres de los falsos positivos” estão mobilizadas para encontrar seus filhos e tornaram público o seu assassinato, no que ficou conhecido como “falsos positivos”, questionando a impunidade dos mandantes dos crimes. Não encontrei trabalhos acadêmicos sobre o tema, mas sua ação é constante na mídia local: http://www.rtve.es/alacarta/audios/paises–en–conflicto/paises–conflicto–madres–soacha–lucha– justicia–dignidad–01–04–13/1741426/. 4
305 Ao analisar as articulações de redes de mulheres no Chile, que desde os bairros de periferia começam a alavancar nos anos 1990 uma série de ações para garantia de sobrevivência das comunidades num cenário econômico difícil, Schild (2000) faz uma análise especialmente crítica das distâncias que se estabelecem entre essas mulheres populares no momento em que a ação a partir do Estado passa a ser privilegiada pelo movimento. A autora recoloca, portanto, os desafios vividos pelo movimento ao privilegiar a ação pela via das políticas públicas e como isso gera distanciamentos das bases na luta das mulheres populares. No México, Díaz–Barriga (1998) estudou a atuação de mulheres envolvidas nos movimentos urbanos em sua luta por moradia e melhores condições estruturais. A autora faz uma interessante problematização da maneira linear como muitas vezes são avaliados esses processos conflitivos da subordinação à emancipação na luta das mulheres. Em contraposição a essas visões, destaca como sempre permanece uma tensão ao redor desses processos, e que eles não são lineares ou homogêneos, que suas disputas e seu processo de constituição são cheio de rupturas e retrocessos, de desconstrução e reforço dos papéis mais tradicionais dessas mulheres. Em outras palavras, Diaz–Barriga (1998), em seu estudo, evidencia a complexidade do processo de conquista da autonomia das mulheres, colocando a luta e a articulação política das mulheres populares como um lugar imerso em suas próprias contradições. Esses são apenas alguns exemplos daquilo que foi registrado na literatura latino–americana nas últimas décadas sobre a atuação específica das mulheres populares. É evidente que a literatura sobre o tema é mais ampla do que pude coletar para a realização desta tese. No entanto, é também de se supor que as mulheres populares atuaram e se organizaram de formas muito mais diversas do que essas e em múltiplos espaços sem que sua ação tenha ganho espaço nos registros históricos. Ainda assim, essa literatura tem coesão no que diz respeito a algumas características gerais e específicas da ação das mulheres populares. Inicialmente a literatura coincide em definir a organização dessas mulheres como fruto de sua mobilização para garantir as necessidades mais básicas de sobrevivência de seus filhos e comunidades, consequência de seu papel social de mães e cuidadoras, responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados das famílias. Sendo assim, parece haver uma motivação comum inicial para sua mobilização, que a partir mesmo do primeiro momento é cotidianamente ressignificada pelas demandas e articulações que essas mulheres vão estabelecendo. Outro elemento importante é que a entrada das mulheres nos espaços públicos gera uma série de modificações em sua vida. A própria par-
306 ticipação política das mulheres já é uma forma de romper com os padrões. Na medida em que elas passam mais tempo nos protestos, reuniões de organização e atividades coletivas de produção, são gerados conflitos com maridos e familiares que cobram sua ausência em relação aos trabalhos domésticos. Essa disputa travada com os maridos para garantir sua participação no espaço político cria um ímpeto inicial para a ruptura dos padrões do papel das mulheres no espaço doméstico (DÍAZ–BARRIGA, 1998; SCHILD, 2000). Vargas (2008) acrescenta que essas experiências representam usualmente uma primeira aproximação dessas mulheres da noção de direitos e da possibilidade de cidadania, na medida em que a organização para o consumo ou garantia de alimentação potencializa a possibilidade de que elas se percebam como merecedoras de certo nível de cidadania, passando a exigir seu reconhecimento pelos governos como coletivos. Há uma implicação política significativa também que diz respeito à forma de atuação específica das mulheres populares. Como elas não têm a perspectiva de resolver individualmente a carga do trabalho doméstico e de cuidados – colocando filhos na creche, contratando babás e empregadas ou comendo em restaurantes, como podem fazer suas colegas de classe média, por exemplo –, essas mulheres levam constantemente ao espaço público as demandas de cuidado. Esse fato não apenas torna público, e dessa forma politiza a questão dos cuidados, como borra de alguma forma as barreiras tão fortemente estabelecidas entre privado–público, e principalmente desafia a sociedade a pensar questões relacionadas a reprodução da vida humana.
As mulheres em movimento hoje no Brasil Ao historiar o surgimento do movimento de mulheres no meio urbano no Brasil, Sarti (2004) alega que o feminismo brasileiro se caracteriza, especialmente nos anos 1970, ou seja, no período de sua conformação, como um movimento interclasses. De acordo com a autora, o movimento que emerge na classe média teria encontrado caminhos para se consolidar através de uma articulação com as camadas populares e organizações de bairro. Essas organizações de bairro, lideradas pelas mulheres das periferias, estavam, sobretudo, voltadas para reivindicar infraestrutura urbana básica, como água, luz, esgoto e pavimentação, tendo portanto suas demandas estreitamente vinculadas ao cotidiano – as demandas reprodutivas.
307 Referenciada em conhecidas autoras que estudaram o tema, como Oliveira Menicucci e Célia Pinto, Sarti (2004) destaca como a articulação das mulheres populares nas organizações de bairro as retirava do confinamento doméstico e fazia emergir um novo sujeito político, questionador da condição das mulheres. Há uma coincidência, portanto, com a literatura latino–americana citada. A autora afirma que o feminismo brasileiro se constitui, assim, pautado pelas demandas colocadas por essas mulheres organizadas nos bairros, tornando suas demandas próprias do movimento. No entanto, conforme a autora descreve, os rumos que o feminismo tomou no país nas décadas seguintes, especialmente a partir de final dos anos 1980, com o processo de institucionalização do movimento feminista (no Estado, na academia e nas ONGs), evidenciam um distanciamento das bases que contribuíram para a articulação inicial do movimento, fragilizando essa articulação “interclasse” e reproduzindo as contradições inerentes ao movimento de mulheres na América Latina (ALVAREZ, 2000; VARGAS, 2008). Por sua vez, as mulheres rurais desde a década de 1950 têm registros de sua atuação política no processo de luta pela terra. Nomes como o da sindicalista Margarida Alves e da liderança Elisabeth Teixeira nas Ligas Camponeses são marcos daquele momento histórico. No entanto, foi durante o período de redemocratização dos anos 1980 que a organização das mulheres rurais ganhou espaço e visibilidade como novo sujeito político, construindo pautas políticas próprias para demandar reconhecimento como mulheres trabalhadoras rurais. Desde então, atuando nos movimentos mistos ou autônomos, elas têm articulado ações que visam disputar melhores condições para a população rural perante o Estado, enquanto constroem caminhos para o reconhecimento de seu papel como trabalhadoras (DEERE, 2004; HEREDIA; CINTRÃO, 2006). Naquela década, o eixo central das reivindicações do movimento era o reconhecimento social das mulheres rurais como trabalhadoras, e portanto fazendo jus aos direitos e políticas destinados à classe trabalhadora. Suas principais demandas históricas são pelo acesso à previdência social, especialmente aposentadoria, licença–maternidade e direito à sindicalização, e suas possibilidades de autonomia produtiva, por meio do acesso à terra e aos benefícios a ela vinculados 5 (BUTTO, 2011). Para além de todas essas reivindicações políticas, as mulheres rurais se organizam também desde seu cotidiano em grupos que revindicam, assim como as mulheres nos bairros de periferia da cidade, questões básicas de infraestrutura para Desde este momento as mulheres também já reivindicavam a necessidade de priorização das mulheres chefes de família nas políticas de reforma agrária, e também inseriam em suas pautas questões específicas relacionadas à saúde da mulher (HEREDIA; CINTRÃO, 2006). 5
308 suas regiões, como água, luz, alimentação, estradas, escolas e transporte, tendo reconhecida atuação nos contextos de luta pela terra. Nos contextos de ocupação, as mulheres têm um reconhecido papel no processo de garantir a alimentação e a estrutura das famílias acampadas por meio de seu trabalho coletivo, e por vezes essa é a sua primeira experiência de inserção política, abrindo possibilidades para futuras atuações das mulheres nos assentamentos (BRUMER; ANJOS, 2010). Também surgiu nessa época o Movimento das Quebradeiras de Coco–babaçu no Maranhão, como representante da variada trama dos movimentos em luta pela terra no país. Esse movimento disputa pela preservação dos palmeirais de onde as famílias tiram o sustento, e também pelas possibilidades de acesso das comunidades aos recursos de uso comum, como as palmeiras, encampando além disso batalhas judiciais pela preservação dos saberes e conhecimentos sobre a biodiversidade que acumulam ao longo de anos de luta (PORRO, 2002). Nas últimas duas décadas, a modificação do cenário político e econômico na América Latina, em consequência da crise do sistema de acumulação capitalista – caracterizada especialmente pelo aumento do desemprego e precarização do trabalho –, levou a uma recolocação dos modos de mobilização social e política da luta popular (DAL RI e VIEITEZ, 2013). Nesse novo cenário, a organização através do trabalho associado ganhou impulso, e a mobilização das mulheres populares não foge a essa nova tendência. Referimo–nos ao trabalho associado como a livre associação de trabalhadores(as) para garantir sua sobrevivência através da gestão autônoma de uma unidade econômica, que em alguma medida enfrentam as hegemonias estabelecidas. O que diferenciaria o trabalho associado do trabalho nas empresas capitalistas seria, segundo Dal Ri e Vieitez (2013, p. 243), a “supressão do trabalho assalariado; retiradas iguais ou equitativas; substituição das hierarquias burocráticas por coordenações; deliberações em assembleias gerais; nova perspectiva educacional para os trabalhadores, entre outras”. Esse fenômeno social se manifesta em diferentes países da América Latina, e situar seu surgimento é de especial interesse aos objetivos desta tese na medida em que há significativa participação das mulheres no conjunto dos coletivos do trabalho associado e também porque ao longo dos últimos dez anos houve uma considerável produção acadêmica refletindo sobre o gênero nesse cenário. Além disso, já mencionamos as estreitas relações entre os debates da Tecnologia Social e os do trabalho associado. Assim como no marco analítico da TS, escolhemos olhar para essas experiências porque entendemos que nesse processo de organização cole-
309 tiva há potência, ou substrato político, para a construção das alternativas sociotécnicas e também para a ressignificação das relações de gênero. No Brasil, as Empresas Recuperadas pelos Trabalhadores (ERT) e as cooperativas ou empreendimentos da Economia Solidária abrigam a maior parte das experiências de trabalho associado (DAL RI; VIEITEZ, 2013), que nos dedicamos portanto a explorar aqui brevemente em suas interfaces com a atuação das mulheres. As ERTs são experiências de recuperação de empresas anteriormente capitalistas que, após processo de falência, são recuperadas por trabalhadores com o fim de geri–las coletivamente, tendo a autogestão como norte de sua organização (CHEDID et al., 2013). Nessas experiências, há pouquíssimo envolvimento das mulheres. Numa pesquisa nacional feita com 67 ERTs, os resultados indicam que há uma participação pouco expressiva das mulheres e que, quando há trabalhadoras efetivamente envolvidas, elas tendem a estar concentradas nos cargos administrativos ou de serviços gerais. A maior parte das empresas relata que houve pouca mudança no seu envolvimento após a recuperação, com exceções que indicam uma maior participação das mulheres (CHEDID et al, 2013). O cenário no caso da Economia Solidária é um tanto diferente. Entendemos aqui a Economia Solidária como aglutinadora de uma série de cooperativas, associações e grupos informais organizados para a gestão democrática de um empreendimento, e que receberam ao longo da última década impulso não apenas dos setores governamentais, principalmente de políticas públicas voltadas para geração de emprego e renda criadas a partir de governos do Partido dos Trabalhadores em nível municipal e federal6,mas também da Igreja Católica em suas organizações de base e das universidades por meio das incubadoras de cooperativas (WIRTH; FRAGA; NOVAES, 2013). Diferentemente das ERTs, a Economia Solidária (ES) conta com um alto grau de envolvimento e participação das mulheres. As mulheres não apenas representam parte significativa das pessoas dos coletivos de trabalho como também atuam diretamente na construção dos seus espaços de articulação7. A ES tem sido recorrente alvo das críticas e ação feminista, gerando considerável número de publicações na área e conformando, em 2009, o Grupo de Gênero do Fórum Nacional de Economia SoliEm 2003 é criada a Secretaria Nacional da Economia Solidária (SENAES) vinculada ao Ministério de Trabalho e Emprego (MTE) que passa a coordenar uma série de políticas pelo país de geração de trabalho e renda, tendo Paul Singer como seu secretário até o momento de sua extinção em 2016. 7 Estou me referindo aqui os fóruns municipais, estaduais e nacionais de debate, e outros congressos, encontros, seminários, plenárias, através das quais se constituí um movimento de Economia Solidária. 6
310 dária – uma das máximas instâncias de deliberações do movimento (CHERFEM, 2009; VASCONCELLOS, 2011)8. Uma das primeiras grandes críticas feitas à ES pelo feminismo surge a partir dos dados divulgados pelo mapeamento de 2007 9, na medida em que tanto os dados coletados como aqueles ausentes evidenciavam uma reprodução de hierarquizações de gênero na ES. Os dados indicavam uma grande concentração das mulheres em setores tradicionalmente femininos, como produção têxtil, de alimentos, bebidas e confecção, e também aglutinadas nos grupos menores, o que geralmente implicava maior grau de instabilidade econômica (TAVARES et al., 2013). Não se fugia, portanto, dos padrões de desigualdades vividos pelas mulheres no contexto de trabalho das empresas capitalistas. Além disso, no setor agrícola, que concentrava a maior parte das mulheres mapeadas, os resultados indicavam uma participação de apenas 34% de mulheres em contraposição a 66% de homens, levando a questionamentos feministas sobre uma provável invisibilização pelo mapeamento das ações menores sendo desenvolvidas pelas mulheres nesse contexto. Ou seja, sua organização coletiva para atividades de produção para autoconsumo e subsistência, pode não ter sido considerada como trabalho associado, e ao mesmo tempo pode ter havido uma dificuldade de encontrar os pequenos grupos nucleados em lugares distantes (VASCONCELLOS, 2011). Tavares et al (2013) criticam ainda o fato do mapeamento, ao ter voltado seu olhar para compreender a ES de forma abrangente, focar sua atenção nos empreendimentos e não nos(as) trabalhadores(as), dificultando análises mais profundas sobre a condição das mulheres. Mais do que isso, ao trazer o centro das análises para o espaço de produção e do traba lho, contribuiu para invisibilizar os trabalhos de reprodução e, nos termos da Economia Feminista, os laços de dependência entre eles (CARRASCO, 2006). Podemos acrescentar que o mapeamento apenas reflete um padrão mais geral na concretização da ES que encarna a subordinação do cuidar ante os trabalhos que geram recursos monetários. Extrapolando um pouco os limites analíticos poderíamos talvez pensar que a Economia Solidária e a Agroecologia criaram novos canais de articulação entre o feminismo acadêmico e institucionalizado às mobilizações de base das mulheres populares. Talvez materializados nas limitadas políticas de ES que conseguiam alcançar as mulheres populares nos assentamentos e nas periferias, mas especialmente no impulso que ganha na literatura os registros sobre a ação coletiva dessas mulheres a partir dos anos 2000. 9 O mapeamento foi uma ampla pesquisa realizada pela Sistema Nacional de Informação da Economia Solidária (SIES) criado pela SENAES e que percorreu todo o país fazendo mapeando e analisando cerca de 22 mil grupos considerados como da Economia Solidária. Os resultados das análises são divulgados pelo site do sistema: http://sies.ecosol.org.br/sies 8
311 Um novo mapeamento da ES foi iniciado em 2009, contendo, como fruto da luta das mulheres dentro do próprio movimento, um questionário específico para analisar as relações de gênero nos grupos mapeados. No entanto, os resultados dessa coleta não foram amplamente divulgados, e todo o processo de construção foi atravancando pelo cenário político e econômico do país. As informações que temos, segundo análise feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre os dados, é de que foram mapeados 19.708 empreendimentos. Do total de 1.423.631 pessoas trabalhando nesses grupos, 56,4% são homens e 43,6%, mulheres. Manteve–se nesse novo mapa a leitura de que as mulheres tendem a se concentrar nos grupos menores e informais. As análises agregam uma avaliação de que é provável que, assim como no mercado formal, as mulheres procurem a informalidade como forma de flexibilizar seus horários e assim ser capazes de conciliar a obtenção de renda extra com suas responsabilidades no espaço doméstico (SILVA; CARNEIRO, 2014). Essa análise é corroborada pelos diferentes estudos que surgem na constituição da base analítica deste trabalho, como vamos explorar no próximo capítulo. A literatura que emerge sobre gênero e ES se dedica especialmente, portanto, a criticar a manutenção das hierarquizações de gênero no contexto do trabalho associado, evidenciando a permanência de uma divisão sexual do trabalho muito semelhante àquela do trabalho nas empresas capitalistas, tanto na segregação horizontal – ou seja, as mulheres ocupando setores específicos da produção tradicionalmente tidos como femininos, vinculados ao seu trabalho como cuidadoras – quanto na segregação vertical – elas se mantêm concentradas nos grupos pequenos e informais, enquanto as grandes cooperativas e empresas recuperadas são majoritariamente masculinas. De outra parte, os esforços são também no sentido de dar visibilidade à atuação das mulheres e evidenciar as potencialidades para a luta das mulheres no contexto do trabalho associado como espaço com possibilidades de sua formação política e fortalecimento de sua busca de autonomia. O engajamento das mulheres populares no movimento de agroecologia também emerge na última década como um território significativo na luta das mulheres no Brasil. Segundo Siliprandi (2015), a agroecologia é um movimento relativamente recente no país, e uma de suas principais representações políticas, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), se consolidou no final dos anos 1990. De acordo com os registros e críticas da autora, desde esse princípio houve o envolvimento das mulheres no processo de consolidação da agroecologia, fosse nas articulações políticas do movimento ou nos lotes das famílias participando nos processos de
312 transição agroecológica. No entanto, o reconhecimento e valorização de seu papel é até hoje limitado. A agroecologia pode ser compreendida como um conjunto de saberes orientados à construção de agriculturas sustentáveis e preocupados não apenas com critérios ambientais e técnicos, mas também com as dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais do desenvolvimento rural (SILIPRANDI, 2015). O protagonismo dos agricultores e agricultoras é um dos elementos centrais na definição daquilo que é ou não é a agroecologia (CAPORAL; COSTABEBER, 2015; NETO, 2015). Em linhas gerais, o que a literatura feminista dessa área argumenta é que, apesar de desde o princípio as mulheres estarem envolvidas com a construção do movimento – ainda que em presença minoritária –, colocando as reivindicações específicas sobre as suas condições na agricultura familiar, e muitas vezes protagonizando o impulso inicial nos lotes familiares para o processo de transição agroecológica, persiste uma invisibilidade dessas pautas e sua participação é pouco reconhecida e valorizada (LIMA; JESUS, 2016; SANTOS, 2012; SILIPRANDI, 2009). Assim, apesar da mobilização das mulheres perceber potência para transformação do cenário de desenvolvimento rural e de sua autonomia, elas ainda têm que disputar espaço para que suas vozes sejam escutadas. Siliprandi (2009) aponta ainda que a participação das mulheres carrega um elemento de coerência histórica, na medida em que, como tradicionalmente encarregadas pelos trabalhos de cuidado das famílias, são elas que normalmente sentem os primeiros efeitos de um processo de degradação ambiental, na falta de água ou de alimentação adequada para as famílias, e isso as impulsiona ao longo da história a ocupar lugar de destaque nas lutas ambientais. É o que também demonstra Shiva (1995) no caso do envolvimento das mulheres indianas na luta ambientalista, e emerge aqui com força no caso da luta das mulheres extrativistas, explorado mais adiante. Siliprandi (2009) argumenta que, desde o lugar que lhes foi socialmente imposto, as mulheres desempenham um papel importante na construção de relações mais harmoniosas com a natureza, especialmente porque sua condição de maior vulnerabilidade econômica faz com que tenham que buscar formas mais sustentáveis de produção para garantir a subsistência de suas famílias. Não podemos perder de vista que tanto a grande presença das mulheres nos coletivos pequenos e informais do trabalho associado, assim como seu protagonismo na luta pela agroecologia, são fruto sobretudo da escassez de recursos das mulheres populares e da delicada situação de vulnerabilidade econômica e social que elas vivenciam cotidianamente. Elas
313 procuram saídas coletivas que possam fortalecer suas lutas, ao mesmo tempo em que procuram garantir o sustento de suas famílias e comunidades. É através desse caráter organizador de suas ações coletivas que elas encontram caminhos para dar visibilidade ao lugar do cuidar nos projetos societários que constroem.
Arrematando o bordado Ao longo deste artigo bordamos uma possível história de atuação das mulheres populares no contexto latino–americano para situar como nas décadas mais recentes ganhou força sua atuação no campo do trabalho associado e da agroecologia. Sem perder de vista as contingências sociais que as levam a procurar caminhos para sua sobrevivência, podemos refletir sobre como tanto o trabalho associado quanto a agroecologia são potenciais espaços para a transformação das relações de gênero, não apenas porque questionam as formas capitalistas de produção, mas também porque representam a possibilidade de repensar a reprodução da vida, o lugar do trabalho, do saber tradicionalmente constituído como feminino e das mulheres na sociedade capitalista. No entanto, a questão central aqui é analisar em que medida as vozes e os gritos trazidos pela experiência concreta das mulheres populares estão sendo escutadas (LIMA, 2015), e se têm sido capazes de reverberar em mudanças concretas no mundo de sua vida e nos projetos contra–hegemônicos que procuramos fortalecer.
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14– Tecnologia e democracia: da tecnologia social à construção de alternativas tecnológicas pelos movimentos sociais Lais S. Fraga
Introdução O debate sobre tecnologia e democracia se apresenta a partir de algumas linhas clássicas de argumentação. De maneira geral, a preocupação central dos estudiosos sobre o tema parte de um desejo de repensar os horizontes da democracia política numa era crescentemente moldada pelo poder da tecnologia. Por um lado, é explorada a evidente tensão entre inovação tecnológica e a promessa de democracia, trazida pela noção de que o avanço científico e tecnológico poderia beneficiar a população como um todo, especialmente a partir da democratização do acesso a bens materiais, antes disponíveis apenas para poucos, através do aumento da produção material. O desenvolvimento científico e tecnológico prometeu eliminar barreiras para alcançar a distribuição de riquezas, reduzindo a desigualdade e removendo as origens dos conflitos de classe marcadamente contraditórios à democracia. Essa promessa, no entanto, tornou–se alvo de diversos questionamentos expressos em críticas filosóficas, em especulações utópicas, na ação de movimentos políticos de massa e nas tentativas de reforma política (WINNER, 1992). Por outro lado, o debate sobre tecnologia e democracia deriva da pouca participação do cidadão comum quando confrontada com o crescente poder de uma elite tecnocientífica. Nessa perspectiva, a tecnocracia seria explicada pelo inevitável controle exercido por uma classe de bem treinados especialistas. Segundo Winner (1992), essa vertente argumenta sobre a importância da contribuição de movimentos sociais e de outras formas de participação dos cidadãos no desenvolvimento científico e tecnológico. Andrew Feenberg é um dos autores que se ocupam da compreensão das relações existentes e das relações possíveis entre tecnologia e democracia. O autor parte da premissa de a tecnologia ser uma das maiores fontes de poder nas sociedades modernas e colocar em xeque a democracia política quando comparada ao enorme poder exercido pelos senhores dos sistemas técnicos.
320 Por outro lado, Feenberg (2010) destaca que as pessoas afetadas pelas mudanças tecnológicas protestam de maneira a lhes permitirem maior participação e controle democrático e, com isso, onde era possível silenciar a oposição a projetos técnicos, a partir do discurso do progresso científico e tecnológico, as comunidades, os movimentos sociais, etc se mobilizam para fazer seus desejos conhecidos. É nessa perspectiva que a tecnologia pode ser considerada como um campo de luta social, uma espécie de parlamento das coisas, no qual estão em disputa não apenas alternativas tecnológicas, mas também alternativas civilizatórias (FEENBERG, 2010). Sobre a atuação dos movimentos sociais relacionada à questão tecnológica, considera–se que essas experiências evidenciam o desenvolvimento tecnocientífico umbilicalmente relacionada à solução de problemas de setores da sociedade destituídos de poder. E, nessa perspectiva, por partirem da crítica a modelos tecnológicos hegemônicos, questionam uma compreensão ingênua da tecnologia baseada em visões que parecem ser formas eminentemente racionais e politicamente neutras de análise, mas que podem mascarar valores profundamente hostis aos princípios democráticos. É nessa perspectiva que o artigo busca refletir sobre as experiências de resistência tecnológica em movimentos sociais brasileiros à luz dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) e, especialmente, da contribuição de Andrew Feenberg. Como resultado da análise realizada, essas experiências evidenciaram a elaboração de projetos tecnológicos em oposição a sistemas hegemônicos, formando um panorama, em cada movimento, de alternativas tecnológicas concorrentes entre si. Em uma sociedade democrática, seria necessário incorporar essas tensões tanto em estudos sobre desenvolvimento tecnocientífico quanto da política científica e tecnológica.
Tecnologia e democracia A ideia de que uma parcela considerável da população não participa do processo de desenvolvimento tecnológico é o ponto de partida deste artigo. Essa exclusão, no entanto, pode ser compreendida de diversas maneiras: indivíduos ou grupos sociais podem não ter acesso ao uso da tecnologia, podem não participar das decisões sobre seus usos ou efeitos gerados por ela ou das decisões e escolhas envolvidas em seu desenvolvimento e da formulação dos problemas a serem enfrentados pela tecnologia. De cada um desses tipos de exclusão decorre uma compreensão específica da relação entre tecnologia e democracia.
321 Em grande medida, a literatura sobre tecnologia e participação tem como preocupação central apenas a primeira categoria. Nessa perspectiva o problema da exclusão estaria na falta de acesso à tecnologia. A sua difusão, portanto, resultaria em uma maior democratização das tecnologias. Isso acarreta o fato de a perspectiva de maior destaque na liter atura sobre o tema ser a de difusão ou transferência de tecnologia (FRAGA, 2012). Vem dos ESCT a crítica à visão ofertista da tecnologia ao apontar para a necessidade de levar em consideração a complexidade inerente ao processo de mudança tecnológica em oposição ao modelo linear de inovação (DIAS e NOVAES, 2005; DIAS, 2005). Outro caminho para a pensar a democratização da tecnologia seria a valorização de artefatos ou técnicas tradicionais, deslocando a racionalidade científica como única forma adequada de compreender o mundo. Por ser tido como superior diante de outros tipos de saber, o conhecimento tecnocientífico exerceria sobre os grupos excluídos, através de sua aparente neutralidade, um tipo de autoridade específica. Como afirma Barnes (1987), a ciência está solidamente assentada como uma forma dominante de autoridade cognitiva em todas as sociedades modernas. Ao considerar a tecnologia como a aplicação da ciência, as tecnologias elaboradas a partir do conhecimento popular, simplesmente, não são consideradas tecnologia. Nesse caminho, a valorização do saber popular poderia ser compreendida como uma busca pela democratização do desenvolvimento tecnocientífico através da dissolução da barreira entre cidadãos comuns e especialistas. Feyerabend se pergunta se isso não seria um caminho equivocado Mas será que os leigos possuem o conhecimento necessário para deci sões desse tipo? Não irão cometer erros sérios? E, portanto, não é necessário deixar as decisões fundamentais para os especialistas? Certamente não em uma democracia. Uma democracia é um conjunto de pessoas maduras e não uma coleção de ovelhas guiadas por um pequeno grupo de sabe–tudo. A maturidade […] é adquirida por meio da participação ativa em decisões que ainda precisam ser tomadas (FEYERABEND, 2011, p. 108).
Para o autor, o que ameaça a democracia não é a ciência, mas sua predominância e, nesse sentido, afirma que “chegou a hora de perceber que a Ciência, também, é uma tradição especial e que sua predominância deve ser revogada por um debate aberto do qual todos os membros da sociedade participem” (FEYERABEND, 2011). Thomas (2009) aponta que a incorporação dos usuários–beneficiários nas decisões tecnológicas poderia desenvolver uma nova dimensão
322 das sociedades democráticas: a cidadania sociotécnica. Andrew Feenberg vai além ao considerar a ação de sujeitos ativos e organizados em processos de Racionalização Subversiva e afirma que o aprofundamento da democracia em questões tecnológicas deveria partir dessas experiências de resistência. Nesse sentido, Feenberg (2010) propõe uma teoria crítica da tecnologia que “abre a possibilidade de pensar em tais escolhas [tecnológicas] e de submetê–las a controles mais democráticos” (FEENBERG, 2010, p. 63). Com isso aponta para além do debate teórico e da descrição das experiências existentes de resistência tecnológica, como também as conecta com a ideia de uma democracia para além da democracia política. O autor dá destaque ao que considera o desafio central deste artigo: a conexão entre tecnologia e democracia na sociedade moderna. Nessa perspectiva, propõe a democratização da tecnologia por meio de uma aliança democraticamente constituída com a participação dos grupos sociais destituídos de poder. Feenberg parte do pressuposto que a tecnologia moderna tem contribuído para a administração autoritária da produção mas que a mesma pode ser operacionalizada (em um contexto social distinto) democraticamente. O autor tem como preocupação fundante que a democratização da nossa sociedade requer mudanças técnicas radicais. Por isso propõe estender a democracia para dentro dos domínios tecnicamente mediados da vida social. Em diálogo com o conceito de racionalização de Max Weber, Feenberg propõe a Racionalização Subversiva, isto é, “um modo alternativo de racionalizar a sociedade que leve à democracia ao lugar de formas centralizadas de controle” (ibidem, p. 71). Como pressuposto, o autor coloca que a hierarquia social não é uma necessidade técnica, mas uma dimensão contingente do progresso técnico. A Racionalização Subversiva seria, então, a subversão de uma racionalização da sociedade conectada com uma definição particular de tecnologia como um meio para obter lucro e poder. Uma nova forma de compreender a tecnologia, sugere uma noção diferente de racionalização. Esse processo requer avanços tecnológicos que só podem ocorrer em oposição à hegemonia. Em relação àqueles que não veem possibilidade de subversão da tecnologia, o autor afirma que o principal erro dessa argumentação é a identificação da tecnologia em geral com a tecnologia desenvolvida no Ocidente no último século.
323 Feenberg recorre ao construtivismo para criticar o determinismo tecnológico. Em oposição, considera que há diversas soluções possíveis para um determinado problema e que os atores sociais fazem escolhas entre um grupo de opções tecnicamente viáveis. Para o autor, ao colocar em xeque o determinismo tecnológico, as pesquisas sobre a tecnologia deveriam se guiar por dois princípios: o desenvolvimento tecnológico não é unilinear, mas se ramifica em muitas direções e, em segundo lugar, o desenvolvimento tecnológico não é determinante para a sociedade, mas é sobredeterminado por fatores técnicos e sociais. Ao compreender a tecnologia não como um simples servidor de algum propósito social predefinido, mas como um ambiente dentro do qual um modo de vida é elaborado, pode–se, então, “entender o desenvolvimento tecnológico unicamente a partir do estudo da situação sociopolítica dos vários grupos sociais envolvidos no processo” (ibidem, p. 79). Nesse sentido, a atuação dos grupos sociais estaria conectada com a manutenção ou enfrentamento da hegemonia do horizonte cultural para o qual o desenvolvimento tecnológico foi concebido. É na ideia de contra–hegemonia que as experiências de resistência tecnológica ganham destaque pelo autor na busca pela democratização da tecnologia, uma vez que o mesmo considera que seria necessário reconhecer as iniciativas de participação “que emerjam de experiências e das necessidades dos indivíduos que resistem a uma hegemonia tecnológica específica” (ibidem, p. 90). Essa resistência aconteceria em um movimento de dentro, posto que os indivíduos que são incorporados em novos tipos de rede aprendem a resistir por meio da própria rede, com o propósito de influenciar os poderes que a controla. Esta seria “uma luta para subverter as práticas técnicas, os procedimentos e os arranjos que estruturam a vida cotidiana” (ibidem, p. 91). Nesse movimento, o mais fundamental para a democratização da tecnologia seria encontrar maneiras alternativas de privilegiar os valores excluídos e de realizá–los em arranjos técnicos novos. Para Feenberg, o grupo porta–voz dessa crítica são os ambientalistas. No Brasil, no entanto, tornou–se evidente a diversidade de grupos envolvidos em processos semelhantes. Neste artigo serão apresentadas três experiências que têm em comum o fato de, a partir da crítica a um modelo tecnológico, buscar construir alternativas. Não se trata, portanto, apenas de resistir enquanto movimento social, mas de elaborar caminhos alternativos para a produção e distribuição de energia, de gestão dos resíduos sóli dos, de construção de habitação popular, etc. É o que neste artigo chamamos de alternativas tecnológicas.
324
Alternativas tecnológicas O início dos anos 2000 foi um período profícuo na construção de alternativas tecnológicas no país. A crescente mobilização em torno do tema da Tecnologia Social foi marcado pelo surgimento da Rede de Tecnologia Social (RTS), da Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social (SECIS) dentro do Ministério de Ciência e Tecnologia, o Banco de Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil (FBB) entre outras experiências levadas a cabo por governos, universidades, ONGs e movimentos sociais. Com a atenção voltada para o tema da Tecnologia Social, ressurge o debate sobre a construção de alternativas tecnológicas, com foco na solução de problemas sociais e ambientais. Esse debate, anterior ao tema da Tecnologia Social, parte de críticas a uma visão reducionista da relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Tradicionalmente, esses temas estão conectados por uma cadeia linear na qual maior investimento em ciência e tecnologia resultaria, necessariamente, em desenvolvimento econômico e, consequentemente, social. Segundo essa visão, para o enfrentamento de problemas sociais e ambientais, não seria necessário desenvolver novas tecnologias, mas sim garantir o acesso a tecnologias já existentes para a população mais pobre. Em oposição a esta visão, considera–se que o desenvolvimento científico e tecnológico é um processo complexo e não linear, no qual diferentes grupos sociais interagem e que, através de negociações e disputas atravessadas por desigualdades de poder, conformam (e são conformados) não apenas as tecnologias, mas também os problemas a serem enfrentados. Essa visão alternativa tem antecedentes históricos e teóricos já bastante consolidados pelos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) e, frequentemente, se encontra com o debate sobre tecnologia e democracia. Especificamente, alguns autores buscaram traçar o histórico de reflexão e de construção de alternativas tecnológicas com o intuito de conectar as recentes experiências de Tecnologia Social com seus antecedentes. No Brasil, o texto de destaque foi escrito por Renato Dagnino, Flávio Cruvinel Brandão e Henrique Novaes no qual constroem o que denominam de marco analítico–conceitual da tecnologia social. Através da figura a seguir, conectam a origem da Tecnologia Social (2004) com o movimento da Tecnologia Apropriada da década de 1970.
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Figura 1 – Espiral da Tecnologia Social. Fonte: DAGNINO, BRANDÃO e NOVAES (2004).
Outra importante contribuição é a do pesquisador argentino Hernán Thomas (THOMAS e FRESSOLI, 2009; THOMAS, 2009, 2012a, 2012b) que elabora um quadro complexo no qual relaciona inspirações teóricas com experiências de desenvolvimento tecnológico alternativo em diversos lugares no mundo como a China, Índia e América Latina. Outra revisão sobre o tema, desta vez com um olhar específico, é o trabalho de Bruna Mendes de Vasconcellos que, a partir das lentes de gênero, busca reconhecer a contribuição das mulheres na construção de alternativas tecnológicas (VASCONCELLOS, 2017). De todo modo, esses autores estão de acordo com a importância do movimento da Tecnologia Apropriada. O debate acadêmico sobre as possibilidades de construção de alternativas tecnológicas remonta, grosso modo, da década de 1970, especialmente a partir do livro “O negócio é ser pequeno: um estudo de economia que leva em conta as pessoas” de Ernest Schumacher (1983). Nele, preocupado em propor soluções para os países de terceiro mundo, o economista inglês propõe a criação de tecnologias intermediárias, adequadas à realidade desses países.
326 Na década de 1970, esse movimento ganha grandes proporções com pesquisas, debates e projetos de intervenção da tecnologia apropriada. Basicamente, a tecnologia apropriada consistia na ideia de os países de capitalismo central (ou países de 1° mundo, na época) desenvolverem tecnologias apropriadas ao contexto dos países de capitalismo periférico (ou países de 3° mundo), tentando resolver problemas básicos da população mais pobre por meio de tecnologias simples, baratas e intensivas em mão de obra (em oposição às intensivas em capital). Nessa época muitos bancos de tecnologias apropriadas foram criados dentro do modelo ofertista linear de inovação. Ainda hoje quando falamos de tecnologia social, a ideia por trás do conceito de tecnologia apropriada aparece: de oferecer alternativas prontas para as classes populares. A ideia de alternativa tecnológica, no entanto, é bem mais antiga. Já com Gandhi, na década de 1920 havia um debate entre a tecnologia tradicional e a tecnologia moderna (GANDHI, 1974; LASSANCE Jr. et al., 2004). Gandhi é tido como pioneiro ao propor a resistência à colonização inglesa através da Charkha. A Índia do final do século XIX é reconhecida como o berço do que veio a se chamar no Ocidente Tecnologia Apropriada (TA). Os pensamentos dos reformadores daquela sociedade estavam voltados para a reabilitação e o desenvolvimento das tecnologias tradicionais, praticadas nas suas aldeias, como estratégia de luta contra o domínio britânico. Entre 1924 e 1927, Gandhi dedicou–se a construir programas, tendo em vista a popularização da fiação manual realizada em uma roca de fiar reconhecida como o primeiro equipamento tecnologicamente apropriado, a Charkha, como forma de lutar contra a injustiça social e o sistema de castas que se perpetuava na Índia. (NOVAES e DIAS, 2009, p. 20).
Segundo Henrique Novaes e Rafael Dias, da inspiração indiana, além do movimento da Tecnologia Apropriada, outras experiências foram levadas a cabo na Índia e China nas décadas de 1940 e 1950 (DIAS e NOVAES, 2009). Por sua vez, a contribuição de Thomas (2009) é marcada pelo esforço de reconstruir a trajetória teórica sobre o tema, apontando diferentes contribuições, os principais autores e principais conceitos necessários para compreender a ideia de construção de trajetórias tecnológicas alternativas. O autor marca a origem do debate acadêmico sobre o tema com o trabalho de Lewis Mumford e sua preocupação com a relação entre tecnologia e democracia. A inicios de la década del ‘60, Lewis Mumford denunciaba los riesgos políticos de la producción en gran escala. En su conocido artículo Authoritarian and Democratic Technics (1964) planteaba que el advenimi-
327 ento de la democracia política durante los últimos siglos había sido impedido por tecnologías de gran escala que, dadas sus necesidades de operación, siempre connotaban direcciones centralizadoras, y dadas sus necesidades de control, autoritarias. THOMAS, 2009, p.5)
Da tecnologia apropriada, para a tecnologia social, no entanto, muitas críticas foram elaboradas, como mostra a figura (figura 1) elaborada por Dagnino, Brandão e Novaes (2004) e a contribuição de Hernán Thomas, anteriormente apresentadas. Destaca–se, para compreendermos o conceito de tecnologia social e as críticas feitas à tecnologia apropriada, a ideia de determinismo tecnológico que compreende o desenvolvimento tecnológico como um caminho linear inexorável e a tecnologia como tendo uma lógica autônoma regida pela eficácia e pela eficiência (FEENBERG, 2010). Segundo essa lógica, a última tecnologia desenvolvida seria sempre melhor que a tecnologia anterior. A negação dessa visão sobre a tecnologia, além da reafirmação da não neutralidade da tecnologia, resulta na compreensão da mesma como uma construção social que incorpora (e modifica) os valores e interesses predominantes no contexto no qual são desenvolvidas. A partir desses pressupostos, Dagnino (2010) propõe uma definição para tecnologia social […] ela [a tecnologia social] seria o resultado da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de um tipo voluntário e participativo), que permite uma modificação no produto gerado passível de ser apropriada segundo a decisão do coletivo (DAGNINO, 2010, p. 210).
É importante destacar que esse conceito evidencia o ator envolvido, nesse caso um coletivo de produtores, que executa uma ação, uma modificação no processo de trabalho, e que se apropria do excedente gerado por ela. Fica evidente também que o autor entende a tecnologia como uma estratégia rumo a uma alternativa civilizatória. Nos conceitos usuais de tecnologia social, o ator ou grupo social está fora da conceituação, o que reforça a ideia de neutralidade e a sua consequente descontextualização da tecnologia como uma construção social. Outra contribuição que merece destaque é a ideia de Adequação Sociotécnica1 (AST) é um caminho que merece ser explorado. Segundo Dagnino (2012), a AST supõe a desconstrução e reconstrução da tecnoSobre a Adequação Sociotécnica ver Dagnino (2002, 2010, 2012), Dagnino, Brandão e Novaes (2004). 1
328 ciência; a sua descontaminação dos valores e interesses nela internalizados pela lógica do capital e sua recontaminação com novos valores. Esse processo implica adequar a ciência e a tecnologia convencional “adotando critérios suplementares aos técnico–econômicos usuais e aplicando–os a processos de produção de bens e serviços em empreendimentos solidários visando otimizar suas implicações sociais, econômicas e ambientais” (DAGNINO, 2012, p. 4). O autor explica que a AST pode ser compreendida como o processo “inverso” ao da construção sociotécnica, no qual a tecnociência tem suas características modificadas em função dos interesses de grupos sociais relevantes distintos daqueles que o originaram até chegar a uma nova situação de “estabilização” e “fechamento”. Negando a racionalidade da ‘eficiência’ atribuída à técnica atual, a AST pressupõe, o reprojetamento da tecnociência mediante critérios como a participação democrática no processo de trabalho, ecológicos, de saúde dos trabalhadores e consumidores. Por fim, destaca–se as experiências apresentadas por Novaes (2012) que podem servir como inspiração: a atuação de pesquisadores– extensionistas com os movimentos sociais pela habitação popular, com os assentamentos rurais e com as fábricas recuperadas no Brasil e na Argentina. O autor destaca que essas três experiências têm em comum a “crítica tecnológica elaborada no campo de atuação desses pesquisadores, que abrange a crítica à tecnologia convencional, a necessidade de uma tecnologia alternativa” (NOVAES, 2012, p. 241). Além disso, retomam a necessidade de realimentação entre teoria e prática vinculada a uma transformação social mais ampla. Para além do debate teórico, consideramos como tecnologia social as soluções que têm surgido a partir das necessidades tecnológicas de grupos populares. Nesse sentido, não se trata de desvalorizar o debate teórico, mas sim de tentar conectá–lo a uma linha de práticas de resistência tecnológica, como a já citada experiência da Índia. Não nos parece adequado imaginar que as experiências relatadas são decorrência das reflexões feitas academicamente. Pelo contrário, essas experiências contaminam a academia com a possibilidade de utopia, de engajamento e da experimentação na construção de alternativas tecnológicas. Nessa perspectiva, a história pode ser contada não apenas pelas contribuições teóricas, mas também, ou de maneira complementar, pelas experiências levadas a cabo em momentos e locais distintos. Por isso, além das experiências relatadas na literatura, buscamos outras que trazem elementos interessantes para a reflexão aqui proposta. Uma experiência que não aparece nas cronologias feitas sobre Tecnologia Social e Tecnologia Apropriada é a experiências cubana descri-
329 ta por Ernesto Oroza em seu projeto Desobediência Tecnológica 2. O autor nos conta que após a revolução cubana de 1959, diante do bloqueio econômico dos EUA à ilha, a população deixou de ter acesso a diversos produtos como eletrodomésticos, pilhas, peças para reparo, etc. Oroza usa como inspiração o discurso feito em 1961 por Ernerto Che Guevara, então Ministro das Indústrias de Cuba. Segundo o autor, a partir do que ele chama de ineficiência 3 do sistema político comunista, a inventividade do povo cubano foi incentivada. “¡Obrero construye tu maquinaria!” fue la invitación que Ernesto Guevara –Ministro de Industrias (1961–1966)– lanzó a los participantes de la Primera Reunión Nacional de Producción en agosto de 1961. Este evento fue el primer impulso ideológico al movimiento nacional de innovadores e inventores cubanos, que se habían agrupado desde 1960 en los Comités de Piezas de Repuesto. Dos años y medio después, en 1964, se crea la Comisión Organizadora Nacional del Movimiento de Innovadores e Inventores con el propósito de organizar el movimiento y darle un carácter institucional. El movimiento, que años después se constituye como Asociación Nacional de Innovadores y Racionalizadores (ANIR), se consolidó por la confluencia de dos circunstancias: por un lado el deterioro de las industrias y por otro la salida masiva del país –desde inicio de 1960– de ingenieros, técnicos y obreros calificados, que buscaban continuidad laboral en suelo estadounidense con las empresas para las cuales habían trabajado en la isla. (OROZA, 2016)
Diante da constatação da inventividade do povo cubano, foi organizado um levantamento nacional das invenções e adaptações feitas pela população. Esse levantamento resultou no caderno “Con nuestros própios esfuerzoz”4 que traz descritas diversas inovações. O autor seguiu levantando as invenções do povo cubano o que resulta num grande e impressionante acervo, como as antenas de bandeja, os carregadores de pilha, brinquedos, entre muitas outras coisas. Os processos de reparação, refuncionalização e reinvenção são descritos pelo autor como processos de desobediência, pois La entiendo como una reacción e irrespeto al objeto industrial contemporáneo y a las lógicas autoritarias incrustadas en estas producciones. Cuando menciono lógicas autoritarias me refiero a ciclos de vida predeterminados, a principios técnicos cerrados, excluyentes e inaccesibles. A estrategias de manipulación de los hábitos de consumo como el término http://www.technologicaldisobedience.com/es/category/notes/ e http://www.ernestooroza.com/tag/desobediencia–tecnologica/ 3 O autor é crítico ao sistema político de Cuba, mas parece não levar em consideração em sua análise os efeitos do bloqueio econômico dos EUA para o desenvolvimento tecnológico do país. 4 Para acessar o caderno: http://cubamaterial.com/wp–content/uploads/2013/10/Con–Nuestros– Propios–Esfuerzos–reduced.pdf 2
330 “nueva generación” y su sucesión infinita y supuestamente lógica que convierte en obsoleto todo lo que usamos, dando por sentado que cada generación es mejor. (OROZA, 2016)
Nesta perspectiva, acredita–se que a resistência tecnológica e a criação de alternativas tecnológicas pode ser percebida na luta da agricultura familiar na perspectiva de escolherem a maneira como querem plantar, colher e processar os alimentos, colocando a Agroecologia como alternativa à revolução verde5. Pode também ser vista na luta de indígenas, quilombolas e ribeirinhas protegendo seus territórios de grandes obras como usinas hidrelétricas. Pode ser vista na luta por moradia aliada à participação na concepção do projeto arquitetônico e na construção em mutirões autogeridos6. Pode ser vista na luta dos catadores e cooperativas de triagem de materiais recicláveis de organizar o trabalho a partir da autogestão, modificando as tecnologias existentes, traçando estratégias para ocupar a cadeia da reciclagem7 e lutando contra a incineração. Os exemplos são muitos e abordar o tema da construção de alternativas tecnológicas ignorando–os parece um erro que não deve ser cometido. Isso porque, se se parte da superação da tecnologia apropriada, isto é, não se entende como adequado que universidades, institutos públicos de pesquisa ou organizações da sociedade civil devam escolher o problema a ser enfrentado e construir soluções tecnológicas de maneira isolada dos usuários–produtores, essas formas de resistências podem ser o ponto de partida para o desenvolvimento de alternativas tecnológicas. Se há grupos na sociedade reivindicando o direito de participar na concepção e design de tecnologias que influenciam diretamente as suas vidas, são eles que, em contato com a academia e com financiamento público para o desenvolvimento científico–tecnológico específico para essas ações, poderão dar força para a ideia de engajamento tecnológico. Nesse sentido, Feenberg (2010) propõe uma teoria crítica da tecnologia que “abre a possibilidade de pensar em tais escolhas [tecnológicas] e de submetê–las a controles mais democráticos” (FEENBERG 2010, p. 63). Assim, para além do debate teórico e da descrição das experiências existentes, retoma–se a ideia de uma democracia para além da democracia política representativa. Por isso, podemos dizer que a construção de alternativas se referem a uma resistência tecnológica e a um engajamento para construção de soluções técnicas adequadas (segundo seus próprios critérios) com a participação de grupos populares. Ver a Plataforma da Via Campesina para a Agricultura em: http://www.mst.org.br/Via– Campesina–apresenta–plataforma–para–agricultura 6 Ver o trabalho do coletivo Usina em http://www.usinactah.org.br/ 7 Ver Wirth e Fraga (2012). 5
331 Importante destacar que se tem como premissa a participação do usuário–produtor no desenvolvimento das soluções tecnológicas. Estes são reconhecidos como comunidade ou como coletivo de produtores. Nesse ponto, os dois caminhos que traçamos (teórico e do ponto de vista das experiências tecnológicas de grupos populares) se encontram. Ambas as perspectivas apontam para a necessidade de um engajamento tecnológico. Trata–se, portanto, de reconhecer a importância da variável tecnológica nas lutas anticapitalistas. Nessa perspectiva, engajamento tecnológico significa uma participação ativa dos atores individuais e coletivos nas questões tecnológicas. O engajamento tecnológico nos leva além da democratização das tecnologias, e propõe a democratização das decisões relativas à ciência e tecnologia. Complexificar a compreensão da tecnologia para além de um artefato isolado, como um sistema sociotécnico implica a ideia de que ela se relaciona com diversos aspectos da sociedade (ambiente, cultura, política, economia) não apenas gerando efeitos na sociedade, mas também sendo resultado desses aspectos e, por isso, não sendo possível pensar a tecnologia sem pensar a sociedade na qual está inserida. Das experiências aqui apresentadas e de tantas outras talvez nem conhecidas pela academia de construção de tecnologia social, tecnologia apropriada, da desobediência tecnológica, podemos somar ouras experiências como a Adequação Sociotécnica, o engajamento tecnológico, a resistência, a reivindicação, o reprojetamento, etc. Reconhecemos nessa infinidade de experiências (e de teorias sobre o tema) algo em comum, no qual a tecnologia pode ser compreendida como um campo de luta social no qual concorrem alternativas civilizatórias como já abordado (FEENBERG, 2010). À leitura de Feenberg, somamos a contribuição do colombiano Orlando Fals Borda (2009) que, a partir do reconhecimento da conexão da autoridade exercida pelo conhecimento científico sobre o conhecimento popular, com a autoridade de uma elite em relação ao povo, propõe que as pessoas comuns também podem desenvolver seu próprio sistema de interpretação da realidade: a ciência do povo. E, por que não, a tecnologia do povo? Esses questionamentos partem, por um lado, do pressuposto que os grupos sociais mais desfavorecidos em um contexto periférico são também aqueles que têm maiores dificuldades de expressar suas necessidades em termos de conhecimento tecnocientífico. Parte também, por outro lado, da constatação da capacidade de resistir a tecnologias que lhes afeta negativamente. Por isso, nas experiências de alternativas tecnológicas é evidente também que as mesmas emergem da resistência a uma hegemo-
332 nia tecnológica. As pessoas comuns, os grupos populares e, como abordaremos a seguir, os movimentos sociais têm demostrado capacidade de elaborar não apenas críticas à hegemonia tecnológica, mas também de construir trajetórias tecnológicas alternativas. O reconhecimento dos movimentos sociais como sujeitos do desenvolvimento tecnológico levaria aqueles e aquelas envolvidas com a construção de alternativas tecnológicas a uma posição de escuta e ao que Pedro Benjamim Garcia (1984) chama de criação de espaços para que as classes populares expressem seus saberes. Aponta–se como necessário o exercício de sensibilidade para descobrir o código do outro antes de catalogá–lo dentro de nossas categorias. De todo modo, reconhecer que os movimentos sociais não apenas resistem, mas elaboram alternativas tecnológicas, seria uma posição coerente com as sociedades democráticas
Movimentos Sociais A literatura sobre movimentos sociais é extensa e bastante controversa. No entanto, mesmo as diferentes perspectivas sobre o tema não divergem de sua importância dentro do processo de resistência e transformação social. Essa importância decorre do reconhecimento dos movimentos sociais como um ator coletivo que tem contribuído para a redefinição e ampliação da democracia (FRANK e FUENTES, 1989; TATAGIBA, 2011; SARRIA ICAZA, 2009). Tomaremos a definição de movimentos sociais elaborada por Tatagiba e Blikstad (2010) a partir da sistematização das principais vertentes de análise da ação coletiva feita por Porta e Diane (2006). Estas consideram que um movimento social se caracteriza pela presença de três dimensões principais: “a capacidade de anunciar e sustentar um conflito, com oponentes claramente definidos; a presença de redes de interação informal entre uma pluralidade de grupos e ou organizações; e a existência de uma identidade compartilhada” (TATAGIBA e BLIKSTAD, 2010). Uma primeira característica que ganha destaque quando se estuda os movimentos sociais é o fato de terem uma identidade comum na ação coletiva (MELUCCI, 1988; DELLA PORTA e DIANI, 2006). Esta é uma característica central para autores que estudam movimentos sociais e ação coletiva. Para este artigo, este é um dos elementos centrais, pois dele decorre a capacidade de os movimentos sociais elaborarem um projeto tecnológico alternativo para além de soluções tecnológicas pontuais.
333 Outro elemento a ser considerado são as duas dimensões dos movimentos sociais: a dimensão da urgência, isto é as ações pragmáticas dos movimentos, e a dimensão emancipatória, isto é, os sentidos e consequências dessas ações (TATAGIBA e BLIKSTAD, 2010; TATAGIBA, 2011). Por isso, Trabalhar com o conceito de movimento social […] é, portanto, dar conta da dimensão pragmática da ação e, ao mesmo tempo, da paixão e do risco que essa ação evoca. Ou seja, o conceito de movimento social nos permite compreender as manifestações concretas dos nossos objetos empíricos e, ao mesmo tempo, nos faculta inquirirmos sobre o sentido da ação, transcendendo o plano dos atores (organizações, grupos ou indivíduos) individualmente considerados. (TATAGIBA e BLIKSTAD, 2010, p. 7)
A relação entre essas duas dimensões, entretanto, é também uma relação de tensão. A dimensão da urgência, muitas vezes, enfraquece a capacidade de os movimentos sociais fazerem críticas e realizarem ações emancipatórias. Por isso é necessário estudar os movimentos sociais considerando seus limites e contradições. Neste artigo, buscou–se abordar a relação ainda pouco explorada entre mudança tecnológica e movimentos sociais enfatizada por Andrew Feenberg. Considerando as características centrais dos movimentos sociais de possuírem uma identidade compartilhada, agirem coletivamente e a possibilidade de realizarem ações emancipatórias, considera–se que estes são importante referencial na construção da contra–hegemonia tecnológica. No entanto, não são todos os movimentos sociais que se relacionam com a temática a ser estudada nesta pesquisa. Por isso, as organizações de movimentos sociais escolhidas fazem parte de movimentos sociais que não se organizam apenas a partir da identidade, como é o caso do movimento feminista e movimentos étnico raciais. Nesses casos, os movimentos podem até ter relação com o desenvolvimento tecnológico, mas essa relação é marginal. Por isso, dentre os diversos tipos de movimentos sociais, destaca– se aqueles que têm como foco o conflito sobre o qual atuam a produção de bens e serviços. Esse foco busca também ampliar a compreensão de que o locus privilegiado para o desenvolvimento tecnológico seria a empresa privada, pressuposto dos estudos sobre inovação tecnológica. Essa perspectiva naturaliza a ideia de que a empresa privada é a única que pode processar o conhecimento produzido para viabilizar a produção de bens e serviços. Em oposição a essa ideia, a análise realizada considera a possibilidade de que é possível desenvolver alternativas tecno-
334 lógicas em outros âmbitos da sociedade, como nas organizações de movimentos sociais. A concepção da ciência e da tecnologia como neutras, que trazem apenas efeitos positivos para a sociedade e que se desenvolvem em um caminho linear e inexorável escamoteia a exclusão da maior parte da população no desenvolvimento tecnocientífico. Por isso, estudar alternativas tecnológicas desenvolvidas por movimentos sociais reconhece que catadores, agricultores familiares, atingidos por barragens, etc podem ser agentes do desenvolvimento tecnológico. A literatura sobre alternativa tecnológica, tecnologia apropriada, tecnologia social, etc discute amplamente essa possibilidade. No entanto, o que pode ser visto é um foco demasiado em experiências pontuais e o caráter residual dessas experiências dentro da Política Científica e Tecnológica (PCT) (FONSECA, 2010; DAGNINO e BAGATTOLLI, 2010). Fonseca (2010) destaca que […] dentro do jogo social de disputas, inclusive pelo domínio sobre o Estado, nenhum grupo social irá produzir políticas para toda a sociedade. Aqueles atores com mais força terão maior capacidade de conduzir a formação da agenda decisória a seu favor. […] a inversão da lógica da PCT não se dará primeiro pelo convencimento da comunidade científica, mas sim pela inserção de novos atores na construção da agenda, tornando–a mais democrática. (FONSECA, 2010, p. 211)
Os movimentos sociais, nessa perspectiva, desvelam a existência de caminhos alternativos para o desenvolvimento tecnológico. Além disso, para entrar na disputa pela PCT e ter a possibilidade de ter acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento tecnológico almejado (recursos humanos, recursos financeiros, infraestrutura, etc), é preciso que o ator ou grupo social tenha não apenas a capacidade de formular alternativas tecnológicas, mas também, e principalmente, tenha a capacidade de influenciar a construção de uma agenda decisória favorável. Por isso, experiências isoladas, comunidades, pequenos grupos ou indivíduos largamente estudados no campo dos ESCT têm pouca capacidade de disputar tanto a política científica e tecnológica quanto as utopias de desenvolvimento tecnológico que estão no imaginário de policy makers, comunidade de pesquisa e da sociedade em geral. Essa disputa é fundamental para a democratização do desenvolvimento tecnológico e os movimentos sociais, por sua vez, articulam forças e recursos necessários para tal a partir de sua capacidade de agir coletivamente. Essas organizações são capazes de coadunar demandas e reivindicações dispersas na rede de agentes que as compõem.
335
Considerações finais Foi a partir dessas considerações e de levantamentos preliminares nos documentos oficiais das organizações dos movimentos sociais que elaboramos o quadro a seguir que sistematiza as experiências de resistências tecnológicas nas seguintes organizações de movimentos sociais: Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Estas organizações atendem aos seguintes critérios: a) foco sobre o conflito sobre o qual atuam na produção de bens e serviços; b) capacidade do movimento de elaborar críticas às tecnologias hegemônicas (dimensão de urgência) e; c) capacidade de o movimento de elaborar propostas tecnológicas alternativa (dimensão emancipatória). Quadro 1 – Movimentos Sociais e projetos tecnológicos Desenvolvimento tecnológico Organização
Área de atuação
Crítica
Alternativa
Agricultura
Agronegócio: agricultura intensiva em insumos sintéticos, monocultura, transgenia, uso de agrotóxico, monopólio das sementes, etc.
Reforma Agrária Popular baseada na Agroecologia. Mudança da matriz tecnológica para a agroecologia.
Produção e distribuição de energia
Impacto da construção de barragens. Modelo energético atual. Questionamentos sobre produzir energia pra quem e pra que?
Projeto Energético Popular. Desenvolvimento e uso de múltiplas fontes de geração de energia; descentralização da produção de energia.
Gestão dos resíduos sólidos urbanos. Produção de matéria– prima reciclada para outras indústrias.
Incineração e outros processos térmicos. Modelo privatista da gestão dos resíduos sólidos urbanos.
Reciclagem Popular: sustentabilidade, autogestão do trabalho, inserção dos catadores em todos os elos da cadeia produtiva da reciclagem, coleta seletiva solidária.
MST
MAB
MNCR
Fonte: elaboração própria a partir de dados da pesquisa (2016).
Os resultados brevemente apresentados, buscam descrever processos de Racionalização Subversiva em organizações de movimentos sociais brasileiros por meio da análise de experiências de democratização do desenho (design) tecnológico desenvolvido à luz dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia. Com intuito de ir além, buscou–se explorar essas experiências como possíveis embriões de democracia tecnológica. Essas experiências podem apoiar a elaboração de um conceito de democracia tecnológica, em pesquisas futuras.
336 Um dos elementos que ficaram evidentes na análise dos documentos é a necessidade de uma abordagem interdisciplinar que conecta não apenas diferentes contribuições dos ESCT (como a filosofia, a sociologia e a economia), mas também a grande área das engenharias. A perspectiva de Andrew Feenberg e seu conceito de Racionalização Subversiva nos permite, como sugere o autor, verificar a tendência de maior participação nas decisões sobre o design e o desenvolvimento tecnológico. Essa tendência pode ser percebida em uma maior abertura da esfera pública para abranger assuntos técnicos que eram vistos como exclusivo da esfera de especialistas. Nessa perspectiva, a tecnologia pode se manifestar também como aspiração dentro de um modo alternativo de racionalizar a sociedade que leve a democracia ao lugar de formas centralizadas de controle. A abordagem analítica de Feenberg (2010) traz a necessidade de realizar uma crítica recontextualizadora da tecnologia que seja capaz de expor publicamente a relatividade das alternativas técnicas (NEDER, 2010). Essa abordagem considera objetos e sujeitos constituídos em redes técnicas reais e a necessidade de integrar a técnica aos ambientes sociais, técnicos e naturais que dão suporte a seu funcionamento. Por isso, a partir de uma crítica recontextualizadora, os processos com maior participação nas decisões técnicas devem ser analisados considerando duas dimensões inextricavelmente entrelaçadas da tecnologia: o seu significado social e seu horizonte cultural. Por isso, a análise realizada tem ponto de partida a descrição da racionalidade tecnológica que perpassa a experiência estudada, descrevendo valores predominantes e a maneira como estes se materializam nas alternativas tecnológicas. É a partir desses elementos que um olhar socialmente referenciado da engenharia desempenha um papel crucial. O estudo do código técnico das experiências a serem analisadas possibilita a compreensão dos parâmetros técnicos definidos não como uma necessidade técnica, mas como algo socialmente especificado. O código técnico “expressa o ‘ponto de vista’ dos grupos socialmente dominantes em nível do desenho e da engenharia” (FEENBERG, 2010, p. 95). Em outras palavras, o código técnico é a realização de uma ideologia para uma solução tecnicamente coerente a um problema, é uma categoria que articula o relacionamento entre exigências sociais e técnicas. De maneira mais concreta, o código técnico se expressa em critérios que sustentam a escolha entre projetos técnicos factíveis e alternativos. Como resultado da análise realizada buscou–se obter uma compreensão mais aprofundada da atuação dos movimentos sociais nas questões tecnológicas. Além disso, buscou–se aproximar a teoria de Andrew
337 Feenberg da realidade brasileira, testando sua viabilidade analítica nas experiências selecionadas com intuito de fortalecer metodologias de análise de desenvolvimento tecnológico recontextualizadoras e interdisciplinares com a inclusão das ciências exatas, especialmente das engenharias. Espera–se assim contribuir para a elaboração do conceito de democracia tecnológica e, com isso, informar estudos acadêmicos e políticas públicas de tecnologia para o desenvolvimento social.
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15– Autodeterminação indígena o sentido do movimento histórico e a riqueza das múltiplas possibilidades futuras* Daniel Lopes Faggiano A permanente sucessão de crises, das quais os colapsos financeiros são expressões cada vez mais agudas, a destruição do meio ambiente, o desemprego estrutural crescente e as constantes guerras, são sintomas mundiais de nossa crise estrutural do capital 1. No Brasil não se faz diferente: sucateamento do Estado em prol do capital financeiro, precarização da legislação trabalhista e previdenciária, múltiplos ataques aos direitos sociais e coletivos, além da autoritária criminalização das manifestações populares. Nessa barbárie contemporânea, não vivemos o fim dos tempos, mas tempos de aguda crise da civilização capitalista. Tempos de trevas e intensificação das contradições sociais, tempos de miséria generalizada, concreta e espiritual. O futuro que avistamos por entre escombros e ruínas é assustadoramente perverso, no entanto ainda está em aberto. Interpretar a realidade brasileira, desvelar as múltiplas mistificações de nosso desenvolvimento, analisar as particularidades de nosso capitalismo colonial e apontar caminhos para superação desta sociabilidade, se faz, ontem e hoje, tarefa fundamental na construção de nosso pensamento e de nosso Brasil. Pensar criticamente o Brasil em suas particularidades históricas a partir da crise estrutural do capital significa: apreender o Brasil com suas mais diversas vozes e conhecimentos em releitura ao pensamento de Karl Marx. Atentos ao nosso presente, conscientes de nosso passado e críticos de nosso devir. Pensar o Brasil nesse retorno à Marx significa abandonar as demais simplificações e vulgarizações do pensamento marxista para adentrarmos no campo do diálogo de sua obra com a realidade brasileira. Em 1881, Karl Marx é indagado pela revolucionária Vera Zasulitch sobre o futuro das comunidades rurais russas: – A proletarização das comunas rurais russas é uma precondição necessária à revolução russa? Título em homenagem à vida, luta e obra da antropóloga Carmen Junqueira. MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital.
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342 Buscando responder a indagação acima, Marx nos propiciou, no futuro, a oportunidade de confrontarmos as distorções do marxismo “oficial” soviético com o seu estatuto ontológico do capital. Em seus últimos anos de vida, Marx dedicará boa parte de seu tempo estudando as movimentações não capitalistas do mundo, especialmente a questão Russa. Abandonando qualquer viés histórico unilinear, etapista, determinista e eurocêntrico, a clareza com que o filósofo elabora os rascunhos da versão final da resposta à companheira russa, se apresenta de forma imperiosa aos críticos vulgares. […] a análise apresentada n’O capital não oferece razões nem a favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes originais, convenceu–me de que essa comuna é a alavanca da regeneração social da Rússia2.
A contemporaneidade do modo de vida das comunas rurais com o modo de produção do capital abriu a possibilidade destes de se apropriarem do desenvolvimento das forças produtivas geradas através da barbárie, enquanto poderiam apontar possíveis caminhos para superação de nossa sociabilidade da miséria. O concretizar–se dessa possibilidade dependeria, obviamente, do processo histórico, não existindo uma teleologia previamente inscrita na história. Marx acredita na possibilidade da comunidade rural russa de trocar de pele sem precisar se suicidar. Ele evidência no plano do pensamento essa alternativa histórica às comunidades rurais russas: Falando em termos teóricos, a “comuna rural” russa pode, portanto, conservar–se, desenvolvendo sua base, a propriedade comum da terra, e eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente implicado nela; ela pode tornar–se um ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode se apropriar dos frutos com que a produção capitalista enriqueceu a humanidade sem passar pelo regime capitalista, regime que, considerando exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível, conta muito pouca na vida da sociedade. Porém, é preciso descer da teoria pura à realidade russa 3.
Em 2017, passados 136 anos da carta de Marx à Vera Zasulitch, na atual crise estrutural do capital, na era da catástrofe, persistem no mundo sociedades não capitalistas. Somente no Brasil temos 253 povos indígenas4 que apesar de acossados pela imposição violenta do capital, ainda MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia, p. 115. Ibidem, p. 220. 4 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil (PIB). 2 3
343 orientam suas ações de acordo com sua sociabilidade indígena. Embora cada vez mais pressionados a abandonarem seu modo de vida, como diria Darcy Ribeiro5, espantoso não é que tantos índios morressem pela eficácia das armas, dos vírus e dos ardis postos em cena pelos colonizadores de ontem e hoje, mas sim a incrível sobrevivência de alguns povos até os dias atuais. Ancorados na realidade brasileira, a questão posta à Marx se apresenta fundamental nos dias de hoje, tanto no que tange em nosso retorno ao filósofo para com ele pensarmos o presente, afastando assim o marxismo vulgar e contrarrevolucionário, como sobre as possibilidades históricas da superação do capital. Porque, do mesmo modo, não poderiam, hoje, os povos indígenas, alavancar a luta pela superação do capital sem deixar de ser quem são, ou ao contrário, deveriam antes abandonar suas raízes metamorfoseando–se em trabalhadores assalariados? Em reflexões acerca da questão posta, me recordo de um trabalho junto ao povo Guarani Mbya, na aldeia Tekoá Pyau (SP), uma das menores Terras Indígenas do Brasil com míseros 15 hectares de terra quando aprendi uma importante lição. Comprimidos pelo desenvolvimento metropolitano da grande São Paulo, viviam, na época, cerca de 400 indígenas estrangulados pela miséria. Em uma fria noite de inverno ao redor da fogueira tomando mate e esfumaçados pelo petynguá, o jovem líder Tupã Mirim tentava me explicar o significado de Tekoá. Palavra essa que apressadamente era ocidentalizada como sinônimo de aldeia. Para ele, no entanto, tekoá não se limita ao espaço das casas, ou ainda não é uma abstração puramente acadêmica, mas ao contrário, tem um significado concreto. Tekoá, me explica, é o local onde se faz o ser guarani, em outras palavras, tekoá é o lugar de objetivação, de concretização do modo de vida guarani. Por lugar podemos entender a terra, ou ainda, o território, ou seja, o que o jovem indígena tentava me ensinar é que o tekoá deve compreender uma variedade de entes materiais e imateriais que permitem a produção e reprodução do modo de vida guarani. Não basta nascer, mas também deve se fazer guarani. Cada povo detém um modo de vida particular, cada povo depende de um conjunto de elementos para sua reprodução física e ideológica. Cada cultura representa assim um modo concreto de se fazer no mundo, cada cultura representa um modo particular de transformar a natureza e a si mesmo. Cultura, tomada em seu sentido histórico, é um complexo de complexos no qual um determinado ser (social) produz um modo de vida adquirido RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 5
344 como membro de uma comunidade determinada. Ou seja, a cultura não é um ente subjetivo, mas sim um modo de vida que transforma concretamente o mundo7.
De um modo geral, o indígena, em seu modo de vida, em sua cultura, se organiza de acordo com relações de parentesco. Possuem um modo de produção ordenado pelo parentesco, ou seja, são as relações de parentesco que moldam a sociabilidade indígena. O parentesco não é uma natural regulamentação biológica, mas, ao contrário, é uma construção social ideologicamente atrelada a determinada organização do trabalho. Muitos povos indígenas, por exemplo, regulamentam o casamento de acordo com interesses político – económicos, já o amor reside em outras esferas sociais mais adequadas. Se cada cultura está ancorada em determinada organização do trabalho, o que foi então o encontro dos povos indígenas com os povos europeus? Categorizar esse encontro como um choque de culturas, nos parece por demais abstrato. Elevando–nos ao concreto podemos dizer que esse encontro foi a imposição violenta de um modo de organização do trabalho a outro. Nossa história colonial se inicia assim; com o abocanhar do capital em nosso território, cultura e modo de vida. Ilustrando nosso pensamento, podemos ver o choque desses dois modos de organização do trabalho nos primeiros contatos com o povo Kamaiurá8. Este, ao entrar em contato com o facão e o machado de ferro, aloca essas mercadorias de acordo com suas mediações sociais. Assim, a consequência imediata do contato com uma tecnologia superior, o metal ao machado de pedra, é a diminuição da jornada de trabalho. Ou seja, o povo Kamaiurá ao ter acesso a uma tecnologia superior, em vez de reproduzir as mediações produtivistas do capital de intensificar a produção, ao contrário, se apropria, à sua maneira, do metal, mantendo a mesma produção realizada anteriormente, mas em menos tempo, sobrando mais tempo para se dedicar a outras atividades. O avanço do capital e posteriormente do capitalismo na América Latina se faz na tentativa de conformar o modo de vida tradicional para que o indígena seja adestrado a servir, sem empecilhos, aos interesses do mercado. Existir é resistir, surge como resposta imediata a essa tentativa de opressão imposta. A manutenção da organização tradicional do trabalho indígena é uma insubordinação direta à forma alienante imposta. Na expressão de Darcy, usando negros escravos, povos indígenas e trabalhadores explorados como carvão, o capitalismo se alastra no Brasil FAGGIANO, Daniel Lopes. O Tempo que nos resta. Estudos Kamaiurá, p. 18. UNQUEIRA, Carmen. Os Índios de Ipavu: um estudo sobre a vida do grupo Kamaiurá.
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345 através de sua via colonial9, queimando nossas terras e recursos humanos na entificação de nosso capitalismo nos trópicos. Esta forma histórica, evidência a maximização da produção em um curto espaço de tempo, produz muita riqueza ao passo que intensifica nossa miséria. “A produção capitalista somente sabe desenvolver a técnica e a combinação do processo social de produção minando, ao mesmo tempo, as duas fontes originais de toda riqueza: a terra e o homem10”. Esse processo colonizador em forte expansão ainda hoje, chegará às terras mais distantes deste Brasil. Os indígenas vivem hoje cada vez mais confinados.
Antagonicamente à negação da vida humana presente no capital, os povos indígenas constroem seu devir em afirmação de sua humanidade. Aos povos indígenas, sob suas mais diferentes culturas e modo de vida, a produção reprodução do povo é primordial, inexiste para eles qualquer forma de desenvolvimento que seja insustentável. Os povos indígenas repudiam a redução categórica da natureza apenas como “recurso ambiental”, ou ainda, de forma mais clara, se recusam a interpretar a natureza como sendo uma mercadoria pronta ao consumo desenfreado. Nas palavras do xamã David Kopenawa Yanomami: Nós somos bem diferentes. O povo da terra é diferente. Napë, o não índio, só pensa em tirar mercadoria da terra, deixar crescer cidade… Enquanto isso o povo da terra continua sofrendo. Olha aqui em volta [aponta para território Yanomami ao sul de Boa Vista, o qual estávaCHASIN, José. A Sucessão na crise e a crise na esquerda. MARX, Karl. El Capital, p. 555
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346 mos atravessando], tudo derrubado. Fazendeiro desmata para criar boi, vender pra outros comer e ele ganhar dinheiro. Aí pega dinheiro e continua desmatando, criando boi, abrindo mais fazendas… Napë só pensa em dinheiro, em botar mais madeira ou o que for pra vender, negociar com outros países. Nós pensamos diferente. A beleza da terra é muito importante pra nós. Do jeito que a natureza criou tem que ser preservado, tem que ser muito cuidado. A natureza traz alegria, a floresta pra nós índios é muito importante. A floresta é uma casa, e é muito mais bonita que a cidade. A cidade é como papel, é como esse carro aí na frente: branco, parece um papel jogado no chão. A floresta não, a floresta é diferente. Verde, bonita, viva. Fico pensando… por que homem branco não aprende? Pra que vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta nossa barriga, nossa alegria, dá comida é coisa boa de sentir, olhar… é bom ouvir as araras cantando, ver as árvores mexendo, a chuva 11.
Os povos indígenas assimilaram com maestria que o homem se faz homem em sua constante troca e transformação da natureza. Sabem que a natureza é fundamental no fazer–se humano. Pensam o mundo, no mundo, sabendo da importância do mundo para o seu fazer–se indígena. Por este motivo e não outro, os mitos indígenas existem como guias sustentáveis para o desenvolvimento deste sociometabolismo com a natureza. Os povos indígenas sabem muito bem da importância dos animais na manutenção e reprodução do meio ambiente. Muitos tabus alimentares, como a impossibilidade de realizar determinadas caçadas em determinadas épocas do ano, estão diretamente atrelados aos períodos reprodutivos fundamentais à manutenção das espécies. A famosa terra preta, objeto de cobiça dos cientistas ocidentais, está distribuída por grandes áreas da floresta amazônica e é agora amplamente aceita como um produto resultante do manejo indígena do solo. A terra preta não surge ao acaso, mas ao contrário, é forjada na lapidação histórica da técnica de cultivo dos povos indígenas. Nessa constante troca do homem com a natureza, estão os povos indígenas, conscientes da natureza como pré–condição para serem sustentáveis em sua reprodução social. De um lado oposto, em nossa insustentabilidade do capital, desde 2008, o Brasil é o país que mais consome agrotóxico no mundo e, só em 2010, utilizou mais de 800 milhões de litros em suas lavouras. O Mato Grosso é o estado que mais consome veneno no mundo, sozinho utilizou 113 milhões de litros/ano. Nosso modo de vida do capital afirma nossa insustenbilidade histórica, ao ponto de pesquisas apontarem a contaminação 11
YANOMAMI, David Kopenawa apud BOCCHINI, Lino. Entrevista David Kopenawa Yanomami.
347 do aleitamento materno na cidade mato grossense de Lucas do Rio Verde12. Os povos indígenas com seus mitos e distintas outras formas de apreender o real sabem muito bem que os animais são nossos companheiros de trabalho. Nós não. Em nossa particular miséria capitalista que também é cultural, em nossa catástrofe ambiental, as abelhas estão desaparecendo e isso para nós é apenas um dado. Os povos sabem do fundamental trabalho das abelhas em nossa natureza e na manutenção de nossa reprodução social e existência futura. Em termos de custo do trabalho das abelhas, estima–se que os serviços ecossistêmicos da polinização correspondem a cerca de 10% do PIB agrícola mundial, representando a incrível cifra superior a US$ 200 bilhões/ano no mundo13. Inúmeras são as formas de dominação do capital e eliminação dos demais modos de vida. Em nosso caso particular, quase todos os ataques aos povos indígenas foram direta ou indiretamente financiados pelo Estado brasileiro. “O executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa 14”. Roupas com sarampo, açúcar com arsénico, bombas com fator laranja, pulverização aérea de agrotóxicos, bala e outras táticas genocidas foram aplicadas aos povos desta terra. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade15, em nossa ditadura empresarial militar, 450 não indígenas foram assassinados pelas forças repressoras, em contraste com pelo menos 8.350 indígenas assassinados. Não apenas indivíduos foram assassinados, mas povos inteiros – por meio do esbulho de suas terras, remoções forçadas, contágios de doenças, prisões, torturas e assassinatos. Passados mais de quatro séculos, a Conquista ainda não se deteve. Os métodos se alteraram, mas os objetivos continuam praticamente os mesmos: inviabilizar as formas de existência comunitária, de modo a dissolver os povos na massa pobre da sociedade brasileira, incorporar suas terras no regime da produção dominante ou simplesmente expô–los a condições de extrema penúria, sem defesa contra inimigos mais imediatos, de modo a acelerar o extermínio. É fácil encontrar exemplos que ilustram essa política16. PALMA, Danielly Cristina de Andrade. Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde – MT. 13 FONSECA, Vera Lucia Imperatriz; CANHOS, Dora Ann Lange; ALVES, Denise de Araujo; SARAIVA, Antonio Mauro (Orgs.). POLINIZADORES NO BRASIL: Contribuição e Perspectivas para a Biodiversidade, Uso Sustentável, Conservação e Serviços Ambientais. 14 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. In: NETTO, José Paulo (Org.). O leitor de Marx, p. 187. 15 BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. 16 JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, in: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O saber militante, p. 123. 12
348 Os povos indígenas não foram duramente combatidos por apresentarem uma forma exótica aos olhos industrializados, mas foram perseguidos justamente por manterem um modo de vida que é antissistêmico e anticapital–propriedade privada. O modo de vida indígena, em suas sociedades contra o Estado17, é um modo de vida que se organiza contra a centralização do poder. Os povos não são sociedades sem o Estado, mas sim, contra o Estado. Ainda, em sua organização social tradicional, para estes povos, os seres humanos e a natureza não são opostos, mas partes de um todo, partes que compõem uma totalidade. Esta apreensão do mundo, não se adequa aos planos de desenvolvimento do capital sobre o homem e a natureza, tratados como mercadorias. Para o povo Mebengokre, a palavra Kukradja, tomada em seu sentido mais estrito pode ser traduzida como cultura. No entanto, se interpretada dentro “visão de mundo” mebengokre, a palavra kukradja toma um sentido muito mais amplo e significativo. Para este povo, kukradja também pode ser os ossos que compõem um esqueleto, ou ainda, as distintas partes que compõem uma festa. Nessa visão, as partes estão sempre conectadas ao todo, ou seja, o indivíduo está sempre ligado ao seu gênero humano, ou ainda, as particularidades do mundo se interconectam, conformam uma totalidade. Essa ideia de totalidade se assemelha muito à ideia reproduzida por Marx, tomada de Hegel de que a totalidade é a síntese de múltiplas determinações. É esse modo de ser dos indígenas que incomoda a dominação do capital financeiro no Brasil. Entre 2003 e 2015, 742 índios foram assassinados, média de 57 por ano (só no Mato Grosso Sul foram 400 (54%) nesses 13 anos18). Em proporções relativas isso é um genocídio a céu aberto. Mas onde tem violência, tem resistência. A imposição violenta do modo de vida do capital se faz dialeticamente com a resistência do modo de vida indígena. Para o cacique Babau Tupinambá: Nós Tupinambá nunca conseguimos lidar com o Estado brasileiro. Como você viu, a primeira lei do país foi criada para matar Tupinambá. Os portugueses disseram: “olha, Tupinambá é inimigo da coroa. Mate”. Depois, mandaram: “todos os colonos que estiverem no país têm que, por lei, matar os Tupinambá”. E nós sobreviveu. Então, os colonos em muitos anos nunca tiveram capacidade de guerrear com os Tupinambá, então eles mandaram o exército, a polícia, e continua até hoje, você vê que a gente está lutando, mas fazendeiro nenhum nunca foi na terra Tu-
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CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. CARTOGRAFIA DE ATAQUES CONTRA INDÍGENAS
349 pinambá, é a polícia que eles mandam. Então, o governo sempre foi o entrave para os Tupinambá19.
Os povos indígenas não têm dúvidas que, desde o contato colonial, existe uma política sistemática de eliminação dos modos de vida antagônicos aos rendimentos do capital. Essa guerra permanente, desde sempre, se alastra e se intensifica nos tempos de crise aguda. Nós, ocidentais, infelizmente mistificamos cada vez mais nossa realidade social e nossa falta de compreensão do real, nos afasta cada vez mais de um trabalho emancipatório. As organizações da sociedade civil que trabalham junto aos povos indígenas, em sua maioria possuem uma elevada capacidade técnica, mas que geralmente é aplicada acriticamente, ou ainda, se aplica apenas em reformas de nosso capitalismo colonial. Neste contexto de declínio e retrocessos, a palavra “autodeterminação” foi substituída por “governabilidade” e “gestão territorial”, como se não houvesse enfrentamentos no mundo, apenas possíveis ajustes. Compreender as raízes de nossos problemas é fundamental para possível superação destes. Marx em suas “glosas críticas marginais ao artigo: o rei da Prússia e a reforma social” evidencia a seguinte questão: Por que o intelecto político é incapaz de compreender as causas dos males sociais e qual a origem dessa incapacidade? “O que se constata, no entanto, é que o intelecto inglês atribui os males sociais ora à política dos partidos adversários, ora à falta ou ao excesso de assistência social, ora à própria lei de assistência aos pobres, ora aos próprios trabalhadores pela sua falta de educação ou a indolência, ora à falta de recursos para atender às necessidades de uma população que cresce mais do que os bens produzidos. Em consequência dessas concepções, a política social inglesa oscilou, nos últimos 300 anos, entre o assistencialismo e a repressão, sob as mais diversas formas20.”
O que Marx demonstra é que a miséria não se trata de um defeito, que pudesse ser sanado com o tempo, mas ser ela uma limitação essencial, ineliminável dentro da organização do capital. Ou ainda, em nossa realidade, a violência imposta aos povos indígenas não é uma face má do Estado, mas sim a forma de atuação do Estado dentro expansão e dominação do capital. Dessa maneira, tanto a miséria generalizada, como a violência imposta aos povos indígenas, só serão sanadas com a superação da sociabilidade do capital.
Cacique Babau Tupinambá apud MIOTO, Thiago. Não vamos deixar o agronegócio tomar o nosso país – Entrevista com Cacique Babau Tupinambá. 20 TONET, Ivo. A propósito de “Glosas Críticas”. In: MARX, Karl. Glosas Críticas Marginais ao artigo "O Rei da Prússia e a Reforma Social: de um Prussiano”, p. 13. 19
350 Neste sentido, nessa busca pela superação do capital, retornar à Marx no Brasil é retomar a palavra “autodeterminação” em sua implicação prática. Poucos intelectuais fizeram não apenas trabalhos acadêmicos, mas também trabalharam o mundo, como a antropóloga Carmen Junqueira. Em seu trabalho emancipatório de enfrentamento às diversas formas de dominação capitalista, ela nos explica que: Não se deve diminuir a importância do antropólogo também junto às aldeias, onde vive o cotidiano indígena. Seus trabalhos reflexões e análises abrem–lhe acesso a uma visão clara da sociedade que estuda; conhece, talvez melhor que qualquer outro, o universo cultural e semânti co dos índios. Está ele, por isso mesmo, apto a fornecer aos índios elementos que possam ajuda–los a melhor compreender o mundo capitalista. Eles precisam e desejam conhecer o sistema de vida do outro, do “branco”. Cabe ao antropólogo facilitar–lhes esse conhecimento, para que, com os óculos de sua cultura, possam enxergar o sistema de dominação que ameaça a comunidade, os mecanismos de sujeição, mesmo quando encobertos em relações fraternas, e – mais ainda – o sentido do movimento histórico e a riqueza das múltiplas possibilidades futuras21.
É imperioso desvelar essa realidade fantasmagórica que nos confunde para que possamos compreender as raízes de nossos problemas. A superação desta sociabilidade em crise requer muita organização e luta, não existe outro caminho possível. Temos que enfrentar a realidade. No entanto, enfrentamento não é apenas o imediatamente sensível da ruptura abrupta com a ordem vigente, mas também o trabalho cotidiano de autogerir a vida e a vida em comunidade. Nesse sentido, os povos indígenas têm muito a nos ensinar. Por mais particular que pareça uma revolta indígena, ela contem em si uma alma universal, pois é contra o capital, é antissistêmica; e por mais universal que pareça essa revolta, ela esconde sob as formas do tradicional, um espírito livre, autodeterminado e concreto, portanto, particular.
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16– Reforma do Estado, administração pública e sociedade civil: alguns apontamentos Julio Cesar Torres
Introdução O objetivo deste capítulo é retomar o debate da Reforma do Estado no Brasil contemporâneo a partir de uma contextualização histórica e crítica, lançando luz aos desafios colocados para a administração pública e as políticas públicas, frente ao avanço das demandas sociais que pressionam o Estado no sentido da garantia dos direitos de cidadania e do aprofundamento do processo de consolidação da democracia no país. Não resta dúvida sobre o papel da sociedade civil nesses processos, sobretudo a atuação e luta dos movimentos sociais, mormente os que empunham bandeiras de crítica à ordem social e ao establishment. Em primeiro lugar, algumas questões devem ser colocadas no sentido de posicionamento tomado no desencadeamento das ideias apresentadas neste texto. Assume–se a ideia de Estado como o resultado da construção histórica da organização política de uma dada sociedade que, por sua vez, vai instituindo todo um arranjo institucional, possibilitando a configuração e a concretização do aparato administrativo que dará suporte à implementação de políticas por parte de governos que se sucedem, ou não, no poder. Dessa forma, já assumimos uma perspectiva de análise dialética do Estado capitalista (IANNI, 1982). A sociedade civil não está ausente dessa relação, contudo, optamos por introduzi–la no debate mais a frente. Dessa concepção teórica é que partimos para a análise acerca do debate que se estabeleceu sobre a Reforma do Estado no Brasil contemporâneo, quando da apresentação do projeto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) em 1995, primeiro ano de mandato do governo Fernando Henrique Cardoso. No sentido de provocação ou de mera colocação de uma indagação, procuramos sugerir a seguinte questão problematizadora: trata–se de uma transformação estrutural e paradigmática da organização política e dos fundamentos do Estado brasileiro, ou, tão somente, uma reforma e reconfiguração do aparato administrativo e do desenho institucional das po-
354 líticas? E, por conseguinte, qual o papel destacado para a sociedade civil nesse processo? Em segundo lugar, também assumimos neste texto a concepção de que tanto o Estado nacional brasileiro quanto sua administração pública são projetos historicamente inacabados. Esclarecendo melhor, pensamos um Estado nacional propriamente dito no Brasil o processo de tentativa de sua consolidação a partir dos anos de 1930 e, no tocante à institucionalização de uma administração pública, a reforma daspiana (administração pública burocrática) dessa mesma década. Nesse sentido, a que reforma estaríamos efetivamente nos referindo quando o debate sobre uma suposta crise do Estado, e o questionamento sobre seu papel, ganham força nos anos oitenta do século XX no Brasil? Como decorrência dessa constatação de crise, é apresentada à sociedade brasileira um projeto nacional de Reforma do Estado na perspectiva de instituição de uma administração pública gerencial. Pensar em reformar o aparato administrativo de uma instituição social, no caso, o Estado, é diferente de se transformar socialmente a forma como se organiza politicamente a sociedade. Essa discussão é importante, embora não seja o objetivo deste trabalho, pois os pilares éticos e morais, políticos e ideológicos que fundamentam uma concepção de Estado não estavam, e nem estão presentes no centro do debate contemporâneo sobre a Reforma do Estado brasileiro. Reformar ou transformar as estruturas de poder e de decisão? “Modernizar” a administração pública ou organizar o Estado nacional sob novas bases? Eis questões de fundo que deveriam, de fato, contextualizar os debates sobre o sentido colocado pelos diversos projetos e propostas de reformas econômicas, administrativas e/ou políticas brasileiras. No entanto, nossa discussão será recortada na proposta de Reforma do Estado apresentado pelo extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado em 1995, sob a liderança de seu maior formulador e idealista, Luiz Carlos Bresser Pereira. E sem a pretensão de esboçar todo o panorama histórico e os fatos mais recentes dessa discussão, pretendemos contextualizar esse debate a partir de colocações críticas, tentando contribuir para a desconstrução ideológica de um projeto que desqualifica a história de luta da classe trabalhadora e coloca em xeque a conquista e garantia dos direitos sociais das classes sociais historicamente exploradas. Um marco recente importante para a institucionalização das políticas públicas e do Estado no país foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, que não somente instituiu a seguridade social e um campo vasto de direitos sociais, mas também, de alguma forma, rediscutiu o pacto
355 federativo, sugerindo uma democratização da gestão pública e a participação da sociedade civil nos três níveis de governo, formalizando os direitos sociais básicos e o correspondente dever do Estado com relação às políticas sociais. Mas essa Constituição, como veremos, será duramente criticada no projeto de Reforma. A crescente vulnerabilidade social de grande parcela da população, as demandas sociais historicamente reprimidas, a fragmentação, o baixo nível de cobertura e a falência do modelo clássico de proteção social brasileiro, o processo de consolidação da democracia e a universalização dos direitos sociais, todos esses fatores constituem o pano de fundo para a discussão da Reforma do Estado e da administração pública. Contudo, são questões relegadas a um segundo plano, ao elegerem a administração pública gerencial e o público não–estatal como elementos fundantes do projeto da Reforma. Ademais, a privatização de empresas estatais e a publicização dos serviços sociais, por meio das organizações sociais, viriam coroar um projeto liberal de modernização do Estado capitalista brasileiro.
Para uma contextualização da reforma do Estado no Brasil A partir da formulação das bases norteadoras do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), os ideais da social democracia brasileira, com fortes traços de liberalismo, puderam ser claramente identificados pelas defesas teóricas e ideológicas de seu principal formulador, Luiz Carlos Bresser Pereira, numa pletora de textos, principalmente em Bresser Pereira (1995, 1996, 1997a, 1997b), Bresser Pereira e Spink (1998) e Bresser Pereira e Grau (1999). Então ministro do já extinto MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, órgão especialmente constituído no início do primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995– 1998), teria como principal incumbência empreender um projeto nacional que pudesse viabilizar a formulação e a implementação de um novo modelo de organização estatal, visando a uma administração pública gerencial para o aparelhamento administrativo do Estado brasileiro. Embora tal Plano Diretor incluísse demasiado rol de reformulações dos paradigmas de organização da administração pública brasileira, inclusive quanto à estabilidade dos servidores públicos e planos de carreira do funcionalismo, aqui nos interessa o papel destacado à sociedade civil, principalmente via organizações sociais, nas estratégias de atuação do Estado a partir dos anos 1990, sobretudo no que diz respeito aos serviços sociais. Quando pensamos em organizações sociais, estamos falando de formas de
356 organização e intervenção que diferem dos movimentos sociais historicamente constituídos. São organização que, apesar de não serem nem estatais, nem visarem ao lucro, são instituições de direito privado e que se submetem a uma legislação específica de instituição, funcionamento e controle social. A defesa dessas organizações é intensa no projeto de Reforma do Estado: Por meio do reforço das organizações não–estatais produtoras de serviços sociais, como escolas, universidades, centros de pesquisa, hospitais, museus, orquestras sinfônicas, abre–se uma oportunidade para a mudança do perfil do Estado: em vez de um Estado social–burocrático que contrata diretamente professores, médicos e assistentes sociais para realizar de forma monopolista e ineficiente os serviços sociais e científicos, ou de um Estado neoliberal que se pretende mínimo e renúncia a suas responsabilidades sociais, um Estado social–liberal – que por sua vez proteja os direitos sociais ao financiar as organizações públicas não–estatais – que defendem direitos ou prestam serviços de educação, saúde, cultura, assistência social – e seja mais eficiente ao introduzir a competição e a flexibilização na provisão desses serviços. Um Estado que, além de social e liberal, seja mais democrático, pelo fato de suas atividades submeterem–se diretamente ao controle social. (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1998, p. 17)
Como contraponto aos ideais apontados por Bresser Pereira e Grau (1999), Diniz (1997) já nos apontava outro diagnóstico da crise do Estado brasileiro e a necessidade do estabelecimento de um novo paradigma: a questão da governabilidade. Trazemos essa questão, aqui, pois o grande fundamento para se pensar essa proposta de reforma no/do governo FHC era, justamente, a crise fiscal e de financiamento do Estado, e a ineficácia das políticas públicas: O diagnóstico da crise do Estado extrapola, portanto, as questões ligadas ao poder decisório concentrado nas agências governamentais, envolvendo ainda, e sobretudo, a capacidade de gerar adesão e garantir sustentabilidade política às decisões. Como os pontos de estrangulamento consistem, em grande parte, na falta de viabilidade da implementa ção, esta dimensão assume importância central. (p. 195)
Essa crise do Estado brasileiro deve ser entendida, também, pela ótica de um relativo aprofundamento da defasagem na relação historicamente constituída entre Estado e sociedade, somando–se a isso, ainda, a ineficácia do poder público na gestão política dos problemas estruturais brasileiros. Assim, a crise do Estado brasileiro e a necessidade de uma agenda pública de reformas podem ser caracterizadas, em um primeiro momento, sobretudo como uma crise de governabilidade:
357 Dessa forma, apontando a ingovernabilidade do país como um dos principais desafios da atualidade brasileira, o diagnóstico dominante enfatizaria os efeitos perversos da democratização crescente da ordem social e política. Explosão de demandas, saturação da agenda, excesso de pressões desencadeadas pelo aumento acelerado de participação, expansão desordenada do quadro partidário, prevalência de uma dinâmica de proliferação e fragmentação da estrutura partidária, indisciplina do Congresso, desequilíbrio entre a capacidade de resposta do governo e o poder de pressão da sociedade seriam os aspectos mais destacados pela maioria dos enfoques. (DINIZ, 1997, p. 180)
Para que houvesse uma massificação dos direitos sociais, especialmente no que se refere ao capítulo da Constituição Federal que define e institui a seguridade social no Brasil, o quadro político brasileiro pós–1988 encontrava–se estagnado sob o ponto de vista da capacidade de implementação de políticas públicas, sobretudo uma forte crise econômica e fiscal. Vivia–se, já no início da década de 1990, o dualismo da hiperatividade da cúpula governamental em contraposição à falência executiva do Estado, no entendimento dos formuladores do projeto de Reforma. E seria nessa ideia de falência executiva e de gerenciamento das políticas e dos programas governamentais que se sustentariam os pilares do projeto de Reforma do Estado no Brasil que, no nosso entendimento, como já sugerimos na introdução deste trabalho, seria tão somente uma proposta de reforma da organização da administração pública por meio da modernização gerencial do arranjo institucional do aparato administrativo burocrático erigido a partir da criação do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público, em 1936, primeira experiência de reforma administrativa do setor público brasileiro. Os resultados do protagonismo daspiano foram sentidos em toda a vida estatal. Com ele, alcançaram–se alguns importantes patamares administrativos: melhoria da qualidade dos funcionários públicos, institucionalização da função orçamentária, simplificação, padronização e aquisição racional de material, montagem de um núcleo estrutural do desenvolvimento econômico e social, depois grandemente expandido, com o consequente estabelecimento de uma série de órgãos reguladores. Deu–se também o despertar do “interesse pelo estudo das ciências administrativas, até então consideradas no Brasil como setor de conhecimento contido no direito administrativo” (Wahrlich, 1984: 50–51). Datam daquela fase, além do mais, uma grande reformulação ministerial, com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e do Ministério da Educação e Saúde Pública; a elaboração do primeiro plano de classificação de cargos e a introdução de um sistema de mérito (1936); e a instituição de um órgão central de pessoal, material, orçamento, organização e métodos (o Dasp), para dar execução à reforma. (NOGUEIRA, 1998, p. 95)
358 Esse sentido calcado na ideia de uma reforma gerencial da administração pública brasileira precisa ser contextualizado historicamente. Se assim entendemos, a reforma daspiana, muito presa à concepção da racionalidade burocrática weberiana, também representava, para aquele momento histórico, uma modernização do Estado brasileiro e da condução dos negócios públicos. Uma tentativa incipiente, mas que em muitos casos logrou êxito, de enfrentar por meio da gestão da coisa pública, a gramática política do Brasil – o clientelismo e o insulamento burocrático, como tão bem discutido por Nunes (1997) em estudo clássico da ciência política brasileira. Pautar o funcionamento da máquina administrativa, no bojo do processo de consolidação do Estado nacional, por princípios burocráticos de racionalidade técnica significava, sem sobra de dúvidas, um grande avanço. Nesse ponto que o projeto de Reforma do Estado nos anos de 1990 também peca. Ao colocar em segundo plano o processo histórico de construção do Estado nacional e de instituição de uma administração pública burocrática, como instrumento político de modernização das relações Estado e sociedade, esconde–se do debate as variáveis que realmente estavam em jogo: legitimar, por meio da crítica ao excesso de burocracia, ideologicamente a pauta das privatizações e o deslocamento dos centros decisórios de políticas públicas para agências reguladoras em nome de um maior controle social e democratização da gestão, além de abrir caminho, mais tarde, para o avanço das terceirizações e parcerias público–privadas. Em suma, o que estava em disputa eram as fatias do orçamento público e as oportunidades de investimentos para o capitalismo monopolista globalizado, com garantias estatais, tão importantes para o novo contexto de acumulação num momento de reconfiguração das bases estruturais do capitalismo na transição para o século XXI. Embora não estejamos defendendo, obviamente, uma burocratização da administração pública e da gestão pública, mas apenas atualizando historicamente o debate, é importante destacar, também, as observações de Nunes (1997) a esse respeito: O DASP era um organismo paradoxal, porque combinava insulamento burocrático com tentativas de institucionalização do universalismo de procedimentos. Criado para racionalizar a administração pública e o serviço público, o departamento preocupava–se com o universalismo de procedimentos em assuntos relacionados com a contratação e a promoção dos funcionários públicos. Nesse aspecto o DASP representava a fração moderna dos administradores profissionais, das classes médias e dos militares, tornando–se um agente crucial para a modernização da administração pública. Embora jamais tenha completado sua missão, o
359 DASP deu inúmeros passos positivos para a modernização do aparelho de Estado e para a reforma administrativa. (p. 54, grifos nossos)
Voltando ao contexto dos anos noventa, a agenda do Estado foi tomada por questões que visavam romper com as barreiras burocráticas de ordem institucional, de caráter político, os conflitos históricos do modelo federalista, enfim, superar um arcaico modelo de Estado erigido no nacional desenvolvimentismo de caráter varguista, aprofundado nos períodos posteriores. Estariam mais que justificados por parte dos formuladores do projeto, destarte, os princípios e fundamentos para uma reforma gerencial da administração pública brasileira, travestida, nesse momento, de um projeto amplo de Reforma do Estado. Estabelecia–se, então, para a sociedade brasileira, um complexo paradoxo: processo decisório de política x implementação de políticas públicas. Ainda assim, outros processos corriam paralelamente, mas com fortes influências, no debate mais geral sobre a Reforma do Estado: a questão da descentralização das políticas públicas brasileiras, sobretudo as políticas sociais, como a Educação, Saúde e Assistência Social, alinhada à garantia do controle social inscrito pela Constituição Federal de 1988. Como bem apontou Marcelino (2003), sobre os duvidosos resultados das tentativas de reformas administrativas planejadas e implementadas até hoje no Brasil: A administração pública, desde 1930, traz toda uma característica autocrática e impositiva concentrada nos meios, orientada para instrumentos, métodos e processos. Tanto isso é verdade que os dois processos de reforma administrativa, efetivamente implementados, foram desenvolvidos em períodos autoritários: o Estado Novo de 1937 e o regime militar pós–1964. Assim, o aparelho administrativo do governo, agravado pela herança do regime militar e pelos insucessos dos sucessivos governos civis, permaneceu desarticulado, inflexível e centralizado. (p. 656)
Cumpre–nos ressaltar, também, até mesmo para quem vivenciou esse momento histórico, que muito difícil era o papel de quem se colocava contrário aos fundamentos da Reforma proposta por Bresser Pereira e seus colaboradores. Estávamos quase que todos convencidos, ou simplesmente anestesiados e inertes, perante a avalanche que representava o projeto encabeçado pelo MARE. Mesmo compartilhando posições contrárias, acrescida do combate e da denúncia de diversos setores progressistas e de movimentos sociais, o projeto de Reforma que tomava assento nos espaços de discussão da política brasileira justificava, de certo modo, a premência de uma reforma do setor público no Brasil.
360 A reforma do Estado é um tema amplo. Envolve aspectos políticos – os que se relacionam com a promoção da governabilidade –, econômicos e administrativos – aqueles que visam a aumentar a governança. Dentre as reformas que têm por objetivo aumentar a capacidade de governar – a capacidade efetiva de que o governo dispõe para transformar suas políticas em realidade –, as que primeiro foram iniciadas, ainda nos anos 80, foram aquelas que devolvem saúde e autonomia financeira ao Estado: particularmente o ajuste fiscal, a privatização. Mas igualmente importante é uma reforma administrativa que torne o serviço público mais coerente com o capitalismo contemporâneo, que permita aos governos corrigir falhas de mercado sem incorrer em falhas maiores. Esse tipo de reforma vem recebendo crescente atenção nos anos 90 (BRESSER PEREIRA; SPINK, 1998, p. 24).
Aqui devemos distinguir as diversas formas que assumem a reforma do setor público em cada país. Ao mesmo tempo em que o contexto mundial primava por uma ampla Reforma do Estado, para usar os jargões da época, sustentada pela constatação da falência das políticas fiscais e a crise paradigmática e estrutural do Welfare State, o liberalismo brasileiro de passado agrário–exportador e escravocrata, travestido de social democracia, imporia nesse processo uma tônica que privilegiava a reforma gerencial da administração pública. Contudo, muito desse ideal trazia um sentido mais amplo de rediscussão do papel do Estado e resgate do conceito de res publica. Não que essa reforma fosse ou se coloca ainda como desnecessária. Mas importante apontar que essa concepção puramente reformista impregnada de sentidos supostamente modernizadores do setor público provoca um verdadeiro deslocamento do debate sobre pensarmos, efetivamente, o Estado brasileiro e sua consequente responsabilização na universalização dos direitos de cidadania, se concebermos a acepção liberal de cidadania descrita em Marshall (1967). Propor um projeto de Reforma pelo viés simplesmente administrativo e/ou gerencial pressupõe a superação dos problemas estruturais e de formação histórica do Estado brasileiro. De que maneira pode–se conceber uma administração pública gerencial orientada para o cidadão (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999) se, historicamente, encontramos no Brasil um Estado de cunho patrimonialista, concebido sob a égide do insulamento burocrático de viés clientelista e que não se funda no cidadão? No contexto latino–americano, o caso brasileiro é ilustrativo do processo de extenuação do Estado como fator de contenção de uma sociedade civil que se expandiu aceleradamente no decorrer das décadas de 70 e 80 e adquiriu crescente densidade organizacional. Por essa razão, o descompasso entre Estado e sociedade deve ser situado no cerne da pre-
361 sente crise. O hiato entre uma institucionalidade estatal rígida, dotada de fraco potencial de incorporação política, e uma estrutura social cada vez mais complexa e diferenciada exacerbou as tensões associadas ao processo de modernização. Instaurou–se um sistema multifacetado e multipolar de representação de interesses, através do qual a sociedade extravasou do arcabouço institucional vigente, implodindo o antigo padrão de controle corporativo do Estado sobre ela. Combinando formatos corporativos, clientelistas e pluralistas, ou ainda estilos predatórios e universalistas de interação de atores, esse sistema expressaria um profundo processo de reordenamento social, que ainda não esgotou suas potencialidades. Entretanto, algumas tendências podem ser identificadas. Entre estas, sobressai o obsoletismo da matriz estatista–concentradora, ao lado da atualidade de um padrão mais descentralizado e flexível de ação estatal. […] A prioridade atribuída aos programas de estabilização econômica e o acirramento dos conflitos em torno da distribuição de recursos escassos acabaram por descaracterizar importantes itens da agenda pública, sobretudo aqueles relacionados com as reformas sociais. (DINIZ, 1997, p. 178–179)
Nesse contexto, a Reforma do Estado no Brasil deve também ser encarada sob outra perspectiva, mais ampla, e deveria ter incorporado, de fato, a sociedade civil (e não “o público não–estatal”) como protagonista das transformações efetivamente concretas para uma modernização não somente administrativa ou gerencial, mas de (re)fundação do caráter público do Estado brasileiro. Caso contrário, não é difícil cair no argumento de outros formuladores/defensores do projeto de Reforma, que resgatam, inclusive, princípios do liberalismo econômico do século XVIII: “o objetivo da reforma do Estado é construir instituições que dêem poder ao aparelho do Estado para fazer o que deve fazer e o impeçam de fazer o que não deve fazer”. (PRZEWORSKI, 1998, p. 39) Portanto, muito mais necessário e premente seria ressaltarmos o fortalecimento das instituições democráticas nesse processo de Reforma, sobretudo aquelas onde a sociedade civil toma assento com capacidade efetiva de interferir nas decisões públicas. A Reforma do Estado não se limita à reforma gerencial do aparelho de Estado, mas, sim, pressupõe um reordenamento normativo e político–administrativo, o revigoramento da cultura cívica e da virtude política (PUTNAM, 1996), uma rediscussão do pacto federativo, a real incorporação da exclusão social na agenda pública, enfim, um novo contrato social para o Estado–nação brasileiro: “[…] o que se vê agora é a instituição estado–nação em crise e essa crise tende a mudar os parâmetros básicos que orientavam o comportamento dos atores, tanto na esfera nacional quanto na internacional. (MARTINS, 1998, p. 37)
362 Impõe–se um repensar o Estado, e não simplesmente reformá–lo sob prismas gerenciais. Nesse sentido, dedicamos a próxima seção a uma discussão sobre a importância de a sociedade civil ter sido e/ou ser protagonista do processo de refundação do Estado nacional brasileiro.
Sociedade civil ou o público não–estatal? Colocado como protagonista no projeto de Reforma do Estado encabeçado por Luiz Carlos Bresser Pereira na liderança do MARE, o assim denominado público não–estatal assume contornos de sociedade civil diante da conjuntura de redefinição do papel do Estado e de legitimação de uma plataforma política de reforma da administração pública, transitando de um paradigma burocrático para gerencial. Nas palavras de Bresser Pereira e Grau (1999, p. 16–17, grifos nossos): O setor produtivo não–estatal é também conhecido por “terceiro setor”, “setor não–governamental” ou “setor sem fins lucrativos”. Por outro lado, o espaço público não–estatal é também o espaço da democracia participativa ou direta, ou seja, é relativo à participação cidadã nos assuntos públicos. Neste trabalho se utilizará a expressão “público não–estatal”, que define com maior precisão do que se trata: são organizações ou formas de controle “públicas” porque voltadas ao interesse geral; são “não–estatais” porque não fazem parte do aparato do Estado, seja por não utilizarem servidores públicos, seja por não coincidirem com os agentes políticos tradicionais. A expressão “terceiro setor” pode considerar–se também adequada na medida em que sugere uma terceira forma de propriedade entre a privada e a estatal, mas se limita ao não–estatal enquanto produção, não incluindo o não–estatal enquanto controle. A expressão “não–governamental” é anglicismo que reflete uma confusão entre Estado e governo; finalmente, a expressão “sem fins lucrativos” carece de limites porque as organizações corporativas também não têm fins lucrativos, sem que por isso sejam necessariamente públicas. O que é estatal é, em princípio, público. O que é público pode não ser estatal, se não faz parte do aparato do Estado.
Complementando essa ideia, e indicando um dos pilares que sustentariam o projeto de Reforma do Estado, afirmam, ainda, que: Para viabilizar o desenvolvimento de círculos virtuosos entre Estado, mercado e sociedade é preciso hoje revisar os modos de definir e realizar os interesses públicos. Colocar–se em termos do público não–estatal vai nessa direção, insinuando que a sociedade “civil” não é equivalente ao público, assim como o Estado não o esgota, mas que é precisamente na ruptura dessa dicotomia que se pode encontrar uma das maiores po-
363 tencialidades para a mudança social. (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999, p. 20, grifos nossos)
Como contraponto da noção de sociedade civil apontada por Bresser Pereira e Grau (1999) destacada acima, elegemos como nosso referencial teórico as categorias desenvolvidas em Gramsci (1975; 1978). Nas palavras de Portelli (1977, p. 65), “[…] a hegemonia gramscista é a primazia da sociedade civil sobre a sociedade política”. O contexto de protagonismo das massas que caracterizava os anos do pós–guerra revelava, para o pensador, a insuficiência do Estado–força, apontando o curso da história ocidental para uma concepção hegemônica que deslocava o centro político para o terreno da sociedade civil. Conforme descrito por Nogueira (2001, p. 121), […] a sociedade civil é acima de tudo o terreno no qual uma classe pode pretender–se em Estado, superando sua condição de portadora de interesses econômico–corporativos e adquirindo uma nova “capacidade ético–política” através da transformação progressiva de sua própria consciência e de sua própria inserção societal.
Partindo dessa concepção do pensamento gramsciano, ao nos depararmos, na contemporaneidade, com um modo capitalista de produção e de divisão social do trabalho caracterizados por uma profunda fragmentação da sociedade, no contexto da Reforma do Estado, a sociedade civil gramsciana poderia ser um ponto de unificação desse tipo de sociedade hoje altamente desarticulada, representando um ideal de fortalecimento do interesse público e dos valores democráticos, constituidora de hegemonias, capaz de controlar e direcionar as ações governamentais, além de poder assumir um papel preponderante no campo da contestação política. Um ponto importante dessa discussão, ao menos no que diz respeito às políticas públicas brasileiras no pós–1988, quando da promulgação da Constituição Federal, seria se poderíamos admitir a novidade da participação da sociedade civil no processo decisório e de implementação das políticas como sendo verdadeiramente a constituição de uma esfera pública que fosse capaz de rearticular a noção de espaço público. Ao se incorporar o controle social nos processos decisórios do Estado brasileiro, tivemos de fato o fortalecimento da sociedade civil na acepção gramsciana de uma teoria ampliada de Estado? (GRAMSCI, 1978) As ideias difundidas no Brasil por Bresser Pereira e seus colaboradores, em diversos ensaios, como destacamos, vão ao encontro da constituição de uma esfera pública “não–estatal”, o que dominou e tem dominado grande parte da discussão teórica sobre a Reforma do Estado no Brasil contemporâneo. O fortalecimento desse “público não–estatal” como ins-
364 trumento de redefinição do papel do Estado, e sua rearticulação com a sociedade, é colocada como diretriz central; para essa corrente do pensamento político, a sociedade civil estaria situada num espaço intermediário entre o Estado e o mercado: Em outras palavras, estamos supondo a existência de quatro esferas ou formas de propriedade relevantes no capitalismo contemporâneo: a propriedade pública estatal, a pública não–estatal, a corporativa e a privada. A pública estatal detém o poder de Estado e/ou é subordinada ao aparato do Estado; a pública não–estatal está voltada para o interesse público, não tem fins lucrativos, ainda que regida pelo direito privado; a corporativa também não tem fins lucrativos, mas está orientada para defender os interesses de um grupo ou corporação; a privada, finalmente, está voltada para o lucro ou o consumo privado. (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999, p. 17)
Nesse sentido, a discussão tem sido pautada por um intenso processo de despolitização da política. Ao encararmos, no contexto da Reforma do Estado no Brasil, a sociedade civil apenas como instrumento de eficácia e melhoria gerencial de programas governamentais, talvez estejamos jogando fora as melhores faculdades que a sociedade civil gramsciana poderia sugerir. Na trajetória brasileira, caracterizada pela égide da modernização conservadora (LAHUERTA, 1989), as grandes mudanças vão sendo implementadas sem grandes transformações na estrutura social, nas práticas sociais e na acomodação das forças políticas. Considerar a redefinição do espaço público no Brasil apenas pelo incremento da participação cidadã por meio do controle social, e, ainda, na qualidade de público não–estatal prestador de serviços sociais, é abandonar de forma nem um pouco desinteressada o protagonismo da sociedade civil como base de transformações, de fato, na relação Estado e sociedade. Para além da visibilidade pública apontada por Arendt (1991), defendemos que a sociedade civil deva sobrepor uma visão reducionista de desenvolvimento de ações e atendimento de demandas públicas e fiscalização de governos, pois, ao resumi–la a um recurso gerencial, estamos instituindo um amplo processo de desresponsabilização do Estado perante a questão social. Nesse contexto, assinala Nogueira (2001, p. 122) que: Somos protagonistas, no Brasil, de um processo no qual o fortalecimento da sociedade civil coincidiu, em boa medida, com a progressiva generalização de um clima de “despolitização”. Creio estar nessa equação a origem, digamos assim, do problema da disjunção entre o Estado e a sociedade civil.
365 O sentimento generalizado de que no Brasil o Estado não mudou, nem tampouco as práticas nos aparatos estatais, aprofunda um sentimento de falência da política como mecanismo de superação dos problemas coletivos, dando cada vez mais suporte à constatação de uma esfera pública praticamente ausente na história da formação econômica, política e social brasileira. Nesse sentido, para pensar a sociedade civil, e seu protagonismo no projeto de Reforma do Estado, deve–se superar a barreira da noção do público não–estatal como recurso gerencial, ou como mero prestador de um rol de serviços públicos. Ademais, a sociedade civil, como contraponto da sociedade política materializada na força do Estado, ainda não encontrou lugar no projeto de Reforma do Estado brasileiro, em nenhum dos períodos históricos onde se pôde vivenciar algum simulacro de reforma administrativa.
À guisa de conclusão No intuito de fecharmos as questões discutidas no texto, inicialmente, lançamos luz à percepção que o próprio idealizador do projeto de Reforma do Estado, vinte anos depois, possui sobre aquele momento de formulação, exposição dos motivos e justificação das necessidades da Reforma. Indagado em que momento, exatamente, surgira a ideia da Reforma, responde Bresser Pereira em entrevista concedida a Leonardo Queiroz Leite: Na hora que o presidente me convidou para o cargo, eu já comecei a pensar nela. Eu havia lido, uns dois anos atrás, o livro de Osborne e Gaebler, Reinventando o governo, e havia achado muito interessante. Não tinha teoria nenhuma, mas tinha uma história das coisas que estavam acontecendo na administração pública norte–americana que me pareciam boas, que faziam toda a lógica, segundo minha visão. Havia outra coisa importante que esqueci de dizer. Desde os anos 1980 eu já tinha clara a ideia da organização social. Contar com organizações mais flexíveis, sem administradores públicos concursados estáveis ou quase estáveis, nas áreas em que não havia poder de Estado envolvido, seria muito bom; implicaria um grande ganho de eficiência. […] Creio que fundações públicas de direito privado, Decreto–Lei nº 200, de 1967, me haviam de alguma forma inspirado a ideia. Eu fui para o governo [FHC] com as ideias do Reinventando o governo e da organização social (que não tinha esse nome), mas eu só completei as minhas ideias, só consegui montar o meu modelo da Reforma, de qual deve ser a organização do Estado moderno, quando eu decidi viajar para conhecer melhor o sistema americano. Mas, por sorte, soube que o Osborne estava em Brasília e o convidei para almoçar (foi a única vez que o vi na vida). Aí eu disse que estava interessado em ir aos EUA e ele me disse que acha-
366 va melhor que eu fosse à Grã–Bretanha ou à Nova Zelândia. (LEITE, 2014, p. 1055–1056)
Interessante termos esse relato claro e sintético de Bresser Pereira em relação à forma como a Reforma do Estado no Brasil foi sendo pensada e construída, política e teoricamente. Mais adiante, conforme descrito em Leite (2014), Bresser Pereira, após uma visita à Grã–Bretanha, retorna ao Brasil e inicia o esboço do Plano Diretor para a Reforma do Aparelho de Estado (BRASIL, 1995). Ao mesmo tempo em que elaborava o Plano Diretor, Bresser Pereira escrevia um paper com o modelo da Reforma, publicado no início de 1996, na Revista do Serviço Público, intitulado “Da administração pública burocrática à gerencial”. Nesse modelo, era esboçada a ideia das atividades exclusivas e não exclusivas do Estado, base para a fundamentação de outros pilares do projeto de Reforma. A reforma da administração pública que o governo Fernando Henrique Cardoso está propondo desde 1995 poderá ser conhecida no futuro como a segunda reforma administrativa no Brasil. Ou a terceira, se considerarmos que a reforma de 1967 merece esse nome, apesar de ter sido afinal revertida. A primeira reforma foi a burocrática, de 1936. A reforma de 1967 foi um ensaio de descentralização e de desburocratização. A atual reforma está apoiada na proposta de administração pública gerencial, como uma resposta à grande crise do Estado dos anos 80 e à globalização da economia – dois fenômenos que estão impondo, em todo o mundo, a redefinição das funções do Estado e da sua burocracia. (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 1)
Além de reafirmar aqui os pressupostos já discutidos anteriormente, o idealizador e principal formulador do projeto de Reforma define um sentido quase que universal da necessidade de se rediscutir o papel do Estado e a organização de seu aparato administrativo. Ao impor a Reforma do Estado como um fenômeno geral e mundial, no contexto da forte ideologia da globalização daquele momento, parece–nos simples supor que não haveria outra opção ao Brasil senão, mesmo com opiniões contrárias, aderir plenamente ao ideário da Reforma que tomava a agenda. Bresser Pereira também tece muitas críticas à forma como a administração pública e seus princípios estão organizados na Constituição Federal de 1988. No mesmo paper, após uma breve exposição sobre as reformas administrativas no Brasil, afirma de forma contundente que o texto constitucional significa uma volta aos anos 1950 e 1930, portanto, um retrocesso. Ao invés do ajuste e da reforma, o país, sob a égide de uma coalizão política conservadora no Congresso – o Centrão – mergulhou em 1988 e
367 1989 em uma política populista e patrimonialista […]. O capítulo da administração pública da Constituição de 1988 será o resultado de todas essas forças contraditórias. De um lado é uma reação ao populismo e ao fisiologismo que recrudescem com o advento da democracia. Por isso a Constituição irá sacramentar os princípios de uma administração arcaica, burocrática ao extremo. Uma administração pública altamente centralizada, hierárquica e rígida, em que toda a prioridade será dada à administração direta ao invés da indireta. A Constituição de 1988 ignorou completamente as novas orientações da administração pública. Os constituintes e, mais amplamente, a sociedade brasileira revelaram nesse momento uma incrível falta de capacidade de ver o novo. (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 9)
Nesse aspecto, por que não discutir o papel da sociedade civil em Gramsci, em contraposição à sociedade política representada pelo Estado? Ao defender em seu projeto de Reforma uma concepção de sociedade civil como o público não–estatal, despolitizando o debate, o idealizador do projeto e seus principais colaboradores não se atentaram que a falta de virtude cívica (PUTNAM, 1996), e uma história republicana com sucessivas rupturas democráticas, quando o Estado invadia e asfixiava a sociedade civil e os movimentos sociais, talvez fosse um dos grandes obstáculos de enfrentamento do Estado patrimonialista, corporativista, clientelista e inundado pelo insulamento burocrático. Falta nesse debate, também, a discussão do sentido dos princípios da administração pública brasileira inscritos na Carta de 1988, sobretudo no artigo 37 – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Essa crítica rasa dos princípios da administração pública esconde que eles não tratam somente da forma como se organiza o aparato administrativo, ou o arranjo institucional que dará suporte às políticas governamentais. Tratam, sobretudo, de princípios que regem os fundamentos do Estado brasileiro, ancorados nos princípios da res publica. Mais uma vez fica claro que, ao colocar maior ênfase nas questões da superação de uma administração pública burocrática, o projeto de Reforma do Estado brasileiro simplesmente joga para debaixo do tapete, para usarmos uma expressão popular, os problemas estruturais e históricos de formação do nosso Estado nacional. Mais do que isso, até que ponto os fundamentos do projeto de Reforma toca, efetivamente, na superação das gramáticas que regem ao longo de nossa trajetória o modus operandi da política no Brasil? Por fim, Bresser Pereira também descreve no mencionado texto de apresentação do modelo da Reforma o seu entendimento sobre os Setores do Estado, as Formas de Propriedade e de Administração.
368 Denomina de Núcleo Estratégico o Legislativo, o Judiciário, a Presidência e a Cúpula dos Ministérios, sendo formas de propriedade estatal, com tipos de administração burocrática e/ou gerencial. Para um segundo Setor do Estado, Bresser Pereira dá o nome de Atividades Exclusivas, incluindo aqui a Polícia, Regulamentação, Fiscalização, Fomento, Seguridade Social Básica. Nesse caso, a propriedade é estatal e a administração é gerencial. A novidade na proposta está em colocar o público não–estatal como forma de propriedade dos Serviços Não–Exclusivos, como universidades, hospitais, centros de pesquisas e museus, ou seja, as organizações sociais. Por meio do conceito de publicização, os serviços públicos ganhariam supostamente elevados patamares de qualidade por meio do potencial dessas organizações no atendimento das demandas dos cidadãos. Se forem consideradas tais evidências e reconhecidas as vantagens da propriedade pública não–estatal para a ampliação da democracia, é possível esperar que ela constitua a forma por excelência através da qual a sociedade organizará seus serviços sociais e científicos de forma competitiva, com financiamento em parte do Estado e em parte diretamente do setor privado em forma de contribuições ou de pagamentos por serviços prestados. Será a forma através da qual o Estado poderá manter seu caráter social – comprometido com os direitos sociais, a proteção do patrimônio público cultural e ambiental e com o desenvolvimento tecnológico e científico – mas assegurando simultaneamente a eficiência na medida em que induz as entidades públicas não estatais a competir entre si para prestar os serviços à comunidade com financiamento parcial pelo Estado. (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999, p. 35–36)
A quarta forma de propriedade, por meio da privatização de empresas estatais, foi denominada no modelo como PRODUÇÃO PARA O MERCADO. Aqui, a forma de gestão atinge o coroamento máximo da administração gerencial. A partir de elementos centrais sobre a Reforma do Estado no Brasil que fomos priorizando e descrevendo neste breve texto, podemos constatar o que anunciamos no início: esse projeto significa tão somente uma tentativa de se reformar e/ou reconfigurar o aparato administrativo do Estado, com consequências para o desenho institucional das políticas públicas. Essa Reforma não enfrenta as gramáticas da política brasileira, nem tampouco assume a sociedade civil, na perspectiva gramscista, como protagonista do projeto de Reforma do Estado. Despolitiza–se a sociedade civil e os movimentos sociais, e se elege um público não–estatal, de caráter competitivo e produtivista, como organizador social da prestação de serviços públicos – sociais, culturais e científicos.
369 Em suma, uma Reforma que, no mínimo, tenta isolar do debate a complexidade das relações sociais que estruturam e compõem o amálgama de uma sociedade historicamente excluída e explorada pelo capital monopolista, que se utiliza do Estado como parceiro na (re)produção das desigualdades e das contradições de classe.
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17– Crise na Saúde: uma análise marxista da história recente da saúde pública brasileira e como vem sendo precarizada em prol da manutenção do status quo do sistema capitalista. Yuri Barnabé O presente texto tenta explicar como a história recente da saúde pública brasileira passou de grandes conquistas em relação a direitos universais do ser humano até vir a ser expropriada com o início da era neoli beral da política brasileira que vem, sistematicamente, com o apoio da burguesia nacional brasileira, internacional, em retirar nossos direitos e financiar o lucro do privado. Tendo clareza do processo é que se pode tomar consciência de luta em defesa de um direito tão importante como saúde. A saúde vem sofrendo diversos ataques ao seu conceito de direito desde o início do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Ano após ano vivemos ataques à saúde e ao seu conceito de direito que foi duramente conquistado por anos de luta. O presente texto vem para detalhar e dar subsídio para a constante luta por direitos básicos à vida. A ideia de saúde como um direito básico do ser humano à vida vem em conjunto com a proposta de se entender a que todo ser humano tem todo o direito a tudo aquilo que a humanidade construiu de conhecimento. Entende–se que, assim como a saúde, também o direito à moradia, comida, educação, são entendidos pela sociedade à maneira que se entende sociedade. O que nos traz à tona a discussão de como se organiza uma sociedade. Nesse sentido, há de se entender que atualmente nosso modo de produção é um sistema concentrador de riquezas e socializa perdas. A sociedade humana vive atualmente sob a égide de um regime capitalista, excludente e concentrador de renda. O sistema capitalista vive de suas crises cíclicas, gerando aparentes avanços mesclando com retiradas cada vez maiores de direitos em suas crises. É com esse plano de fundo que podemos entender as grandes mudanças que nosso sistema de saúde sofreu da década de 70 até os dias de hoje. Durante o excludente e sanguinário período da ditadura militar brasileira não foi diferente. Saúde não era considerada um direito universal.
372 Acesso à saúde era apenas direito dos trabalhadores que detinham empregos registrados em carteira de trabalho. Aqueles que estivessem à parte dependiam da caridade, como o caso de instituições filantrópicas, na maior parte dos casos as Santas Casas de Misericórdia, ligadas à igreja católica. Porém, em meados da década de 70, auge da repressão, também ocorre o que a burguesia nacional chamou de crise do petróleo que, nada mais foi do que uma das diversas crises cíclicas do capitalismo. Para se manter o lucro houve debandada geral de capital e empregos, deixando milhares de brasileiros sem empregos formais. A consequência imediata para a saúde foi catastrófica, sem emprego formal, sem acesso à saúde. Esse foi o cenário que deu base para um movimento social chamado reforma sanitária, o qual foi composto por diversos setores sociais, de segmentos de profissionais de saúde que detinham uma visão social da saúde, os profissionais sanitaristas, o qual pode destacar como grande exemplo o médico sanitarista Sérgio Arouca, que escreveu o Dilema Preventivista, obra fundamental para a análise de saúde às vistas de uma outra organização social, como de diversos setores da sociedade que foram diretamente afetados pela retirada de direitos. Esse movimento se norteava pelo entendimento de que saúde, mais do que uma análise biologicista de presença ou ausência de doença, entendia que saúde era muito mais do que isso, sendo diretamente afetada pelas condições de moradia, acesso á alimentação, educação. Para completar a noção de saúde, se basearam no conceito descrito anos antes por Asa Cristina Laurel, delimitando saúde como a Determinação social do processo de saúde– doença, que, estabelece o fator social, de como nossa sociedade se organiza, como o sujeito está inserido dentro do processo produtivo determina, em última instância a maneira como o sujeito adoecerá. A reforma sanitária foi um movimento amplo, que trouxe à tona a ideia de totalidade social, de que todos devem ter acesso à saúde. Foi um movimento que encontrou eco com a sociedade que enfrentava com a falta de trabalho e, logo, com a falta de acesso à saúde. Por outro lado, há uma grande indústria médico –hospitalar que desde seu surgimento com a burguesia nacional no ramo de saúde colocou uma grande barreia a todo esse movimento social. Indústria essa que foi financiada por governos anteriores que entregaram o serviço de saúde para instituições privadas que, em última instância, visam o lucro em seu processo. Com as condições objetivas favoráveis, um momento político que trazia uma ideia de abertura política, a Reforma sanitária culminou em 1986 na 8ª Conferência Nacional de saúde, que estabeleceu as bases para
373 o que hoje entendemos com o SUS– Sistema único de Saúde. Estabeleceu os passos que teriam que ser dado para que fosse transformado um sistema de saúde excludente em algo universal. Porém, como é a realidade e que o capital não está em momento de declínio, não houve o avanço esperado anteriormente pelo movimento da reforma sanitária. Há de se entender que a burguesia nacional da saúde não entregaria para o povo o controle de como se estabeleceria a saúde. Ainda, o movimento não teve o fôlego suficiente para disseminar suas ideias de forma suficientemente grande para que houvesse realmente grande apelo popular pela pauta. Desse modo a grande conquista social que o povo brasileiro experimentou nasceu morta. A ideia de um sistema único, universal, gratuito e de qualidade não passou de ideias numa folha de papel. A explicação vai do ponto em que a pauta da indústria médico – hospitalar não retrocedeu. Com eufemismo nas palavras, mantiveram o que hoje vemos como sendo o calcanhar de Aquiles do SUS, a saúde suplementar. O que deveria ser utilizado por breves anos até que o estado pudesse ser capaz de prover saúde gratuita e de qualidade a todos foi, na verdade, utilizado para manter a burguesia nacional da saúde na ativa para que, quando houvesse a possibilidade, voltasse com tudo. Para ser mais claro, deve–se levar em conta o período do governo neoliberal de FHC. FHC foi o responsável por colocar em prática oque tivemos como exemplo a Europa e EUA, em que direitos duramente conquistados foram sistematicamente retirados em prol de se manter os lucros do capital. Especificamente no que se refere a saúde, o governo neoliberal colocou em prática aquilo que a burguesia nacional sempre quis. O desmonte do SUS. Maria Lucia Frizon Rizzoto, em sua tese de doutorado, O banco mundial e as políticas de saúde nos anos 90– Um projeto de desmonte do SUS, evidencia claramente esse processo. Banco Mundial, grande exemplo de detentor e mantenedor do status quo, em meados da década de 90 divulgou uma cartilha de como os países em desenvolvimento deveriam nortear suas políticas públicas de saúde para os anos vindouros. O que inicialmente se parece estranho um banco lidar com questões em saúde se torna mais claro quando analisamos a realidade concreta e vemos que, em contrapartida de financiamento internacional os governos deveriam adotar tais medidas, que, nada mais são uma retirada de direitos em prol de um governo neoliberal ao extremo. Para exemplificar, a cartilha coloca que esses governos deveriam criar mecanismos de produção de filas ao acesso à saúde, copagamento do usuário, que é levado a comprar do privado para tentar ter um acesso
374 mais rápido ao público. Ou ainda, incentivos fiscais ao setor privado. Dessa maneira vimos uma decadência programática e incentivada do SUS em prol da burguesia já não mais nacional, mas sim internacional. Essas estruturas colocadas pela burguesia internacional ao Brasil foi implementada inicialmente pelo governo FHC, quando em meados da década de 90, iniciou com o PSF– Programa de saúde de família, que na aparência foi uma benesse que levou saúde a diversos locais do Brasil, mas que em sua essência é uma maneira de organizar filar de acesso, precarizar a saúde pública financiando o privado através do subfinanciamento do SUS em prol da compra de serviços em saúde do privado, entre outras. Temos, após cerca de 20 anos de Atenção básica, uma saúde pobre para pobre, enquanto o estado financia claramente o privado através de compra de serviços, tem–se cada vez menos financiamento ao público, deixando a grande imensa parte da população servidas de migalhas. Durante os diversos anos do governo também neoliberal do PT, Lula e Dilma, uma cortina de fumaça nesse quesito do desmonte do SUS, mas que foi mantida. Não podemos deixar de fazer a crítica a um governo que na aparência era do povo, porém que em sua essência manteve a retirada dos direitos e, em especial, na saúde, em todo o governo. E, sendo mais intenso após o golpe de estado orquestrado pela burguesia nacional com o apoio e financiamento internacional a favor de uma retirada às claras e agressiva de direitos e, especificamente na saúde, com o atual ministro da saúde, Ricardo Barros que teve sua campanha eleitoral financiado majoritariamente pelos grandes grupos da saúde privada do país. Tem–se às claras essa retirada de direitos quando em uma de suas primeiras entrevistas, o atual ministro da saúde colocar que nem todo direito deve ser considerado universal. Mais, coloca em prática a tentativa de se privatizar aos poucos a saúde pública do Brasil com o programa de saúde privada. Com toda essa conjuntura de retirada extensa de direitos duramente conquistados por muita luta de diversos setores sociais, só nos resta resistir duramente. Resistir, pois nossa consciência de classe nos impõe uma defesa radical à nossa saúde. Nossa saúde que significa uma pequena parte de toda uma gama de todos os nossos direitos. Uma luta não só em defesa do SUS, mas sim para uma saúde pública para além do SUS. Uma saúde que seja efetivamente pública, gratuita, de qualidade e, principalmente, universal.
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18– O rap e as formas elementares da espontaneidade Fátima Cabral* A consciência quer ver a si mesma representada para que possa se reconhecer. Não basta o sofrimento e a vontade que leva à ação. A vida precisa ser representada na arte, na ciência ou em qualquer outro espelho, duplicada na consciência para ter a ‘certeza’, a prova, de que a ação sobre o mundo é justa. (Mauro Iasi)
Introdução Tempos atrás testemunhei fragmentos de um diálogo enquanto entrava em um supermercado no centro da cidade de São Paulo. A funcionária que arrumava as flores na entrada da loja conversava com um homem que costuma pernoitar em frente ao estabelecimento. Dizia ele – mas, por quê, você não gosta de poeta? Ela, enfática: – não, eu gosto é de trabalhador. Esse posicionamento da funcionária não é algo tão extraordinário e revela, entre outras coisas, o distanciamento hoje existente entre o artista e o público, entre uma arte genuinamente humanista e a classe trabalhadora. Ainda que expressado de outra maneira, não é incomum tomar a poesia, a literatura, isto é, a arte e a cultura 1 como experiências separadas da vida, especialmente da vida das classes subalternas, portanto destinadas a quem não precisa se ocupar do trabalho diário, da labuta constante para prover a subsistência. Tal aparência não deixa de revelar aspectos substanciais do processo de produção e mesmo de apreensão da arte, que necessitam de relativo ócio para acontecer, mas seria um erro deduzir que, nesse sentido, a vida produtiva está em contradição com a arte e com a cultura. Ao contrário, não se pode compreender a arte e a cultura senão como resultado de um largo período de trabalho social, como momento expressivo de certo Agradeço a Valéria Pilão e Simone Maria Magalhães que leram a primeira versão deste texto e ofereceram valiosas sugestões que foram, a minha maneira, incorporadas à redação final. 1 Refiro-me aqui a cultura sempre no sentido de criação artística, tomando–a como sugere Terry Eagleton: “um indicador sensível da qualidade da vida social como um todo.” (EAGLETON, 2005, p.37) *
376 contexto sócio-histórico e de justa apreensão do humano em sua relação com o mundo objetivado, o que implica reconhecer que a arte possui uma história e uma relação desigual em relação ao incremento das forças produtivas: ela só surge após certo desenvolvimento e atendimento das necessidades imediatas, “quando existem energias disponíveis para a cultura.” (LUKÁCS, 1920, p.2). É nesse sentido que nos Manuscritos Econômico– Filosóficos Marx diz que o homem, diferentemente dos animais, continua a produzir para além das necessidades imediatas e segundo as leis da beleza. A arte é, pois, reveladora da autoconsciência humana, do ser social, embora não surja como tal na percepção imediata. E assim não sendo, aparece como uma exceção, como algo de menor importância frente a outras exigências da vida social, como fruto de uma classe minoritária, bem–educada, que, por sua vez, dá origem a artistas – pejorativamente tidos como pessoas menos responsáveis – que não precisam se ocupar dos aspectos práticos e imprescindíveis para a existência. Em outros termos, a experiência e vivência estética contínuas não se apresentam como necessidade humana para todas as classes sociais; para o trabalhador responsável, que dispende praticamente todo seu tempo a realizar um trabalho estafante, alienado, parece não haver poesia ou literatura que lhe fale e lhe toque diretamente, e suas necessidades e preocupações não lhe permitem desenvolver um sentido humano que corresponda à riqueza natural e a socialmente produzida. (MARX–ENGELS, 1989) Não obstante, a arte não é algo destinado a uma classe ou grupo, e sim a toda a sociedade, uma vez que qualquer expressão verdadeiramente artística espelha o próprio desenvolvimento social, a complexidade, a tortuosidade e a abundância da vida. No campo do marxismo, a arte e a ciência, cada uma com sua particularidade, são formas superiores de refletir a realidade concreta em sua profundidade e diversidade; superiores porque exigem diversas mediações reflexivas que nos colocam em uma situação de distanciamento em relação ao imediatamente dado, assim, no lugar da aparência caótica e fragmentada do cotidiano vemos refletida, isto é, recriada, a sociedade em sua processualidade histórica, em sua contingência e potencialidades. Sem o trabalho e a elaboração reflexivas da ciência e da arte conheceríamos apenas o aspecto fenomênico da realidade de modo que nossa consciência não avançaria para além da organização dos fatos e dados empíricos e viveríamos ao acaso das contingências, sem a possibilidade de construção de um novo devir. Tanto a experiência da ciência quanto a da arte, cada uma a seu modo, nos apresentam uma dimensão do ser social que não está dada na imediaticidade, portanto, ciência e arte formam um sistema mediatizador para uma consciência mais crítica a respeito do mundo em que vivemos.
377 Assim, se a arte possui importante papel para a autoconsciência do ser social mas não surge como necessidade na consciência imediata, é preciso reconhecer que isso ocorre porque a sociabilidade promovida pelo modo de produção capitalista é hostil a toda e qualquer forma de autoconsciência e de justa apreensão da realidade social. Isto nos leva a questionar qual é a possibilidade de realização e de fruição da atividade artística na contemporaneidade, pois há muito tempo já não surpreende dizer que no capitalismo tudo tende a se transformar em mercadoria, inclusive a arte e a cultura. Se há algo novo nesse processo de mercantilização está mais ligado aos abrangentes programas de Estado e de agências intergovernamentais que passaram a colocar a cultura como central para as estratégias de desenvolvimento2. No Brasil essa política recebeu particular atenção durante os governos do Partido dos Trabalhadores por meio da criação de inúmeros programas que compõem a cena da Economia Criativa, como os Pontos de Cultura, Cultura Viva, Cultura Digital, Ação Griôs, Vale Cultura. Já são numerosos, aliás, os estudos que mostram o desenvolvimento e a expansão do mercado da arte e da cultura como formas de especulação financeira3, a criação e atuação de políticas de estado que facultam diversos patrocínios artísticos com vistas específicas de mercado 4, e pesquisas que discutem o uso da arte e da cultura para a criação de valor no capitalismo avançado5. Frente a mais essa ofensiva do capital, que nesse sentido e, cada vez mais, conta com a participação direta do Estado de caráter neoliberal, a arte e a cultura aparecem como investidas oficiais para se produzir sensibilidades, de modo que é lícito perguntar: ainda há lugar para a produção da arte e de culturas genuinamente livres, portanto, não especulativas no atual estágio de desenvolvimento? Frente ao avanço das políticas URFALINO, Philippe. A invenção da política cultural. Tradução de Fernando Kolleritz. São Paulo: Edições SESC, São Paulo, 2015. WOOD JR. Thomaz; BENDASSOLLI, Pedro F.; KIRSCHBAUM, Charles; PINA E CUNHA, Miguel (coordenadores). Indústrias Criativas no Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 2009. 3 WU, Chin–Tao. Privatização da Cultura. A intervenção corporativa nas artes desde os anos 80. São Paulo: Boitempo Editorial e SESCSP, 2006. QUEMIN, Alain; FIALHO, Ana Leticia; MORAES, Angélica de. O valor da obra de arte. São Paulo: Metalivros, 2014. HARVEY, David. A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura. In: MORAES, Denis (org.) Por uma outra comunicação. Mídia, mundialização e poder. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.139–171. YÚDICE, George. A conveniência da Cultura. Usos da cultura na era global. Tradução Marie–Anne Dremer. 1ª. Reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 4 BENHAMOU, Françoise. A Economia da Cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. CRIBARI, Isabela; REIS, Ana Carla Fonseca [et.al.] Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2009. PAIXÃO, Cleiton Alvaredo. De Vargas a Lula: os (des)usos da política cultural no Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós–Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marilia, junho de 2013. 5 PILÃO, Valéria. As diferentes formas de inserção da cultura no processo de acumulação de capital. A particularidade brasileira. Tese de Doutorado. Programa de Pós–Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília, janeiro de 2017. 2
378 governamentais e paragovernamentais, quais as possibilidades, desafios e impasses para o fazer artístico popular em geral e junto às periferias em particular? A cena cultural conseguirá resistir e se contrapor a esse avanço? A cultura periférica em si mesma é uma forma de resistência? Essa é uma discussão ampla, complexa, de raízes bastante profundas, que nos desafia a diversas reflexões, mas não se esgota facilmente. Aqui não farei mais do que problematizar algumas circunstâncias desse processo em curso. Reconhecendo o rap como uma importante e abrangente forma de manifestação cultural em nossos dias, não só no Brasil, mas também no mundo, pretendo aqui discutir alguns aspectos característicos desse movimento popular, estabelecer certa relação desse fenômeno artístico–cultural com linhas de avanço do ideário neoliberal em curso, linhas essas que têm no indivíduo e na linguagem seu ponto de equilíbrio, isto é, seu caminho ideológico afirmativo. Frente a dimensão heterogênea e fragmentada do movimento, que não pode aqui ser objeto de análise em toda sua extensão, vou me valer de alguns trabalhos que têm sido produzidos como teses acadêmicas, por meio das quais os seus autores, em geral também rappers, mapeiam, pensam e avaliam o ativismo político e cultural dos produtores de rap. É de se esperar que no movimento como um todo, tanto nacional quanto internacional, haja temas e aspectos gerais convergentes, como discriminação racial, pobreza, invisibilidade, violência, carência, etc., situações essas que afetam direta e concretamente a maior parte dos jovens das periferias e não menos aqueles envolvidos com a produção e fruição do rap. Mas não se pode pretender, todavia, que todos e cada um desses jovens ativos no rap possam apreender a dimensão contraditória desse ativismo em meio às estruturas sociais excludentes e sedutores mecanismos de poder estabelecidos. Por isso a escolha de alguns desses personagens que, num esforço de sistematização e ordenamento intelectual, produziram análises sobre as várias facetas do movimento, dando visibilidade à consciência possível desses jovens que se mobilizam, se defendem e denunciam as múltiplas formas de espoliação que diariamente enfrentam nas franjas das metrópoles brasileiras. Para problematizar aspectos e condições desse ativismo cultural dialogarei com outros pesquisadores e pensadores do campo do marxismo, dando seguimento a um necessário e candente debate já em curso, debate em que a arte e a experiência criativa são tomadas como constitutivas do movimento social que incorpora todas as lutas e, nesse particular, como armas contra o processo de banalização e embrutecimento, contra os mecanismos aprisionantes do cotidiano imediato. Vale destacar que no campo do marxismo clássico a arte é uma maneira de apropriação do mundo e de si mesmo, uma dimensão da ne-
379 cessidade humana que orienta os órgãos dos sentidos, ajustando–os para além de sua função prática imediata e rudimentar. Na ausência de contato com as diversas artes nossos sentidos permanecem em sua forma bruta, incapazes tanto de perceber o sentido da beleza visual e sonora quanto de responder humanamente às necessidades e paixões naturais. Como explica Marx nos Manuscritos Econômico–Filosóficos, sem a educação dos sentidos, sem a experiência estética prática, as obras de arte e de cultura permanecem como objetos comerciais especulativos, como meras mercadorias, alienadas e alienantes, inoperantes para o processo de emancipação humana. Desse modo, a educação estética é necessária para todas as classes, em particular para aquelas que se articulam com as lutas sociais emancipadoras, e não menos necessária para o próprio desenvolvimento da arte.
Particularidades do rap como expressão artístico–cultural Nenhum modo de pensamento se torna dominante sem propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos. (David Harvey)
Em um provocativo texto intitulado “Da periferia ao centro: cultura e política em tempos pós–modernos”, Celso Frederico contesta a ideia de vivermos um “vazio cultural”, diagnosticado por uma publicação de grande circulação nacional6, especialmente entre a esquerda. Tal reportagem articula, em três períodos, ciclos econômicos e manifestações culturais. O primeiro ciclo teria se iniciado no período da revolução de 1930, com relevantes intérpretes do Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Caio Prado Jr., Jorge Amado, Graciliano Ramos, Ary Barroso, Dorival Caymmi, entre outros pensadores de diferentes campos da cultura. O segundo ciclo, sempre segundo a publicação analisada por Frederico, iniciado nos anos JK e prolongado até 1968, responderia a um período de desenvolvimento industrial e de modernização, com destaque para o surgimento do cinema novo, do teatro de Arena, do Teatro Oficina e do CPC da UNE, a arquitetura de Oscar Niemeyer, a bossa–nova e o desabrochar da MPB, como ficou conhecida a música produzida por compositores como Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento e, na sequência, o tropicalismo. O terceiro ciclo, vigente até nossos dias, corresponderia ao Revista Carta Capital, fevereiro de 2013.
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380 que a publicação identifica como a de um período de “vazio cultural”. (FREDERICO, 2016) Apontando para diferentes manifestações culturais produzidas fora do centro geográfico das grandes capitais, Frederico contraria esse diagnóstico ressaltando trabalhos e expressões que dão conta da produção de inúmeros e diferentes “sujeitos periféricos”. Tal “explosão cultural nas áreas periféricas” estaria muito bem retratada, ainda segundo Celso Frederico, por Tiarajú D’Andrea, em sua pesquisa acadêmica intitulada “A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo”. Em diálogo com as análises do jovem pesquisador, ele mesmo definido como um “sujeito periférico” ativo, Frederico problematiza de maneira incontornável essa “nova subjetividade” centrada na particularidade periférica, resultante de uma extensa explosão cultural que antagoniza com uma visão de cultura corrente, tida como consensual ou conciliatória, e cuja pujança coloca em xeque a noção de “vazio” cultural. O cerne do problema não é, claro está, se há ou não um “vazio” cultural, mas o lugar dessa cultura periférica no complexo processo de emancipação humana. Produzida nem sempre por sujeitos trabalhadores, mas particularmente direcionada a eles, e em especial aos jovens, essa extensa experiência cultural – saraus, cineclubes, audiovisuais, grafite, hip–hop, poesia e literatura marginais – tende a simular uma aproximação orgânica entre arte e vida, destacando a existência de certa conformidade entre a conduta de vida nas periferias e as expressões culturais que ali se cultivam, conformidade essa supostamente ausente nas demais formas de arte e de cultura centradas na premissa da “arte pela arte”. Não obstante, a organicidade entre a arte e a vida, é bom que se diga, não alcançou expressão clara e consciente nem mesmo em épocas pré–capitalistas (LUKÁCS, 1920), de modo que o foco e a valorização da “cultura periférica” em contraposição à cultura ou arte não periférica – esta última tomada na sua totalidade, portanto, de maneira abstrata, homogênea e, particularmente, inimiga – é bastante problemática. Um problema central foi detectado e analisado por Celso Frederico, que justamente questiona “se a ênfase no particular [“cultura periférica”] é uma passagem enriquecedora para o universal e, portanto, caminho para a emancipação do gênero humano, ou um fechamento, algo semelhante ao ‘obreirismo’ e o ‘corporativismo’ no movimento sindical.” (FREDERICO,2016, p.169). Esse questionamento tem sua razão de ser pois as atividades culturais ou artísticas não podem ser pensadas – produzidas e consumidas – senão a partir da totalidade social, como unidade do real. Tal apreensão de totalidade aqui referida implica tomar centro e periferia em seu movimento dialético e reconhecer que “no capitalismo não existe
381 classe que, por sua posição produtiva, esteja voltada à criação da cultura” (LUKÁCS, 1920, p.2), uma vez que o sistema capitalista inaugura o predomínio da economia, fazendo da vida econômica um fim em si mesmo e não mais instrumento para a vida social. Desse modo, a condição humana e social para a produção da cultura está ela também absorvida por esse processo de coisificação que submete indistintamente todas as classes. Não obstante, os jovens envolvidos com a cultura na periferia, em particular com o movimento hip–hop7, entendem que abandonaram a condição de consumidores passivos e assumiram uma condição ativa de produtores de cultura e defensores de territórios. (SOUSA, 2012, p.99) Tal postura, derivada de uma compreensão frágil de liberdade – liberdade de expressão, de associação, de reunião, legítimas em si mesmas, porém, subprodutos da economia de mercado (HARVEY, 2012) –, é amplamente aceita e difundida por esses jovens, que são assim instados a agir segundo o quadro regulatório da “utopia liberal” (HARVEY, 2012). As ações se dão no seio do movimento hip–hop, reconhecidamente fragmentado e heterogêneo em suas posturas, e rivalizam com outros grupos, igualmente fragmentados, de punks e skinheads; todos esses grupos rivalizam por diferentes causas e territórios, por distinção e reconhecimento em suas comunidades, e em busca de acesso a bens de consumo variados e ascensão social. Tais determinações, ainda que por vezes antagônicas, quando não contraditórias, são orientadas por princípios 8 que, no entendimento de Rafael Sousa “unificou as forças dispersas dos jovens periféricos num fazer cultural auto–gerido” (SOUZA, 2012, p.100) e assentado na “anti–cordialidade”, na adesão a um consumo e produção musical bastante particular, a Hip–hop é uma expressão cultural que reúne três elementos do rap: a música, a dança e o grafite. No léxico do hip–hop a expressão usual é “atitude”. Trata–se de um código de comportamento, um conjunto de posturas recomendadas e policiadas: advertências relacionadas ao crime, bebidas e tráfico de drogas, às mulheres, à lealdade aos “manos”, ao orgulho da raça, à humildade, à virilidade, à fidelidade à periferia, à importância dos estudos para entender melhor a sociedade. Essas e outras posturas de cunho igualmente moral–religioso, são facilmente encontradas nas letras de rap, quando não assumidas no próprio nome do grupo. “Mas eu sigo em frente/ pelo bem sempre uso a minha mente/ e por isso sempre tenho ideias conscientes/ sem pilantrar com ninguém, e sempre na correria/ tenho orgulho de ser preto e fazer parte da família/ correndo sempre pelo bem, sempre pelo certo, sendo correto/ respeitando meus parceiros, mas sendo esperto/ porque amizade que nasce por interesse não dá certo/ aí, JL, é nos na ativa/ salve, salve, pros manos de correria/ e que eles sempre compreendam/ que humildade, respeito, atitude e proceder/ tem que ter pra você sobreviver.” (Família Atitude, apud LOUREIRO, 2015, p.137). Ao analisar as orientações de condutas explicitadas no rap Teresa Caldeira dispara: “Eu argumentaria que a difamação das mulheres (mesmo das negras), bem como o severo julgamento do ‘traidor’ negro, são partes da mesma tendência, a necessidade de policiar as fronteiras de uma comunidade que se mantém unida na base da ‘atitude’ e onde não existe tolerância com as diferenças. Essa prática de policiamento é fácil quando se trata daqueles que são obviamente diferentes, mas torna–se uma tarefa pesada quando é preciso separar aqueles que são ‘iguais, mas nem tanto’”. (CALDEIRA, 2011, p.315) 7 8
382 ponto de se referirem ao rap como “a voz amplificada da periferia” (SOUSA, 2012, p. 99). É por meio da voz – majoritariamente masculina e não raro de cunho machista – amplificada da periferia que o rap tem sido tomado como ferramenta da pedagogia libertária (LOUREIRO, 2015) e elemento formador para muitos jovens que passam a assumir uma postura militante em seus espaços territoriais, postura que se traduz, além da já apontada recusa da cultura do consenso, na negação – contraditória, não obstante – de relações políticas que eventualmente possam interferir na autonomia das ações desses ativistas. Assim, a despeito do discurso libertário que atravessa indistintamente o movimento hip–hop e se traduz fortemente nas letras do rap, há movimentos internos que buscam apoio em nível federal para promover a organização dos rappers, como o Fórum Nacional de Hip– Hop, a Frente Nacional de Hip–Hop e, entre outras, o Instituto Crescer, uma ONG que promove a qualificação profissional e a formação de gestores, que tem entre os parceiros a Fundação Odebrecht, empresas como Microsoft, Petrobrás, Copersucar e Vale. (LOUREIRO, 2015, p.147). Essas empresas, todas de grande valor comercial no mercado nacional e internacional, em parceria com o Estado, operam na lógica neoliberal de rígido controle dos gastos públicos e nesse movimento transferem para as comunidades a responsabilidade de soluções e serviços, flexibilizam os contratos de trabalho, estimulam o serviço voluntário e as indústrias criativas, sem obviamente atuar nas raízes estruturais dos problemas da comunidade. Tais interferências encontram resistências entre muitos jovens, mas não raro são endossadas, quando não promovidas, por rappers muito influentes, como é o caso de MV Bill. Além de CDs, esse rapper já produziu diversos livros que tratam de temas e problemas ligados à comunidade pobre e negra, e em 1999, ao lado de Celso Athayde e com apoio da Rede Globo, fundou a CUFA (Central Única das Favelas), para fomentar a produção cultural de jovens pobres; atualmente essa ONG se faz presente em pelo menos 15 países e em 27 estados brasileiros, com ações guiadas “pela causa da ocupação dos espaços historicamente negados aos negros no Brasil.” (LOUREIRO, 2015, p. 152–153) Antes da CUFA MV Bill e Celso Athayde tentaram criar o Partido Político Negro, o Partido Popular Poder para a Maioria (PPPomar), contando para isso com apoio de artistas como Mano Brown, Rappin Hood e Leci Brandão. De maneira geral, a aproximação de grupos do movimento hip– hop com o governo federal – intensificado durante o governo do Partido dos Trabalhadores e com o apoio de grandes empresas capitalistas – geram discordâncias e atritos, acirram disputas por “empoderamentos” e
383 destaques na cena cultural nacional e regional 9. Assim, a despeito da dimensão do movimento hip–hop e de sua estrutura naturalmente heterogênea, os esforços para a criação de organizações nacionais e de reconhecimento oficial por parte do governo federal realça o caráter contraditório da noção de liberdade e autonomia que atravessa os grupos rappers; as contradições presentes na sociedade são dessa forma apreendidas e vivenciadas num viés politicista10 e incorporadas às práticas do movimento, o que em geral implica em maior responsabilização e individualização, fixação territorial e inserção no sistema que pretendem combater. Não se ignora que, nas origens, o rap é herdeiro de uma “tradição da cultura de luta e resistência que se propagou para o mundo a partir da diáspora africana e imigração latina” (SILVA, 2012, p.42), todavia, no atual contexto do capitalismo, o movimento hip–hop foi fortemente atacado pela institucionalização, de modo que boa parte dele revela uma espécie de pedagogia social voltada para a facilitação de tarefas sociais imediatas, um canal de comunicação de conteúdos carregado de revolta e emotividade de forte apelo moral e religioso, particularmente de caráter evangélico pentecostal. Assim, não é incomum nos depararmos com depoimentos de jovens que foram “salvos” pelo rap, pelo simples fato de terem se inserido em uma estimulante dinâmica autoeducativa no interior dos grupos, o que para uns representa um processo de politização “aberto pelo volume de informações e conhecimentos que esses sujeitos acumularam no contato com essa expressão artística e cultural” (LOUREIRO, 2015, p.187) e, para outros, oportunidade para se afastarem da violência. (SOUSA, 2012). Nota–se que a existência de ações autoeducativas no âmbito do hip–hop é um exercício de fundamental importância, que ajuda a suscitar ideias e emoções a respeito dos próprios processos existenciais e do sofrimento do cotidiano. Por ser tão disseminada e valorizada, essa ação autoeducativa foi tomada como elemento organizador da tese do pesquisador e também rapper Braulio Loureiro, que procura apreender como os rappers de diferentes regiões do país se formam e quais seus objetivos. Dessa investigaConsultar a tese de Braulio Loureiro (2015) para maior detalhamento a respeito das tensões que permeiam as ações organizativas que visam construir alguma unidade de propósito e práticas políticas no seio do movimento hip–hop no Brasil. 10 Na análise precisa de Teresa Caldeira, não se trata nem mesmo de busca por cidadania, por ser essa uma noção pertencente à sociedade branca e rica: “seus clamores por justiça têm, por vezes, uma preocupante similaridade com o modo como os comandos do crime organizado usam os mesmos preceitos.” (CALDEIRA, 2011, p. 318). Talvez esteja aí um indício para a denominação de alguns grupos como Comando Verbal, Facção Central, Família Atitude. Esses três grupos estão referidos na tese de Braulio Loureiro (2015), sem evidentemente, estabelecer ali qualquer aproximação com a preocupação apontada por Caldeira. 9
384 ção, de rigoroso cunho etnográfico, se pode entrever que a despeito da positividade para os indivíduos, essa ação não deixa de revelar outras dimensões a respeito da centralidade na particularidade “periférica” já destacada por Celso Frederico. Não se pode ignorar que expressões como “resgate dos nossos” e a palavra de ordem “nós por nós” que circula entre os rappers estão impregnadas, conscientemente ou não, da ideologia neoliberal em vigor no mundo que, repete–se aqui, responsabiliza o indivíduo pela sua sujeição e o incita a encontrar saídas próprias e igualmente individualistas, disfarçadamente “autônomas”. Não é de todo estranho, portanto, que em meio ao movimento rap, quanto mais esses jovens são alcançados pelo discurso empreendedor promovido pelas ONGs e suas ações de “empoderamento”, mais ameaçador às liberdades e capacidades criativas lhes parece todo e qualquer processo de mediação seja de partidos, de sindicatos ou de movimentos sociais mais organizados. O avanço da influência dos organismos paragovernamentais contribui para dificultar que num movimento tão heterogêneo se possa cultivar uma consciência crítica a respeito dos caminhos e ações autoafirmativas, e de reconhecer quem são os inimigos de fato a se combater. Daí que uma abstrata ideia de liberdade e de autonomia na arte 11 são incorporadas e passam a ser perseguidas como um valor central. Esse abstrato ideário de liberdade e autonomia incorporado e naturalizado entre os rappers se manifesta inclusive na recusa da mediação como recurso estético12, pois entendem que no mundo burguês a mediação invariavelmente “funciona como uma barreira em diversos níveis e situações sociais. Desde as regras de etiqueta e educação até o sistema político baseado na democracia representativa.” (D´ANDREA, 2013, p. 122). Sem reconhecer que a própria linguagem é uma mediação e que, portanto, não é razoável pretender um mundo sem mediações, acreditam que ao priorizar uma fala direta e individual, baseada no “eu falo o que eu vivo”13, estão praticando um “realismo” capaz de refletir o que está oculto e invisível na sociedade e, em particular, nas periferias. (D´ANDREA, 2013, p.128) Concretamente, os rappers potencialmente expandem para a Adiante problematizarei, a partir de Lukács, a noção de liberdade e de autonomia para a arte. Tiarajú D´Andrea (2013), ao analisar a obra dos Racionais MC’s, dedica um item ao “fim das mediações”, entendendo esse posicionamento como um ataque às “mediações propostas pelos padrões liberais burgueses vigentes como pensamento hegemônico em nossa sociedade.” (p.122) Ainda segundo o autor, o fim da mediação se expressa inclusive no fato de que o rap não tem propriamente melodia e se vale de pouquíssimo arranjos, justamente porque “nada pode modificar o sentido da narrativa”, que deve priorizar o ponto de vista popular, numa linguagem sem floreios e sem rodeios. 13 Os rappers entendem que todos e cada um tem direito à palavra, a forjar uma narrativa para si mesmo, sem seguir padrões alheios (SILVA, 2012; D´ANDREA, 2013), tanto que é bastante incomum cantar o rap do outro, cada um busca fazer o seu próprio. 11
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385 sociedade o que acontece na periferia, o que é perceptível a seus moradores, mas invisível ao “estranho” do lugar, o que não significa que logrem – ou que queiram, efetivamente – produzir e favorecer a apreensão da origem dos problemas ali tão violentamente aflorados. Como “voz amplificada da periferia” os rappers reagem a essa violência com uma “estética da violência”, como justifica o pesquisador Rafael Sousa (2012) e a fazem ecoar em todos os cantos. Ocorre que a mediação é um momento fundamental tanto para a ciência como para a criação artística, de modo que sua recusa é bastante problemática para a concreta apreensão da realidade; sem esse movimento reflexivo ficamos aderidos à realidade empírica imediata e esta não revela as contradições do sistema nem as fissuras que possibilitam uma crítica radical. Esse é um aspecto que passa desapercebido nas teses aqui examinadas, centradas na descrição das origens e de inúmeras práticas socioculturais que orientam os grupos e as posses 14, na formação heterogênea e contraditória que explora as ações dinâmicas autoeducativas e também em atitudes que negam um processo educativo mais formal. 15 Também é incontornável nessas teses a discussão a respeito da influência de rappers mais célebres ou destacados, vistos como “intelectuais orgânicos” do movimento. Notadamente, a influência dos Racionais MC’s é praticamente unanimidade entre os rappers e mesmo entre outros intelectuais acadêmicos16 que tomam suas músicas e personalidades contraditórias para discutir a força de suas mensagens nas experiências urbanas dos jovens. No conjunto, e em que pese o exaustivo trabalho para articular essa difusa heterogeneidade, as pesquisas aqui examinadas mapeiam a fragmentação de um fenômeno que, em constante mutação, só se deixa apreender pela insistente afirmação em uma identidade “periférica”. Esta, disseminada em “atitudes” que colocam os jovens “numa posição de enclausuramento” (CALDEIRA, 2011, p.317), impede a apreensão da particularidade – de qualquer particularidade – como momento de uma realidade mais complexa. Partindo da correta premissa de que a realidade é contraditória, mas não conseguindo avançar para além dessa constatação, nessas teses os pesquisadores involuntariamente acabam por confirmar os limites dessa narrativa “áspera” que “doa uma explicação coerente de “Posse é o encontro de grupos de rap para realizar ações sociais em suas comunidades. É também a promoção de eventos para apresentar e fazer disputas de novas coreografias de danças; essas disputas decidem, geralmente, quem toma posse da área, isto é, quem se apropria do território pela competência e pela técnica.” (SOUSA, 2012, p. 24) 15 “esse negócio de livro não é postura de rapper” (BASTOS, 2008, apud FREDERICO, 2016, p.174). 16 Por exemplo, Walter Garcia (2003), Maria Rita Khel (2000), Teresa Pires do Rio Caldeira (2011). 14
386 como funciona essa organização social” (D´ANDREA, 2013, p.114) mas é pouco eficaz contra as estruturas sociais, uma narrativa que, de tão direta, confunde–se com a própria realidade que pretendem contestar. Por forjarem representações culturais centradas no “conflito aberto, generalizado e sem tréguas [e sem mediação] no espaço urbano” (SOUSA, 2012, p. 102), os rappers assumem uma rebeldia que, alguns estudiosos garantem, guardam semelhança com o posicionamento dos jovens contestadores da década de 1960 analisados por Herbert Marcuse em sua obra A ideologia da sociedade industrial, semelhança na rejeição às práticas do período e na suspeição das alternativas oferecidas por movimentos e partidos de esquerda. Eclipsando as particularidades que marcam cada um desses momentos de luta – maio de 68 na França, um movimento fundamentalmente estudantil, intelectual, de classe média, heterogêneo na sua composição mas unido em torno de uma causa social comum, capaz de distinguir bem quem era o inimigo, e a heterogeneidade dispersa do hip–hop, movimento da classe mais atingida pelas profundas reestruturações impostas pelo neoliberalismo, reestruturações que fragmenta o próprio movimento nas periferias e o indispõe até mesmo contra o negro pobre que faz serviço de branco17 – o pesquisador orgânico do hip–hop deduz que o principal compromisso do rap é narrar, preferentemente ao vivo, o cotidiano das periferias e “apresentar as contradições da nação, numa ‘crítica certeira da desigualdade social’”. (SOUSA, 2012, p.106). Aqui se revela outro particular distanciamento em relação ao maio de 68, pois seu elemento aglutinador não era uma variação do “agir comunicativo” e a linguagem não figurava como fetiche 18, como acontece no rap. Com uma linguagem própria, moralista, áspera e direta o Mestre de Cerimônia (MC), não raro um sujeito com baixa escolaridade 19 e alto vigor denuncista assume o compromisso de cativar e conscientizar os jovens da periferia, levando–os a ter orgulho da própria condição: afirmação da ne“…ignorante, um rato, tipo capitão do mato/ que não honrava a cor, Judas, espírito fraco/ … e nós deixando pra eles bem mais fácil/ desunindo a quebrada, só conhecendo a lei do aço/ somos a maioria no poder da minoria/ precisamos usar a mente pra não cair em armadilha/ entrar em debate, contra–ataque, choque no sistema/ mostrar que nós tá certo, eles que são o problema.” (Família Atitude. Respeito é pra quem tem. In: CD Mixtape, 2006, apud LOUREIRO, 2015, p.13) 18 Reporto–me a autonomia com que se referem à linguagem: um poder vinculado ao indivíduo, sem qualquer determinação histórica, e de caráter salvacionista: o rap salva, reorienta a condição de existência da periferia, exorta, valoriza o indivíduo, etc. Em outros termos, o discurso é a base de seu ativismo, o que os coloca no campo do “pós–modernismo”. 19 “… os jovens ligados ao hip–hop são exatamente os menos contemplados pela família e escola. Criados por pais ausentes, e a maioria foi excluída da escola nos mais variados estágios e, grande parte, antes de completar o ensino fundamental, apresentando uma trajetória marcada por repetências, evasões esporádicas e retornos, até a exclusão definitiva.” (SILVA, 2012, p.104) “Eu falo da vida, mano … Falo das coisas que vi, de como cresci … é sobre isso que escrevo, não é o que li num livro.” (RTD, 2000, apud SILVA, 2012, p.117–118). 17
387 gritude e de ser um sujeito periférico. Assim, quanto mais polêmica a imagem do rapper, maior o “potencial revolucionário nas vidas de seus seguidores.” (SILVA, 2012, p. 158) O acento no “potencial revolucionário” que o rap representa na vida dos jovens da periferia atravessa todas as teses aqui analisadas, e está também presente no imaginário social em geral quando se fala sobre o assunto, todavia, esse potencial só se sustenta quando se desconsidera ou se subestima o domínio de classes no sistema capitalista. E uma vez que o movimento se alimenta e se constitui a partir de uma pluralidade de sujeitos sociais que desprezam a dimensão ontológica do real em favor da produção de identidades, ganha proeminência uma adesão às energias pseudolibertadoras do discurso religioso, de modo que a “revolução” ou mera solução dos problemas particulares adquire um aspecto messiânico até mesmo para alguns dos teóricos do movimento: A solução para o abandono do pai, pobreza, baixa escolaridade e violência praticada nas periferias das grandes cidades brasileiras estaria no rap. Este teria o potencial de transformar o simples ato de escutar a rima de um MC/rapper num gesto de discordância social, isto é, por meio das letras, o rap seria capaz de produzir uma leitura crítica da sociedade e, posteriormente, uma atividade remunerada diferente daquelas funções normalmente desenvolvidas por pessoas de origem simples e escolaridade parca. (SILVA, 2012, p.115)
Nas análises mais refinadas de Tiarajú D´Andrea e de Braulio Loureiro, em que pese o otimismo no ativismo individual, há relativo reconhecimento sobre os limites do rap frente aos problemas sociais. Em sua discussão a respeito da obra dos Racionais MC’s, o grupo mais emblemático e mais influente entre os rappers, D´Andrea detecta que no que diz respeito às questões relativas à superação das condições de precariedade, violência, discriminação, entre outras mazelas sociais, “as respostas são ao mesmo tempo nulas e múltiplas”: nulas porque as letras já apontam para as “impossibilidades estruturais de superação das contradições sistêmicas. Pura imanência, as letras sugerem que se faça o possível para manter a pura existência do ser humano, se alimentando, não matando e não morrendo.”(D’ANDREA, 2013, p.108) E, entre as possíveis saídas 20, o fazer rap ocupa o primeiro plano, na medida em que este “pacifica e humaniza um contexto de violência”, além de possibilitar algum ganho, especialmente pelo fato de que aos jovens da periferia há um leque considerável de fi nanciamentos públicos, privados ou mistos, que fomentam a prática artístiOutras saídas apontadas: o “crime”, que esbarra em dilemas ético–morais; a “gramática evangélica”, que aponta para uma “comunidade de eleitos” e sugere o combate ao “racionalismo moderno”; a defesa velada da “luta armada”, assim entendida quando se usa como referência Marig hela. (D’ANDREA, 2013, p.109; 112; 116). 20
388 ca com o intuito de pacificar e obter maior controle sobre essa população. (D´ANDREA, 2013, p. 109) 21 Talvez pela proximidade e/ou envolvimento com o objeto de estudos, em geral os pesquisadores aqui referidos privilegiam em suas teses um amplo teor expositivo a respeito do movimento, não se furtando em reconhecer certos limites e contradições nele presentes, mas é como se esses limites e contradições fossem uma consequência natural da diversidade ali explícita e não da fragmentação. Esta é uma condição própria das relações estabelecidas no seio do amplo movimento, relações a partir das quais os rappers tendem a enxergar a fragmentação das camadas subalternas como identidade, isto é, positivamente. Portanto, ainda que o rap seja uma manifestação cultural expressiva, não pode ser entendida e explicada exclusivamente por sua dimensão cultural produtora de identidade, desconsiderando as intersecções econômicas e de poder em que estão envolvidas e que as torna exatamente como são.
Contestação ou Constatação? Os limites da transgressão no rap “território de mano não pode ser compartilhado com qualquer um” (SOUSA, 2012) “ você está entrando no mundo da informação/ autoconhecimento, denúncia e diversão.” (Fim de Semana no Parque, Mano Brown e Edy Rock)
Ao analisar a situação da literatura no Brasil, no início da década de 70, José Paulo Netto destaca aquilo que para ele se constituía em um problema fulcral: o trânsito de uma literatura de contestação para uma literatura de constatação. (NETTO, 1974). Ainda que José Paulo se refira ao campo da literatura por excelência, pelo forte caráter linguístico e informativo presente no rap, acredito poder me valer de sua distinção para aprofundar a apreensão desse fenômeno sociocultural. Segundo o autor marxista, leitor de Lukács, a literatura de contestação – assim como toda obra de arte – “oferece ao fruidor um mundo fechado, com leis próprias, que reenvia, inevitavelmente, ao seu próprio mundo cotidiano.” (NETTO, 1974, p.107). Para Lukács, e consequentemente também para José Paulo Netto, o cotidiano é a fonte e destino da ciência e da arte, pois ambas se reportam ao mundo concreto das relações Além do próprio D´ANDREA, para uma perspectiva mais crítica e ampliada da ação do governo sobre a cultura, focando a dimensão econômica e apaziguadora, consultar PAIXÃO (2013). 21
389 sociais; contudo, enquanto objetivações superiores das relações humanas, a arte – assim como a ciência – retira do cotidiano seu caráter imediato, dissolvendo toda e qualquer aparência naturalizada e coagulada. Em outros termos, a obra artística contesta a realidade dada e refigura o cotidiano para revelar as potencialidades humanas ocultadas pelo fetiche, o que só é possível a partir de um tratamento consequente da vida cotidiana, tratamento esse assentado em uma perspectiva dialética da realidade. Claro está, pois, que o reflexo artístico da realidade objetiva não é algo mecânico, um mero exercício de constatação da situação dada, e tampouco remete a uma utilidade propriamente dita, nem mesmo educativa. Ao mesmo tempo, para o autor húngaro a experiência artístico–cultural emancipadora – catártica – é aquela que nos arranca da imediatez do cotidiano, de modo que quando a ele retornamos o vemos como mais amplo, mais rico e diferenciado; não porque a arte alcance um objetivo imediato, porque atue na concreta estrutura social, modificando–a, mas porque exige de nós um certo grau de abstração, de distanciamento – mediação – em relação a nossa prática ordinária. Tal elevação do homem a respeito de sua própria existência cotidiana tem um efeito de choque, afeta–o no que diz respeito a sua relação e seu comportamento com a vida; mais: o estimula ao reconhecimento e receptividade das diversas obras, não como adorno dispensável, mas como necessidade humana. (LUKÁCS, 1966). Tal efeito catártico é próprio do que José Paulo Netto chama literatura de contestação, porque a catarse afeta o “Homem inteiro”. Já a literatura de constatação se realiza a partir de uma “racionalidade limitada” que aspira a eficiência e “a comunicação da informação se lhe torna essencial: há mesmo uma redução do específico estético à informação. O nível artístico se confunde com o informacional: aquele cresce na razão direta deste.” (NETTO, 1974, p. 110–111) É o que também podemos identificar no ativismo heterogêneo e contraditório do rap, cujo canto áspero reporta ao cotidiano imediato, sem mediações, para “simplesmente alertar, expor a dramática situação a que estão imersos e, com isso, cobram mais participação no jogo democrático” (SOUSA, 2012, p. 50, grifos nossos). Ainda segundo esse pesquisador, […] pode–se dizer que o rap vem sendo utilizado como um importante veículo de comunicação e informação entre os jovens banidos da vivência cívica nos grandes centros urbanos da nação. A linguagem propositadamente cifrada que eles comumente utilizam em suas reuniões tem, entre outros, o objetivo de dificultar que ‘estranhos’, ou seja, que os jovens de classe média, os ‘boys’, os ‘filhinhos de papai’, façam da vida, dos fatos e dos acontecimentos da periferia uma caricatura. Em outras palavras, o dialeto marginal serve para dizer: ‘aí, boy, você não
390 sabe nada sobre a nossa vida.” (SOUSA, 2012, p.205–206, grifos nossos)
Observa–se que mesmo os pesquisadores rappers e sujeitos periféricos aqui tomados como referências porque fazem rap e pensam o rap, não podem se furtar em reconhecer o caráter retórico individualizante deste, o foco na localidade e imediaticidade, o caráter fragmentário e voltado para o consumo22 e, portanto, a desconecção em relação às lutas sociais e projetos alternativos. De maneira geral essas pesquisas evidenciam a franca indisposição com relação aos “tipos estranhos”, indisposição essa que dá forma a uma tática verbal de natureza burocrática, “correlata à publicidade” (NETTO, 1974) e apropriadora de signos do consumo 23, com destaque para a ostentação, mais comumente referido ao funk: “É que o hip– hop é como um polígono. Tem várias faces. A nossa corrente é bem pouco atraente, em comparação com a corrente [ostentação] que eu acredito ser hoje a majoritária.” (Gas–Pa apud LOUREIRO, 2015, p.177). Em síntese, pode–se dizer que os rappers constatam a carência e narram as razões que levam os jovens a reivindicar a posição de um consumidor ativo para também gozar, junto à microestrutura social, do prestígio que esse consumo traz. Fixados na própria particularidade, esses anti–heróis, insatisfeitos com o mundo representado por outrem, julgam agir – e criar – com plena autonomia frente ao que consideram o dirigismo da cultura consensual, mas a rigor não rompem com seu status funcional – denuncista – e não superam o pensamento empírico espontâneo e autorreferente. Pode–se inclusive perguntar se esse ativismo evoca revoluções individuais ou revoluções individualistas, uma vez que a perspectiva de classe, necessária para uma fecunda contestação, está ausente nas mais diferentes vertentes do rap.
Puta aquele mano era foda/só moto nervosa/ só mina da hora/ só roupa da moda/ deu uma pá de blusa pra mim/ naquela fita na butique do Itaim/ mas sem essa de sermão, mano, eu também quero ser assim/ vida de ladrão não é tão ruim.” (Racionais MC’s apud SOUSA, 2012, p.216). Na análise dessa letra o pesquisador assim se manifesta: “Nesse momento eles estão, convencionalmente falando, pouco preocupados com a sociedade em sua perspectiva macro, o que vale e interessa para esses jovens é ser considerado e respeitado na micro–estrutura da sociedade, ou seja, em suas comunidades.” (SOUSA, 2012, p.216) 23 “Um dos mais importantes e decisivos impulsos para o desenvolvimento do movimento rap está, portanto, associado à transformação da tecnologia de recursos analógicos para digitais que ocorreu na passagem dos anos de 1970 para os anos de 1980, nos EUA. Nesse período uma febre de consumo tecnológico domina o sentimento dos segmentos mais abastados dos da sociedade(sic), que, no afã de demonstrar sintonia e desprendimento no uso das novidades eletrônicas, disponibiliza seus toca–discos e seus LP’s para a indústria de reciclagem […]” (SOUSA, 2012, p. 111, grifos nossos) 22
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O difícil diálogo entre arte e vida social A alta cultura não é uma conspiração da classe dirigente; se ela por vezes cumpre essa função cognitiva, também pode, às vezes, frustrá–la. Todavia, obras de arte que parecem as mais inocentes no que diz respeito ao poder, na sua perseverante atenção aos impulsos do coração, podem servir ao poder precisamente por essa razão. (Terry Eagleton, 2005)
De uma maneira geral, a fixação na liberdade de ação e autonomia criativa pode conduzir a equívocos, ou a uma falsa alternativa no campo artístico, como discute Lukács (2010) em seu texto Arte livre ou arte dirigida? Produzido em 1947, esse texto pode ser inspirador também para pensarmos a dicotomia criada em torno de uma engajada cultura periférica e uma cultura tida como consensual, que supostamente traz as marcas do mercado e da lógica capitalista. A primeira falsa alternativa a que Lukács se refere diz que a tarefa exclusiva da arte – e do artista – é tomar posição nas lutas de sua época, contribuindo para a solução de problemas sociais, de problemas de classe, assim, se o artista foge desse engajamento o resultado é uma arte que se encerra numa torre de marfim, alheia à sociedade e à vida cotidiana, que nos coloca diante da “arte pela arte”. A segunda alternativa, igualmente falsa segundo Lukács, defende que a arte deve ser autônoma, desvinculada de qualquer relação com os problemas da história e do cotidiano imediato; neste caso, o artista deve agir independentemente em relação a qualquer circunstância econômica, política ou ideológica, a qualquer moral, de modo que sua subjetividade, totalmente livre, totalmente afetiva, comande o seu fazer artístico. De acordo com o autor húngaro, as duas premissas são falsas e restritivas como alternativas para se pensar e entender o fazer e o fruir artístico. São restritivas porque por mais hostil que o capitalismo seja à arte e à cultura – e, de fato, jamais existiu sistema mais prejudicial à criação artística(LUKÁCS, 2010) –, existe um “campo de ação” para o artista, uma liberdade à subjetividade artística que inclusive “pode ser bastante grande.”(LUKÁCS, 2010, p.276) A total regulamentação só se efetiva, segundo o autor, no âmbito das indústrias voltadas para a produção de entretenimentos e de mercadorias destinadas a fomentar o processo de acumulação, a exemplo do que ocorre em Hollywood e, acrescento, nas indústrias fonográficas. Nesse tipo de relação, o capitalista é quem define o que pode ou não ser dito ou criado. Por sua vez, o artista está no mundo e, desse modo, tem que se haver com a estrutura econômica dada e orien-
392 tar–se por “acordos”, sem que isso necessariamente signifique abdicar de sua autonomia: Todo escritor avisado sabe perfeitamente qual jornal, qual revista, qual editora é capaz de publicar este ou aquele de seus escritos; e – sejamos sinceros! – essa ‘possibilidade’, em muitos casos, influi de modo mais ou menos confesso sobre a escolha do assunto e até mesmo sobre a redação da obra. E não estamos falando dos casos, que estão longe de ser raros, nos quais esses acordos explícitos ou tácitos desviam certos artistas dos caminhos da arte para leva–los à produção de massa convencional, grosseira ou ‘superior’.” (LUKÁCS, 2010, p. 277)
Lukács insiste, pois, que para a personalidade artística genuína, mesmo no capitalismo existe um “campo de ação” que permite a criação autônoma, as escolhas artísticas orientadas por uma subjetividade consciente, em detrimento dos instintos. Esse “campo de ação” ultrapassa os limites das duas falsas alternativas mais disseminadas. No caso da primeira alternativa, voltada para a valorização de uma noção político–ideológica de “arte engajada”, não raro se respalda, equivocadamente, com a evocação que Lukács faz do artista como alguém que deve estabelecer uma relação viva e fecunda com a realidade social, como alguém que toma posição frente aos acontecimentos, as lutas e as tendências do seu tempo; entretanto, de acordo com o autor húngaro, apreender as tendências de seu tempo implica não absolutizar os fatores alienantes do cotidiano imediato, isto é, não tomar o imediato como uma fatalidade. Portanto, tomar partido nas lutas de seu tempo não significa produzir uma arte “engajada” ou “militante”, uma vez que esse tipo de arte invariavelmente é resultado de uma revolta interior em face aos problemas e revela franca sujeição à realidade imediata, contingente. O realismo crítico que o autor defende pressupõe, antes, uma apreensão mediada da realidade, uma elevação frente aos problemas da vida ordinária, de modo a apreender o seu movimento, seu devir. No caso da segunda alternativa, que reivindica a autonomia de criação como um problema específico da arte, o esforço para se desvincular das situações sociais concretas conduz a um fechamento em direção à interioridade do artista com vistas ao desencadeamento de seus instintos – que dá origem ao que eu considero uma estética do instinto – e isso pode inclusive significar a renúncia às possibilidades de exploração de novas formas de representação, pois estas se encontrariam penetradas [mediadas] pelo “invencível prosaísmo do capitalismo”(LUKÁCS, 2010, p.275). Desse modo, o “campo de ação” e de liberdade para o artista acaba por se reduzir a uma
393 espécie de “centro criativo interior” 24 onde ele elabora sua percepção de mundo e de onde lança um protesto desesperado. Tal noção de liberdade, para o autor marxista, é “abstrata, formal e negativa”, pois apenas quer impedir interferências na “soberania pessoal” do artista. Nesse caso, destaca Lukács, “a arte moderna renunciou à conquista da realidade objetiva em troca da liberdade subjetiva.” E continua: Aparentemente, na imaginação subjetiva, o fechamento em si mesmo, a recusa radical do mundo exterior capitalista é o gesto mais revolucionário possível diante de um mundo exterior absurdo e contrário à arte. […] [Entretanto] quanto mais a revolta é interior, tanto mais ela é abstrata e tanto menos ameaça a existência do capitalismo.” (LUKÁCS, 2010, p. 276)
Paradoxalmente, essas duas alternativas fundem–se em uma síntese e assumem um contorno particular entre os rappers, que valorizam tanto uma postura “militante” do artista e consequentemente uma música “engajada”, como reivindicam total autonomia, se não exatamente em relação às lutas imediatas, frente a todo e qualquer processo mediador que não tenha a cotidianidade periférica e os sujeitos periféricos como centro e como protagonistas. Esse mundo livre e à parte em que se colocam está, necessariamente, permeado de ilusões, pois mais uma vez subestimam o valor de mercado que possui o “exagero da originalidade, da invenção supostamente livre.” Para o pensador húngaro, na arte, quanto mais a individualidade se manifesta, maior pode ser seu valor para o capitalista 25. (LUKÁCS, 2010, p.274) Em certo sentido, como esses jovens não têm a ilusão de que ascenderão via trabalho ou estudo – e nisso não estão completamente equivocados – apostam numa originalidade que os alçará aos palcos com outros tantos rappers. Acontece que essa alternativa também não deixa de ser uma ilusão, pois o sucesso não ocorre espontaneamente, fora das enExpressão frequentemente utilizada por Hélio Oiticica, artista plástico que influenciou a Tropicália e o Grupo Oficina, comandado por José Celso Martinez. Oiticica desenvolveu o conceito de “supras sensorial”, uma sensação semelhante à causada pelas drogas alucinógenas, que levaria o indivíduo à descoberta do que considera ser o centro criativo interior e a despertar a espontaneidade expressiva adormecida. 24
Impossível não lembrar aqui de Romero Britto. Ele nasceu em Recife mas vive em Miami, Estados Unidos. Seu estilo colorido e “alegre” expressa uma arte pop, distante de qualquer informação da estética clássica tradicional e bem próxima da publicidade. Tornou–se mundialmente conhecido depois de criar uma pintura que foi encomendada para uma campanha publicitária da Absolut Vodka. A partir desse sucesso passou a trabalhar para outras empresas transnacionais como a Audi, IMB e Coca Cola, ilustrando as latas de refrigerantes da Pepsi, redesenhou personagens de Walt Disney, fez selos postais para a ONU e para as Olimpíadas de Beijing. É cultuado entre diversas celebridades nacionais e internacionais, entre elas Arnold Schwarzenegger, Madona, Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso. Seus traços gráficos e coloridos estampam xícaras, bolsas, lápis, cadernos e diversos outros produtos que são vendidos em lotes. O valor de sua experiência no campo das artes plásticas é utilizado para estetizar mercadorias. 25
394 grenagens do sistema e, nestas, “nem os ossos dos santos” são poupados. (MARX–ENGELS, 1989, p.59) Não se pode ignorar que no âmbito das chamadas Economia Criativa e Economia da Cultura ocorre franca apropriação da criatividade popular, que canaliza a criatividade, especialmente em áreas mais carentes e periféricas, para a lógica do capital, para a formação de indivíduos empreendedores, criadores de valor. Daí “o interesse do Estado em aprofundar a discussão e legitimar o caráter econômico da produção cultural como uma forma de valorizar os produtos oriundos da diversidade cultural brasileira.” (PAIXÃO, 2015, p. 137) Esses argumentos estão respaldados nos dados apresentados pelo Ministério da Cultura, e podem sem identificados nos diversos documentos disponíveis, em especial na “Coletânea de artigos, entrevista e discursos dos ministros da Cultura durante o período de 2003 a 2010” (ALMEIDA; ALBERNAZ; SIQUEIRA, 2013). Sobre a “centralidade da cultura para o desenvolvimento”, escreve Juca Ferreira, Nós, brasileiros, estamos neste momento histórico, diante de grandes desafios. Para a continuidade e consolidação do atual ciclo de crescimento do país, para que o nosso desenvolvimento se torne duradouro e sustentável, é incontornável o aprimoramento de nossas estratégias de desenvolvimento. Em especial, de nossa capacidade de planejar e definir prioridades para o desenvolvimento nacional nas atuais condições de mundialização da economia. (FERREIRA, 2013, p.71)
Portanto, “a explosão cultural nas áreas periféricas” não é um movimento espontâneo da juventude, do mesmo modo que não existe “vazio cultural” num sistema capitalista nivelador que transforma as forças sociais em forças privadas de particulares (MARX–ENGELS, 1989). O que existe é um amplo movimento de redefinição da arte em favor de fontes de prazer e de gratificações que pretendem “colonizar a realidade por formas visuais e espaciais, que é também a mercantilização dessa mesma realidade intensamente colonizada, numa escala mundial.” (JAMESON, 2001, p. 88). Nesse processo de escala mundial, a centralidade da linguagem e da identidade é parte constitutiva na composição de “descrições proféticas” (JAMESON, 2001) de fim da história, fim da arte, fim das classes, fim dos intelectuais, fim das mediações, e acolhimento de outras descrições fragmentadoras: “a explosão dos locais da arte” (LIPOVETSKY e SERROY, 2015), o indivíduo, o discurso, as identidades, a periferia, o centro, a sociedade do espetáculo. Portanto, se é pela linguagem “áspera” e ensimesmada que o rap quer revelar e contestar a sociedade que tem a violência em suas entranhas, qual a real dimensão política de tal movimento? Evidentemente, o movimento rap não quer e não pode apresentar um projeto
395 societal de emancipação; não quer porque está concentrado na construção de uma identidade periférica e não pode porque não entende que essa particularidade periférica só existe em relação com a totalidade social, perspectiva imprescindível para qualquer projeto crítico e emancipador. Portanto, ao denunciar e reforçar o localismo e suas especificidades, o movimento não só se isola como também reforça a fragmentação no âmbito da sociedade como um todo, o que significa operar em favor da lógica neoliberal. Sem vínculos e mediações com outros movimentos e forças progressistas da sociedade, o movimento permanece enclausurado e mantido sob vigilância, uma situação de isolamento que também marca a classe mais abastada, objeto de denúncia entre os rappers. A esse respeito, indaga Teresa Caldeira: Quando os dois lados do muro veem a si mesmos como encerrados e autossuficientes, quais são as chances da democratização? Quais são as chances de construção de uma cidade menos desigual e segregada, e de um espaço público democrático, quando se evoca a intolerância para construir as comunidades em ambos os lados do muro? (CALDEIRA, 2011, p.319)
Impossível desviar de tais indagações quando se objetiva contestar uma sociedade excludente, que abandona, explora, discrimina e violenta. Impossível não tomar partido. E toda arte realista, diz Lukács, é partidária, pois exige uma consciente tomada de posição. Mas a arte, por si mesma não altera as estruturas sociais, não tem que responder à necessidade prático–fática do cotidiano imediato, porém, deve permitir, regularmente, suspender a espontaneidade funcional da vida cotidiana e fazer reconhecer a série crescente de mediações existentes entre o pensamento e a práti ca. Em outros termos, a imediaticidade não é um dado ontológico, mas uma função da consciência teórica. A arte, como a ciência, embora por caminhos distintos, exige de cada um de nós uma elaboração teórica, reflexiva, isto é, exige a apreensão abstrata do processo de mediação que configura a estrutura ontológica da realidade e desvenda as estruturas da experiência cotidiana, de modo a favorecer o contato enriquecedor com o gênero. (LUKÁCS, 1966)
Referências ALMEIDA, Armando; ALBERNAZ, Maria Beatriz; SIQUEIRA, Maurício (Orgs.) Cultura pela palavra: coletâneas de artigos, entrevistas e discursos dos ministros da Cultura 2003–2010. Rio de Janeiro: Versal, 2013.
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A revolução piorista em marcha Manifesto do IBEC Os últimos acontecimentos na política nacional elevaram os níveis de obscuridade do horizonte próximo. Ao negar–se a julgar a chapa Dilma–Temer, liderado por Gilmar Mendes, o amigo dileto do féretro politico presidencial, o TSE estreitou o campo das possibilidades da politica democrática de levar a bom termo o projeto contrarrevolucionário dos negócios, do piorismo. Novos desdobramentos vão se multiplicando como exigência desse processo, ampliando o âmbito de ação do Estado de Exceção. Sempre que isso ocorrer nesta república, se deve olhar para as torres do castelo, onde tremula irredenta e indômita a bandeira da contrarrevolução de 1964, fielmente cultuada e defendida pelas forças armadas nacionais. A mídia, TV à frente, por sua vez(especialmente a Globo)funciona como o “farol dos piratas”, sinalizando e congregando o golpismo nacional. Permaneceríamos na superfície da luta politica, entre suas intrigas e paixões, não fosse a descoberta de Herman Benjamin, juiz relator do voto sobre o recurso do PSDB contra a chapa vencedora nas eleições presidenciais. O voto de Benjamin atesta aquilo que sempre afirmou a nossa crítica materialista: a reprodução política de nosso capitalismo da miséria é irmã xifópaga da sua reprodução econômica, de modo a ser aquela movida pelos interesses explícitos (extraoficiais e clandestinos para o povo) de um verdadeiro banco de negócios de curto, médio e longo prazo, onde os grupos econômicos mais poderosos aplicam seus capitais (porém, antes de tudo, os subtraídos dos contratos com o estado) nos políticos mais prometedores do espectro político do campo do capital. Agora ficamos sabendo que a república herdaria esse padrão ancestral colonial. Operações obscuras para a esmagadora maioria dos pobres mortais são elas translúcidas para as elites operadoras da política e economia, em concubinato explícito e perpétuo. Assim, todas as etapas da revolução na contrarrevolução, a começar da guinada piorista da presidente, até o seu impedimento, emanaram da percepção do campo dos negócios xifópagos. Hoje reina a barafunda no campo majoritário. Densa neblina obscurece a marcha da sua revolução, sob controle exclusivo do capital. A aventura irresponsável conducente ao golpe parlamentar encontra–se prisi-
400 oneira do buraco sem fundo dos contratos do banco de negócios da política. A ditadura democrática do capital – seu topo capitalista, sua fração jurídico–estatal, sua maioria congressual – está afoita para fazer passar a sua regressão salvacionista – as reformas trabalhista, previdenciária e politica. Evidenciou–se, porém, um detalhe vital: o PSDB – partido deflagrador da continuidade da revolução piorista iniciada pela própria presidente – contrariamente ao que supunha, não seria o seu operador, personificado agora por Temer e o PMDB. A formidável descoberta do banco da reprodução política, não oficial e clandestino para a população brasileira, porém mercado aberto às cúpulas dirigentes do estado, da política e do empresariado (nacional, associado e, se supõe estrangeiro) pulveriza as banalidades de liberais sociais e abismais, que giram em torno de alcançar–se um suposto ”projeto nacional”, ou a possibilidade da marcha iterativa resultar em transformação socioeconômica melhorista à revelia dos desígnios do capital. A forma histórica da reprodução social capitalista no Brasil é essa, apresentando o capitalismo da miséria xifopagia inquestionável entre os mundos do capital e da politica, de forma que o projeto nacional do capi tal para o Brasil é esse mesmo. Ele existe e por mais que o campo político contrarrevolucionário do capital o deteste, ele governa os nossos destinos. Não somos o país da corrupção endêmica, cronicamente adoentado, como reza a mitologia conservadora, mas o país onde o capital rege com força, constância e permanência a sua reprodução social e peleja com toda a sua força e determinação para prosseguir a sua revolução na contrarrevolução. É ele que faz girar o parafuso sem fim da nossa história, que agora surpreendentemente retorna ao seu ponto de origem. A revolução brasileira que venha a derrotar a contrarrevolução nascida em 1964 e que ponha freio e ponto final nesta imprevista e assustadora revolução piorista, revolução abismal, regressista, neocolonial, antidemocrática, realizadora desta ditadura democrática do capital que nos desgoverna e empurra pirambeira abaixo, só pode ser uma revolução anti–capital. Não há como reformar o capitalismo da miséria. Embora sua forma histórica consolidada seja essa, ela é passível, contudo, de ser aprofundada pelo piorismo, alternando–se entre espasmos pioristas sucessivos, em resposta a arrancadas melhoristas, sempre sob o comando do parafuso sem fim do capital. Alcançar um novo capitalismo, sonho liberal ancestral da revolução na contrarrevolução, recrudesce neste momento. Para seus teóricos, estaríamos no limiar de um novo capitalismo, saindo do capitalismo ”’de
401 compadrio’ para um capitalismo efetivo, de competição” (OESP, 18/06/2017, H6). Pinochet também acreditava nesse milagre neoliberal, ao lado de seus brilhantes economistas friedmanianos, com suas fantásticas fórmulas abracadabrantes forjadas na ditadura da contrarrevolução chilena após impor aos trabalhadores a força de sua repressão disciplinadora, salvadora e genocida. O melhorismo fracassou em seu milagre metafísico. Execrado pelas forças pioristas, que supõem serem elas as únicas a realizar uma verdadeira revolução, exclusivamente, no piorismo neoliberal. Depois das barbaridades produzidas por essa teologia em todo o mundo, é difícil imaginar que a confraria de seus gênios brasileiros ainda sonhe com realizar esse feito. O futuro que nos reserva este início do sec. XXI não é somente o do retrocesso neocolonial deslanchando na marcha forçada da guerra contra os trabalhadores, mas também a liquidação de biomas vitais para a existência da nação, tal como o do complexo amazônico e, nele, do cerrado. A regressão piorista não é somente civilizacional, mas também ameaça de regressão geológica, de retorno ao pleistoceno, a reinstalar o deserto em boa parte do território nacional. A real dimensão da regressão é a da destruição nacional, da catástrofe nacional, econômica, social, científico– tecnológica e ambiental. A manutenção e continuidade do controle do capital sobre a reprodução social é caso de urgente insegurança nacional. Da revolução democrática do campo anticapital se exige desmontar as relações favorecedoras do capital financeiro criadas pela contrarrevolução em sua terceira fase, a da abertura democrática, e retomar, com centralidade no controle dos trabalhadores, o controle sobre os capitais financeiro e produtivo, assim como sobre o estado, de modo a criar uma dinâmica emancipadora do complexo de relações determinantes da plena soberania econômica e politica da nação. A democracia daí resultante será, então, necessariamente, impulsada contra o próprio capital, a exprimir a emancipação dos trabalhadores. Tal programa se realizaria por meio de estratégia de desmonte da descivilização piorista por meio de uma verdadeira revolução civilizacional que tenha como centro a satisfação das necessidades republicanas das maiorias trabalhadoras, simultânea ao valor absoluto da proteção ambiental – que imporá novos padrões civilizacionais adequados a essa opção – e, por fim, retoma o veio central da automação – que reconstrua a produção e reprodução material, assim como outras esferas da reprodução social, sem as mazelas socioeconômicas capitalistas. Reconstrução, desse modo, de um novo padrão de desenvolvimento das forças produtivas as mais modernas e adequadas à revolução microeletrônica em curso, sem
402 gerar a tragédia do desemprego estrutural em massa, devastador e descivilizador. Essa revolução, ao gerar o quarto órgão da máquina, impôs ao capital uma nova força produtiva – o órgão de controle – cujo desenvolvimento pleno é impedido pelo capital. Daí a entrada dessa relação na era de sua decadência final, de sua crise estrutural, de catástrofe incontivel a percorrer toda a reprodução social capitalista mundial. Ao campo anticapital da revolução democrática brasileira se exige sabedoria e habilidade para congregar a todos os impactados pelo capital em nossa particular catástrofe capitalista, em um movimento de emancipação das maiorias nacionais. Ela e somente ela poderá realizar as seculares aspirações republicanas dos trabalhadores, limpar o lixo contrarrevolucionário neocolonial e colocar a nação no limiar da plena soberania econômica e politica, conquistando, assim, um patamar civilizacional compatível com a grandeza dos trabalhadores e do povo brasileiro em geral, capaz, portanto, de enfrentar as nossas desgraças nacionais, a miséria e seu colar de horrores: a violência, os preconceitos, a fome e suas sequelas, a doença, o desamparo, a desesperança e apatia, o analfabetismo, a ciência castrada, a escola deseducadora, a universidade antinacional, a estupidez arrogante, genocida, negocista, larápia e boçal que nos governa. Paulo Alves de Lima Filho Coordenador Geral do IBEC São Paulo, 16 de junho de 2017
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Sobre os autores Andrés Ruggeri Antropólogo social de la Universidad de Buenos Aires, Argentina (UBA) y profesor adjunto e investigador en la Universidad Nacional Arturo Jauretche. Es Director desde 2002 del Programa Facultad Abierta, un equipo de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA que apoya, asesora e investiga las empresas y fábricas recuperadas por los trabajadores. Coordina desde 2007 la organización del Encuentro Internacional “La Economía de los Trabajadores”. Es autor y coautor de varios libros especializados en el tema, entre ellos “¿Qué son las empresas recuperadas?” Es también Director de la revista “Autogestión para otra economía". andres.ruggeri@gmail.com
Angélica Lovatto Doutora em Ciência Política pela PUC–SP. Professora do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas e do Programa de Pós–Graduação em Ciências Sociais UNESP/Marília–SP. Realiza estágio de Pós–Doutorado em Ciência Política do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (IESP–UERJ). É líder do grupo de pesquisa do Diretório CNPq “Pensamento Político Brasileiro e Latino–Americano” (Unesp). Autora de A utopia nacionalista de Helio Jaguaribe (São Paulo: Xamã: 2010). É pesquisadora da Comissão da Verdade da ADUNESP. É pesquisadora do projeto Memórias Reveladas (Arquivo Nacional). É editora–assistente da Revista Novos Rumos.
Angelo Diogo Mazin Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assentado no Projeto de Assentamento Luiz Beltrame de Castro. Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Geografia pela UNESP/IPPRI.
Bruna Mendes de Vasconcellos Possui graduação em Engenharia de Alimentos pela Universidade Estadual de Campinas (2005), é Mestra em Política Científica e Tecnológica (PCT) pela Universidade Estadual de Campinas (2011), tem um Master em Gênero e Política de Igualdade pela Universidade de Valencia (Espanha), e doutora também em PCT na UNICAMP. Possui uma especialização na área de Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina. Atuou
404 como pesquisadora–extensionista na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unicamp (ITCP/Unicamp).
Daniel Lopes Faggiano Daniel Lopes Faggiano: Indigenista, bacharel em Direito e mestre em Ciências Sociais pela PUC–SP. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC). danielfgg@gmail.com
Fabiana de Cássia Rodrigues Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001), mestrado em História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2013). Atualmente é diretoria do Centro de Estudos em Educação e Sociedade, pesquisadora – Consejo Latino–Americano de Ciencias Sociales – Argentina, pesquisador da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e professora da Universidade Estadual de Campinas. Faz parte do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC).
Fátima Cabral Possui graduação em Ciencias Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1986), mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992) e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2000). Atualmente é professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Membro Pesquisador junto aos grupos de Pesquisa Cultura e Política do Mundo do Trabalho (desde 1998), Cinema e Literatura (desde 2003), Intelectuais, Esquerdas e Movimentos Sociais (desde 2012), todos com registro no Diretório de Pesquisa do CNPq.
Flávio Higuchi Hirao Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAU–USP, possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Arquiteto associado do Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (USINA).
Henrique Tahan Novaes Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – Marília. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação. Faz parte do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC), do grupo de Pesquisa Or-
405 ganizações e Democracia (UNESP–Marília) e do GAPI–UNICAMP. Coordenou o curso Pós Médio em Agroecologia (Edital 19/2014 – CNPq), parceria UNESP Marília, ETEC Paraguaçu Paulista, Escola de Educação Popular Rosa Luxemburg, Turma Ana Primavesi. Coordenador do Curso de Aperfeiçoamento itinerante “Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico” (5 Edições) e do Mini Curso Questão Agrária Cooperação e Agroecologia (3 edições). hetanov@gmail.com
João Henrique Souza Pires Mestre e Doutorando em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp/Marília. Possui Pós Graduado nível especialização em Tecnologia Social pela Universidade Federal da Integração Latino Americana – UNILA (2012) e em Gestão Publica pela Universidade Federal do Tocantins (2012). Membro da equipe da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da UFPR entre (2010–2013), membro convidado da coordenação pedagógica do Instituto Técnico de Educação e Pesquisa da Reforma Agrária – ITEPA entre (2010–2013). Coordenador Pedagógico do Curso Técnico em Agroecologia desenvolvido pela parceria Unesp/Centro Paula Souza. Membro do grupo de pesquisa do CNPq Organização e Demo da Unesp/Marília e do grupo de pesquisa Desenvolvimento local, sustentabilidade e contabilidade da UFPR.
José Eduardo Baravelli
Possui graduação, mestrado e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, além de graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Realizou estágio de pesquisa entre Setembro de 2012 e Julho de 2013 no Hunter College/CUNY e na GSAPP/Columbia University com apoio da Capes e da Comissão Fulbright do Brasil. É arquiteto associado do Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (USINA) e pesquisador–colaborador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (LabHab). Tem experiência em projeto de edificações e infra–estrutura urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: tecnologia da arquitetura, habitação social e assentamentos informais.
Julio Cesar Torres Possui graduação em Administração Pública e Licenciatura em Pedagogia. Especialização em Gerência de Cidades, Mestrado e Doutorado em Socio-
406 logia. Professor do Departamento de Educação da UNESP/São José do Rio Preto e do Programa de Pós–Graduação em Educação da UNESP/Marília. Líder do Grupo de Pesquisa em “História e Política Educacional Brasileira” (CNPq).
Kaya Lazarini Mestra pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU–USP/2014), na área de Habitat. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/2008) e especialização na mesma Universidade em Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina (UNICAMP/2011). Atualmente é integrante da USINA – centro de trabalhos para o ambiente habitado, entidade sem fins lucrativos que presta assessoria técnica a movimentos populares na área de habitação popular e reforma urbana.
Lais Fraga É Professora Doutora da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e dos Programas de Pós– Graduação Interdisciplinar em Ciências humanas e Sociais (CAPES 3) e em Política Científica e Tecnológica (CAPES 6), ambos da Unicamp. É pesquisadora do Grupo de Análise de Pesquisa de Inovação (GAPI/IG/UNICAMP). Graduada em Engenharia de Alimentos pela Universidade Estadual de Campinas (2003), mestre e doutora em Política Científica e Tecnológica também pela UNICAMP (2007 e 2012). Foi coordenadora (2008–2012) e professora do Curso de Especialização em Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina (Unicamp). Foi formadora da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNICAMP) entre 2004 e 2011.
Leonardo Nakaoka Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. É arquiteto associado do Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (USINA).
Lucelma Braga Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão (2000) e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é docente da Universidade Federal do Maranhão. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Superior, atuando principalmente nos seguintes temas: hegemonia, expansão, trabalho
407 docente, resistência. Doutoranda em Educação pela FE – UNICAMP, com projeto em desenvolvimento no Grupo de Pesquisa História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR) sobre a história da luta em defesa da educação pública no Brasil (1980–1996). Marcelo Augusto Totti Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001), mestrado em Educação Escolar pela Uni versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003) e doutorado em Educação Escolar pela Universidade Estado Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009). Atualmente é professor assistente Doutor lotado junto ao Departamento de Sociologia e Antropologia da FFC/Unesp–Campus de Marília, é líder do grupo de pesquisa Intelectuais, esquerdas e movimentos sociais e pesquisador do grupo de pesquisa em Ensino, Cultura e Ideologia na Educação Básica da Zona Urbana e Rural, atuando principalmente nos seguintes temas:Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, pensamento social e educacional no Brasil.
Marcio dos Santos Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assentado no Projeto de Assentamento Luiz Beltrame de Castro. Graduado em Geografia pela UNESP campus de Presidente Prudente. Mestre em Geografia pela UNESP/IPPRI.
Marcos Del Roio É formado em História e Ciências Sociais pela USP, em nível de bacharelado e licenciatura. Fez o mestrado em Ciência Política no IFCH – UNICAMP e o doutorado em Ciência Política na FFLCH – USP. Conta com curso de Especialização em Política Internacional na Facoltà di Scienze Politiche da Università Statale di Milano. Fez estágio pós doutoral em Política Internacional nessa mesma instituição e depois em Filosofia do Direito na Università di Roma Tre e Filosofia Política na Università Statale di Bologna. Desde 2011 ocupa o cargo de Professor Titular do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP (campus de Marilia), onde pesquisa e orienta principalmente nas áreas de Teoria Política do Socialismo e Política Operária. Conta com diversas publicações em forma de livros, capítulos de livro, artigos e outras, no Brasil e no exterior.
408 Neusa Maria Dal Ri Possui graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade de São Paulo, graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo, mestrado em Educação (pesquisa educacional) pela Universidade Federal de São Carlos, doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1997). Llivre–docência pela Universidade Estadual Paulista (2004). Realizou Pós– doutorado na Universidade do Minho, Portugal. Atualmente é professora adjunto – livre–docente III – da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília, docente do Departamento de Administração e Supervisão Escolar e do Programa de Pós–graduação em Educação. Editora da Revista ORG&DEMO. Pesquisadora PQ do CNPq. Coordenadora do Doutorado Interinstitucional Capes– Dinter – UNESP/IFCE (2013–2017). Coordenadora do Programa de Pós–graduação em Educação da UNESP, FFC, Campus de Marília (2013–2017).
Newton Ferreira da Silva Doutor e mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Marília e bacharel em Ciências Econômicas pela UNESP/Araraquara. Foi professor da disciplina Sociologia no Ensino Médio da rede estadual paulista (2009–2011) e de História Econômica e Economia Política na Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) entre os anos de 2011 e 2012. Entre 2015 e 2016 lecio nou Economia na FATEC–Praia Grande. Atualmente é professor efetivo do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) – Campus Jundiaí. Tem livro, capítulos de livros e artigos publicados. Áreas de pesquisa: desigualdade, miséria, sistemas econômicos, trabalho, alienação, emancipação, desenvolvimento socioeconômico, capitalismo, socialismo, Karl Marx, teoria comunista marxiana, Revolução Cubana, Che Guevara. Mebro do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC).
Paulo Alves de Lima Filho Possui graduação em Economia pela Universidade Amizade dos Povos Patrice Lumumba (1974), mestrado em Economia pela Universidade Amizade dos Povos Patrice Lumumba (1975) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) e pós–doutorado na área de Geopolítica da Energia na UNESP–Marilia. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Crescimento e Desenvolvimento Econômico, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica da economia política, economia política da mundialização, alternativas ao capitalismo da miséria, a especificidade do capitalismo por via colonial e a repro-
409 dução capitalista, a educação e a questão energética. Coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC).
Rogério Fernandes Macedo Graduado em Economia, mestrado e doutorado em Sociologia, todas as etapas cumpridas na Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC). Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e pesquisador do Programa de Pós–graduação em Tecnologia, ambiente e sociedade (UFVJM–TAS).
Roziane Ferreira da Silva Cerqueira Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Mestranda em Sociologia, pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC).
Selma de Fatima Santos Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Assentada no Projeto de Assentamento Luiz Beltrame de Castro. Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Mato Grosso. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP campus de Marília. Doutoranda em Ciências Sociais pela UNESP campus de Marília.
Yuri Barnabé Graduado em Medicina da Faculdade de Medicina de Marília, coordenador científico da Sociedade Científica da Dor–SOCIDOR, Assessor de Intercâmbio do DACA, Professor de Física do Curso Pré–Vestibular do DACA e do Colégio Esquema Único. Possui interesse nas Áreas de: Física Moderna, Medicina e Homeopatia voltada à Medicina.
411 Esperamos que esse livro contribua para o debate político e filosófico sobre a educação. Afirmamos que caso seja infringido qualquer direito autoral, imediatamente, retiraremos a obra da internet. Reafirmamos que é vedada a comercialização deste produto.
Título
Movimentos Sociais e Crises Contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico – vol. 2
Organizadores Henrique Tahan Novaes; Neusa Maria Dal Ri Revisão
Lurdes Lucena
Páginas
409
Formato
A5
1a Edição
Julho de 2017
Navegando Publicações CNPJ – 18274393000197
www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG Brasil