Da vida, debulhou poesia: Cora Coralina

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15 a 22 de abril de 2015 | www.arquidiocesedesaopaulo.org.br

Da vida, debulhou poesia

Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

“Minha mãe aprendeu a cozinhar como qualquer mulher do seu tempo e, naquela época, tudo o que a esposa podia fazer era cuidar da casa, dos filhos e servir ao senhor seu marido”, conta Vicência Bretas Tahan, com certa indignação e, ao mesmo tempo, admiração. Para qualquer filho, contar as memórias da mãe é uma tarefa cheia de beleza e emoção, mas para Vicência é como entrar num recital de poesias. A filha mais nova de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a Cora Coralina, mora atualmente no bairro do Paraíso, em São Paulo, num apartamento cheio de plantas e obras de arte que foi adquirindo pelos mais de 50 países por onde já passou. Conversamos por mais de três horas entre aquelas paredes repletas de quadros até que, subitamente, Vicência se levantou decidida a me levar à salinha onde estão guardadas e bem organizadas as pastas com textos ainda não publicados da goiana Cora Coralina. Ter nas mãos folhas com poesias, discursos, mensagens, fotografias assinadas, versos escritos em pedaços de papel amarelado e muita vida de uma mulher que guardou por mais de 60 anos seus escritos é como sentir o prazer que nos causa a poesia sem chegar a lê-la, como se pessoa e palavra estivessem ali, vivas. Lemos juntas alguns trechos, desvendando uma ou outra palavra mais difícil. “Ela escrevia sempre e em qualquer papel que estivesse à mão, vindo a publicar o primeiro livro somente quando chegou aos 76 anos”, contou a filha, que também escreveu um romance, intitulado “Cora coragem, Cora Poesia”, publicado pela editora

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Global. “Os fatos do livro que escrevi são reais, mas a narrativa de como eles se deram, eu inventei, pois seria impossível saber fatos da infância de minha mãe que aconteceram em outro século.” Anna, Aninha como se descreve em algum de seus poemas, ou Anita, para a família, nasceu no dia 20 de agosto de 1889, na Cidade de Goiás (GO). Filha de um paraibano e de uma goiana, teve uma infância difícil, mas frequentou a escola e aprendeu a ler, coisa incomum para a sua época. “Desde então, lia tudo o que encontrasse pela frente. Antigamente havia um almanaque anual, com receitas, dicas sobre lavoura, fases da lua e este foi um dos primeiros livros que minha mãe leu”, recorda Vicência. Quando visitei a casa no bairro do Paraíso, faltavam apenas alguns dias para a recordação dos 30 anos da morte de Cora e, ao falar sobre isso Vicência, interrompeu: “Já?”, com a intimidade única de alguém que vive imersa às lembranças e palavras de uma mulher a quem a vida deu seus versos mais preciosos. “Você me pede uma poesia. Por quê? Você é a própria

poesia inicial e cântico primeiro. Você é a estrofe, o resto é a rima”, lemos em uma daquelas folhas amareladas, trecho de uma poesia inédita, ainda não publicada.

Com livros na sacola e mil palavras no coração Cora deixou Goiás jovem, aos 22 anos, quando saiu com Cantídio, seu esposo, para viver no interior de São Paulo. A mãe de Jacinta, Paraguassu, Cantídio, Vicência e Guajajarina teve dois outros filhos que morreram ainda na primeira infância. Logo a família se mudou para a Capital paulista, pois os filhos mais velhos precisavam continuar os estudos e a pequena Vicência foi junto. Pouco tempo depois, Cora ficou viúva e, para se virar, começou a vender livros de casa em casa. “Cada livro novo de história que a editora lançava, mamãe comprava e me dava de presente, o presente dela era sempre livro. Por isso, eu cresci lendo e meus filhos também, sobretudo as meninas”, contou a paulista que nasceu em Jaboticabal. Aos sete anos, Vicência se mudou com a mãe e a irmã, Jacinta, do bairro da Aclimação, onde moravam em São Paulo, novamente para o interior do Estado. Cora Coralina continuou a luta para cuidar dos filhos e, além do ofício constante da escrita, trabalhou como dona de

pensão, de uma loja de retalhos que se chamava “Casa de Retalhos” e antes de voltar para Goiás, comprou um sítio e vendia porcos e os produtos da lavoura, no ano em que a colheita era boa. Depois de 45 anos em São Paulo, única filha viva de seus pais, Cora voltou a Goiás, em 1956, para não perder os direitos da velha Casa da Ponte, que hoje abriga o “Museu Casa de Cora Coralina”. Em Goiás, viveu sempre na casa em que nasceu, onde havia um grande e bonito quintal, com árvores e uma horta, na qual inclusive nasceram os “meninos verdes”, uma das histórias infantis escritas por ela. O nome Cora, ela mesma escolheu, contou a filha: “não queria assinar o nome, porque dizia haver muitas Ana’s na cidade, devido à padroeira Sant’ana. Escolheu Cora Coralina porque tem um som bonito e significa coração vermelho”. Quando o esposo ainda vivia, Cora mostrava somente a ele e a mais ninguém os seus poemas e, esporadicamente, escrevia textos para os jornais locais ou textos que interessavam à Igreja, sobretudo em momentos festivos. “Quando faleceu, minha mãe tinha três livros editados no Estado de Goiás. Hoje ela tem 11 livros publicados e acredito que muitos outros virão”, disse, guardando no armário as pastas cheias de versos ávidos por ocuparem seus lugares pelo mundo.

Tão forte quanto a terra Cora mesma dizia que ela não procurou a poesia, a poesia nasceu com ela. Mas aos 14 anos, achavam que a brincadeira da moça de escrever versos era perda de tempo. Para moças daquela época, o dever era aprender a cuidar da casa, cozinhar, costurar. Ela sempre fez isso. E, justamente por esse motivo, seus escritos eram baseados na realidade. “O homem da terra, o homem preso, o menino abandonado. A poesia dela é terra. Não tem estrelas, céus, lua, não é abstrata. É uma poesia forte. Mamãe nunca foi mulher de se entregar. Se precisava falar alguma coisa, falava diretamente. Foi perseverante, persistente, guardou os seus escritos dos 14 aos 76 anos” – explica – “sim, era também uma mãe brava. Ninguém podia ficar em cima do muro, tinha que tomar uma posição” disse a filha, ao ser perguntada sobre Cora Coralina em suas características maternas. Depois dos três livros publicados em Goiás, Cora veio para São Paulo e aqui recebeu homenagens. Foi, em seguida, para o Rio de Janeiro, onde alguém pegou um de seus livros e deu ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Ele gostou muito e mandou uma carta para Goiás, dizendo ser ela a pessoa mais importante do Es-

tado. Eles nunca se conheceram pessoalmente, mas, desde então, 1980, o Brasil inteiro se despertou para os escritos de Cora. Quando novamente voltou a São Paulo, participou de muitos programas de televisão e teve o nome apresentado na União Brasileira de Escritores para concorrer ao prêmio Juca Pato. Foi a primeira mulher a receber o prêmio, em 1984. “Antes da minha mãe publicar o primeiro livro, a gente achava bonitas as coisas que ela escrevia, mas ficava nisso mesmo. Não imaginávamos que seus contos, histórias e poesias seriam tão conhecidos”, disse Vicência, que gosta muito do “Poema do Milho”, um dos mais conhecidos de Cora. “É longo pra caramba. Mas se você conhece uma lavoura de milho, vai ver a lavoura nascer, crescer, os passarinhos virem bicar.” Vicência morou com a família por um período em Anápolis (GO) e ia visitar a mãe aos fins de semana. “Cada vez que os meus filhos chegavam na casa, ela contava um pedacinho de uma historinha que se chamava ‘Os meninos verdes’, baseada na horta do seu quintal. Eram meninos gelatinosos que nasceram na horta. Certa vez, em São Paulo, sentados todos à mesa, pedi para ela contar a história dos meninos verdes. E no fim, o meu irmão, que não conhecia a história, perguntou:

Meu Epitáfio

Ao voltar para Goiás, Cora começou a fazer doces para vender. Certa vez, enviou uma caixa de doces para o Papa, à época Pio XII, por meio do bispo que era seu amigo. Recebeu uma carta do Papa agradecendo a gentileza. Religiosa, Cora nunca hesitou em falar sobre Deus e a fé em seus poemas, até com bom humor. Vicência recordou, entre risadas, do texto que a mãe escreveu sobre as pessoas que, por desconhecimento, colocavam flores sobre o busto de um presidente pensando que fosse de um santo. O busto fica em frente à igreja na rua da casa de Cora, na Cidade de Goiás. Depois de receber, em 1984, o Juca Pato, Cora voltou a Goiás acompanhada da neta, Maria

ça, contou que estava juntando dinheiro para comprar uma geladeira. E minha filha, que gostava muito dela e tinha um cofrinho, deu à avó o dinheiro para ajudá-la a comprar a geladeira. Mamãe ficou muito tocada com a atitude e escreveu uma história que chama: “A menina, o cofrinho e a vovó”, explicou Vicência. Cora escreveu até os últimos dias de vida e recebia muitas visitas na Casa Velha da Ponte de Goiás. Foi amiga de muitas personalidades, como Jorge Amado. Aos 70 anos, aprendeu a usar a máquina de datilografar e, como ela mesmo escreveu em um de seus poemas, recomeçou sempre. “Recria tua vida sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça”. Com uma energia contagiante, Vicência caminha todos os dias no Parque do Ibirapuera, diz amar São Paulo e que morreria de tédio se mudasse para o interior. Como a mãe, hesitou em dizer a idade, talvez porque carregue em si muitas gerações. Aqui, história de mãe e filha se confundem, como se fundem as palavras no verso e perdem o sentido se forem separadas. A Casa Velha da Ponte, que acolheu Cora, continua lá, mantendo viva a memória de uma poetisa que, assim como o lavrador debulha os grãos da espiga de milho, debulhou poesia de uma vida comum e muito especial como é a vida de qualquer um de nós. É dela, Cora Coralina, os versos escolhidos para nossa despedida: “Venho de longe e carrego comigo todas as idades, mas do que as idades, sou a portadora frágil de mensagens humanas lançadas talvez fora do tempo adequado e sua inserção na realidade do presente.”

, Morta... serei árvororende serei tronco, serei f e minhas raízes s de meu berço enlaçadas às pedra rotam de uma lira. são as cordas que b

‘E agora, onde os meninos estão?’, com uma real preocupação. Todos caímos na risada. Ela era também uma ótima contadora de histórias.”

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça

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Luísa. Teve uma gripe muito forte, que se tornou pneumonia. Então, a levaram cedo de ambulância para Goiânia e, no mesmo dia, 10 de abril de 1985, às 23h, morreu. Todos os filhos foram a Goiás e após o funeral ficaram organizando as coisas e procurando os papéis espalhados pela casa. “Havia escritos no meio dos livros, nas gavetas da cozinha, entre jornais velhos. Encontramos também dinheiro sem valor. Ela ficava sentadinha ali na sala e chegavam as pessoas para comprar livros ou doces. Ela pegava o dinheiro, colocava dentro do jornal e esquecia”, lembrou a filha. A neta, Célia Bretas Tahan, que hoje é jornalista e mora em Palmas (TO) teve a alegria de ser inspiradora de uma das histórias da vovó. “Uma vez, ela foi à minha casa em Anápolis e viu a Célia brincar com terra. Então, minha mãe, conversando com a crian-

rdes Enfeitei de folhas ulveo a pedra de meu túm num simbolismo de vida vegetal. Não morre aquele que deixou na terra ntico a melodia de seu câ rsos. na música de seus ve

Cora Coralina, publicado em ‘Meu livro de cordel’


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