12 a 18 de outubro de 2016 | www.arquisp.org.br
A criança se apropria do mundo quando brinca e é essencial que tenha tempo livre para criar a partir do nada, para se aventurar pelo mundo da brincadeira Nayá Fernandes
nayafernandes@gmail.com
A placa branca com a escrita abreviada foi colocada na parede verde sobre uma porta sempre aberta. Ela, a placa, chama atenção, seja pela simplicidade, seja porque se trata de um negócio bem inusitado para os paulistanos, sempre ávidos por novidades. “Acho que são cinco ou seis em toda a cidade”, disse Donizete Sacramento, que desde 1982 trabalha consertando brinquedos. Aos 58 anos, ele é casado, tem dois filhos e nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia. “Vim para o interior de São Paulo aos 7 anos com minha família e aqui na capital cheguei quando tinha 24 anos”, contou à reportagem do O SÃO PAULO. Na rua bem em frente à estação de metrô Parada Inglesa, na zona Norte de São Paulo, Sacramento mantém um negócio autônomo para consertar brinquedos desde o ano 2000. Mas, na semana do Dia das Crianças, sente que a profissão não é mais como antes. “Em outros tempos, eu recebia umas 30, 40 pessoas; hoje não vieram nem 10”, lamentou, enquanto mostrava uma boneca que havia acabado de consertar. “Os brinquedos são, em sua maioria, fabricados na China e não mais feitos para durar. Além disso, as crianças não têm mais aquela ligação afetiva com a boneca ou o carrinho e se encantam muito mais com os eletrônicos”, disse. E, se o público-alvo de Sacramento, as crianças, não tem correspondido às expectativas de um “consertador de brinquedos”, são os mais velhos que mais utilizam seus serviços. “Hoje recebi um senhor de 73 anos que trouxe dois carrinhos para eu consertar”, falou, apontando para os brinquedos no canto da pequena sala com vitrines de vidro.
Em busca da vida
Carlo Collodi, criador do romance em que Pinocchio, o boneco de madeira criado por Geppetto ganha vida, talvez nem imaginasse que mais de cem anos após a sua história ganhar o mundo, existiria, do outro lado do oceano, alguém que olha para os brinquedos e vê que eles são parte de sua vida tanto quanto Pinocchio era para Geppetto como um filho nascido de suas mãos. Contos à parte, um personagem real como Sacramento na megalópole paulistana chama atenção para a realidade da infância hoje. “Não sou contra a tecnologia, veja quanta facilidade e economia trouxe o WhatsApp, por exemplo, mas hoje tudo perde o valor muito rápido”, comentou o baiano, que já está fazendo planos de ir embora da capital. Porém, quando tudo se torna descartável, a sociedade corre o risco de educar pessoas para a superficialidade e até mesmo as relações humanas podem ser consideradas descartáveis. Geppetto foi à procura de Pinocchio quando o boneco, em busca da sua liberdade, saiu pelo mundo, deixando seu criador. No reencontro, os dois no ventre da baleia, fizeram um caminho existencial, de conhecimento entres eles e de si mesmos. Essa busca existencial ajuda a perceber que, para além dos brinquedos como presente, no Dia das Crianças, elas precisam dessa atitude de liberdade, do ócio, de tempo livre para criar, para inventar seus próprios brinquedos, para não fazer nada além de imaginar. “As crianças precisam das brincadeiras de roda, brincadeiras de corpo, precisam correr, empurrar, puxar, brincar ao ar livre, subir e descer de árvores e taludes, escorregar e pular, precisam cantar e dançar, todas essas coisas im-
‘Conserto brinquedos’, a oficina de Sacramento possíveis de fazer dentro de quatro paredes que mais se parecem com miniprisões, onde o professor vira carcereiro e recreio mais se parece com o banho de sol”, disse Regina Machado, fundadora do Projeto Âncora, uma escola alternativa que acolhe, em Osasco (SP), crianças da comunidade. Para ela, a criança traz dentro de si os recursos para o seu processo de desenvolvimento físico, emocional e mental. “A brincadeira é o modo privilegiado como a criança se apropria do mundo. A criança que brinca, aprende o que é alegria, liberdade e prazer, valores que não abrirá mão durante a vida”, explicou a educadora, que tem dois filhos e acredita numa educação que vai muito além da sala de aula.
mento é quase um projeto de vida para ele, é sua fonte de renda, o trabalho que ele aprendeu para viver. Mas poderíamos dizer que cada um de nós poderia ser, em certo modo, este sinal para o mundo de que é sábio quem aprendeu e não esqueceu, mesmo depois de ter crescido, que brincar é uma aventura na qual o ser humano descobre a si mesmo, ainda que nunca esteja, como Geppetto e Pinocchio ou como Jonas, o personagem bíblico, no ventre de uma baleia em alto-mar.
Sábio é quem sabe brincar
Com o brinquedo que Sacramento consertou, ao ar livre, ou com as panelas do armário na cozinha, é unânime a opinião de que as crianças aprendem e se “apropriam do mundo” brincando, como lembrou Regina. E, provavelmente, não é nada fácil ser criança num mundo onde o nada não é valorizado e os dias em que se trabalha – de segunda-feira à sexta-feira – são considerados dias úteis e os fins de semana estão cheios de atividades a serem realizadas, extensas agendas a serem cumpridas, compromissos marcados até o fim do ano, almoços rápidos com horário para começar e terminar. A oficina de Sacramento não tem segredos, mas está repleta de sonhos. E feliz de quem descobriu quanta sabedoria existe no brincar. No livro bíblico dos Provérbios, é a própria sabedoria que, personificada em uma criança, diz que estava junto a Deus como uma criança e brincava “todo o tempo diante dele sobre o globo da Terra” (cf. Pr 8, 30-31). “Conserto brinquedos”, a placa da oficina de Sacra-
Luciney Martins/O SÃO PAULO
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