Felizes os que veem além da cor

Page 1

23 a 29 de novembro de 2016 | www.arquisp.org.br

www.arquisp.org.br | 23 a 29 de novembro de 2016

| Reportagem | 13

Felizes os que veem além da cor Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

Muita gente não sabe, mas a palavra negritude foi concebida pelo poeta, político e filósofo senegalês Léopold Sédar Senghor. Foi ele que conseguiu colocar a palavra no ambiente acadêmico internacional, dando-lhe a conotação de redescoberta e reapropriação da cultura africana em contraposição àquela europeia. Léopold era membro da Academia Francesa de Letras, Doutor Honoris Causa em cerca de 20 universidades do mundo inteiro e ganhou mais de 15 prêmios internacionais de poesia. Ele colaborou com o marco do movimento da negritude, com a publicação, em 1932, da revista Légitime Défense por um grupo de estudantes das Antilhas. Ou seja: a negritude, assim como a conhecemos, é um termo existente há apenas 84 anos. Mas, e antes dele? Antes que a palavra negro fosse divulgada, usava-se, e ainda se usam, os mais diferentes apelidos para se referir aos negros, alguns inclusive pejorativos. No Brasil, o Dia da Consciência Negra, celebrado a cada 20 de novembro, foi criado em 2003 e instituído pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data foi escolhida para fazer memória da morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695) e de outros negros e negras que lutaram contra toda forma de escravidão e contribuíram para a construção da história do povo brasileiro. O país demorou a reconhecer que era necessário um dia específico para que todos refletissem sobre o preconceito que ainda destrói a vida de milhões de pessoas apenas porque nasceram com uma cor que, por centenas de anos, foi considerada critério para dignificá-las como inferior. E, embora a abolição da escravatura tenha ocorrido há apenas 128 anos por aqui, há ainda um longo caminho a ser percorrido na superação do racismo.

Raízes da liberdade

Há quem diga que não existe o que se comemorar no dia 20 de novembro, porque esse é um dia de luta. Mas, é preciso comemorar sim. No próximo dia 5 de dezembro, o samba, ritmo autenticamente brasileiro, completará cem anos. A data remete ao primeiro samba oficialmente registrado no país na Biblioteca Nacional: a música “Pelo Telefone”, feita em 1916 por Donga, que se chamava Ernesto Joaquim Maria dos Santos, músico, compositor e violinista brasileiro, também negro. Com a música, a palavra samba apareceu pela primeira vez no selo de um disco de vinil. Ao lado de Pixinguinha, Donga participava de grupos que, na cidade

do Rio de Janeiro (RJ), iriam marcar definitivamente a história do Brasil com o samba, que, mais do que um ritmo musical, tornou-se uma cultura, um modo de viver e de agregar muitos grupos que se identificam com a causa da negritude. Ao lado do samba, os brasileiros teriam muitos outros motivos para agradecer aos negros a contribuição cultural para a construção do país. Antes do incêndio que devastou o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, em dezembro de 2015, o visitante podia perceber, por exemplo, quantas palavras do vocabulário brasileiro têm origem africana. E muito além do “afoxé”, da “birita” ou do “cachimbo”, o negro nos ajudou a compreender o quão importante é o “cafuné” ou o “dengo” no “nenê”. Essas palavras têm origem africana e tantas outras que, provavelmente, nem nos damos conta no dia a dia.

As muitas cores da consciência

Nem todo brasileiro se considera negro. Isso porque, as muitas mis-

O dia 20 de novembro, no Brasil, é uma data para celebrar a Consciência Negra, uma ocasião para a reflexão sobre a inserção do negro na sociedade e suas riquezas culturais turas ao longo dos séculos fizeram com que a população experimentasse uma grande miscigenação. Mas, 57% da população brasileira é negra. Essa porcentagem, porém, não é vista quando se verifica qual a quantidade de negros são profissionais da área da Saúde, Engenharia, Arquitetura, Advocacia ou outros cargos que demandam mais formação acadêmica. A realidade, no entanto, está aos poucos mudando, embora um longo caminho ainda precise ser percorrido. A primeira deputada negra, Antonieta de Barros, o Brasil só teve

em 1934; e a primeira a conquistar o diploma de Engenharia, só em 1940, Enedina Alves Marques. São pouco mais de 80 anos na conta, e, de lá para cá, quantas mulheres e homens negros conseguiram assumir cargos políticos ou burocráticos significativos? No campo da arte, da música e da literatura, os negros têm mais motivos para comemorar. Recentemente, despontou nas casas de cultura, a história de Carolina Maria de Jesus, que nasceu em Minas Gerais no ano de 1914, numa comunidade rural

onde seus pais eram meeiros, ou seja, agricultores que trabalham em propriedades que pertencem a outras pessoas. Moradora da favela do Canindé, na zona Norte de São Paulo, ela trabalhava como catadora e registrava o cotidiano da comunidade em cadernos que encontrava no lixo. Carolina é considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil. O autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu em 1881, antes mesmo da abolição da escravatura, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Ele enfrentou o preconceito por ser negro. Lima Barreto, como ficou conhecido, foi jornalista e escritor e abordava questões de injustiças sociais em suas obras. E talvez pouco se fale sobre figuras negras como a de Machado de Assis. Cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, também nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1839. E, embora muitos estudantes brasileiros tenham lido as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, livro

Tornei-me professora por causa do racismo Luzia Souza, conhecida como Luh, é autora de livros como “O teste do pescoço”, amplamente divulgado e citado no jornal norte-americano The New York Times pela jornalista Vanessa Barbara. O livro também fez parte de um documentário para uma televisão francesa sobre racismo “História Preta - Fatos & Fotos” e “As Últimas Palavras de Jovens Negros”, obra citada pelo jornal espanhol El País. Ela contou ao O SÃO PAULO sua história de luta e superação do racismo por meio da educação.

Meu contato com o racismo foi de fato na escola. Lá, fui xingada de ‘negrinha’ e ‘macaca’, por colegas de sala. Ninguém me defendeu e, apesar de eu não ter compreendido muito bem, me senti maltratada. Em casa, eu perguntei ao meu pai o que significavam aqueles xingamentos, e foi então que ele me sentou na cadeira e explicou que muitas vezes eu sofreria com pessoas que não gostam de gente com a cor da nossa pele, a minha e a dele, porque nós éramos negros, e ele contou-me sobre a escravidão. Minha mãe estava na cozinha lavando louça e quando olhei para ela, foi a primeira vez que eu soube que ela era branca. Até aquele dia, para mim, ela era só a minha mãe e jamais eu havia observado a diferença de cores em casa. Foi uma descoberta dolorida, e eu cresci achando que nossa história de pretos, era só essa, mas papai não me contou quais tipos de preconceito eu sofreria. Hoje, eu sei que nem ele mesmo sabia. Nem a minha mãe branca. Um dos casos que vou contar, que jamais me esquecerei, porque só fui saber que era racismo depois de adulta, sofri com uma professora de ensino primário. Ela me colocava de castigo em pé por qualquer coisa. Em outras, tomada de assalto, sem nunca entender por que, eu estava sendo colocada para fora da sala aos gritos de “Odeio essa negrinha, tira ela daqui!”. Eu, muitas vezes, fui levada para outras salas para assistir aula simplesmente porque ela não me queria naquele dia. Eu fazia desenhos e entregava a ela, como meio de pedir-lhe perdão por qualquer coisa que eu havia feito de mal, porém nada adiantava. Nem ficar quieta sem olhar para os lados resolvia. Eu me sentia mais infeliz que tudo, porque meus pais eram amigos dos pais dela e a conheciam desde que nasceu. O bairro na época era pequeno. Quando nos encontrávamos na rua, ela conversava com meu pai ou minha mãe e me tratava bem. Como acreditariam em mim? Não acreditavam, obviamente. Mas eu fui para a 5ª série. E cresci. Continuamos morando nas mesmas casas e nos esbarrando pelas ruas do bairro, mas eu não podia olhar para ela, cumprimentá-la, nem sentir a saudade que todos sentiam da amada primeira professora. Segui estudando, me sentindo “burra”, odiando ter de ir à escola, sendo uma aluna medíocre, por assim dizer, até que um novo fato aconteceu na minha vida. Sempre apareciam em nosso portão casais querendo que minha mãe “me

desse” para trabalhar em suas casas, ou eu ou minhas irmãs. Meus irmãos começaram a trabalhar muito cedo, porém papai não deixava as meninas trabalharem antes dos 18 anos, para ajudar mamãe nas tarefas domésticas. Um dia, eu teimei para ir com uma família que morava próximo de casa. Era para lavar as roupas do casal. Minha mãe, sem poder lutar contra a minha teimosia de pré-adolescente, deixou-me ir, não sem antes me dar um grande sermão. Durante um mês, lavei as roupas daquela casa. Lavei esfregando nas mãos, com sabão em pedra. Queria tanto agradar, que cheguei a ficar com as mãos esfoladas e sangrando de tanto esfregá-las. As roupas do casal foram aumentando dia a dia. Observei que comecei a lavar a dos filhos, das irmãs, dos cunhados e de todos que moravam no quintal. Todos se achavam no direito de colocar sua trouxa no montante para lavar. Mas eu pensava naquele dinheiro que receberia e trabalhava calada. Mais de um mês depois, nada do pagamento vir. Perguntei, então, à dona da casa quando ela me pagaria, e a resposta foi: “Como assim, te pagar? Você nem lava as roupas direito. O que eu posso fazer é te dar essas roupas para você usar”. E me deu um saco de lixo cheio de roupas usadas das filhas dela que tinham a mesma idade que eu. Argumentei ainda que precisava do dinheiro, que esse foi o combinado, e ela disse que eu era negra, seria empregada doméstica e era para eu ter aquele serviço como experiência, que ela havia me feito um favor de mostrar como seria. Peguei o saco preto com aquelas roupas e fui para casa. Minha mãe me deu um sermão no estilo “Eu não te disse? Eu te disse”. Depois, vendo-me tão triste, pegou o saco, colocou no quintal e com um fósforo nas mãos me fez a seguinte pergunta: “Se você quer que a palavra dela se cumpra, use as roupas. Se não quiser, estude para ser alguém na vida e a gente queima tudo isso aqui. O que você quer?” E eu respondi que queria estudar. Naquele ano, eu repeti a 7ª série. No ano seguinte, decidi que seria a melhor aluna da turma. Mudei de escola e me esforcei muito para cumprir o que havia prometido. Mesmo eu me sobressaindo dentre a minha turma, sofri racismo sem saber. Esse tipo de racismo me acompanhou no Ensino Médio com especialização para o Magistério e até na faculdade. Quando tirava a nota máxima, quase sempre tirava, vinha sempre um recadinho do tipo: “Foi você mesmo quem fez? Se foi, parabéns!” Anos mais tarde, fui convidada a fazer a minha primeira palestra e o tema que me pediram foi “Bullying e Racismo no Ambiente Escolar”. Então, pude palestrar para muitas pessoas que professores podem, sim, praticar racismo e bullying com seus alunos e comprometer seus futuros. Tornei-me professora por causa do racismo. Hoje, eu ensino, ministro palestras, escrevo. Continuo sofrendo racismo de todas as formas e todos os dias, pois se alguém sofre nos Estados Unidos, na Europa, na África do Sul, no Brasil ou em quaisquer lugares do mundo, aquilo é para mim também, é sobre mim, sobre toda a etnia negra.

considerado um marco do Realismo na literatura brasileira, poucos sabem que seu autor era negro. Pode-se ainda, recordar outros nomes como o de Chiquinha Gonzaga, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil; André Pinto Rebouças, que deu nome a uma das avenidas mais importantes da cidade São Paulo, um importante engenheiro que era também professor e se engajou na campanha abolicionista em 1880 e, embora tenha sido responsável por importantes obras de Engenharia no Brasil, morreu pobre em Luanda, na África. A lista, que certamente é muito maior, conta ainda com personalidades como Aleijadinho, José do Patrocínio, Cartola, sem falar, é claro de, de Zumbi dos Palmares e de sua companheira, Dandara.

Dandara e seus turbantes

Ela fez 5 anos de vida e em sua festa não teve fantasia inspirada no filme “Frozen”, “Branca de Neve” ou em personagens como a Minnie, Pepa ou Galinha Pintadinha. Dandara vestia uma roupa com tecido africano e teve na decoração da festa, bonecas negras e instrumentos como o afoxé. Estava com um turbante na cabeça, usado também por outros membros da família, como a tia Hildete Emanuele. Hildete nasceu na Bahia e contou ao O SÃO PAULO que demorou a aceitar sua negritude, pois teve uma infância inspirada em figuras da televisão como Xuxa e suas paquitas. “Quando era criança, tinha muita vergonha do meu cabelo e da minha cor. Lembro-me de que as crianças cantavam na escola aquela música: ‘Negra do cabelo duro’ e outras que me faziam sentir ainda pior. Meu sonho era ser igual à Xuxa e inclusive uma vez eu pedi à ‘mainha’ que cortasse meu cabelo com aquela franja igual a dela. Ficou horrível. Quando eu tinha uns 10 anos, minha mãe liberou para que eu alisasse o cabelo. Toda a minha adolescência foi vivida assim”, contou Hildete. A história começou a mudar depois que Hildete ingressou na Pastoral da Juventude. “Com a ajuda de outros jovens, comecei a perceber e aceitar minha cor. Aos poucos, passei a me amar como mulher negra. Hoje vivo isso com muita naturalidade, mas travo vários debates sobre a solidão da mulher negra. Vemos em torno de nós que a maioria das mulheres que casam e constituem família, por exemplo, são brancas. A negra é considerada uma mulher que não é para casar”, desabafou Hildete, que é agente da Pastoral da Juventude e articuladora social da Ação Social da Arquidiocese de Salvador (BA).

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

12 | Reportagem |


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.