O grito da vida

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 24 a 30 de setembro de 2014

| Reportagem | 11

O grito da v Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

Luzia Maria de Jesus Gabriel, 52, diante das conversas frequentes com o irmão, Francisco Siqueira e Silva, 43, percebeu algo errado: “Estava se mostrando uma pessoa negativa, deprimida”. As outras irmãs que moravam com Francisco confirmavam que ele não era mais o menino alegre que viram crescer. Com saudade no olhar, aquela mesma de quem se vê marcado pela ausência, Luzia contou à reportagem que, pelas atitudes do irmão, sentia que um dia ele iria embora para sempre. “Lembro-me daquele olhar sempre perdido, como se a vida não tivesse mais sentido”, desabafou. “No último domingo com a gente, ele falou que iria acender a fogueira de São João. Era um costume do nosso pai. Depois, soubemos do suicídio. Sei lá. Talvez se ele tivesse imaginado a dor que nos causou, não teria feito, mas não havia nele condições emocionais para isso”, disse Luzia. Para a família de Francisco e Luzia e para a maioria das pessoas, a morte continua sendo um tabu e pode ser um momento de recomeço ou de rompimentos profundos e dores para as quais parece não haver remédio. Quando o assunto é suicídio, então, pouco se fala e talvez, a maioria das pessoas não saiba que ele causa a morte de mais de um brasileiro por hora, segundo dados do Centro de Valorização da Vida (CVV).

Falamos, mas não o bastante “Se começarmos a falar em nossos círculos profissionais e pessoais, podemos deixar de perder 25 brasileiros ao dia”, afirma o CVV. Mas, ainda que a sociedade e a Teologia católica tenham dado passos enormes neste sentido, a questão permanece envolta em uma atmosfera de silêncio e pré-julgamentos. Durante a produção desta reportagem,

o metrô de São Paulo teve problemas de atraso. Era uma segunda-feira, 21, e, segundo o aviso sonoro o motivo foi “a presença de usuário na via”. Não é incomum para os usuários presenciarem casos de suicídio nas estações. A média brasileira é de seis a sete mortes por 100 mil habitantes, bem abaixo da média mundial – entre 13 e 14 mortes por 100 mil pessoas. Mas, enquanto a média mundial permanece estável, esse número tem crescido no Brasil. E a maior porcentagem está entre os jovens. Oscar Lópes Maldonado, professor de Teologia, observou que é preciso perceber que “a Igreja Católica passou da ideia de condenação, proibição de entrar na igreja ou do sepultamento no cemitério da comunidade, para uma Teologia aberta, incapaz de condenar ninguém, embora essa visão ainda permeie o imaginário popular”. Alex Villas Boas, professor de Teologia Moral na PUC-SP, esclareceu que “o aspecto essencial do Magistério eclesial é afirmar o valor da vida, e, de modo mais acentuado, da vida humana, por sua capacidade de decidir, a fim de ajudar as pessoas a decidirem pelo bem. O suicídio é, portanto, objetivamente um mal, pois atenta contra a vida da pessoa e provoca sofrimento irreparável para as pessoas que amam aquele que cometeu suicídio”. Importante ressaltar que a Teologia Moral tentou assimilar a contribuição das ciências psíquicas, sobretudo a contribuição da teoria freudiana, que apesar de seus limites, como de toda área da ciência, colabora com a descoberta do inconsciente e faz com que se olhe para aquilo que condiciona a liberdade humana. “Só Deus conhece a condição da liberdade de cada um e, portanto, cabe à Teologia Moral ajudar a encontrar as causas do suicídio e ser uma mensagem de confiança aos que se veem desesperados com seus dramas psíquicos e morais”, continuou Alex.

Sobre a teoria freudiana, Pollyana Brandão, 27, estudante de Psicologia, lembrou, em conversa com a reportagem, que, para Freud, a diferença entre um psicopata e um neurótico é que o psicopata quando assassina não sente nada, nenhuma espécie de culpa. “O neurótico, caso chegue a cometer um assassinato, não aguenta e se mata também. Mas, no caso de suicídio como único fato, a pessoa não tem coragem, ou capacidade de matar outro ou acabar com situação em que está envolvido. Essa energia de violência e de morte recai sobre si mesma”, comentou a jovem.

‘Para não frustrar ninguém, decidiu partir’ Era dia 9 de junho de 2011, quinta-feira ensolarada em Manaus (AM). Nadiele Alves, 26, foi acompanhar o amigo, Mário Célio Batista de Souza, 26, para comprar um terno para ele e outro para o filho de apenas 1 ano. Iria se casar em breve. “Mamãe ligou e perguntou se o Mário ia jantar em casa. Eu disse que não, mas ele pegou o celular: ‘Tia, tem feijão?’. A mamãe deve ter dito sim, e ele disse que ele iria jantar lá”, lembrou Nadiele. Conversaram aquela noite inteira, e, no dia seguinte, Mário começaria um novo emprego. Por volta de 4h30, foi pra casa. “Vi ele se distanciar e acenei com a mão. Ele respondeu com um largo sorriso. Por volta de 6h30, meu celular tocou, era o pai dele, chorando. Havia gritos dolorosos e amargos. ‘Ele morreu, se matou’. Fiquei em choque. Minha mãe desmaiou”, disse Nadiele. Além da dor daquele momento, a jovem lembrou que uma vizinha abraçou-a e disse: “Você sabe que ele vai para o inferno né?”. “Na hora, acho que nem escutei. Da casa dele pra minha são 120 passos, a gente contou aos 14 anos. Vi a mãe dele ajoelhada, chorando. Olhei mais à frente e o vi, com as mãos fechadas. Pendurado

pelo pescoço com a corda que amarrava a rede do pai.” “Eu olhava sem pensamento nenhum, sem lágrima nenhuma. Só lembro que, em algum momento, surgiu o primeiro de muitos por quês”, expressou Nadiele, para quem Mário deixou uma única carta. “Ele pediu desculpas por ter sido fraco, por não ter lutado pelos sonhos. Mas não sabia o que estava acontecendo. Achava que não seria capaz de encarar a nova vida, era tudo muito maravilhoso. Ele não merecia. Era sujo, indigno, incapaz de cuidar de tanta coisa boa que Deus tinha confiado a ele, e para não frustrar ninguém, decidiu partir, pois assim seria melhor pra todo mundo. Fiquei emocionalmente desiquilibrada durante um ano, recebendo visitas da psicóloga voluntária todos os dias, com a camisa dele numa mão e a carta na outra. Convivo com resquícios há três anos. Sinto impotência por não ter percebido e traição da parte dele por não ter se permitido viver”, confessou Nadiele. A data de 10 de setembro foi declarada como o “Dia Internacional de Prevenção do Suicídio” para que haja mais abertura entre as pessoas de conversarem sobre o tema. Segundo dados do Centro de Valorização da Vida, pelo menos nove em cada dez suicídios poderiam ser prevenidos se o suicida pedisse algum tipo de ajuda, ao contrário do que muitos pensam. Porém, para que isso aconteça, é necessário liberdade em falar do assunto. Sendo uma das organizações não-governamentais (ONG) mais antigas do Brasil, O CVV foi fundado em 1962 por um grupo de voluntários. O objetivo é escutar as pessoas em suas necessidades, momentos de angústia e desespero. Os mais de um milhão de atendimentos anuais são realizados por 2.200 voluntários em 18 estados mais o Distrito Federal, 24 horas por dia, pelo telefone 141, pessoalmente nos 68 postos de atendimento, pelo site www.cvv.org.br, via chat, Skype ou e-mail.

I D A Cerca de 25 pessoas se suicidam por dia no Brasil; lidar com o tabu é a melhor maneira de prevenir


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