14 | Reportagem |
5 a 10 de novembro de 2015 | www.arquisp.org.br
Luciney Martins/O SÃO PAULO
Fitoon Assi veio como refugiada com a família para São Paulo após ter a casa e o laboratório onde trabalhava com o marido bombardeados pela guerra
Da Síria ao Brasil, um ‘Jardim de Damascos’
Nayá Fernandes
nayafernandes@gmail.com
Ela estava na sua loja, no box 100 do Shopping Boulevard Mouti Mare, na avenida Paulista, entre bolsas, cintos e tapetes. “Tudo feito à mão por uma família de Damasco”, explicou Fitoon Assi, que veio com a família para São Paulo há cerca de dois anos. Na Síria, Fitoon morava perto de Damasco e trabalhava com o marido como técnica de laboratório, antes da guerra destruir a casa onde moravam e também o laboratório onde trabalhavam há mais de dez anos. Tudo foi bombardeado e eles, como muitos outros sírios, saíram à noite, em meio às bombas. “Fomos a pé, sem roupa, sem nada, e no escuro para um lugar muito longe de Damasco. Era uma hora da manhã”, contou a mãe de Rahaf Youssef e Refag Youssef, duas meninas que têm 10 e 8 anos, respectivamente. O esposo de Fitoon,
Para entender os conflitos na Síria A Síria vive em conflito armado desde 2011, quando aconteceu a chamada Primavera Árabe e no dia 15 de março as pessoas saíram às ruas pedindo o fim do governo do presidente sírio Bashar al-Assad, no poder desde a morte de seu pai, no ano 2000.
Gahssan Youssef, nasceu em East Gouta e atualmente trabalha numa loja de roupas no bairro do Brás. Antes de vir ao Brasil, eles moraram em Damasco, perto da fronteira com o Líbano. “Minha casa foi bombardeada e corremos muito perigo. Então, precisamos nos mudar e fomos para o Líbano”, contou Fitoon, que aprendeu português com uma professora de uma mesquita no Brás. A Europa é uma alternativa para muitos que estão na mesma situação, mas para lá só é possível ir pelo mar e ela sempre achou a viagem muito arriscada. “Fomos nos consulados da Alemanha, da França e da Suíça, mas em nenhum desses países é possível entrar. Então, um amigo falou sobre o Brasil. Fomos ao consulado brasileiro de Beirute e, após 20 dias, recebemos a autorização para entrar no País.” As passagens de avião custaram US$ 5.800, de Damasco até Guarulhos (SP) e, ao chegar, eles alugaram a casa de
um outro sírio em Sapopemba, na zona Sudeste da capital, onde ficaram por nove meses. Mas antes de chegar a São Paulo, a família morou um ano com os pais de Fitoon, e só depois foram para o Líbano, onde ficaram por pouco mais de dois meses. A princípio, no Líbano, a família ficou num alojamento coletivo, até que ela conseguiu trabalhar como técnica de laboratório e ganhando US$ 500 por mês, quando conseguiram alugar um lugar. “Pagávamos US$ 300 de aluguel e, além da alimentação, precisávamos comprar diesel para esquentar a casa, devido ao frio intenso. Quando saímos da Síria para o Líbano foi também uma noite de muito medo. Era por volta das 21h, não tinha luz na estrada e, a cada pouco, ouvíamos o barulho das bombas. As crianças continuavam a chorar e gritar de medo”, contou. Ficar no Líbano era muito difícil, pois “os libaneses não gostam dos sírios. Eles não querem dar trabalho para os homens, só para as mulheres, porque podem pagar muito menos assim”. Damasco é o único lugar onde a guerra é mais amena, porém o custo de vida está cada vez mais alto e a cidade está lotada, não conseguindo atender às necessidades básicas das pessoas”. Enquanto ela contava sua história e a atual situação no Brasil, entrou na loja “Jasmim de Damascos” - nome que ela escolheu para a empresa que abriu recente-
A maior parte da população no País é sunita, grupo da qual fazem parte cerca de 90% dos islâmicos do mundo. O presidente pertence ao grupo islâmico alauita, uma vertente dos xiitas, que faz parte da elite econômica e política da Síria. Com apoio do Irã, da China e da Rússia, que têm uma base naval na Síria, o Governo recebe grande influência do grupo xiita Hezbolah, milícia islâmica que luta pela criação de um Estado Palestino. Os confli-
tos principais são entre as Forças do Regime de Assad, do Exército Sírio e das Milícias Leais ao Governo contra o Conselho Nacional Sírio (perseguidos sunitas), o Comitê de Coordenação Nacional (dissidentes) e o Exército Livre da Síria (dissidentes, soldados, desertores e civis armados), além dos pequenos grupos extremistas que também têm rivalidades internas e entre eles. Desde março de 2011, o conflito já soma mais de 220 milhões de mortos
mente, com a ajuda de um advogado brasileiro - uma brasileira que é casada com um libanês, para escolher um tapete. Prontamente, Fitoon mostrou modelos e cores, mas um em especial, que estava no chão e onde a filha Rahaf descansava um pouco, não estava à venda. “Este é meu, não vendo, é para nossa casa”, falou. Ao ser perguntada sobre as coisas das quais sente falta, Fitoon se emocionou. “Sinto saudade de tudo. Dos meus pais, irmãos, do trabalho, e da casa que tínhamos. Dos passeios que fazíamos pela Síria, que é linda.” Em casa, a família fala árabe e prepara a comida típica com ingredientes que encontra no mercado ou na feira próxima de onde moram. As duas filhas estão matriculadas numa escola pública e a família já conseguiu alugar uma casa na rua Humaitá, próxima da loja na Paulista, pois antes precisavam enfrentar duas horas de trânsito para chegar. “Agora, quero ficar aqui, até que acabe essa guerra, que não entendemos bem como começou, se foi por motivos políticos, econômicos ou religiosos. Temos trabalho e nossas filhas estão estudando. Além disso, todos os brasileiros ajudam os sírios. Não temos problemas com a religião e nós, mulheres, podemos continuar usando o véu. E pra mim, o mais importante, conseguimos abrir uma loja, o que não é permitido para um sírio na Europa”, disse.
e 3,9 milhões de refugiados registrados nos países vizinhos e outros 8 milhões de deslocados dentro da própria Síria, segundo dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Desde setembro de 2013, o Brasil concede visto humanitário aos refugiados sírios e seus familiares afetados pelos conflitos e o número chegou a 1.600 até março deste ano. O Brasil lidera o acolhimento de refugiados sírios na América latina.(NF)