40 anos depois, o silêncio dá lugar ao canto

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28 de outubro a 3 de novembro de 2015 | www.arquisp.org.br

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Instituto Wladimir Herzog

40 anos depois, o silêncio dá lugar ao canto O assassinato do jornalista Vladimir Herzog e o Ato Interreligioso, que aconteceu no dia 31 de outubro de 1975, foram recordados no domingo, 25, na Catedral da Sé Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

tagem e reviver uma história na qual ela foi também protagonista. A poucos metros estava Raquel Alves Trindade, que veio com a mãe participar do Ato, pois está fazendo um trabalho sobre a ditadura na escola. Raquel tem apenas 10 anos, mas durante todo o tempo ficou de pé, próxima ao presbitério e atenta a cada discurso, gesto ou canção daquela tarde. O evento reuniu, aproximadamente, 2 mil pessoas, dentre elas 800 cantores de 30 corais diferentes, dirigidos pelo Coro Luther King e o maestro Martinho Lutero. Líderes religiosos fizeram seus discursos de recordação e esperança ao mesmo tempo, entre eles

Vladimir Herzog, apoiado pela Casa da Reconciliação, a Rede Cultural Luther King e o Projeto Canta São Paulo. A música deu o tom do evento que teve como tema principal: “Lembrar, respeitar e cantar é preciso”. Músicas como “Calabouço”, de Sérgio Ricardo; “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, e “Gracias a La Vida”, de Violeta Parra, fizeram parte do repertório. Porém, o momento que emocionou um grande número de pessoas e durante o qual se pôde ver uma grande comoção foi aquele em que a canção “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, foi cantada, à capela, pelas pessoas que acompanharam ou conheceram de alguma maneira a história de tantas Luciney Martins/O SÃO PAULO “Maria e Clarices” que choraram no solo do Brasil. Clarice Herzog, a viúva do Vlado, falou a um pequeno grupo de jornalistas no fim do Ato. Ela recordou aquele dia em que soube que o marido, após ter se apresentado ao DOI-CODI, não voltaria mais. “Quando vi três homens de terno na porta da nossa casa, não tive dúvidas de que ele estava morto”, disse Clarice. A participação neste ato foi diferente daquele há 40 anos atrás. “Naquele dia, eu somente conseguia reviver a morte dele e chorar. Hoje, eu compreendo que a morte do Vlado é um grito pela verdade e pela justiça”, ressaltou.

Dom Julio Endi Akamine, bispo auxiliar da Arquidiocese na Região Episcopal Lapa; o Rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista; e o Reverendo Marcelo Leandro Garcia de Castro, da Igreja Presbiteriana Unida. O primeiro a ter a palavra foi Ivo, que em seu breve discurso de agradecimento, recordou também o momento atual e fez críticas à Polícia Militar de São Paulo: “O que a Polícia Militar de São Paulo tem feito ao assassinar pessoas é inaceitável. É inaceitável também que o Ministério Público arquive processos contra esses policiais. A cultura da violência tem que mudar.” A realização do Ato foi do Instituto

Há 40 anos, o clima era de silêncio e medo e os participantes do Ato Interreligioso do dia 31 de outubro de 1975, uma semana após o assassinato de Vladimir Herzog, dirigiram-se à Catedral da Sé para protestar contra a morte do Vlado, como era conhecido, mas também contra a ditadura, regime estabelecido no País em1964 e durou até 1985. No domingo, 25 de outubro de 2015, às 14h30, um novo ato foi realizado na Catedral da Sé, mas neste, as pessoas chegaram e saíram cantando, “a plenos pulmões”, como disse o filho de Vladimir, Ivo Herzog. Cleide Formigare estava na Catedral há 40 anos. Era estudante de Filosofia, foi perseguida e viveu anos muito difíceis. Tendo voltado domingo à Catedral, hoje com 75 anos, ela tem a mobilidade reduzida e, ajudada por uma cadeira de rodas, Cônego Bizon conduz oração durante ato inter-religioso na Sé, que recorda 40 anos da morte de Herzog se emocionou ao falar com a repor-

O presidente da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, o vereador Gilberto Natalini (PV), era estudante de medicina e ativista político em 1975. Em entrevista ao O SÃO PAULO, ele afirmou que “o legado de Herzog foi principalmente o de mudar o paradigma da vida no Brasil. Depois dele, o regime militar começou a ficar mais brando porque o governo percebeu que as pessoas estavam se unindo”. Ao falar sobre a atuação das religiões, Natalini ressaltou que “tiveram um papel importante na resistência e que, inclusive, líderes religiosos foram presos, alguns até assassinados, como o filho do pastor James Wright, que con-

Atores de uma história viva duziu o ato celebrado há 40 anos, juntamente com o Cardeal Paulo Evaristo Arns, arcebispo metropolitano de São Paulo à época, e pelo rabino Henry Sobel, da comunidade judaica. Ela estava na estação da Sé, junto a uma amiga, recordando o dia em que foi presa por militares na cidade de São Paulo. A carioca Beatriz Bargieri participava da Ação Popular em 1969 e, perseguida, veio para São Paulo junto com o marido. Trabalhando como arquiteta, Beatriz foi presa em 1971 e ficou durante 103 dias na cadeia, onde sofreu diferentes tipos

de tortura. Quando saiu, ela não quis sair do Brasil e continuou lutando pela democracia. Hoje, 40 anos depois, aos 72 anos, Beatriz percebe o quanto foi valiosa aquela luta, mas o quanto o País ainda precisa avançar e como a violência institucionalizada continua a acontecer, violando os preceitos básicos dos direitos humanos. “A democracia permitiu que os grupos de jovens se reúnam sem medo para lutar pelos seus direitos, o que não era possível naquela época”, disse sorrindo. A coordenadora das atividades do

(Colaboraram Igor Andrade e Vítor Loscalzo)

Coro Luther King de São Paulo, Sira Milani, enfatizou à reportagem que com o ato, “lançamos luz sobre os fatos, o assassinato de pessoas, a opressão, a violência. E quando a gente empresta a voz de um coro, com a energia, com a sua capacidade agregadora, que é um potencial também de disseminação de informação, torna-se veículo de transformação”. Na segunda-feira, 26, aconteceu a reinauguração da praça Vlado Herzog, localizada na rua Santo Antonio, em frente à praça da Bandeira e, em seguida, houve o lançamento do relatório final da Comissão Municipal da Verdade. (NF)


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