Quem conversa com Agostinho?

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www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 8 a 14 de outubro de 2014

| Reportagem | 11

Quem fala com Agostinho? Sergio Ricciuto Conte

com gratidão, das mãos dos pais o testemunho da vida.” A cultura do descarte da qual fala o Papa pode ser identificada na quase inexistência de propostas de políticas públicas para idosos, por exemplo, nas recentes campanhas eleitorais. Jairo Fedel, coordenador da Pastoral da Pessoa Idosa (PPI) em São Paulo ressaltou que as principais dificuldades começam com a falta de centros de saúdes especializados. “Há o problema da mobilidade urbana, buracos e desníveis nas calçadas, semáforos para pedestres que são verdadeiras provas de maratona. E não poderia deixar de citar a questão da violência contra a pessoa idosa, violência financeira, física, moral e psicológica.”

“Descartam-se os idosos sob o pretexto de manter um sistema econômico equilibrado, no centro do qual não está a pessoa humana, mas o dinheiro”, afirmou o Papa Francisco Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

“Quem compra leva a sacolinha de brinde!” Gritava Agostinho José da Silva, 71, o “Agostinho da Paçoca” durante um festival de cultura em São Paulo. A cada cliente que comprava a paçoca, a brincadeira se repetia, até que alguém entendesse que aquela era a maneira de puxar conversa. Agostinho estaria cansado após horas de trabalho na sua idade? Não. Os pilões que trouxe de Guaratinguetá (SP) até a capital paulista, onde ele mistura farinha com amendoim, carne e torresmo, fez com as próprias mãos. Força para esculpir a madeira, ternura e sabedoria para contar histórias. “Uma nação que melhora seu ato de cozinhar, melhora sua civilização”, disse à reportagem, com um sabor diferente na voz, mistura de desabafo e orgulho, devido à autenticidade do talento sem efeitos. A cada ano, 1º de outubro é o Dia Internacional do Idoso, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, em 1982. Além de ser uma oportunidade de comemorar é, sobretudo, ocasião para que os órgãos públicos responsáveis pela coordenação e implementação da Política Nacional do Idoso se responsabilizem e incentivem a valorização da pessoa idosa. Em Roma, no dia 28 de setembro, aconteceu a I Jornada Internacional dedicada à Terceira Idade, com a presença do Papa Francisco e do Papa Emérito Bento XVI. Promovido pelo Pontifício Conselho para a Família, reuniu idosos de todo o mundo. “A bênção da vida longa” foi o tema do encontro, que contou com testemunhos de vida e reflexões sobre a velhice.

Esquecidos? José Roque Junges, professor de Antro-

pologia da Saúde e Bioética na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, apontou, em suas pesquisas, que a expectativa de vida aumentou consideravelmente no último século. “Se em 1940 a participação da população com mais de 65 anos era de 2,4%, em 2000 era de 5,8%. As últimas projeções indicam que esse segmento será de 15% da população no ano de 2020.” O professor explicou, ainda, que se vive uma contradição entre a busca de uma sempre maior longevidade e uma crescente situação de marginalização e indiferença do idoso. “Constata-se que, se por um lado, a ciência busca a realiza-

ção do sonho da imortalidade, por outro, a economia aponta para a inutilidade do idoso, reduzido à sua condição de puro consumidor de produtos que prometem longevidade.” “Quantas vezes se descartam os idosos com atitudes de abandono que são uma verdadeira e própria ‘eutanásia escondida’! É o efeito daquela cultura do descartável que faz muito mal ao nosso mundo”, denunciou o Papa Francisco durante o encontro com os idosos, enquanto ressaltou também a riqueza da interação entre as gerações. “Não há futuro para um povo sem este encontro entre as gerações, sem os filhos receberem,

Compartilhar o tempo Jéssica de Carvalho da Silva, 24, trabalha há quatros anos no Núcleo de Convivência do Idoso (NCI), em Pinheiros, zona oeste da capital. A jovem destacou que o principal motivo que os leva até o Núcleo é o isolamento social. “Não é a questão financeira, mas a solidão, o abandono dos filhos.” Como auxiliar administrativa no NCI e, atualmente, estudante de Filosofia, Jéssica quer continuar na área de Gerontologia. “Sempre considerei que os idosos têm muita sabedoria a compartilhar, e aqui confirmo isso, acrescentando que a sociedade, quando os valoriza, tende a infantilizá-los e não considera a autonomia e a dignidade de cada um”, disse. Lydia Silva Gonçalves, 79, foi mais longe. Moradora de Itanhaém (SP), ela começou a estudar aos 65 anos. Formou-se em Pedagogia e abriu uma biblioteca improvisada na garagem de casa. Para ela, “começou a viver depois que aprendeu a ler”. A idade foi a força para seguir adiante e ajudar outras pessoas que pensam não serem mais capazes de aprender qualquer coisa nova. Jovens e crianças perdem quando não compartilham o tempo com os idosos. Seria interessante que os pais deixassem aos avós a tarefa de contar histórias aos filhos, sobretudo porque são histórias que não existem nos livros. O tempo deu a eles sabedoria, uma sabedoria disponível. Mas buscar essa sabedoria guardada deve ser iniciativa dos adultos. Quem acha que velho é sinônimo de ruim pode não chegar a ser sábio, e talvez nunca apreciar o sabor de um bom vinho.

Crônica

Um banco vazio no metrô A cada estação, ela olhava rapidamente, quase com a cabeça fora da porta. - “Já é Consolação?”, perguntou à moça ao lado. - “Não senhora, ainda faltam duas estações. Eu vou descer na próxima, a senhora desce uma depois.”

- “Minha filha não pôde vir comigo”, disse ela, com tristeza e, ao mesmo tempo, aquela alegria adolescente de quem saiu sozinha de casa. “Eu disse pra ela: ‘deixa filha, vou sozinha, vou perguntando e chego lá’”. Os pés rachados, a sacola

presa junto a si, bem apertada ao peito. Os cabelos esvoaçados. A expressão assustada. Ao lado, não conseguia ser discreta. O vai e vem do metrô, que também me assusta cotidianamente, parecia ainda mais voraz aquele dia. Dentro da terra, o vento esfriava mi-

nhas mãos, presas às dele, que me viu absorta na cena. Eu, menina do interior, a quem a maior capital da América Latina conquistou com seus museus, praças, parques e amores também estava ali, clinicamente sendo analisada. Desci antes, a senhora conti-

nuou seu caminho. Aflita, em pé, ao lado da porta e de um banco de cor azul clara, vazio, designado para ela. A cidade pode ser grande e assustadora demais pra quem há muitos anos aprendeu a habitar em primeiro lugar, seu interior. Por Nayá Fernandes


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