Projeto Âncora

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14 | Reportagem |

15 a 21 de outubro de 2014 | www.arquidiocesedesaopaulo.org.br

‘A velha escola há de parir uma nova educação’ Projeto Âncora

José Pacheco enfatizou que a educação ainda sofrerá, “enquanto a tecnocracia e a burocracia continuarem a invadir domínios onde deveria prevalecer a pedagogia” nayá fernandes

nayafernandes@gmail.com

Lohan Machado de Oliveira Pezato, 11, começa sua rotina escolar planejando o seu próprio roteiro de estudos junto a um tutor. Ele mora em São Paulo e estuda na Escola Projeto Âncora. A ONG é uma associação civil de assistência social que, há 19 anos, já beneficiou mais de 6 mil crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social na região de Cotia (SP). Após alguns anos de experiência e o sonho de ampliação do projeto, com auxílio direto do conselheiro, Professor José Pacheco, fundador da Escola da Ponte (Portugal), referência mundial da nova educação, nasceu a Escola Projeto Âncora, onde estuda Lohan. Ele já havia passado por outras escolas, mas diz que agora consegue perceber bem a diferença. “O Âncora é um lugar mais livre e onde não tem uma pessoa falando o que estudar, e sim você escolhe o que fazer”, afirmou. Lohan e outras crianças e adolescentes permanecem nove horas por dia na Escola, e dividem suas atividades entre arte, cultura, esportes, educação, refeições e horas de descanso. “Praticamos o aprendizado autoral, partindo das áreas de interesse dos alunos e quebrando antigos conceitos da educação tradicional, cujos fundamentos são do século XIX”, explica o material de divulgação oficial do Projeto Âncora. O tema da educação, recorrente nos debates eleitorais, ganha ainda mais destaque devido ao dia 15 de outubro, que no Brasil é dedicado ao professor. Na capital paulistana, uma visita às escolas públicas é suficiente para perceber a situação de descaso que se encontra o sistema educacional. Em algumas instituições, as janelas não têm cortinas, faltam tomadas, não há material didático suficiente e as salas de aula mais parecem celas, supervisionadas constantemente. Além dos baixos

Educadores e aprendizes da Escola Projeto Âncora, em Cotia (SP), acreditam que a educação transforma a sociedade

salários dos professores, há questões como insegurança, falta de formação e métodos obsoletos. Em entrevista ao O SÃO PAULO, José Pacheco afirmou que hoje as escolas são espaços de incomunicabilidade. “Os professores continuam remetidos para uma atitude de autossuficiência e individualismo, que anula qualquer possibilidade de criação de vínculos, em salas de aula, que são arquipélagos de solidões”. Ele enfatizou que a profissão de professor não deve ser um ato solitário, mas solidário. “Quando os professores se aperceberem de que precisam reelaborar a sua cultura pessoal e profissional, acontecerá efetiva comunicação”, disse.

Projeto Âncora O Âncora destaca-se como uma iniciativa ousada e, ao mesmo tempo, conservadora daqueles valores que não passam de moda. Os espaços são coletivos e uma grande tenda inspira a circularidade. Aliás, na Escola todos

Arquivo pessoal

Lohan Machado de Oliveira, 11 anos

são educadores, também quem está na cozinha ou na secretaria. Quando a reportagem visitou o Projeto, em Cotia, foi conduzida por uma das crianças que fez uma pausa suas atividades de Geografia para acompanhar a visita. Em determinado momento da visita, uma garotinha nos avisou que ali era proibido o uso do celular e que a decisão havia sido tomada pelas próprias crianças em assembleia. Assim, a nova e

compartilhada metodologia utilizada pelo Âncora acredita que uma mudança na educação é capaz de mudar a realidade. Sem fins lucrativos, a ONG conta com mantenedores, patrocinadores e colaboradores financeiros. A doação por parte de pessoas físicas se dá pelo direcionamento de parte do Imposto de Renda, por meio do incentivo fiscal ou apadrinhamento de uma criança. A Escola atende crianças da região e mantém uma estrutura com salas de convivência, biblioteca, rampa de skate, a tenda onde acontecem atividades circenses e outros tipos de arte. Há um ateliê de mosaicos e outros espaços de convivência e lazer. Além disso, há encontros com familiares e visitas dos educadores às comunidades onde as crianças vivem. Especialista em humanidade: a experiência de Pacheco “Se existir uma ‘escola ideal’, ela será um tempo-espaço de desenvolvimento humano, segundo uma nova concepção de socieda-

de e de pessoa. Será uma comunidade de aprendizagem, na qual os educadores e aprendizes se orientem por valores e princípios conducentes à reconfiguração da escola e à produção de humanidade”, afirmou o professor José Pacheco, idealizador da metodologia da Escola da Ponte. Em entrevista à reportagem, ele contou que, como qualquer projeto, o Âncora começou com o sonho de um homem, Walter Steurer, que investiu os seus haveres e esperança numa obra extraordinária, destinada a “salvar vidas humanas”. Pacheco viaja pelo Brasil compartilhando sua experiência com grupos que se interessam por desenvolver inciativas semelhantes. Ana Caroline Viera, 27, é graduanda de Serviço Social na PUC-Rio e, junto com um grupo de amigos “sonhadores”, como ela mesma definiu, quer começar uma rede de comunidades de aprendizagem na capital carioca. Após receber a visita do Professor, Rejane Vargas Pimenta, do mesmo grupo, expressou em seu perfil no Facebook que Pacheco e sua esposa, são “seres que inspiram um novo mundo aqui e agora”. Pacheco acredita que “o Brasil tem tudo aquilo que precisa para se livrar da sina de produzir 30 milhões de analfabetos. Tem excelentes professores e os melhores teóricos do mundo. Mas o drama educacional brasileiro poderá sintetizar-se numa frase: jovens do século XXI são ensinados por professores do século XX, com recurso a práticas do século XIX, em práticas desprovidas de fundamentação científica. Mas já são visíveis os excelentes efeitos alcançados, o alcance da excelência acadêmica, a par da garantia da inclusão social. Temos razões para acreditar que a educação do País pode melhorar”. O Professor acenou ainda que um caminho é o de apelar ao bom senso dos titulares do poder público, pedir-lhes que estejam atentos a excelentes práticas que muitos educadores brasileiros vêm produzindo. Ele enfatizou que é importante não importar modas pedagógicas, “que são o contraponto da construção social ‘escola’, que a modernidade nos deixou como herança. A velha escola há de parir uma nova educação, mas as dores do parto serão intensas, enquanto a tecnocracia e a burocracia continuarem a invadir domínios onde deveria prevalecer a Pedagogia”.


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