Cuidado com o cão!

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6 a 12 de janeiro de 2016 | www.arquisp.org.br

NAYÁ FERNANDES

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Gargantilha de pérolas por R$ 39,90; óculos escuros por R$ 124 ou uma botinha cor de rosa por R$ 75. Esses acessórios, que parecem ser parte da lista de compras de uma adolescente, são alguns dos itens disponíveis nos muitos pet-shops espalhados pela capital paulista, sem falar nos que estão à venda pela internet. E não é preciso andar muito para encontrá-los, pois a população de animais de companhia no Brasil aumentou nos últimos anos e a oferta de produtos também. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2013), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada em junho de 2015, estimou a população de cachorros em domicílios brasileiros em 52,2 milhões, o que dá uma média de 1,8 cachorro por domicílio. Os dados se referem a 2013 e mostram que existem, no País, mais cachorros do que crianças, se comparados à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que aponta 44,9 milhões de crianças de até 14 anos no Brasil, também em 2013. Para além dos números, como são tratados os animais? Até que ponto alguns acessórios ou hábitos realizados pelos donos em relação aos animais são saudáveis para estes e para os próprios donos? É claro que esses questionamentos não excluem o cuidado e o respeito para com os animais e toda a criação.

O melhor amigo do homem?

Pode-se pensar numa preferência histórica do ser humano por cães e gatos ou outros animais também se adaptariam aos mesmos ambientes e rotinas com a mesma facilidade? A professora Paula Papa, doutora do departamento de cirurgia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Universidade de São Paulo (USP) explicou que há mais de 30 mil anos o ser humano convive com os cães, descendentes diretos do lobo europeu. “Historicamente, os lobos acompanhavam grupos de caçadores e coletores e se alimentavam dos restos das carcaças das caças. Com o tempo, os lobos passaram a auxiliar o ser humano nas caçadas e a proteger o grupo contra outros predadores. Por sua vez, o ser humano iniciou o processo de seleção dos lobos, tomando para companhia os mais dóceis. Dessa maneira, em perfeita simbiose, cães e seres humanos convivem a mais tempo do que seres humanos e qualquer outro animal doméstico.” A Professora fez também uma distinção entre animais domésticos e de companhia. “Os domésticos não necessariamente escolheriam a companhia dos seres humanos se estivessem em seu ambiente natural. Animais de companhia são os cães e os gatos, exclusivamente. A docilidade deles foi selecionada pelos humanos ao longo dos muitos mil anos de convivência dessas espécies em seu ambiente natural. Cães e gatos não deixaram as florestas, mares ou desertos de

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maneira forçada, mas acercaramse do ser humano, pois essa espécie também lhes beneficiava de alguma maneira. Pode-se dizer que foi um processo natural que transformou os cães e os gatos nos melhores amigos e companheiros do ser humano. Qualquer outra espécie, nas condições atuais de vida dos humanos, não teria a oportunidade de passar por este processo natural de aproximação”, explicou Paula. Monike Soares tem cinco gatos, todos resgatados da rua. “Um deles é uma gata abandonada na clínica após ter sofrido traumatismos devido à queda de um prédio de nove andares”, contou a médica veterinária formada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Monike falou sobre a mudança sofrida ao longo do tempo no relacionamento entre cães, gatos e o ser humano. “Os cães eram usados para proteger a casa de possíveis invasores e, além de proteção, eram também companhia. No ambiente rural, trabalhavam no pastoreio de animais de produção. Hoje, eles não precisam mais proteger seus donos, mas sim fazer companhia. Nesse sentido, os felinos têm conseguido abarcar uma grande massa de pessoas que preferem um animal mais calmo. Gatos não latem e necessitam de menos cuidados com banhos e passeios na rua”, considerou Monike. Já Juliana Laurito Summa, bióloga, enfatizou que aconteceram modificações na constituição dos animais, ou seja, “quando os dividiram em raças, cruzaram aqueles dóceis ou bravos,

Nos lares brasileiros já há mais cães do que crianças; ter um animal de companhia em casa é benéfico, mas exageros de gastos e de atenção são questionáveis e assim, aconteceu uma seleção para que alguns existissem exclusivamente para serem cães de companhia ou de guarda etc”.

É hora de ter um ‘cãozinho’!

Muitos podem ser os motivos que levam um casal, uma família ou uma pessoa qualquer a ter um animal de companhia. Thais Sisti Schultheisz, psicóloga e professora, afirmou que não se pode dizer que exista um perfil específico de pessoas que têm animais em casa. “Eles estão mais incluídos nos espaços de solteiros, casais sem filhos, famílias, idosos e em outras situações. Talvez porque o ser humano está cada vez mais voltado para o trabalho e menos tempo com os amigos. O nível de confiança e de trocas afetivas têm diminuído e quase ninguém se volta mais para as necessidades sociais e do outro. Thais atribui essas mudanças a uma disponibilidade cada vez menor das pessoas para abrir mão de algo ou flexibilizar satisfações pessoais e assim viver um relacionamento conjugal ou qualquer outro tipo de

relação. “Nesse sentido, um ‘pet’ é incorporado à vida das pessoas como aquele que aceita o dono de forma incondicional, com seus defeitos e qualidades, sempre retornando quando solicitado”. Outra realidade, apontada por Monike, é de as famílias serem compostas por casais que priorizam o trabalho: são as pessoas que não abandonam seu núcleo familiar inicial ou que optam por se manterem solteiras. “Cães e gatos não passam pelas transformações que as crianças passam. Bebês viram crianças, que viram adolescentes e, por fim, adultos. Ou seja, não nos fazem perder noites de sono e nem tão pouco nos respondem mal e nos fazem sofrer pelas suas escolhas de vida”. E completa: “É mais fácil cuidar de um bichinho do que de um bebê. Pode-se deixá-lo em casa por algum tempo, apenas com suprimento de ração e água. É claro que se deve também estar consciente de encontrar, na volta a casa, o lixo revirado, o sofá destruído, até como uma forma de demonstrar seu desagrado com a ausência dos donos. Porém, a presença de um animal em casa não é prejudicial, mas a maneira que se esta-

belece relações afetivas com ele pode chegar a ser. Estar em contato com a família acaba sendo mais difícil do que estar em casa ou a passeio com o animal, que aceita o dono como é. Há que se adequar as relações e pensar o quanto o meio sociocultural está nos afastando de contatos sociais”, continuou Thais.

Cuidado, sim! exagero, não!

Mas, e quando se atribui ao cachorrinho ou ao gato características humanas? Hotéis de luxo, quartos com televisão, chocolates finos, grama sintética, brincos, perfumes e outros acessórios? Thais foi firme ao dizer que “amar o animal é saudável e esperado na medida em que este foi escolhido, mas descaracterizá-lo e querer transformá-lo em humano pode ser um sinal de patologia que deve ser tratada. A solidão não pode escravizar ninguém”, salientou a psicóloga. Paula Papa disse ainda que incutir hábitos de seres humanos nos animais é uma expressão de antropomorfismo, ou seja, transformá-los em algo que não são. “Nenhum animal em seu ambiente natural desenvolveu algum tipo de roupas ou sapatos para se proteger do frio, do calor, da chuva ou da neve. Alguns cães e gatos demonstram claramente que aquilo os incomoda a ponto de ficarem imóveis quando calçam sapatos ou vestem roupas. Como guardiões responsáveis, devemos cuidar para se sintam perfeitamente à vontade e felizes e tratá-los como seres humanos pode significar induzir estresse e

desconforto desnecessários à vida de nossos animais de companhia”, insistiu a professora da USP. Monike salientou que “o uso prolongado de roupas pode causar um emaranhado nos pêlos no animal e ele irá sofrer bastante para que seja retirado. Sapatos também devem ser evitados, já que o cão não possui glândulas sudoríparas no corpo. O único lugar em que estão presentes, em pequena quantidade, é juntamente nas patinhas. Brincos, nem pensar. Considero uma mutilação”. É importante lembrar, ainda, que esses acessórios não foram pensados do ponto de vista do conforto dos animais, mas do lucro mercadológico. “Para o ‘mercado pet’, infelizmente, quanto mais antropomorfizado o animal for tanto melhor, pois eles podem empurrar todo tipo de bugiganga. É um apelo cada vez maior para que o pet seja o filho peludo e a pessoa se cobre sempre mais por não fazer o suficiente. E esses exageros podem ter efeitos deletérios para a saúde dos animais”, continuou a veterinária.

Sim, vamos adotar um animal!

A realidade dos animais abandonados faz com que as pessoas se mobilizem nas redes sociais, sites e grupos que incentivam a adoção, reprovando a atitude de criadores que vendem os animais por preços exorbitantes, tratando-os como mercadorias. Afinal, se o animal foi o escolhido para ser companhia, comprá-lo como se escolhe um item qualquer

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no supermercado pode não ser a atitude mais coerente. Juliana Summa tem dois cães e sempre teve cachorro em casa, desde criança. “Já tive gatos de raça, sem raça, abandonados e em situação de abandono. Atualmente, tenho uma shitzu, que foi abandonada em um parque ainda filhote, provavelmente porque estava com giárdia, uma espécie de protozoário que parasita o intestino, comum nos animais, e que pode hospedar-se também no ser humano. Foram necessários três meses de tratamento. Ela come ração específica, toma banho a cada 15 dias no pet-shop e não é todo mundo que está preparado ou tem condições financeiras para tudo isso. Então, abandona mesmo”, disse a bióloga. Há muitos benefícios em ter um animal. Correntes da psicologia os recomendam em casos de tratamento de distúrbios psicológicos, a chamada “Pet Terapia”. Isso sem falar nos cães-guias, que são treinados para acompanhar pessoas com deficiências visuais. Thais explicou que, além disso, um cão ou um gatinho pode auxiliar na melhora dos vínculos familiares, na formação e integração da identidade das crianças ou na preparação para a maternidade ou a paternidade, por exemplo. “Quanto a casais sem filhos, preenche o espaço muitas vezes destinado a um bebê ou na elaboração da ansiedade para engravidar, já que um animal precisa de cuidados com alimentação, saúde e afeto constantes. É um ‘abrir espaço’ na vida do casal para um novo membro”, completou a psicóloga. Arte: Sergio Ricciuto Conte


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