9 a 15 de novembro de 2016 | www.arquisp.org.br
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O drama do casamento de crianças e adolescentes, também no Brasil Relatório da organização Save the Children, divulgado em outubro, chamou a atenção do mundo para uma realidade sobre a qual pouco se fala Nayá Fernandes
nayafernandes@gmail.com
Uma menina de 6 anos foi trocada por uma cabra, arroz e azeite pela própria família no Afeganistão e entregue a um homem 40 anos mais velho do que ela. O fato, confirmado por funcionários do governo daquele país, revela um drama que acontece em muitas outras nações: o casamento infantil. A história foi noticiada pela agência BBC Brasil em seu site. O caso foi relatado à polícia devido às denúncias dos vizinhos, e tanto o homem quanto os pais da criança foram presos. A garotinha está em um abrigo e não sofreu nenhum tipo de violência sexual. Essa, porém, não é a realidade de tantas outras meninas que, inclusive, chegam a morrer após serem obrigadas a se casarem com homens muito mais velhos do que elas. Foi o que aconteceu com Zahra, de 14 anos. O caso ganhou repercussão mundial, pois a menina morreu após a família do marido ter colocado fogo nela. A organização internacional de defesa dos direitos das crianças Save the Children emitiu um comunicado após a morte de Zahra: “É uma situação que parte o coração, e o sofrimento de Zahra ultrapassa o compreensível”, disse a diretora da Save the Children no Afeganistão, Ana Maria Locsin. Campanhas têm sido feitas contra o casamento infantil, mas o impacto ainda não foi capaz de alcançar os objetivos desejados. O tema voltou à tona no Dia Internacional da Menina, em 11 de outubro. A data tem sido celebrada desde 2012 como forma de alertar sobre a necessidade de avançar na proteção das crianças e adolescentes que vivem em situação de extrema pobreza e estão mais vulneráveis a diferentes tipos de violência. Quando o Dia Internacional da Menina foi criado pela Organização das Nações Unidas, recordou-se que a América Latina e o Caribe são as únicas regiões onde as taxas de gravidez na adolescência estavam estagnadas ou aumentaram. Uma em cada cinco crianças nasce de mães adolescentes na região, com idade entre 15 e 19 anos; no Brasil, um em cada cinco nascimentos ocorre com mães com idade entre 10 e 19 anos.
O amargo 102º lugar
“Mas, isso não existe no Brasil!”, po-
deria dizer alguém ao ler as notícias de casamentos de crianças e adolescentes em países africanos como Níger, Mali e Burkina Faso, onde a prática é socialmente difundida. Segundo o relatório divulgado pela Save the Children, o Brasil, apesar de sua renda per capita média alta, ocupa o 102º lugar entre 144 países analisados, sendo que o 1º lugar pertence ao país onde menos ocorrem esses casamentos. De acordo com o relatório, chamado “Até a última menina. Livres para viver, livres para aprender, livres de perigo”, a cada sete segundos uma menina com menos de 15 anos se casa no mundo, a maior parte delas com homens mais velhos. A Suécia foi o país que apresentou o melhor resultado do mundo. Níger, Chade, República Centro-Africana, Mali e Somália estão no fim da lista. “O casamento infantil dá início a um ciclo de desvantagens que nega às meninas os direitos mais básicos de aprender, se desenvolver e ser criança”, afirma a presidente da Save the Children International, Helle Thorning-Schmidt. “Meninas que se casam cedo demais frequentemente não podem ir à escola e estão mais propensas a sofrer violência doméstica, abuso e estupro. Elas engravidam e são expostas a doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV”, alerta. Os resultados desse relatório foram divulgados em várias agências de notícias brasileiras.
Uma pesquisa inovadora
Ela não pensava em se casar tão cedo, mas ficou grávida de Marcos (nome fictício), 20 anos mais velho. Letícia (nome fictício), aos 15 anos, teve que assumir a casa, o filho, a dor de não poder mais estudar, nem trabalhar. E, embora tenha abandonado muitos dos seus sonhos, afirmou que talvez tenha sido melhor assim, afinal, foi bom que o pai tenha assumido o filho que eles tiveram e não deixou que ela fosse uma mãe solteira. O caso, tão frequente no Brasil, aponta um dos motivos mais comuns pelos quais as meninas com menos de 18 anos se casam – formalmente ou não – no país. Foi o que apurou a pesquisa “Ela vai no meu barco”, que surgiu inicialmente da observação dos dados do IBGE e do Unicef, que mostram que o Brasil, em números absolutos, é o quarto país do mundo com maior prevalência de casamento na infância e na adolescência. “Apesar disso, até então não havia sido realizada nenhuma pesquisa aprofundada ou um programa sobre casamento na infância e na adolescência por aqui. Percebemos uma lacuna muito grande e por isso realizamos essa pesquisa”, explicou à reportagem do O SÃO PAULO Tatiana Moura, diretora-executiva do Instituto Promundo, uma organização não governamental
(ONG) que trabalha para construir um mundo livre de violência, envolvendo homens e meninos em parceria com mulheres e meninas. A ONG procurou a Plan International e a Universidade Federal do Pará para colaborar com o trabalho de campo no Maranhão e no Pará. “Para nós da Plan International, foi uma grande oportunidade para entender melhor um fenômeno do qual não se fala muito no Brasil, mas que vê o nosso país ocupando o quarto lugar no mundo em números absolutos de meninas casadas até a idade de 15 anos. Uma situação preocupante, que merecia um aprofundamento com uma pesquisa para entender melhor o fenômeno”, completou Luca Sinesi, diretor-adjunto de Programas na Plan International Brasil.
‘Ela vai no meu barco’
“Ela vai no meu barco” é a única pesquisa sobre casamento na infância e adolescência realizada no Brasil, e foi publicada em setembro de 2015. O título vem da fala de um homem casado em Belém do Pará, referindo-se à expectativa de que meninas casadas sigam as preferências dos seus maridos e as normas dentro do casamento por eles estabelecidas. Simboliza, também, a importância da cultura do rio em Belém. De 2013 até 2015, o Promundo conduziu a pesquisa no Pará e no Maranhão, os dois estados com maior prevalência desses casos, de acordo com o Censo de 2010. O estudo analisa as atitudes e práticas em torno do casamento na infância e adolescência. Tatiana informou que um dos desafios dos pesquisadores foi recrutar participantes em todos os grupos, especialmente os homens. “Tivemos certa dificuldade também em mobilizar para as entrevistas meninas casadas com homens adultos. Algumas alegavam não ter tempo, pois tinham os afazeres domésticos para dar conta e, em alguns casos, tivemos meninas que desmarcaram por medo da reação dos maridos. Em todas as entrevistas com meninas menores de 18 anos casadas com homens adultos, elas tinham de obter a permissão deles para ceder a entrevista.” Luca afirmou que vê o casamento das meninas como consequência de outras questões sociais. “Muitas vezes, elas veem no casamento uma oportunidade de ascensão social ou até de saída de uma situação familiar não satisfatória ou violenta. Mas se elas tivessem acesso efetivo a uma educação de qualidade e claras oportunidades de se desenvolver em autonomia, podendo ser o que elas quisessem, acredito que muitas meninas não casariam tão cedo”, opinou. Ele apontou também um fator muito presente nesses tipos de união, segundo a pesquisa: a violência. “Infelizmente, a
violência é comum nos casamentos de homens mais velhos com meninas. Eles, como provedores, se acham no direito de dispor do corpo e da vida da esposa-menina como acharem melhor”, completou Luca.
Mas casar não é legal?
No Brasil, a idade legal para o casamento é de 18 anos para homens e mulheres; ambos podem se casar aos 16 anos com o consentimento de seus pais ou responsáveis legais. Uma exceção, no entanto, segundo o Código Civil, permite que menores de idade possam se casar com menos de 16 anos, no caso de uma gravidez. E, de acordo com a pesquisa, os casamentos informais envolvendo crianças e adolescentes no Brasil partilham causas e consequências parecidas com casamentos mais formais em outros contextos. Eles estão motivados por uma combinação de fatores individuais e estruturais. A prática do casamento na infância não é o mais frequente entre a população em situação de pobreza nos locais pesquisados. No entanto, a pobreza é um fator presente antes e durante o casamento na vida das meninas que casam com menos de 18 anos. Gravidez ou iniciação sexual são usados para justificar um casamento na infância e adolescência. Um familiar abusivo, condições financeiras precárias, controle e dificuldade na mobilidade na casa de origem e outros fatores motivam as meninas a deixarem a sua casa e se casarem. Maridos muitas vezes têm a palavra final, com diferentes graus de influência vinda dos familiares e das próprias meninas. Os resultados encontrados em São Luís (MA) e Belém (PA) mostram que o casamento de meninas com idades entre 12 e 18 anos com homens adultos é altamente normalizado, a ponto de não ser considerado um problema. “Casamento na infância e na adolescência é tanto uma consequência quanto uma causa de outros problemas. De acordo com os resultados da nossa pesquisa, ele é uma consequência da desigualdade entre homem e mulher, normas sociais, pobreza, inseguridade etc. Além disso, pode causar ou influenciar que as meninas saiam da escola antes de terminarem a educação, limitar a liberdade e colocá -las em situação de violência doméstica”, argumentou Tatiana.
Repercussões
“Recebemos muito interesse na pesquisa por parte do governo, da mídia e da comunidade internacional, mas no contexto local ainda não vemos políticas ou programas para prevenir o casamento na infância e na adolescência no Brasil. Internacionalmente, essa pesquisa já influenciou e mudou a ideia de que casamento infantil acontece somente na Ásia e África. Fomos convidados para falar
num seminário no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Genebra”, disse Tatiana sobre as repercussões de “Ela vai no meu barco”. Sobre o porquê do desconhecimento a respeito do tema, os pesquisadores apontaram a existência de uma prática, na maioria dos casos, informal e vista como consensual, ou seja, o melhor a ser feito diante de um contexto específico. “Mas as consequências são bem semelhantes às de outros países, como gravidez das meninas e, com isso, risco maior de mortalidade e morbidade maternal. A situação do casamento na infância e na adolescência precisa ser melhor conhecida em toda a América Latina e Caribe também”, enfatizou a diretora-executiva do Promundo. “O fenômeno vai definitivamente diminuir quando houver políticas públicas que deem oportunidades concretas de formação, crescimento, liderança e independência a essas meninas”, disse Luca, fazendo um apelo diante da realidade verificada na pesquisa.
Olhos nos olhos
O casamento de crianças e adolescentes que, muito possivelmente, ainda não alcançaram a maturidade e as condições necessárias para dizer um sim consistente diante da proposta de dividir a vida com outra pessoa e formar uma família é uma preocupação que vai além de questões políticas e sociais. Toca na dignidade da pessoa, nesse caso, da menina que não fez uma escolha livre, mas foi obrigada a isso, seja pessoalmente por alguém, seja pelas circunstâncias. A formação e educação para uma sexualidade vivida de maneira madura e responsável, a busca de condições dignas de moradia e educação e o apoio de uma família bem estruturada
são pistas para que esse drama não continue a acontecer no Brasil e em tantos outros lugares do mundo. A Igreja Católica, na Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, do Papa Francisco, recorda no artigo 12 que há, no ser humano, uma inquietação e busca para resolver a solidão que o perturba. “Uma relação direta, quase frontal – olhos nos olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um tu que reflete o amor divino e constitui – como diz um sábio bíblico – o primeiro dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna de apoio. Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, ‘o meu amado é para mim e eu para ele (...) Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim’”. Free images
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