NAYRA WLADIMILA BEZERRA BASTOS
A REPRESENTAÇÃO DAS CLASSES POPULARES DE BELÉM NO JORNAL A PROVÍNCIA DO PARÁ (1898 – 1911)
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
apresentado para obtenção do título de graduação em Comunicação Social – Jornalismo apresentado à Universidade da Amazônia – UNAMA. Orientador: Prof. Me. Marcus Vinnicius Leite
ANANINDEUA 2012
NAYRA WLADIMILA BEZERRA BASTOS
A REPRESENTAÇÃO DAS CLASSES POPULARES DE BELÉM NO JORNAL A PROVÍNCIA DO PARÁ (1898 – 1911)
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
apresentado para obtenção do título de graduação em Comunicação Social – Jornalismo apresentado à Universidade da Amazônia – UNAMA. Submetido à banca examinadora constituída por:
___________________________________ Prof. Me. Marcus Vinnicius Leite
UNAMA – Orientador, Presidente
_____________________________________
Prof. Dr William Tavares Jr. UNAMA – Membro
Julgado em 20 de dezembro de 2012 Conceito:___________________
ANANINDEUA 2012
Para John, Pela confianรงa.
AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador Marcus Vinnicius, que me ajudou em um momento em que eu estava completamente perdida, correndo contra o tempo comigo, trazendo livros interessantes (um deles bem difícil de carregar pela rua, confesso), respondendo às minhas dúvidas rapidamente, sendo muito atencioso e demonstrando interesse pela minha pesquisa. Muito obrigada não só pela orientação, mas pelos conhecimentos repassados ainda como professor da minha turma. Ao meu primeiro orientador, pelas indicações de leitura, e ao professor William Tavares Jr por ter se disposto a me ajudar a entender as rivalidades durante o governo de Antonio Lemos, por também ter me indicado bibliografia e principalmente, por sempre enfatizar nas suas aulas que “o público não é idiota”, como ele mesmo disse uma vez. Aos funcionários da Fundação Tancredo Neves, por terem disponibilizado o acervo e por sempre me tratarem bem, inclusive graças a eles recebi dicas de vendas de almoços bem baratos e saborosos... Aos meus colegas e superiores na Rádio Cultura, por terem me compreendido sempre que eu pedia mudança de turno para conseguir ir à biblioteca, e aos colegas que fiz enquanto trabalhei na própria Fundação Tancredo Neves, por também me apoiarem com o tema do TCC. Aos meus colegas de universidade, agradeço profundamente pela companhia, pelos conselhos, pelos momentos bons e ruins que passamos, por todas as desavenças que tivemos e que fortaleceram nossa amizade. Agradeço por termos conseguido realizar todos aqueles trabalhos que achamos que seriam impossíveis de serem executados. Tudo valeu a pena porque agora estamos aqui. À minha tia Lourdinha, com quem tenho morado desde o penúltimo ano do curso, agradeço primeiramente por ter me abrigado em sua casa. Apesar de tê-la “abandonado” várias vezes, ela sempre compreendeu que eu precisava passar bastante tempo sozinha para conseguir escrever este trabalho. Mas pelo que sou grata realmente é pelo seu otimismo incurável, me ensinando a ser mais tolerante, a perdoar e a confiar mais em mim mesma. Agradeço muito ao meu namorado, John, que acompanhou de perto a produção deste trabalho, pedindo para ler as prévias dos capítulos para criticar no que fosse preciso. Obrigada por me encorajar quando precisei de apoio, por suportar os meus momentos de fraqueza e tristeza, as minhas ausências... Obrigada por estar ao meu lado.
Ao meu pai, por ter sido a minha biblioteca quando eu era criança, por ter me incentivado a ler, por todas as vezes em que se sacrificou por mim (incluindo para que eu pudesse continuar meu curso). Aquele pequeno caderno comprado quando eu tinha apenas sete anos culminaria na minha escolha pelo jornalismo aos doze. Por isso, muito obrigada. À minha mãe, pelo seu jeito divertido de ser e pelo seu coração enorme, sempre ajudando as pessoas, até mesmo quem ela mal conhece. Ela, que sempre batalhou para que eu tivesse uma vida confortável e que me daria alguns dos melhores livros que já li, me apresentaria outra realidade ao me levar para o seu trabalho em escolas públicas. Aos dois, pois mesmo sabendo que eles gostariam que eu tivesse escolhido uma carreira mais rendosa, me deram um voto de confiança permitindo que eu estudasse jornalismo. Agradeço por terem me ensinado a importância da honestidade, da simplicidade, do trabalho duro e do amor à família. À minha tia Suely, a quem chamei de mãe quando era criança, por todo o amor incondicional que dedica a mim, fazendo o possível para que eu não me sentisse triste quando a mamãe não pudesse estar ao meu lado. Saiba que os anos em que morei na sua casa foram os melhores que já vivi. A todos os meus amigos e ao restante da minha família, agradeço pela companhia, pelas distrações, pelos conselhos e por terem se sentido felizes quando fui aprovada no vestibular, quando consegui meus estágios... Por acreditarem que eu seria capaz de chegar até aqui. Todas estas pessoas se envolveram diretamente com este trabalho ou conviveram comigo por muito tempo. Mas gostaria de reservar o final desta página para agradecer a pessoas que nunca lerão isto, mas que foram muito importantes para mim: todos os meus professores. Muitas vezes eles foram mal recebidos nas salas em que estudei, mas ainda assim eu reconhecia o esforço deles em ensinar aqueles jovens os quais mal conheciam, desde coisas básicas como cobrir um tracejado até a formar o nosso senso crítico. Se hoje estou me formando na universidade, foi graças à ajuda destes profissionais, que sempre com muita paciência repetiram o que eu não entendia, se sentaram ao meu lado para me explicar um assunto, me estenderam a mão nas muitas vezes em que eu tive medo, me apoiaram quando eu me senti sozinha. Guardo até hoje não apenas as lições das aulas, mas todos os conselhos, todos os desabafos e personalidade que eles mostraram diante das minhas turmas na escola.
“As ideias são muito mais poderosas do que as armas.” Joseph Stálin.
“Eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade, algumas vezes maravilhando-me: por que tal ou qual coisa? E é isso que me faz pular para o passado: eu penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo presente.” Philippe Ariès.
Resumo
Este trabalho investiga o modo com que as populações pobres de Belém eram retratadas nas matérias publicadas em 1898 e 1911 pelo jornal mais conhecido da cidade na época, A Província do Pará, era propriedade do intendente Antonio Lemos. Para tal, será utilizado a Análise de Conteúdo, relacionando o contexto histórico com a prática jornalística. O presente estudo chegou a conclusão de que a abordagem do diário era influenciada pelas transformações políticas, culturais e econômicas pelo qual passava a cidade, disseminando em seus textos os ideais de modernidade e as políticas desejadas por Lemos. Porém, ao mesmo tempo em que repreendia os costumes das classes populares, A Província do Pará buscava a qualidade de suas notícias, construindo uma relação de credibilidade com seus leitores. Palavras-chave: A Província do Pará, relação entre jornalismo e história, classes populares.
ABSTRACT
This study investigates the way that the poor from Belem were portrayed in materials published in 1898 and 1911 by the most famous newspaper in the city at the time, A Provincia do Parรก (The Province of Para). This newspaper was owned by the quartermaster Antonio Lemos. To do this review, we will use content analysis, relating the historical context to journalistic practice. This study reached the conclusion that the approach of the diary was influenced by political, cultural and economic transformations that the city was experiencing, spreading in his writings the ideals of modernity and policies desired by Lemos. Though at the same time that rebuked the customs of the lower classes, The Province of Para sought the quality of their news, building a relationship of credibility with its readers. Keywords: The Province of Para, relationship between journalism and history, popular classes.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10 2. CAPÍTULO 1: JORNALISMO E HISTORIA ..................................................... 12 2.1 A relação entre Jornalismo e História ................................................................. 12 2.2 Teorias importadas da Europa ............................................................................. 13 2.3 Construindo uma História da Imprensa ............................................................. 16 2.4 Apresentando o protagonista: A Província do Pará ........................................... 19 2.5 A intendência de Antonio Lemos ......................................................................... 22
3. CAPÍTULO 2: OS EXCLUÍDOS DA BELLE ÉPOQUE .................................... 27 3.1 Formas de Moradia ............................................................................................... 30 3.2. Emprego ................................................................................................................ 35 3.3 Em busca de diversão: o lazer............................................................................... 40 4. CAPÍTULO 3: ANÁLISE DAS NOTÍCIAS DE A PROVÍNCIA DO PARÁ ........................................................................................................................................ 46 4.1 Edições de 1898 ...................................................................................................... 47 4.1.1 Notícias referentes ao estilo de vida da época ...................................................... 50 4.1.2 Notícias referentes às ações dos populares .......................................................... 55 4.1.3 Notícias referentes ao próprio jornal ou ao governo de Antônio Lemos ............ 63 4.2 Edições de 1911 ...................................................................................................... 66 4.2.1. Notícias referentes ao estilo de vida da época ..................................................... 68 4.2.2 Notícias referentes às ações dos populares ........................................................... 71 4.2.3 Notícias referentes ao próprio jornal ou ao governo de Antônio Lemos ............. 76 4.3 Comparações .......................................................................................................... 79 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 84 FONTES ....................................................................................................................... 89 Arquivos audiovisuais ................................................................................................. 90 Documentos Impressos:................................................................................................ 90 Demais Periódicos ........................................................................................................ 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 92 ANEXO A – MIXED PICKLES ................................................................................. 96 ANEXO B – DO RIO .................................................................................................. 98
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1. INTRODUÇÃO
A Belle Époque em Belém costuma ser lembrada como um período de intensa modernização e riquezas, na qual a cidade ganhou largas avenidas, arborização e novas construções no lugar dos antigos casarões coloniais e das casas pequenas. O intendente Antonio Lemos, responsável pelo novo aspecto da capital, é considerado um dos mais importantes (se não o mais) governantes que a Amazônia já teve. Com sua política de limpeza e desenvolvimento, ele alçou Belém ao status de metrópole com reconhecimento internacional. No entanto, boa parte da popularidade do intendente e da cidade que ele governava só era possível graças à ajuda da imprensa, mais precisamente do jornal que ele mantinha desde antes de ser eleito: A Província do Pará. Eram através das páginas do periódico que a riqueza, o esplendor, as inovações e as diversões emergentes eram propagadas entre a população e os turistas. Porém, na contramão destas mudanças estava um grupo que se gostaria que ficasse escondido, tanto das notícias quanto das ruas. Famílias negras, pardas, indígenas e de imigrantes viviam às voltas com desapropriações de terrenos e habitações sem saneamento básico, ficavam de fora dos bailes e dos cafés, e tinham os seus costumes repreendidos pelo governo e pela elite. Esta parcela da população, então, procuraria suas próprias maneiras de viver a Belle Époque, mas chamando a atenção de vez em quando. Descobrir de que forma estas pessoas moravam, trabalhavam e se divertiam e de que forma A Província do Pará as retratava será a meta deste trabalho. O jornal considerava o estilo de vida delas ou só mostrava-as quando a intenção era repreender suas atitudes? Antes de iniciar a pesquisa, podia-se imaginar que apenas a realidade da nobreza de Belém seria divulgada, mascarando o máximo possível os problemas sentidos pelos pobres. É provável que a credibilidade do jornal seja reduzida diante destes povos, que resistia aos costumes impostos pelo intendente Antonio Lemos. O diário podia criar a imagem de que Belém era uma cidade próspera, ignorando assim as necessidades das classes populares, que apareciam nas seções policiais. A monografia aqui apresentada procura, assim, responder a estas questões, contribuindo para a formação do panorama das classes populares de Belém, ajudando a
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desmistificar o ciclo da borracha na capital do Pará ao derrubar alguns sensos comuns remetidos àquela época. Espera-se auxiliar futuros pesquisadores e enriquecer o conhecimento de amantes da área, ajudando a divulgar tais aspectos. É preciso que cada vez mais se conscientize de que a Belle Époque não foi somente um período áureo, mas sim um período de conflitos e resistências. Para tanto, a monografia será dividida em três capítulos: a primeira, com uma aproximação entre os métodos de pesquisa da história e a prática jornalística, situando a imprensa de Belém no contexto político e cultural da época estudada – a virada do século XIX para o XX. Parte-se do princípio de que a produção de A Província do Pará sofria influências dos acontecimentos de seu período histórico, que eram a Proclamação da República no Brasil, a eleição de Antonio Lemos como intendente de Belém, a expansão econômica do látex e a formação do capitalismo na região. No segundo capítulo, serão apresentados os grupos que compunham as classes populares de Belém, estudando elementos do seu cotidiano: as suas moradias, o seu trabalho e as suas formas de lazer. Serão buscados contrastes entre as políticas lemistas1 e a vida dessas pessoas, para mostrar as falhas no seu governo; e as aproximações com a classe abastada da cidade. O terceiro e último capítulo será o da leitura das notícias e artigos de A Província do Pará. O método utilizado será o da Análise de Conteúdo, para dois anos do governo de Lemos: 1898, o primeiro ano completo em que ele governou Belém; e 1911, o último ano em que ele esteve no cargo da chefia municipal – lembrando que em junho de 1911 ele renunciou, mas a sua facção continuou no controle. Desta forma, no final da análise, espera-se que as notícias e artigos tenham ajudado a entender melhor como foram representadas as pessoas populares da virada daquele século, como viviam e quais problemas enfrentavam. Espera-se encontrar como se dava a ocultação das mazelas sociais nas páginas dos periódicos e a explicação para elas serem ocultadas, ficando a esperança de ser incentivada a curiosidade da sociedade em saber mais sobre a própria cidade.
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Nome utilizado como referência a Antonio Lemos.
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2. CAPÍTULO 1: JORNALISMO E HISTORIA 2.1 A relação entre Jornalismo e História
Os grandes acontecimentos da Humanidade já eram narrados desde o período Antigo, mas foi a partir do século XIX que a História se tornou uma disciplina. Influenciada pela objetividade positivista2, ela se comprometeu a contar os fatos linearmente, tomando os documentos oficiais como fontes por eles terem “confiabilidade”. Por causa disso, a História foi escrita “de cima”, já que foram considerados importantes os eventos que mais apareciam nos feitos dos reis e generais. O método foi criticado somente cem anos depois. Foi dito que era descritivo demais, e passou-se a entender os “mecanismos que presidem as mudanças históricas”, procurando outras fontes além das oficiais (ROMANCINI, 2005, p. 3). “Propõe-se então [...] a feitura de diferentes discursos, ‘histórias’ sobre ou para grupos particulares. História, frequentemente de teor interpretativo-hermenêutico [...]” (ROMANCINI, 2005, p. 5), aproximando-a de outras disciplinas e originando ramificações como a História Cultural, onde as práticas sociais influenciam a realidade construída. É neste ponto que ela encontrará semelhanças com a prática do jornalismo. Mas, como? Ambos não deveriam se misturar, pois enquanto que o primeiro investiga o passado, o segundo se propõe a falar sobre a atualidade, da maneira mais objetiva possível, possuindo até uma estrutura narrativa diferenciada. É verdade. Mas na prática, os dois se complementam. O jornalismo assim como a História também se apropria de outros conhecimentos para construir o seu discurso, como um trabalho científico, um evento político, um filme, dentre outros. Além disso, apesar de os historiadores escreverem linearmente, em longas dissertações, quando são entrevistados ou produzem conteúdo para a imprensa precisam adotar uma linguagem objetiva e clara – “a descrição de uma cena, [...] metáfora explicativas para facilitar a compreensão dos leitores”. E o próprio jornalista, ao se aventurar nas grandes 2
Conhecido como “religião da humanidade”, o Positivismo é uma filosofia teorizada pelo politécnico Auguste Comte na segunda metade do século XIX.Considerava que o experimentalismo sistemático e os fatos concretos levariam a humanidade ao conhecimento, desprezando a sensibilidade e a metafísica. Ignora, assim, as origens e “causas íntimas” das coisas. (RIBEIRO JÚNIOR, 1982, p. 15 e 16)
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reportagens e nas colunas, também pode tomar emprestado o estilo do historiador, em contraposição à velocidade da redação e da edição jornalística (PEREIRA, 2008, p. 8). Acontece que tanto a produção histórica quanto a jornalística “se encontram em constante transformação e diversificação, estabelecendo também relações de oposição, analogia ou complementaridade entre si e com outros discursos”, ou seja, nenhum dos dois produz verdades absolutas, sendo resultado de um conjunto de estratégias influenciadas por fatores econômicos, gêneros (uma reportagem é diferente de uma notícia, uma crônica histórica é diferente de uma análise marxista) e instituições (PEREIRA, 2008, p. 5). Desta forma, Jornalismo e História se complementam. Por isso, não seria surpreendente que esta afinidade se estendesse à pesquisa científica. Materiais e métodos de trabalho podem ser emprestados um pelo outro, sendo o material produzido nas redações utilizado como corpus documental de um pesquisador meses e até décadas depois. A História da Imprensa, ramo de estudos que nada mais é do que a fusão das duas disciplinas, procura se libertar da mera descrição de periódicos para refletir sobre o conteúdo jornalístico à luz das influências culturais sob os produtores e os leitores, bem como das condições de produção dos periódicos. Marialva Barbosa (2004; p.6) acredita que ao se fazer a História da Imprensa não se “recria o passado”, e sim se “reinterpreta esse passado”. Construir uma história da imprensa é fazer o mesmo movimento que se produz para a ‘escrita da história’, seja qual for o objeto empírico pesquisado. É perceber a história como um processo complexo, no qual estão engendradas relações sociais, culturais, falas e não ditos, silêncios que dizem mais do que qualquer forma de expressão, e que na maioria das vezes não foram deixados para o futuro. Compete ao historiador perguntar pelos silêncios, identificar no que não foi dito uma razão de natureza muitas vezes política. (BARBOSA, 2004, p. 3).
Investigar estes silêncios e entender o contexto político e cultural em que um periódico está inserido – no nosso caso, A Província do Pará – é o que se espera realizar ao longo deste trabalho. 2.2 Teorias importadas da Europa
Antes de adentrarmos no surgimento da imprensa no Pará e no cenário histórico da referida época, há considerações importantes a serem feitas sobre as transformações que
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influenciariam o desenvolvimento político, cultural e da imprensa daquela região. Enquanto que a República seria proclamada no Brasil somente no século XIX, desde o final do século XVIII a Europa sofria transformações com o novo regime. Michelle Perrot (1991, p. 36 e 69), ao estudar a Revolução Francesa e o Iluminismo, percebeu o quanto a vida pública e privada de toda a população foi modificada. Napoleão Bonaparte, imperador e militar francês que ajudou a combater a nobreza, defendeu a difusão do conhecimento, iniciando um novo sistema de educação nacional no seu país. Na Inglaterra, que não se converteu ao Republicanismo e resistiu inicialmente ao Iluminismo por causa dos fortes movimentos evangélico e utilitarista3, a nova rotina industrial e o aparecimento da burguesia transformariam até o jeito de morar da população. Em ambos os casos, disseminavam-se sentimentos como a valorização do trabalho, o progresso e o desejo de se modernizar culturalmente, ideais do sistema econômico que emergia: o capitalismo. Martín-Barbero (2003, p. 144) acrescenta ainda o desejo que os revolucionários tinham – e que logo se estenderia aos mais ricos – de formar um estilo de vida único, onde “a integração das classes populares [...] é a proletarização não só no sentido da venda do trabalho, mas também [...] a interiorização da disciplina e da moral que ‘os novos tempos’ exigem”. Estes novos conceitos chegaram ao Brasil através da imprensa e da importação de livros estrangeiros. Os jornalistas e precursores das Ciências Sociais brasileiras, Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, escreveram sobre estes e outros temas da época (principalmente o darwinismo social), conseguindo aceitação por parte da intelectualidade nacional. No entanto, eles não demoraram a perceber que o país não se encaixava no conceito de “civilização desenvolvida” proclamado pelo darwinismo social. Renato Ortiz (2006, p. 15) aponta dois argumentos que nortearam a resposta para a pergunta formulada na época – “por que o Brasil é primitivo?” -: o meio e a raça. O primeiro argumento, o da teoria determinista do meio ambiente, usada pelo 3
O utilitarismo é uma teoria fundada pelo inglês Jeremy Bentham e que ia de encontro ao “direito natural” absolutista e aos ideais revolucionários franceses. Seu mote era o “Princípio da Maior Felicidade”, no qual a existência humana deve priorizar ações que farão bem a toda a sociedade, e não somente a si próprio. A solidariedade, portanto, é bastante cultivada pelos seus adeptos, frente ao egoísmo. (MILL, 2000, p. 197.)
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historiador inglês Buckle para comparar a realidade brasileira com a europeia, constatou que o país latino tinha condições para ser desenvolvido, e que se encontrava daquele jeito por culpa dos “ventos alísios”. A resposta de Buckle, criticada pelos intelectuais brasileiros pela sua falta de conhecimento sobre o nosso país, não recebeu réplicas à sua essência: a de que o meio era um discurso científico. Quanto ao segundo argumento, a raça, ela se tornou uma problemática com a abolição da escravatura. Antes, ainda nos idos do Romantismo, os escritores e jornalistas Gonçalves Dias e José de Alencar fabricavam um modelo de índio civilizado enquanto que as populações africanas eram completamente esquecidas, literariamente e historicamente falando. Quando os negros foram libertos, transformaram-se em um fator dinâmico da vida social e econômica, sendo finalmente lembrados – até mais do que os índios, a quem todos pensavam estarem fadados ao desaparecimento. O negro e o índio, sob a ótica evolucionista, seriam apáticos, imprevidentes, nervosos,
de
sexualidade
desenfreada,
irracionais,
desequilibrados
moral
e
intelectualmente – ou seja, seriam entraves à civilização brasileira. Mesmo o mulato, o cruzamento entre raças desiguais, não era desejado pela intelligentsia brasileira, porque ele teria mantido as características negativas dos dois primeiros. Por isso, para alcançar os parâmetros europeus, seria melhor “branquear” a população: Dentro desta perspectiva, a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das ‘raças inferiores’, o que politicamente coloca a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade presente. (ORTIZ, 2006, p. 21)
Portanto, os jornais brasileiros da República emergente fariam o papel de propagandistas dos novos tempos, contribuindo para o afastamento da “herança maldita” de Portugal. Seja denunciando atos considerados imorais e propagando a imagem do lar e da prosperidade, seja oferecendo espaço para que o povo possa entender e questionar o novo sistema, eles seriam ao mesmo tempo instrumentos de dominação e de resistência. Porém, os “novos tempos” já eram abordados desde o Império, como se verá a seguir.
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2.3 Construindo uma História da Imprensa
Até 1808, quando o regente português Dom João VI fugira de Napoleão Bonaparte e aportara na colônia que viria a se tornar o nosso país, os livros eram produzidos em Portugal e trazidos para o Brasil4, pois as máquinas ficavam no Velho Continente. Acomodado no Rio de Janeiro, Dom João VI liberou a importação das máquinas impressoras, permitindo que mais pessoas pudessem fundar seus próprios jornais – o primeiro a circular na Amazônia, Gazeta do Pará, vinha de Lisboa, e isto já em 1821 (FERREIRA, 2004, p.1). Este período, chamado de “Imprensa Régia” por causa da editora oficial da Regência, aumentou a difusão das letras entre os brasileiros, não se restringindo somente a publicações oficiais. Havia jornais que traziam notícias internacionais e locais, que serviam de palco para a vida intelectual luso-brasileira, e que eram lidos em voz alta para a população. Surgia também a figura do redator-panfletário, o “escritor patriota, difusor de ideias e pelejador de embates e que achava terreno fértil para atuar numa época repleta de transformações” (MOREL, 2008, p. 32 e 35). Este tipo de escritor encontraria boa aceitação no Pará, pois a elite e os políticos da região guardavam certo ressentimento com a Corte. Após o retorno da família imperial ao Velho Continente e a independência do Brasil em relação a Portugal, a monarquia se tornou mais forte. Graças à sua política centralizadora, ela captava a maioria do dinheiro arrecadado com o comércio da região (basicamente o extrativismo do cacau) e costumava escolher pessoas de outros estados para os cargos governamentais, trocando-os com a frequência que lhe fosse necessária. Era difícil para os políticos paraenses consolidarem novos empreendimentos em vista de aumentar a oferta da mão-de-obra e diversificar a economia. Tentou-se construir estradas ferroviárias e implantar colônias de estrangeiros no interior da província; e mesmo quem era contra este tipo de mercado e preferia o extrativismo percebia que o Império preferia incentivar a imigração para as regiões sul e sudeste do país, onde o clima era mais ameno e a localização mais propícia aos estrangeiros (WEINSTEIN, 1993, p. 124). 4
Marco Morel (2008, p. 24) diz que existiam mais de 300 publicações no Brasil do século XVIII, dentre manuscritos e textos impressos. Algumas pessoas tinham suas tipografias e conseguiram produzir livros em pequena escala.
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Assim, não era de se espantar que desde o início do século surgissem jornais defendendo maior autonomia da província, caso de O Paraense, fundado em 1822 por Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, que foi o primeiro produzido dentro do Pará5; O Futuro, de 1872, um dos primeiros a promover o sentimento republicano e O Abolicionista do Amazonas, de 1884, que era escrito por mulheres daquele estado. Estes jornais tinham em comum a divulgação de textos literários traduzidos e de ideias políticas, funcionando como porta-vozes dos grupos que disputavam o poder na região: os partidos Conservador e Liberal. O Conservador, que tinha maior representatividade no parlamento nacional, era bastante criticado pelos periódicos liberais, que não gostavam da centralização do Império (WEINSTEIN, 1993, p. 127). Liberais como o periódico de Felipe Patroni, por exemplo, que reproduzia6 muitos textos do utilitarista inglês Jeremy Benthan e do iluminista francês Montesquieu. Até mesmo as duas pessoas da tipografia eram “importadas”: um francês e um espanhol. “Era a tecnologia europeia que chegava à Amazônia” (FERREIRA, 2004, p.1). Com a coroação de D. Pedro II, a quantidade de diários e semanários aumentou consideravelmente, pois ele defendia a liberdade de imprensa e facilitava o consumo da cultura europeia, por ser descendente direto dos portugueses. Devido a sua ausência de resistência perante ideias contrárias ao seu governo, vários conflitos encontraram vozes nos jornais: desde os ideais abolicionistas até as revoltas separatistas, passando pelas crises do Estado com a Igreja e os militares. Foi nesta época também que as profissões de jornalista e tipógrafo foram consolidadas no país. No entanto, a qualidade técnica das folhas ainda não demonstrava grande avanço: os equipamentos de 1808 seriam substituídos somente em 1845, recebendo nova reforma em 1877. A transição da imprensa artesanal para a mecânica seria demorada. (MARTINS, 2008, p. 57). Provavelmente a isto se deveu o aparecimento de outro grupo antimonarquista, o Clube Republicano do Pará, em 1886. Ele não era uma ramificação do Partido Liberal, 5
Entre os séculos XIX e XX circularam em Belém diversos jornais destinados às classes populares, seja escritos por comunidades religiosas, seja por mulheres ou por pessoas da periferia. Porém, a maioria não sobrevivia por mais de dois anos, tendo sido impossível a sua localização nos acervos atuais das bibliotecas. (BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ, 1985). 6 “O[s] jornal[is] realizava também divulgação (e reinterpretação, com frequência) dos livros nos anos de 1820 e 1830, antes de se expandir a publicação de volumes em folhetins nos periódicos. Ou seja, mesmo quem não tinha acesso a tais livros, poderia eventualmente lê-los em extratos na imprensa episódica.” (MOREL, 2008, p. 37).
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visto que possuía membros bastante jovens como Lauro Sodré, Serzedelo Correa e Justo Chermont, todos com pouco mais de 30 anos. Além disso, os três principais líderes do Clube tinham um diferencial em relação ao grupo político: Chermont morou nos Estados Unidos, onde teve contato com os ideais democráticos, enquanto que Sodré e Correa estudaram na Escola Militar, onde conheceram o positivismo e o republicanismo (WEINSTEIN, 1993, p. 130). Estas ideias republicanas de progresso advindo de um Estado laico e democrático se espalhariam rapidamente pelos periódicos e entre a elite paraense. Não que todos os políticos e proprietários concordassem com o que estava escrito, mas realmente havia descontentamento com a falta de apoio financeiro da monarquia, além de que os textos revelavam o contraste entre a situação dos países do Norte e a em que o Brasil ainda se encontrava: monárquico, escravocrata e analfabeto. Além disso, estas folhas retomavam os conceitos já divulgados desde o século XVIII naquelas regiões, e que circulavam lado a lado com as ideias apoiadoras do Império. Até que em 15 de novembro de 1889, os grupos republicanos finalmente assumiram o poder: Em parte alguma [do Brasil], a transição foi mais tranquila do que no Pará. [...] A esmagadora maioria dos liberais e dos conservadores bandeou-se para a bandeira republicana, e até mesmo a comunidade mercantil [...] logo manifestou seu apoio a Chermont (então o único governador interino) [...] Velhos adversários políticos ajustaram-se depressa à nova situação e se reuniram amistosamente sob a bandeira do Partido Republicano, cientes das vantagens futuras. (WEINSTEIN, 1993, p. 132)
Quando a Corte Imperial finalmente exilou-se do continente sul-americano, em 1889, após 49 anos de reinado do filho de D. Pedro I, a imprensa era uma dos que festejavam as mudanças que viriam com o novo regime. Mudanças na urbanização das cidades (estética art-nouveau para as construções); novidades tecnológicas na produção e reprodução dos periódicos, melhorando o uso de fotos e charges e diminuindo os custos e preços; novo estilo literário influenciando as notícias (realismo7), novidades que estavam diretamente relacionadas com as “novas relações de mercado do setor” (ELEUTÉRIO, 2008, p. 84).
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Na literatura, a escola realista se caracterizou pela descrição e aproximação da ficção com a vida real. No jornalismo, ela gerou o sentimento de que a imprensa era o “espelho da sociedade”, participando ativamente da vida política, incitando o respeito, a intelectualidade, a grandeza moral e os protestos contra o que a imprensa julgava estar violando os direitos dos leitores e dela mesma. (PONTE,__.).
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A segunda metade do século XIX foi, assim, de transição entre a imprensa episódica, de periodicidade irregular, para a empresarial, com publicações diárias, assuntos diversos e inovações como o uso do telégrafo (FERNANDES e SEIXAS, 2010, p. 39).
2.4 Apresentando o protagonista: A Província do Pará
Fundada em 25 de março de 1876 por Joaquim José de Assis, Francisco de Souza Cerqueira e Antonio José de Lemos, o periódico foi o mais duradouro do Pará, alcançando os 125 anos – considerando as suas interrupções8. José de Assis (ou somente Dr. Assis), o dono do jornal, era um mineiro radicado no Pará que fundou o Partido Liberal do Pará, a loja maçônica “Firmeza e Humanidade” e os jornais O Futuro e O Pelicano. Seria neste último que Antonio Lemos despontaria, após conhecer o Dr. Assis na loja maçônica. Lemos seria o cacique político do Pará durante boa parte da Belle Époque. Mas antes disso, ele foi um rapaz pobre que nasceu em 17 de dezembro de 1843 em São Luís, Maranhão, e teve curta carreira militar como escrevente na Marinha do Maranhão e no Paraguai durante a guerra com o Brasil. Conheceu Belém no dia 2 de fevereiro de 1867, sendo que isto só ocorreu porque o seu comandante fora nomeado para o 3º distrito naval na capital paraense (ROCQUE, 1990, p. 16). Lá, passaria pouco tempo trabalhando como secretário no Arsenal da Marinha. Logo começaria a colaborar em O Pelicano, de onde já conhecia também Francisco Cerqueira, que era o tipógrafo. Amigado dos dois, Antonio Lemos entrou no Partido Liberal, levando-o a ser exonerado do Arsenal. Por isso, Dr. Assis o elegeu deputado provincial e o convidou para participar do seu mais novo empreendimento, A Província do Pará. O editorial de lançamento do jornal saiu na segunda página. Iniciava dizendo que tinha sido escolhido aquele dia9 para encetar a publicação da folha para 8
Durante a época em que foi comandada por Lemos, A Província deixou de circular duas vezes: em 1900, devido a divergências entre Lemos e os irmãos Justo e Pedro Chermont, que por pouco tempo foram seus sócios; e em 1912, quando a redação do jornal e a casa de Antonio Lemos foram incendiados pelos seus rivais políticos. (ROCQUE, 1990; p. 93) 9 25 de março de 1876 era uma data festiva do 52º aniversário do juramento da Constituição Política do Império.
20 vê-la ligada a uma recordação patriótica, que esperavam ser constantemente o norte para onde se convergiriam os seus esforços. (ROCQUE, 1990, p. 19)
Desde o seu início, A Província mostrou uma preocupação com a modernidade10: elogiou, neste primeiro editorial, a lei que garantia o voto das minorias e a liberdade de imprensa; e em todas as edições vinha escrita no cabeçalho uma frase do escritor francês Victor Hugo11. Nos seus artigos, apoiava o abolicionismo (mesmo sendo o Dr. Assis um grande proprietário de escravos) e elogiava qualquer ação que demonstrasse progresso e amor à pátria, como a proclamação da República e a morte de D. Pedro II – descrito como alguém que amava o Brasil12. Esta postura se evidenciava também no seu formato: em 1876, o jornal tinha 54 x 37 cm, cinco colunas e quatro páginas onde se via muitos anúncios nas folhas iniciais. Quatro anos depois já havia ampliado de tamanho e implantado o logotipo gótico que lhe é característico (FERNANDES e SEIXAS, 2010, p. 38; ROCQUE, 1990, p. 37). Mas a grande guinada do diário aconteceu com a morte dos dois primeiros membros fundadores de A Província, na década de 80 do século XIX. Foram várias semanas saindo de luto, até que em novembro de 1889 a “firma Assis & Lemos”, que sempre vinha no cabeçalho, foi trocada por um novo expediente, anunciado pelo editorial “Vita Nuova”: a mulher e a filha do Dr. Assis entregavam as suas partes na empresa para Lemos, que se tornara o único responsável pelo impresso, conforme escrito: [A Província] Deixava de ser um órgão do Partido Liberal para transformarse em um jornal independente; passava a ser uma empresa industrial e popular, sem tolhimento de nenhuma espécie a acanhá-la nos domínios da política. E que, pela causa pública, haveriam de continuar a esforçar-se, defendendo-lhes os interesses, pugnando pelas suas razões, impávidos e intimoratos, na energia da convicção do “nosso justíssimo apostolado” (ROCQUE, 1990, p. 48).
A esta altura, A Província já havia conquistado um bom espaço no coração da sociedade paraense. Mas assim como seu jornal, Antonio Lemos também trabalhava duro para conseguir uma fatia, no seu caso, na política: ele nunca abandonou os cargos públicos mesmo com a morte do Dr. Assis. 10
Naqueles tempos, todas as novidades e comunicações oficiais só eram conhecidas quando um navio ancorava em Belém. Nem o telégrafo já tinha sido inventado. Por causa disso, quando Francisco Cerqueira morreu em 1880 de tuberculose, “A Província” só noticiou dias depois. 11 “... Mais il est permis, même au plus faible, davoir une bonne intention et de la dire”. Ou, em português: “... Mas é permitido, mesmo aos mais fracos, de ter uma boa intenção e de a dizer”. 12 Na edição de 8 de dezembro de 1891 (ROCQUE, 1990, p. 61)
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Filiando-se ao Partido Republicano, conseguiu se eleger senador estadual, tendo sido reeleito. O cargo – inferior comparado ao de Lauro Sodré e Paes de Carvalho, que eram respectivamente governador antigo e governador eleito – não lhe dava projeção nacional, mas também por isso evitava que ele precisasse se posicionar diante de assuntos polêmicos, que poderiam minar seu prestígio. Foi assim quando o então presidente Prudente de Morais rompeu relações com Francisco Glicério, que era contra o rodízio do governo federal entre paulistas e mineiros. Sodré, que defendeu Glicério, perdeu o apoio do presidente, enquanto que Lemos o defendeu, gerando uma cisão dentro do Partido Republicano: a facção amiga de Sodré passou a se chamar Partido Republicano Federal e a de Lemos, Partido Republicano Paraense (WEINSTEIN, 1993, p. 151). Mas o golpe de mestre de Antonio Lemos seria a sua função como secretário, na qual ele construiu alianças decisivas para o seu poderio: Os grandes da política – [Lauro] Sodré, Justo Chermont, Paes de Carvalho, Serzedelo Corrêa – envolvidos com outros problemas, muitos dos quais de caráter federal, jamais se preocuparam com os humildes intendentes interioranos, com os delegados das comissões municipais. O grande ‘abacaxi’ era entregue ao velho Lemos, que tinha paciência para suportar as reivindicações dos políticos do segundo e do terceiro escalão. [...] Mais: dava-lhe, através de A PROVÍNCIA, ampla cobertura sobre suas realizações no município que geria e sobre sua estada na capital (ROCQUE, 1990, p. 74)
O resultado não poderia ser diferente: quando chegou a hora da Comissão Executiva e do Congresso do Partido escolherem o seu candidato à intendência municipal – equivalente a prefeito, nos nossos dias -, Antonio Lemos foi o favorito. Segundo Carlos Rocque (1990), ele conseguiu sem fazer propaganda de si mesmo no seu jornal, transformando A Província do Pará em um periódico neutro e deixando os assuntos políticos para A Republica13, mas porque este era panfletário. Elegeu-se no dia 22 de junho de 1897. Foram seis mil votos para ele e 600 para seu concorrente, o candidato do Partido Operário João Pontes de Carvalho.
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Jornal editado pelo Partido Republicano Paraense.
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2.5 A intendência de Antonio Lemos
A cidade que o caudilho recebeu em mãos estava em expansão: a cada dia, os trens e navios chegavam lotados de imigrantes vindos do Nordeste, dos Estados Unidos e da Europa, e eles precisavam de um lugar para morar e de opções de trabalho e lazer. Além disso, havia classes emergentes – seringalistas, comerciantes, fazendeiros, industriais – que demandavam novos valores estéticos para as ruas e construções (SARGES, 2000, p. 89). Algumas décadas antes, por volta da metade dos anos 1800, os 16 mil habitantes14 da capital paraense ainda viviam em casas baixas ou em barracas, usando lamparinas dentro delas e guardando a água trazida das fontes públicas pelos “aguadeiros”, os profissionais nesta atividade. As ruas, praticamente sem calçamento, eram iluminadas à base de lampiões de gás. O bairro da Cidade Velha, o grande centro da cidade na época, tinha as suas travessas batizadas nos tempos do Brasil-Colônia: “do Passinho”, “do Pelourinho”, “das Mercês”, “de São Mateus”. De construções de maior porte, apenas as Igrejas da Cidade Velha, o Palácio do Governo e a casa do Barão de Guajará – sede do Instituto Histórico Geográfico do Pará em nossos dias. O rio cobria a Boulevard Castilhos França e alcançava o convento de Santo Antônio. E a Avenida Presidente Vargas, que cinquenta anos depois já seria uma movimentada via, não passava de uma travessa de casas simples, com um descampado chamado de Largo da Pólvora, onde só se enxergava um teatro em construção – o Teatro da Paz (ROCQUE, 1990, p. 13). A cidade era dividida em três distritos. Porém, a expansão da economia a partir da segunda metade do século XIX, faria a capital dobrar de tamanho, originando os atuais bairros do Guamá, Pedreira, Sacramenta, Jurunas, São Brás e Val-de-Cães. O 1º distrito era chamado de Cidade ou freguesia da (Igreja da) Sé, indo até a Estrada de São Matheus (atual Padre Eutíquio). O local já havia sido moradia de comerciantes, políticos e donos de engenho até sofrer a concorrência do 2º distrito, chamado de Campina ou freguesia de Sant´Anna. Surgido a partir do aterramento do canal do Piri 14
De acordo com a pesquisa de Maria de Nazaré Sarges (2000) no Censo Episcopal contido no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, o conselheiro Jeronymo Francisco Coelho relataria em 1848 que esta era a quantidade de residentes em Belém.
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(atual travessa Tamandaré), que era conhecido por acumular água da preamar e proliferar mosquitos e outros insetos, ele se tornaria a localização da grande maioria dos pontos comerciais, nas avenidas João Alfredo, 15 de Novembro, 13 de Maio e Boulevard Castilhos França. (CANCELA, 2006, p. 109 e 110). O 3º distrito, segundo Cancela (2006, p. 112) abrangia a freguesia da Igreja da Trindade, contemplando os atuais bairros de Nazaré e Umarizal, além de povoados em torno da Estrada de Ferro de Bragança, Santa Izabel e Vila do Pinheiro (atual Icoaraci). Eram áreas ocupadas por rocinhas, mas após o aterramento da Doca do Reduto os bairros de Nazaré e Umarizal foram sendo cortados por avenidas largas, recebendo cada vez mais famílias abastadas. A maioria delas vivia nas estradas de Nazaré e São Jerônimo, convivendo com cortiços e casas pequenas de pessoas menos endinheiradas. O 4º, 5º e 6º distritos surgiriam no final do século XIX e seriam ocupados principalmente pelos migrantes. O 4º compreendia o entorno das travessas do Jurunas, o 5º era a Rua Grande da Pedreira (atual José Bonifácio e que originaria os bairros do Guamá e de São Brás), e o 6º era o entorno das travessas do atual bairro do Marco e da Estrada da Sacramenta. Com exceção do Marco, estes distritos eram os que contavam com maior dificuldade de infraestrutura, visto que eram mais recentes. (CANCELA, 2006, p. 116). No entorno da Estrada de Ferro de Bragança, que ficava no fim da Primeira Légua Patrimonial de Belém, havia povoados criados para servirem de colônias de imigrantes como Benevides (instalada em 13 de junho de 1875)15, Castanhal, Benfica e Inhangapi. Com a clara intenção de abastecer o mercado interno, muitas delas não alcançaram seu propósito devido a “pouca coerência interna nas políticas do governo” imperial, e às alternativas de emprego dentro de Belém e nos seringais, que se mostravam mais vantajosas para os colonos16. Quando se tratava da economia, a situação não era muito diferente: o Estado se sustentava basicamente com a extração do cacau. O látex amazônico já abastecia a Europa desde o início de 1800 com sapatos e revestimento de mochilas militares, mas a 15
Segundo informação da página 441 do livro de Ernesto Cruz, História de Belém. (CRUZ, 1973, p. 441) Na página 93, Cancela utiliza Muniz e José Veríssimo para explicar que isto acontecia porque o governo federal incentivou mais a migração internacional para o Sul do país, vindo para cá só os que já tinham algum vínculo com a região ou os rebeldes que não se sujeitavam às colônias de lá. Além disso, as colônias paraenses ficavam no meio do Estado, longe do litoral e dos igarapés, dificultando o transporte e a comunicação. (VERÍSSIMO, 1970 apud CANCELA, 2006, p. 93) 16
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região só sofreria uma grande reviravolta em 1840, quando o industrial americano Charles Goodyear “descobriu” uma nova técnica que permitira o uso do látex em pneus: a vulcanização17 (SARGES, 2000, p. 47). A autora aponta a abertura do rio Amazonas para navegação internacional em 1866 como um dos fatores que intensificaram o comércio na região, pois navios a vapor de vários lugares começaram a chegar para comprar látex. Só que era preciso mão-deobra para a extração, e a região Norte não tinha população o suficiente. Sem problemas: o governo federal incentivou a imigração nordestina para a Amazônia. Resultado: em 1871, o látex superava o cacau como item de maior exportação do local: 4.890.089 quilos contra 3.381.246 de cacau. Com os cofres públicos cheios de dinheiro, o recém-eleito Antonio José de Lemos teve então subsídios para reformar a cidade aos moldes positivistas. Lembrando também que o novo modelo de governo, o republicano, é mais descentralizado do que o imperial, permitindo ao Pará ter maior autonomia sobre as exportações. Assim, puderam ser projetados espaços como o Porto de Belém, o Mercado de Ferro do Ver-o-Peso (1901), além de 43 fábricas que produziam desde chapéus até perfumes e biscoitos, cinco bancos, o Bar do Parque e os quiosques do Ver-o-Peso e do Mercado de São Brás (SARGES, 2000, p. 92). O intendente calçaria as avenidas18 de Belém e as arborizaria com mudas de plantas retiradas diretamente do Horto Municipal. Até o Bosque Municipal, que já existia quando ele se elegeu, seria ampliado e reinaugurado sob o nome de Bosque Rodrigues Alves. Mas o seu principal símbolo de modernidade foi a implantação do bonde elétrico. A urbanização não era somente um capricho dos governantes: havia um motivo econômico, conforme explica Sarges (2000, p. 91): Era preciso adequar a cidade às transformações capitalistas, investindo capital e diversificando sua aplicação em outras atividades, para isso se engendrou todo um processo de modernização da cidade de forma a facilitar o escoamento da produção de divisas para os países centrais.
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Chama-se “vulcanização” o processo de misturar enxofre com o látex para tornar a borracha mais endurecida e resistente. Antes disto, o material não suportava todos os tipos de clima, podendo endurecer demais ou amolecer demais. 18 Paralelepípedos de granito nas avenidas principais, macadame nas travessas centrais, pedras irregulares nas ruas menores, aterramento nas partes baixas da cidade. Já as mudas de árvore foram principalmente de mangueiras, seringueiras, castanheiras e andirobeiras. (SARGES, 2000, p.119).
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Ana Maria Daou (2000, p. 41 e 54), ao escrever sobre a Belle Époque belenense e manauara, disse que junto com o desenvolvimento da cidade vieram transformações na maneira de viver dos belenenses do final do século. As praças se tornaram espaços de socialização muito procurados para as festas, procissões, arraiais, bois-bumbás, comemorações juninas e encontros cívicos. O Jockey Club Paraense recebia as touradas, enquanto que as chácaras e rocinhas eram os palcos das “merendas” e dos grandes aniversários das famílias que enriqueciam. Um dos maiores programas para a elite era assistir espetáculos e concertos no Teatro da Paz, que foi reformado e inaugurado em 1881. Era principalmente lá e no Cine Olympia (que só seria inaugurado em 1912) que se tinha a oportunidade de espiar o comportamento alheio: as roupas, o linguajar e o modo de se portar tanto nas salas quanto nos botequins e corredores. As semelhanças com a Europa eram obtidas não só no jeito de se portar e de se vestir, mas na organização da cidade: o comércio e a indústria no centro, e as casas maiores e mais confortáveis – as chácaras e sítios – nos bairros um pouco mais afastados: Marco, Nazaré e Batista Campos. Belém tornou-se sob certos aspectos, uma capital agitada, pretensamente mais europeia do que brasileira, dominada por um francesismo, especialmente no aspecto intelectual, que ressaltava a ligação da cidade com as principais capitais europeias, causada de um lado pela dependência financeira e comercial com a Inglaterra, e por outro, por uma relação cultural intensa com a França. (SARGES, 2000, p. 112)
Esta aproximação com o estilo de vida europeu era desejada por Antonio Lemos: ele fundaria o Instituto Histórico e Geográfico do Pará (1900) e a Academia Paraense de Letras (1900); além de criar Códigos de Posturas Municipais também em 1900, onde os cidadãos eram proibidos desde sujar e depredar as calçadas, os logradouros públicos e a frente de suas casas até a aparecer de pijama na janela, passando por evitar soltar gritos desnecessários e palavrões em vias públicas. As casas e estabelecimentos comerciais eram igualmente fiscalizados por agentes de saúde, sem contar que as leis estimulavam a injeção de vacinas – naquela época, eram frequentes os óbitos por tuberculose, febre amarela, varíola e diarreia infantil. Lemos formaria ainda a Polícia Municipal em 1897, mais para garantir o cumprimento destas leis do que para a segurança. Embora Lemos não tenha destruído as marcas de uma cidade colonial portuguesa, a configuração de uma nova estética pautou-se pelos símbolos
26 que identificavam uma ‘cidade civilizada’, ao mesmo tempo que criava significados que seriam cristalizados na memória dos habitantes da pretensa “Paris Tropical” (SARGES, 2000, p. 127).
A preocupação que o intendente tinha em manter a cidade limpa, bonita e organizada era constantemente ressaltada nos depoimentos dos viajantes na época e nos relatórios anuais escritos pelo governo do início do século XX19. Na edição de 21 de março de 2009 do programa “RBA Repórter”, exibido pela TV RBA20 em 2009, encontra-se um comentário do escritor Euclides da Cunha, de 1904, quando ele visitou Belém: ‘Nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio de Janeiro terão as suas avenidas monumentais, largas, de 40 metros, sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis, e sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem’.
Mas como não poderia deixar de ser, nem tudo era tão belo quanto o intendente desejava mostrar. Apesar das reformas, das políticas e do apelo que A Província do Pará tinha perante o povo, o processo de enculturação dos paraenses não atingiria sua meta. As populações da periferia adaptariam e conviveriam com os ideais lemistas.
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“Conta-se que Antonio Lemos, ao visitar o Rio de Janeiro em 1904, o prefeito Pereira Passos teria dito ao Intendente: Eu começo a fazer na minha cidade o que Vossa Excelência já fez na sua’” (SARGES, 2000, p. 115) 20 Rede Brasil Amazônia de Comunicação, emissora filiada à Rede Bandeirantes.
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3. CAPÍTULO 2: OS EXCLUÍDOS DA BELLE ÉPOQUE A imigração de estrangeiros para o Pará seria muito incentivada no século XIX, principalmente por causa da estratégia de “branquear a população”, mencionada no capítulo anterior. A população caucasiana de Belém era bem menor do que a de negros e descendentes de índios, mesmo esse último grupo tendo sido o mais recente a povoar a região. Os indígenas, que eram afastados de suas aldeias para orientarem os homens brancos pelos rios e igarapés, além de ajudarem na exploração da seringueira, sofreriam considerável redução populacional ainda no século XIX (no início do XX, a tribo Munduruku, na beira do rio Tapajós, teria 1400 membros). Havia muitos “tapuios”, que eram os índios que falavam português e tinham comportamentos ocidentalizados (PROST, 1998, p. 31). Os negros seriam trazidos para o Pará ainda no período escravocrata, como alternativa de mão-de-obra após a considerável redução do número de tribos indígenas devido em sua maioria às obras de catequese espalhadas pela Província. Assim, em 1885, a população negra já superava as outras duas na Ilha do Marajó21, onde o massacre indígena se mostrava mais evidente (SALLES, 2005b, p. 152). Os negros e índios chamariam muito a atenção dos europeus e norte-americanos que visitaram o Brasil no século XIX para estudar a sua cultura. Alguns os descreveram de forma preconceituosa, como os alemães Spix e Martius: “meio civilizados, sem conhecimento, nem instrução, nem ambição, e apenas ganham para suas poucas necessidades, nas quais figura, como principal papel, a cachaça e mulheres” (SPIX, MARTIUS, 1981, apud SALLES, 2005b; p. 140). Mas seriam muitos os que se admirariam com estes povos, especialmente com as mulheres de descendência africana, como o americano Wallace22 e o brasileiro João Affonso do Nascimento, que ao compilar imagens das vestimentas das moças ao longo de três séculos, dedicaria um espaço para a então escrava paraense:
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Vicente Salles (2005b, p. 114) também vê forte presença negra na cidade de Cametá, na mesma época, sendo famosas as danças do samba, lundu e os festejos de São Tomé, Espírito Santo e São Benedito. 22 Alfred Russel Wallace, estudioso americano, viria a Belém em 1839 e descreveria as relações sociais, os personagens e os ambientes amazônicos, sendo considerado por Vicente Salles como o observador mais sensato dos que já vieram para a região.
28 [Tem] O Pará de outros tempos entre as suas figuras regionais inconfundíveis, a mulata. Era sempre original no seu vestir, bonita, robusta, elegante, amando o asseio e os perfumes fortes, feitos de raízes e ervas nacionais, a peperioca, o cipó-catinga, de mangas curtas e tufadas, saia pelos tornozelos, as ‘chinelinhas de luxo [...] O cabelo repartia-se em duas fartas trunfas, e de cada lado, no alto de cada orelha, dois grandes ramalhetes de jasmins, colar de ouro com medalha na frente e nas costas, para afugentar maus olhados, enorme figa de azeviche. Sobre os ombros, um lenço de contas de coral, anéis em quase todos os dedos. O braço esquerdo enfia na asa da cestinha de compras e na direita empunha a infalível sombrinha, forrada de tafetá furta-cores com barras de flores estampadas. (AFFONSO, 1976,
apud SALLES, 2005b; p. 142 e 143)
Com a abolição da escravatura em 1888 e as reformas urbanistas poucos anos depois, Belém ficaria cheia de desempregados, e o que é pior, de sem tetos, visto que os distritos começariam a se expandir e as pessoas de baixa renda (que eram em sua maioria os negros, índios e pardos) precisariam se deslocar de regiões como o atual bairro de Nazaré para ir para regiões cada vez mais afastadas.
Sidney
Chalhoub
(1980, p. 37), ao estudar o cotidiano das classes populares no Rio de Janeiro da Belle Époque, acrescentaria a estes dois movimentos os avanços da medicina, que reduziriam a mortalidade. Com menos pessoas morrendo, haveria maior oferta de mão-de-obra. Por isso, muitos tiveram que se sujeitar a salários baixos, ainda mais porque os setores industriais e de serviços ainda não eram tão desenvolvidos naquela época. Se estas pessoas já teriam bastante dificuldade para encontrar moradia e emprego, teriam mais ainda depois da chegada dos imigrantes fugindo da seca de 187778 e de 1888-89, quando 17.000 nordestinos chegaram ao Pará. Entre 1899 e 1900, outras oito mil pessoas viajariam para o Norte em busca das colônias estrangeiras na Estrada de Ferro; e em 1915 e 1916, mais de 17 mil nordestinos encontraram em Belém um abrigo para a estiagem (MUNIZ, 1916, apud CANCELA, 2006, p. 84). O perfil destes trabalhadores era semelhante: homem, casado e com filhos, mas nem sempre de companhia da família. Os que a traziam podiam leva-la para os seringais com eles e ir para Belém no período chuvoso (janeiro a maio), quando não se podia extrair o látex; ou deixa-la em Belém e retornarem na mesma época. Algumas mulheres também chegaram a Belém se declarando chefes de família. Elas diziam serem viúvas ou solteiras, justificando as suas vindas diante das autoridades com a pobreza em que viviam, a presença de parentes na Amazônia e os maridos que até então não retornaram dos seringais. Havia ainda aqueles que vieram para Belém
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montar negócio ou que conseguiram enriquecer na cidade (CANCELA, 2006, p. 88 e 266). Mas não foram somente nordestinos que aportaram em Belém à procura do dinheiro fácil da borracha: desde os anos 1870 já existiam ingleses, franceses, italianos, espanhóis, belgas, suíços e portugueses morando nas colônias agrícolas. Em 1886, 108 açorianos vieram, com suas famílias, para trabalhar na região de Americano, retornando a Belém devido à falta de infraestrutura. Os portugueses eram a maioria, acompanhados dos espanhóis, dos italianos, dos turcos, dos franceses e dos ingleses23. O motivo das viagens não era a seca, como acontecia com os nordestinos, mas a não absorção de todos os camponeses europeus ao novo regime capitalista, além de muitos estarem sem propriedades devido à legislação do noroeste de Portugal, que destinava os bens para os filhos primogênitos. Assim, os estrangeiros que vinham morar em Belém eram compostos por homens jovens e solteiros, mas também chegavam homens e mulheres casados, e mulheres solteiras. Os que conseguiram prosperar tornaram-se donos de comércios no Pará, de imóveis e de casas de aviamento, enquanto que os mais pobres trabalharam como serralheiros, jornaleiros, padeiros, sapateiros, carpinteiros, criados de servir, calafates, alfaiates, pescadores, lavradores e vendedores ambulantes (CANCELA, 2006, p. 94). Eles também precisavam preencher formulários justificando a migração, ficando em hotéis na capital do seu país enquanto esperavam a autorização. Muitas vezes deixavam as famílias na sua terra natal até conseguirem juntar dinheiro para busca-las. Uma vez em Belém, para onde iam todos esses migrantes? A Hospedaria de Immigrantes, prédio fundado em 1895 pelo poder público, funcionava em Outeiro acolhendo os recém-chegados. Mas muitos terminavam por se misturar com os paraenses pobres, seja em diversos hotéis particulares existentes nos distritos centrais, seja em casas modestas nas periferias, onde era comum pessoas de mesma naturalidade dividirem a rua e até a própria casa. (CANCELA, 2006; p. 86 e 89).
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Recenseamento de 1920. População do Brasil por Estados, Municípios e Districtos segundo o sexo, o estado civil e a nacionalidade. Rio de Janeiro: Typ. de estatistica, 1926. In: CANCELA, 2006; pág. 94.
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3.1 Formas de Moradia
Antes de adentrarmos nas narrativas sobre as moradias dos populares, tentemos compreender de onde vinham as moradias e como elas eram vistas pelo governo. Na Belém da transição entre o século XIX e o XX disseminava-se uma prática entre as classes altas e médias: comprar imóveis para depois aluga-los. As residências, os terrenos e as casas comerciais em lugares distantes, que haviam sido compradas antes da urbanização, tiveram seus preços valorizados com o crescimento da cidade. As famílias que ainda não haviam pensado na ideia começaram a executa-la, de modo que sobraram poucos lugares sem dono. Investir em imóveis era mais seguro naquela época do que manter dinheiro em bancos. A cotação da borracha era instável, e o sistema de crédito funcionava a curtos prazos e a juros elevados. Os terrenos, ao contrário, tinham rendimento em longo prazo. A ideia também se mostrava lucrativa, visto que não paravam de chegar pessoas para trabalhar em Belém, e as que aqui já residiam sofriam com as reformas urbanas que os expulsavam para a periferia (WEINSTEIN, 1993, p. 102 e 106). Conhecidos por cortiços, estâncias, pensões, vacarias e hospedarias, estes lugares mais baratos eram vistos com maus olhos pelo poder público, especialmente a intendência de Antonio Lemos. Havia leis24 que obrigavam os donos a interditarem quartos e até a demolirem prédios inteiros. Acreditava-se que estas moradas, especialmente os cortiços, eram focos de doenças, visto que eram muitas vezes apertados, tinham pouca iluminação e careciam de higiene. O repórter Julio Lobato (1916, p. 24 e 25), repórter da Folha do Norte que participou de uma inspeção sanitária chefiada pelo doutor Dias Jr, encontrou hotéis de qualidade diversificada. Um deles foi descrito como “um inferno sem luz” com chãos
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Como esta, de 3 de julho de 1900: “Art. 149º - É absolutamente proibida a construção de cortiços. Pena: multa de 100$ e pronta demolição da construção. £ 1º: - O Intendente fixará um prazo improrrogável para o fechamento dos cortiços atualmente existentes. £ 2º: - Entende-se por cortiço uma série de quartos, geralmente madeira, dando todos para um pátio ou corredor comum, pelo qual se comunicam com a via pública, sem o conforto e as exigências da boa higiene, servindo de residência a muitos indivíduos e não dispondo de banheiros, cozinhas ou latrinas em número correspondente aos seus habitantes.” (BELÉM. Lei n. 276, de 03 de julho de 1900. Institui o Código de Polícia Municipal. Título VIII – Disposições diversas. Capítulo XVIII. In: PANTOJA, 2003; p. 156)
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enlameados; outro tinha tábuas “mais ou menos limpas”, e o Hotel Cearense tinha relativo asseio: Logo à entrada há duas mesas: uma para hóspedes de primeira classe e outra para os de segunda. Aquela é rodeada de cadeiras americanas, coberta por uma toalha e tem ao centro um vaso com flores artificiais. A outra não tem toalha nem flor e é rodeada por dois compridos bancos. No compartimento superior há quartos que são regularmente arejados. Apenas um compartimento merece mais atenção dos donos da casa. É o que serve de varanda, onde dormem umas dez pessoas, que noite e dia, levam a cuspir no assoalho por não haver ali uma só escarradeira.
Havia um motivo para esta estrutura: estas casas já existiam em Belém antes das reformas urbanas. Eram basicamente reaproveitamentos da antiga casa colonial, estreita e comprida, com sala de frente, “puxada de serviço” (cozinhas externas, de chão batido) e corredor extenso rodeado por quartos pequenos. Enquanto que as casas de ¼ possuíam somente uma porta e uma janela, além de sala, alcova e quintal. (CANCELA, 2006, p. 130 e 134). Bem diferente dos sobrados e palacetes que começavam a ser construídos, com várias salas, cozinha assoalhada e quartos amplos, no estilo arquitetônico europeu. Com isso, a intendência tinha mais um argumento para querer derrubar os prédios indesejados: eles eram considerados feios, atrasados e sujos, como vê Nicolau Sevcenko (1999, p. 31), ao estudar as reformas no Rio de Janeiro: O mármore dos novos palacetes representava uma lápide dos velhos tempos e uma placa votiva ao futuro da nova civilização [...] Daí a campanha da imprensa, vitoriosa em pouco tempo, para condenação do mestre-de-obras, elemento popular e responsável por praticamente toda edificação urbana até aquele momento, que foi defrontado e vencido por novos arquitetos de formação acadêmica. Ao estilo do mestre-de-obras, uma arte autenticamente nacional, sobrepôs-se o Art Nouveau rebuscado da Belle Époque.
Para fugir das interdições municipais, muitos hotéis fechavam no verão e abriam de novo somente no inverno paraense, quando os seringueiros iam para Belém. Outra forma de se adequar às leis foram as construções de vilas operárias nos distritos principais, inspiradas nos conjuntos de casas inglesas. Financiadas pelo governo e por empresários de renome, os empreendimentos começaram em 1890 e reuniam pelo menos 13 casas enfileiradas, como a Vila MacDowell, existente até hoje na atual avenida Gentil Bittencourt (PANTOJA, 2003, p. 174). No entanto, estas vilas não alcançariam quantidade suficiente nem para abranger os trabalhadores a que se destinavam (os do mercado formal), permitindo que as estâncias e hospedarias persistissem como opção de lar para as classes populares. Cabe
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aqui ainda a observação de Pantoja (2003, p. 177) de que estes domicílios, ao aproximarem o trabalho da vida dos empregados, contribuíam para a sua vigilância temporal, pois “eliminavam todos os intervalos que [os] separavam”. Assim, as populações de baixa renda continuariam a encontrar nos cortiços a sua moradia, visto que eram lugares baratos e que permitiam o exercício de atividades como passar roupas, tomar banho e dormir. Do outro lado, a intendência continuaria a combater estes espaços, valendo-se de mais um argumento disseminado entre os mais abastados: o de que os moradores de pensões e hospedarias eram mais propensos ao crime do que o resto de Belém, prática que será explorada com mais detalhes no capítulo 3 deste trabalho. A dificuldade para encontrar casas a preços acessíveis fazia com que famílias inteiras, amigos e agregados precisassem morar sob o mesmo teto. Se não na mesma casa, pelo menos em ruas próximas (WEINSTEIN, 1993, p. 107). Ao se instalarem nestes locais, por sua vez, os populares entravam em contato com vizinhos, que poderiam ser da mesma origem ou diferentes entre si. Eram convivências nas quais a privacidade não era tão importante, pois os amigos entravam e saíam das casas, isto quando a casa não era ela própria uma extensão do trabalho de seus donos. A interferência de uma pessoa na vida da outra era comum, como quando um sogro reclamava do genro, ou quando um homem não gostava do marido de sua irmã. Para Sidney Chalhoub (1980, p. 129), a tensão entre os populares que conviviam na mesma casa aumentava quando eles não eram parentes: O perigo do adultério – pouco importando se real ou imaginado – rondava a cabeça dos amantes inseguros; os problemas de cada casal eram compartilhados pelos outros habitantes da casa, que às vezes, tomavam partido na disputa; [...] finalmente, podia ocorrer o fato de os homens e mulheres da casa se verem em campos opostos, como, por exemplo, quando as mulheres se uniam para protestar contra seus maridos que se juntavam para realizar ‘conquistas’ e ir a bailes.
Evidencia-se na fala do autor que a presença de terceiros na relação de um casal não apresentava somente desvantagens. Ao compartilharem seus problemas com os outros moradores ou com os vizinhos, fortalecia-se a amizade entre todas estas pessoas. Para Cancela (2006, p. 192 e 193) os populares criavam redes de informações e solidariedade mútuas, nas quais um confiava no outro para saber de empregos, residências e até para conhecer parceiros; procurando amenizar as incertezas e dificuldades dos deslocamentos.
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Claro que essas amizades não eram isentas de atritos. Na sua tese de doutorado, Cancela (2006) lista vários casos de indivíduos pobres que mataram conhecidos ou discutiram com eles, assim como Chalhoub (1980) também encontrou diversos crimes entre populares no Rio de Janeiro, e as próprias edições d´A Província do Pará analisadas neste trabalho mostrarão pessoas de baixa renda se envolvendo em brigas e assassinatos. Eles aconteciam quando havia uma quebra na confiança de um indivíduo, que poderia ser uma traição amorosa25, uma calúnia dirigida a um parente26 ou até um simples atraso de um amigo no jantar27. As redes de sociabilidade tinham então, a função de auxiliar estes paraenses e imigrantes a sobreviver dentro de um sistema que não lhes ajudava. Sobrevivência não somente no sentido de conseguir viver, mas de manter suas culturas originais. Os jornais de oposição ao governo lemista divulgavam histórias de gente que, alheia às políticas higienizadoras municipais, utilizava remédios caseiros conseguidos através de pajés e curandeiros28, como um casal de portugueses citados por Aldrin Figueiredo (1995, p. 29) que praticavam os rituais no lugar em que moravam; assim como pessoas que faziam serestas dentro de suas casas, como veremos mais adiante. Em julho de 1899, quando houve um surto de varíola em Belém, Antonio Lemos determinou que toda a população fosse vacinada, ainda que para isso fosse necessário levar os médicos até as residências. Com medo de terem seus conhecidos levados para asilos e hospitais, muita gente os colocava em esconderijos dentro dos domicílios, ato que quase sempre era descoberto e terminava com os ocultadores presos. Os moradores 25
Como na notícia de 7 de novembro de 1898, d´A Província do Pará, onde uma mulher de nome Rosa foi presa após a amante de seu amásio ter feito intrigas contra ela. Antes, a amante, de nome Maria, já havia até perseguido a primeira. O companheiro da duas, Elvino dos Santos, “condoído da injustiça”, paga a multa para libertar Rosa do xadrez. (A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, pg 1. Cupido em Acção). 26 O pai de uma menina chamada Innocencia Leonor da Conceição aparece na mesma página do jornal, reclamando à polícia que sua filha havia sofrido agressão de uma mulher chamada Julia que acreditava que seu marido estava apaixonado por Innocencia. Esta, por sua vez, era noiva de um homem chamado Faustino Antonio de Oliveira. (A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, pg 1. Cupido em Acção). 27 Sidney Chalhoub (1980, p. 133) conta um processo criminal sobre uma mulher que estava em sua casa quando o marido chegou com dois amigos pedindo o jantar. O marido saiu para buscar um violão e deixou os dois amigos esperando. Quando retornou, um dos amigos, que já estava prometido a padrinho do filho dele, reclamou da demora e ameaçou fazer o mesmo quando o homem fosse jantar em sua casa. Disse ainda que não seria mais compadre dele. Revoltado, o homem o xingou e disparou, assassinando o amigo. 28 Podem-se citar mais dois casos: o primeiro, sobre um menino que foi atendido pela Santa Casa de Misericórdia após entrar em coma alcóolico devido a um preparado feito por um curandeiro (FIGUEIREDO, 1995, p. 29); e o segundo, sobre uma senhora em 1908 que foi até a redação da Folha do Norte dizer que seus netos haviam se curado de varíola após tomarem banho com um composto de ervas regionais (SARGES, 2002, p. 10).
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nem sempre abriam as portas para os vacinadores, que precisaram contar com a ajuda da polícia em algumas situações para evitar a fuga de doentes de dentro das residências (SARGES, 2002ª, p. 9). As condições no entorno dos cortiços, hospedarias, casas modestas e semelhantes também não eram as mesmas das áreas mencionadas no primeiro capítulo deste trabalho. Os bondes, que até 1907 funcionavam à tração animal, não chegavam aos distritos mais afastados do centro. Ao todo, eram quatro linhas circulantes, em cujos itinerários constavam praticamente só as avenidas e travessas principais29. Situação semelhante era a da energia elétrica30, muito mencionada quando se estudam os implementos feitos pelo governo da Primeira República. É claro que o serviço, como qualquer outra grande mudança urbana, não alcançaria todas as regiões de uma vez. Mas isso não impedia as reclamações dos habitantes, até porque as primeiras lâmpadas incandescentes queimavam rápido demais (dez a cada hora31). Problema, dentre outros, percebido por Cancela (2006, p. 118 e 121): Tendo em conta o preço de uma lâmpada, em torno de 2 mil réis, considerando que mais de um ambiente da casa poderia possuir lâmpadas, [...] Se o preço de um aluguel de uma casa térrea girava em torno de cem a duzentos mil réis, o uso de uma única lâmpada poderia corresponder a cerca de 2% do valor do aluguel do imóvel. Ou ainda, considerando que a diária de um encanador, um pintor ou um cocheiro, podia variar entre 6 a 9 mil réis, vê-se que uma única lâmpada corresponderia a 33% do valor recebido[...]. [...] O custo da energia elétrica, os bonds precários de terceira linha, a incipiente rede de encanamento impondo a continuidade do abastecimento de água nos poços públicos para boa parte da população, foram situações ainda encontradas na capital de belle époque, que deslindaram a dificuldade das mudanças chegarem ao conjunto da população.
Por mais que o governo lemista trabalhasse para higienizar e modernizar a cidade, as mesmas políticas que deveriam melhorar a vida de todos acabavam excluindo uma parcela da população. As estradas e avenidas que rasgavam o centro de Belém diminuíam a opção de terrenos, fazendo com que os mais ricos procurassem nas regiões do entorno o lugar para construir suas novas moradias. 29
“No final da década de 1880 a Companhia Urbana de Estrada de Ferro Paraense possuía seis linhas de bonds. A primeira e terceira linhas abrangiam Cidade, Campina e Nazareth. Já a segunda e quarta linhas alcançavam as áreas de ocupação mais distantes, como o Marco da Légua patrimonial e área do Umarizal. A quinta linha seguia pela estrada José Bonifácio até o cemitério de Santa Izabel. E, finalmente, a sexta linha da Sacramenta seguia pela estrada e sítio homônimo.” (CANCELA, 2006, p. 119) 30 A energia elétrica chegou aos primeiros logradouros públicos no final da década de 1890, com a empresa Companhia Urbana da Estrada de Ferro Paraense, mas só na primeira década de 1900 chegaria às residências, com a assinatura do contrato entre a Intendência e a Pará Eletric Company (CANCELA, 2006, p. 117). 31 Folha do Norte, 05 de dezembro de 1896.p.01. apud CANCELA, 2006; pág. 118.
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Restava às pessoas de baixa renda se afastarem cada vez mais do centro ou alugarem quartos nos prédios perseguidos pela intendência. Provavelmente elas não gostariam de morar nestes lugares enquanto os mais ricos moravam em sobrados, mas naquele momento aquela era a sua única alternativa. Como estas habitações eram os principais alvos das demolições, expulsando as classes populares novamente para a periferia, elas estavam em um cerco sem saída.
3.2 Emprego
Se não se misturavam tanto nos lugares em que moravam, os segmentos das classes populares não apresentavam maiores diferenças no perfil de empregos procurados: havia imigrantes e paraenses ocupando cargos como pedreiros, sapateiros, estivadores, jornaleiros, empregados públicos, marítimos, e empregados da companhia de bondes (CANCELA, 2006, p. 88). Apenas algumas peculiaridades eram reservadas a cada grupo: os turcos tinham preferência pela venda de “quinquilharias” como o “téque-téque no punho”, que era carregado nas suas costas junto com centenas de outros produtos; os italianos entravam no ramo dos engraxates, os árabes vendiam galinhas e os portugueses eram conhecidos por lavarem os assoalhos das casas burguesas com tamancos de madeira, para não sujarem o chão (SARGES, 2002ª, p. 16). Porém, também se via paraenses exercendo ofícios parecidos. Sem contar as pessoas que trabalhavam em agências, exercendo funções temporárias, e as que passavam um bom tempo desempregadas. Com o crescimento populacional acelerado, nem todos conseguiram ser absorvidos pelo mercado (CANCELA, 2006, p. 146). Havia momentos em que eles abandonavam o que estavam produzindo, durante uma prática nascida com o capitalismo e que rapidamente se disseminou: o intervalo. Era a hora em que todos se sentiam livres do “espaço fechado rigidamente disciplinado” e podiam conversar ou comer. O botequim, lugar preferido destes assalariados ociosos, era onde se compravam o café e a cachaça e se sentavam às mesas, algumas vezes para rodas de jogo a dinheiro. Daí decorre o fato de que muitas das “questões por motivo de serviço” acabavam resultando em conflitos nestes momentos de lazer nos interstícios
36 da jornada de trabalho, quando, aparentemente, as questões podiam ser resolvidas sem pôr em risco os meios de sobrevivência dos contendores. (CHALHOUB, 1980, p. 63)
Estes conflitos, que serão explorados no capítulo 3, aconteciam geralmente após os envolvidos ingerirem algumas doses de álcool. O costume de beber após ou nos intervalos do serviço cresceu na Primeira República, sendo que em 1907 foram comprados 2 milhões de litros de cerveja dentro do Pará. Metade deste número se deve à Fábrica Paraense de cerveja, que “era de fato tão boa quanto a de Munich”, na Alemanha (DAOU, 2000, p. 58). A boa saída da cerveja e do chope se deveu também à chegada do gelo e das câmaras frigoríficas à Belém. Mas, como já era de se esperar, o conforto ainda se restringia muito aos bares e confeitarias frequentados pelos trabalhadores do alto e do médio escalão. Estes, junto com as bebidas e alimentos importados, compravam também farinha d´água, farinha de tapioca, ovos de tartaruga e açaí32.
Para
os
populares, especialmente os seringueiros, havia as bebidas nacionais: cachaça (em barris e garrafões), licores de frutas (abacaxi, jenipabu e caju), conhaque, genebra (vinda de Pernambuco) e o vermute. (DAOU, 2000, p. 60). Mas a cerveja também terá a sua cota, de acordo com as notícias analisadas de A Província do Pará. Pode-se dizer que o álcool tinha uma relação estreita com o ofício tanto dos populares quanto da elite, sendo mais procurado pelos primeiros. Ingerir algumas doses tornava a rotina menos cansativa, além de contribuir para o estreitamento da amizade entre os funcionários de uma mesma organização, e entre eles e o dono de um botequim, tornando-se o motivo para que todos eles se encontrassem – proporcionando esses encontros em dias em que eles não trabalhavam. No entanto, os bares e botequins reuniam basicamente pessoas do sexo masculino. As mulheres pobres se dedicavam mais aos serviços domésticos, trabalhando como engomadeiras, cozinheiras e passadeiras em casas das regiões nobres (CANCELA, 2006, p. 88). Elas também trabalhavam dentro das próprias residências e saíam às ruas vendendo doces, flores, comidas, bebidas e açaí, seja em barracas, seja caminhando. Aldrin Figueiredo (1995, p. 27) descreve duas situações vivenciadas por trabalhadoras de baixa renda:
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O açaí é alvo de contradição: era ingerido pela elite e pelo próprio Lemos, ao mesmo tempo em que o seu consumo pelas mulheres populares era combatido, como se verá no capítulo 3.
37 Viajantes que passavam por Belém nessa época podiam ver as negras lavando roupa – de quem seriam? – nas fontes e igarapés da cidade. Elas cantavam: “Lavadêra da Campina / Ô Lavadeira / Lava roupa sem sabão / Ô Lavadêra”33 [...] No meio da praça, barraquinhas elevavam-se, nas quais vendiam-se copiosamente as bebidas baratas usuais da plebe. De espaço a espaço [...] uma voz fina e estridente de mulher atravessava o ar e apregoava: “É açaí...í...í... Fresqui...i...inho!”34
A grande maioria destas tarefas gerava salários baixos, o que não impedia que estas mulheres populares conseguissem se sustentar – muitas vezes somente a si mesmas e a seus filhos. As que trabalhavam e tinham companheiro eram elevadas a uma situação de relativa independência sobre este: além da renda extra, ela tinha aquela ajuda dos parentes e amigos para coibir os atos de violência do marido. Para completar, a mulher pobre convivia com outros homens na vizinhança e nas ruas, o que facilitava a “troca” de companheiro caso o primeiro não agradasse. As relações amorosas dos populares acabavam sendo mais focadas no sentimento, sendo frequente a moradia na mesma residência sem a necessidade do casamento (CHALHOUB, 1980, p. 137 e 143). Bem diferente da mulher rica, que se submetia a casamentos duradouros onde deveria ser submissa ao seu marido. Porém, a simetria entre homem e mulher não contribuía para um comportamento mais violento da parte dela, se tratando da relação amorosa: É necessário ter em conta que as mulheres pobres muito provavelmente interiorizavam pelo menos em parte os padrões dominantes do ‘ser mulher’ que a bombardeavam ao longo da vida. Sendo assim, os estereótipos de passividade e submissão feminina, gerando assim a auto-imagem da mulhervítima, talvez servissem como uma espécie de freio aos possíveis impulsos femininos. (CHALHOUB, 1980, p. 156)
Mas conseguir um emprego não seria tão fácil para essas mulheres. Muitas delas, sejam jovens ou mais velhas, entrariam no mundo da prostituição. Diferentemente das francesas e polonesas de bochechas rosadas e comportamento discreto, estas ribeirinhas, mulatas, negras e nordestinas eram consideradas de baixo meretrício, por causa de seus hábitos, ornamentos ou aparência que não correspondiam às vontades dos clientes mais endinheirados.
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Cantoria retirada de DISCO RAPSÓDIA AMAZÔNICA,1990, apud FIGUEIREDO, 1995. p. 27. A fala da vendedora foi retirada de CARVALHO, 1989, apud FIGUEIREDO, 1995, p.27.
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Paulo dos Santos Júnior (2005, p. 94 e 103), que escreveu sobre a prostituição na Belle Époque manauara, encontrou nas crônicas policiais mulheres de olhar triste35, que frequentavam casas de diversões populares e moravam em pensões precárias. Elas também eram vistas em locais de trabalho, como mercados e portos, sendo procuradas por carregadores, ambulantes, marítimos, peixeiros, maquinistas, seringueiros, dentre outros, que “convertiam seus espaços de trabalho durante o dia para territórios do prazer [...] à noite.”. Nestes ambientes, elas costumavam conversar em alto volume e beber em exagero. Alguns clientes as agrediam ou deixavam de pagar por seus serviços, e às vezes, eram as próprias prostitutas que faziam intrigas umas com as outras, protagonizando ofensas no meio da rua e casos de difamação.
A polícia rondava os
antros de meretrício para coibir os atos transgressores da moral pública e manter as prostitutas longe da vista dos turistas e das famílias belenenses. Porém, prendê-las não era o objetivo primário, até porque as meretrizes eram as responsáveis pela iniciação sexual dos jovens, “amenizando o ânimo [...], garantido a virgindade das moças solteiras e futuras esposas” (SANTOS JÚNIOR, 2005, p. 98). Incomodava mais às autoridades um “outro abuso ainda mais censurável e mais digno de remoção”36, que eram os vendedores ambulantes que iam contra as medidas municipais. Os vendedores, carregadores e carroceiros eram acusados pela intendência e pela imprensa (especialmente a Folha do Norte) de ocuparem as calçadas, obrigando as pessoas a saltarem por cima das caixas e a andarem no meio da rua (CANCELA, 2006, p. 91). Os verdureiros faziam greves reivindicando o não pagamento de impostos municiais; os carroceiros reclamavam das taxas de exercício da profissão e das tabelas de preços pelo uso dos automóveis, que a intendência queria que fossem exclusividade da Empresa Americana de Veículos; os condutores dos bondes brigavam com os passageiros durante as viagens; os leiteiros misturavam substâncias no leite, como água e tapioca (SARGES, 2002ª, p. 14 e 15).
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Algumas se arrependiam e desejavam voltar para seu lugar de origem, no entanto, a miséria e a marginalização que sofriam eram tamanhas que elas acabavam se suicidando, conforme diz Santos Júnior (2005, p. 103). 36 Folha do Norte, 01 de agosto de 1896, p. 1. apud CANCELA, 2006, p. 91.
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Julio Lobato (1916) que já havia participado de uma inspeção em hospedarias, acompanhou visitas a padarias de vários pontos da cidade, onde vê desde casas “atrasadas” com chão enlameado, fornos que fazem os operários suarem e luminárias de querosene, até o outro lado, o das padarias onde já se assava o pão em máquinas. Ele também registra que alguns donos se defendiam para o inspetor municipal argumentando que a transferência para o fabrico mecânico do pão retiraria o sabor da massa; sem contar dois padeiros do bairro de Canudos, que apesar de trabalharem em uma barraca de madeira impossível de “se adaptar às condições de higiene”, usavam gorros e aventais, procurando agradar as autoridades. (LOBATO, 1916, p. 68 e 79) Nota-se com estes casos o quanto Antonio Lemos valorizava o asseio dos empregados e dos estabelecimentos, e o quanto incentivava os empregos formais em detrimento dos autônomos e sem lugar fixo de profissão. O que poderia ser visto pelas pessoas daquela época como mero capricho do intendente nada mais era do que o reflexo dos valores do novo regime capitalista: As classes possuidoras do capital e compradoras da força de trabalho empreenderam a reelaboração da noção de trabalho, haja vista que, anterior à abolição, o ato produtivo era considerado ‘coisa de negro’. A partir da redefinição da noção de trabalho, o mesmo passa a ser encarado como ato enobrecedor e gerador de riqueza, considerado o maior bem social (SARGES, 2000, p. 33)
Para fazer com que as pessoas gostassem de trabalhar, emprestou-se um artifício utilizado em larga escala na Europa daquele período: o patrão paternalista. Ele permitia que o empregado morasse no local de trabalho e/ou almoçasse lá dentro ou nas redondezas, agradando o subalterno, ao mesmo tempo em que lhe obrigava a passar mais horas no serviço – motivo pelo qual havia tantas reuniões nos botequins ao lados dos empregos. O patrão que fizesse com que o empregado se sentisse mais sócio do que submisso contribuía para a identificação dos interesses do assalariado com os seus, fazendo-o aceitar com menos atritos as medidas adotadas por ele. Esta postura não era exclusiva dos chefes burgueses: donos de pequenos comércios, como padarias e botequins também diminuíam a hierarquia existente entre chefe e subalterno, e quanto mais semelhantes eles fossem, maior a identificação (CHALHOUB, 1980, p. 80 e 81). Como se dava esta semelhança? Poderia ser hereditária: o patrão e o empregado são parentes, ou poderia ser étnica: ambos são espanhóis, ambos são mulatos, etc. No entanto, a ideia não seria exatamente um sucesso, pois o Brasil guardava algumas
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particularidades que o diferenciava da Europa. Durante o convívio trabalhista, as identificações poderiam resultar em privilégios para uns e atritos para outros. Significa dizer que duas das principais clivagens da sociedade colonial e depois imperial continuavam a ser parte integrante da experiência de vida popular: refiro-me às contradições senhor-patrão branco x escravoempregado negro, e colonizador-explorador português x colonizadoexplorado brasileiro. [...] O imigrante trazia de sua terra natal – e reforçava ainda em terras tropicais – sua concepção de ser racial e culturalmente superior aos brasileiros pobres de cor; e estes, por outro lado, para quem a escravidão era ainda um passado bastante recente, ressentiam-se dos brancos em geral, e mais ainda dos imigrantes, que vinham chegando [...] em grandes levas desde os últimos anos da Monarquia, abocanhando boa parte da fatia de empregos disponíveis na cidade. (CHALHOUB, 1980, p. 36)
O autor vê aí o motivo para o movimento operário ter tido pouca expressão no Brasil da Primeira República, pois dentro das classes populares existiam rivalidades que impediam a organização dos trabalhadores em busca de mais direitos e vantagens. Contribuiu para esta ineficácia, também, o fato de que nem todas as pessoas conseguiram se adaptar ou quiseram se adaptar aos novos moldes de emprego. Elas procuraram assim, profissões informais, como vendedores de jogo do bicho, biscateiros, e os que já foram citados, ambulantes e prostitutas (CHALHOUB, 1980, p. 37).
3.3 Em busca de diversão: o lazer
A música popular era combatida desde os tempos coloniais, com a ação dos missionários amazônicos, que já adaptavam as crenças e práticas dos povos dominados para o catolicismo. Mas ao invés de usarem somente canções religiosas, os índios não abandonavam o berimbau e tampouco os negros largavam os tambores nas suas danças (SALLES, 2005b, p. 223). O padre Antônio Vieira, um dos que mais escreviam sobre o assunto, traria da Península Ibérica um instrumento muito famoso entre os camponeses de lá: a viola. Rapidamente adotada pelos escravos, ela se tornaria um objeto tão difundido que se precisaria de mais exemplares seus, produzidos pelos próprios amazônicos. Dessa tentativa de produção surgiria outro instrumento, com o mesmo formato e textura,
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porém com menos notas e tamanho ligeiramente maior, e que na segunda metade do século XIX já teria se espalhado por todo o país: o violão37. Em Belém, o violão era vendido nos armarinhos do Ver-o-Peso e nas casas especializadas, lado a lado com o piano, a viola importada e os violões feitos no Maranhão. Vicente Salles (2005ª, p. 63), ao estudar as canções da Amazônia, encontraria nas lojas de instrumentos uma mistura entre erudito e popular: José Mendes Leite, proprietário da Casa Mendes Leite e vendedor de violões, possuía um catálogo de artistas daquela época e era editor de música. Manuel Bastos, dono da loja Belém Musical, também vendia outros instrumentos e partituras, além de ser compositor e violonista. A explicação para tamanho sucesso poderia ser a de que o objeto conseguia acompanhar qualquer tipo de canção. Desde as sobre os “feitos dos ‘brancos’” (SALLES, 2005ª, p. 55), ainda no Império, até as “marchas e músicas de dança, de autoria francesa e italiana”38, podendo ser tocado tanto por homens quanto por mulheres, diferente do piano (preferido pela elite). Ele também era fácil de ser carregado, existindo a versão reduzida (o cavaquinho), que poderia ser guardado até em uma cesta, como diz o texto do poeta Luís Demétrio Juvenal Tavares no Diário de Notícias, em 1888: Ele vai repousar na cesta da cozinheira, no balaio da lavadeira [...] fazer companhia a todos àqueles desfavorecidos da “fortuna” [...] que à boca da noite entram para o lar fatigados, exaustos, mortos de cansaço, é verdade, mas tranquilos em sua consciência, porque não são ladrões de casaca [...] Quando o operário, à tardinha, transpõe os umbrais de sua casa, depois de receber um olhar amigo e um sorriso afável de sua rapariga procura logo a sua viola, o seu violão, o seu cavaquinho ou a sua harmônica. (Diário de Notícias, edição de 1888, apud SALLES, 2005ª, p. 57)
Os portugueses e nordestinos que vieram para o Pará durante o ciclo da borracha compartilhavam o gosto pelos objetos musicais (às vezes eles já eram artistas na sua terra natal), além de acrescentarem outras modalidades de canto, como o “repente” ou “desafio”, que era um duelo de versos improvisados. Gérard Prost (1998; pág. 54) menciona um desafio entre o nordestino Inácio (I), que já vivia na Amazônia, e o recém-chegado Patativa (P): 37
A relação entre o negro, o índio e o caboclo amazônico com o violão seria tão intensa que até mesmo estrangeiros vivendo na região aprenderiam a toca-lo, como aconteceu com o canadense radicado no Pará Carlos Leavens (BATES, 1994, apud SALLES, 2005a p. 55) 38 “Segundo Bates [1994], eles tocavam com muito gosto, ‘marchas e músicas de dança, de autoria francesa e italiana... [...] O violão era o favorito de ambos os sexos, como em Belém, mas o piano estava rapidamente tomando seu lugar’”. (SALLES, 2005a. p. 57)
42 “‘1. P – Inda estou desarrumado Da viagem e do vapô Mas desejava 42orto f42 Nesta terra um 42orto f 2. I – Você que agora chegou Do sertão do Ceará Me diga que tal achou A cidade do Pará? 3. P – Quando eu entrei no Pará Achei a terra maió Vivo debaixo de chuva, Mas pingando de suó!’”
Considerando que 60% dos habitantes de Belém eram analfabetos, e que por isso eram poucos os que podiam se informar com eficiência, a classe abastada tinham maiores poderes sobre esta parcela sem instrução (PROST, 1998, p. 55). A música, portanto, tinha um significado que ia além do divertimento, funcionando como ferramenta de expressão das opiniões e transmissão da cultura destes povos. Salles (2005ª, p. 57), ao descrever um dos gêneros musicais tocados com o instrumento, a modinha – composições suaves e românticas, trazidas de Portugal -, conta que na transição do século XIX para o XX, seria comum os “boêmios e seresteiros” tomarem poesias da classe endinheirada para cantarem, popularizando o gênero da modinha. O inverso também aconteceria: poetas letrados escreveram músicas cantadas pelos populares e/ou compuseram sobre eles. Como foi com a música “A Tapuia”, cuja letra mostra a conversa entre um homem branco morador da cidade e uma tapuia. Originalmente poesia de Severiano Bezerra de Albuquerque, cearense que viveu a maior parte da vida no Pará, foi tão repetida e modificada nas serestas que se tornou canção anônima. O próprio Severiano publicou em 1868 um livro contendo versos indígenas e sertanejos, de onde foi retirada a primeira estrofe da música citada: “- Formosa Tapuia, que fazes perdida Nas matas sombrias do agreste sertão? As matas são frias, são feias, são frias, não temes, tão moça, morrer de sezão?” (SALLES, 2005ª; p. 122)
Estes encontros também aconteciam pessoalmente. O poeta João Eustachio de Azevedo, que viveu o ciclo da borracha em Belém, escreveu uma crônica onde aparecem ele, outros três poetas (Leopoldo Sousa, Eduardo Calheiros e Zeca Freire) e um violonista de rua conhecido apenas por “Papará”, improvisando uma serenata: “Oh! Saibas que eu te amo E que dentro deste peito eu sinto vigorar-se Um fogo de vulcão
43 Não deixes que se extinga No gelo da descrença Afeto tão sublime Tamanha inspiração!” E nisso, Eustachio escreve: “O Papará esticou as cordas do pinho e exclamou entusiasmado: - Agora canto eu, canalhas! Apreciem o vozeirão do mestre de vocês!” e, “com a bela voz que possuía, cantou naquela noite banhada de luz a mais velha das modinhas conhecidas”: “Quis, debalde, varrer-te da memória, O teu nome arrancar do coração! Amo-te sempre, oh! Que martírio infindo!... Tem a força da morte esta paixão!”39 (AZEVEDO, 1924, apud SALLES, 2005ª, p. 178)
A julgar pela situação (uma serenata improvisada) e pelo tratamento que “Papará” destina aos outros quatro homens, pode-se dizer que a relação que mantinham era próxima, revelando que na Belém da Belle Époque as fronteiras entre pobres e ricos eram mais finas do que se procurava apresentar. Por mais que existisse a intenção da intendência de afastar as classes populares para os limites da cidade e das diversões burguesas, como se verá com detalhes na análise dos jornais, algumas situações fugiriam deste controle. Escritores como Paulino de Brito (1858 – 1919), que trabalhou n´A Província, produziram poesias que foram cantadas por pessoas de baixa renda (SALLES, 2005ª, p. 182 e 222). Houve ainda negros das periferias que além de cantar, também compunham, como o negro David, convidado para tocar piano em casas no atual bairro de Nazaré; Antônio Teixeira, que sabia tocar vários instrumentos e teve filho violonista; e Antônio Cirilo Silva, que foi professor de música, instrumentista, regente e autor de peças que ficaram muito famosas na sua época (SALLES, 2005b, p. 225 e 226). A “invasão” popular se faria também em um lugar comumente lembrado pelo luxo: o Teatro da Paz. Em um festival realizado no dia 11 de junho de 1915, o compositor paraense José Domingues Brandão apresentaria a sua “II Rapsódia de Cantos Populares Paraenses”, com sinfonias inspiradas no lundu, na toada, no acalanto e na modinha (SALLES, 2005ª, p. 124). O próprio nome “II Rapsódia” indica que não era a primeira vez que este tipo de música subia aos palcos do Teatro. Descendo para a plateia, têm-se frequentadores que fugiam do padrão desejado pela elite: uma negra, conhecida como “Tia Carolina”, foi vista mais de uma vez assistindo sessões de gala do Teatro da Paz. Nos bordéis ao longo da cidade, 39
Os versos cantados por “Papará” são do poeta baiano Plínio de Lima, e chamam-se “Ainda e sempre”. A primeira música provavelmente é de Xisto Bahia, que atuou na inauguração do Teatro da Paz em 1878.
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funcionários da Port of Pará40 foram multados por tumulto, sem contar a quantidade de pessoas de baixa renda que iam para as praças assistir concertos de música clássica (FIGUEIREDO, 1995, p. 31). É também a época dos bondes, onde todos sentam-se nos mesmos bancos, e das modas leves de materiais comuns, ao alcance de qualquer bolso. Além do mais, é impossível impedir que o sentimento democrático extravase para classes populares e até para ex-escravos, que passam a exigir um tratamento em termos de igualdade, tornando ainda mais confusa a afirmação de uma autoridade. [...] A reação das classes conservadoras: [...] restabelecer uma titularia honorífica [...] e o estabelecimento de verdadeiro culto da aparência exterior, a qualificar de antemão cada indivíduo. (SEVCENKO, 1999; p. 40)
Quando Antonio Lemos foi eleito intendente de Belém em 1897, a maioria das tradições africanas e amazônicas já estava consolidada. O Boi-Bumbá, folguedo que começou com os escravos negros, era realizado na quadra junina; havia festas para São Benedito e para a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Belém (que tinha uma Igreja construída no século XVIII pelos então cativos, no distrito da Campina); e havia a celebração do Divino Espírito Santo (SALLES, 2005b, p. 228 e 224). A festa de Nossa Senhora do Rosário, que se diferenciava por mover multidões e ter a coroação do rei negro, era bastante conhecida em Belém. Mas a que de fato chamava a atenção era a do Divino Espírito Santo, promovida pelo Mestre Martinho. O mulato escuro natural do município de Óbidos, no Pará, morava na capital do Estado desde criança, e realizou o primeiro festejo do Divino na rua Nova de Santana, atual Manoel Barata. Não demoraria muito para que o evento mudasse de endereço, passando a sair de uma casa no Umarizal (primeiro na rua Ferreira Pena e depois na rua Bernal do Couto), conforme descreve Vicente Salles (2005, p. 224 e 225): Começavam na 5ª feira da ascensão e se prolongavam durante uma quinzena. Ao lado do espírito religioso havia danças, bailes, jogos, toda espécie de recreação popular, a que se entregavam os habitantes do bairro. Dali também surgiam famosos cordões de bumbá, pastorinhas e se praticava, durante quase todo o ano, uma espécie de samba noturno. Como perturbavam o sossego público, o Diário de Belém, edição de 18/09/1884, reclamava e pedia providências à polícia, a fim de proibir esses sambas noturnos, “obrigados a tambores e pandeiros e gritos em agudíssimo, que se realizavam ali pela rua da Pedreira, travessa da Piedade e da Princesa.”
Este “sossego” seria aos poucos conseguido com o crescimento urbano, pois o bairro do Umarizal (onde moravam muitos negros livres na época da escravidão) recebeu muitos burgueses, empurrando esses moradores antigos para áreas próximas
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Empresa de propriedade do americano Percival Farqhuar, a Port of Pará foi inaugurada em 1909 e correspondia à atual Companhia Docas do Pará. (PINTO,__)
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como a Sacramenta, a Cremação, o Guamá, o Jurunas e a Pedreira, esta última a que mais receberia pretos e mulatos. Porém, os folguedos não perderiam sua força. O chefe municipal Antonio Lemos permitira muitos deles (incluindo as do Mestre Martinho), com a condição de que eles não atrapalhariam a “ordem”. O político entendia que a atitude garantiria o apoio dos populares. Desta forma, ele atendia aos convites para os festejos, e pedia desculpas quando não conseguia comparecer. Do outro lado, os festeiros também percebiam a intenção de Lemos. Quando queriam ornamentar a rua ou realizar uma celebração, escreviam seus pedidos com elogios rasgados ao governo, inflando o ego do intendente e garantindo a sua aprovação, como fizeram os moradores da travessa Dom Romualdo de Seixas, que queriam enfeitar a rua para a Festa da Ascensão do Senhor (realizada no período da Páscoa): “Concorrerá para que seja, cada vez maior o preito de homenagens e de profundo reconhecimento ao chefe prestimoso ao intendente modelo e ao grande cidadão, pelo elemento popular que ama querer bem e venera aqueles que, como vossa excelência, sabem sentir as emoções e animar e dar apoio às expansões do povo nos seus atos de patriotismo ou nas manifestações de sua fé e crença”. (BELÉM, 1905, apud SARGES, 2002b, p. 149)
A relação entre populares e burgueses era, portanto, mais complexa do que a mera imposição e resistência. Havia a intenção do governo e da elite de banir o que não era bem quisto na época, no caso, as pessoas pobres. No entanto, estas viveriam em constante diálogo com os ideais burgueses, assimilando o que lhes conviessem e adaptando os novos hábitos ao seu antigo estilo de vida. Fazendo parte deste contexto, estava a imprensa, que funcionava como veículo tanto das novas maneiras de pensar como dos anseios da população. No próximo capítulo, veremos o trabalho exercido pelo principal jornal do Intendente como doutrinador da Belle Époque.
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4. CAPÍTULO 3: ANÁLISE DAS NOTÍCIAS DE A PROVÍNCIA DO PARÁ O método que será utilizado é o da Análise de Conteúdo, que consiste na classificação objetiva de conceitos ou temas em um texto de acordo com categorias definidas, de modo a inferir as condições de produção e recepção da mensagem. Esta inferência pode ser conseguida através de análise estritamente quantitativa, mas também pode ser qualitativa (BARDIN, 1977, p. 42). Há três passos principais neste método: levantamento do material, com os principais objetivos já formulados; organização e, por fim, a interpretação do material. Divide-se o espaço amostral (chamado aqui de corpus) em categorias, que podem ser desde a aparição de palavras específicas quanto os temas. Uma categoria deve ter quatro características: exclusão mútua, ou seja, uma unidade não pode pertencer a mais de uma classificação; homogeneidade, todas as unidades de uma categoria precisam ter características familiares; fidelidade, ou objetividade; e produtividade, que é a formulação de novas hipóteses a partir dos resultados. (BARDIN, 1977; p. 36). Para este trabalho, tem-se 14541 textos escritos em 1898 e 99 escritos em 1911, extraídos de 12 edições de cada ano. Estes foram escolhidos devido a 1898 ter sido o primeiro ano completo de Antonio Lemos como intendente de Belém, e 1911, o seu último ano no cargo. Assim, serão comparadas possíveis mudanças na abordagem do jornal. Por impossibilidade de tempo, foi escolhido apenas um dia de cada mês da Província, no caso, a primeira segunda-feira. Nela, foram vistos acontecimentos do final de semana, anúncios de eventos futuros, suítes, artigos de correspondentes nacionais e estrangeiros e notas da intendência, devido àquela época ter um ritmo de produção mais vagaroso e sem a mesma preocupação com a atualidade dos fatos que se têm hoje. Ao se verificar os outros dias do mês na fonte dos jornais, a seção Microfilmagem da Biblioteca Pública Arthur Vianna, na Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, foram percebidas semelhanças na divulgação das notícias e na estrutura das colunas. Portanto, a escolha da primeira segunda-feira de cada mês não acarreta maiores prejuízos nos resultados obtidos. Desta forma, tem-se a divisão do material segundo três categorias:
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Considerando, nos dois anos: os artigos, os editoriais, as propagandas, os avisos da Intendência e as notas (estas últimas separadamente, ainda que sendo da mesma seção) em que apareceu algum elemento das três categorias de análise.
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a) Notícias referentes ao estilo de vida da época b) Notícias referentes às ações dos populares c) Notícias referentes ao próprio jornal ou ao governo de Antonio Lemos
4.1 Edições de 1898 Desde o ano anterior que A Província do Pará estampava o nome da firma “Lemos, Chermont& Companhia” em seu cabeçalho. A parceria entre o senador e recém-eleito intendente de Belém, Antonio Lemos, com os irmãos Pedro e Antônio Chermont mudaria até o lugar da sede do jornal para a travessa Campos Salles, nº 21. Com a aquisição da rotativa Marinoni no mesmo período, A Província se tornava o jornal mais importante das regiões Norte e Nordeste, sofrendo concorrência significativa somente da Folha do Norte, que havia acabado de ser fundada, e do Diário de Notícias. (ROCQUE, 1990, p.72)42 Esta rotativa imprimia as quatro páginas do jornal, que eram divididas em oito colunas. (ROCQUE, 1990, p. 71) Nas edições utilizadas para a análise, verifica-se que as duas últimas folhas eram predominantemente publicitárias, sendo que ainda havia propagandas espalhadas nas outras duas páginas. As folhas frontais recebiam as notícias e artigos principais. Apesar de haver algumas seções fixas, a grande maioria dos textos era publicada com títulos aleatórios. A assinatura dos jornalistas também era pouco frequente, preferindo-se ou deixar o texto sem autor ou valer-se de um pseudônimo – o que não impedia a transparência da opinião do jornalista, conforme será mostrado em breve. Dentre as seções que mais se repetiram durante a leitura das edições de 1898, temos: a) Nossos Echos: era o editorial, publicado na primeira página. Ele não aparecia em todos os números nem era assinado. A julgar pelas informações da seção, o “Nossos Echos” só era escrito quando o jornal precisava esclarecer algo sobre
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Lembrando que a essa altura, A Província do Pará não era considerada partidária. Havia um jornal editado pelo Partido Republicano, “A Republica”, que fazia a propaganda de seu grupo. Após a cisão deste partido em 1897, A Republica só circulou até 1900. A Folha do Norte era comandada pelo Partido Republicano Federal, de Lauro Sodré, o Diário de Notícias era chefiado por Frederico da Gama e Costa, do Partido Democrata, e A Província era de Lemos, que chefiava o Partido Republicano Paraense. (ROCQUE, 1990, p. 73 e 93).
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uma notícia que sairia na mesma edição ou quando havia alguma novidade, como uma seção nova ou alguma aquisição editorial. b) Pelo Paiz: coluna com informações trazidas por telegramas, sobre política, economia e costumes das outras cidades brasileiras, especialmente o Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Recife. c) No Extrangeiro: Próxima à anterior havia outra coluna para os telegramas internacionais, onde destacam-se as cidades de Londres, Buenos Aires, Nova York, Washington, Berlim, Madrid, Genebra e Paris. d) MixedPickles: crônicas escritas sob o pseudônimo “John Morton”. Contava casos bem humorados da alta e da baixa sociedade, além de situações vivenciadas pelo autor. Ocupava uma coluna inteira, chegando a duas dependendo do tamanho do artigo. e) Psychologia do Jacto: espaço destinado às histórias de pessoas que foram presas ao beber além da conta. f) Governo Municipal / Conselho Municipal: o público tomava conhecimento das sessões ordinárias por meio desta seção. A data, a hora, os projetos a serem discutidos e o nome dos políticos participantes e dos faltosos eram publicados. Era aqui também que se apresentavam os editais de serviços e obras que seriam implantados na cidade, algumas vezes com a transcrição dos relatórios do próprio Antonio Lemos. g) Intendencia Municipal: o chefe do município tinha direito a uma seção própria, onde transcrevia leis e deixava recados para os leitores. No entanto, nas edições analisadas, nem sempre era o intendente quem escrevia: ele tinha um encarregado no jornal de adaptar os relatórios para A Província do Pará, assinando no final da seção. Além das leis recém-aprovadas, a seção também relembrava alguns itens do Código de Posturas que Lemos achava estarem sendo negligenciados pelos moradores. h) Receituario da mãe de família: era uma nota bastante frequente, ensinava desde a cozinhar alimentos típicos até a retirar calos dos pés43. Os métodos pareciam bastante populares. 43
“Calos. – Para tirar os calos chamados olhos de perdiz, que, colocados entre os dedos dos pés, são extremamente incômodos, o processo mais modernamente recomendado é o seguinte: Durante o dia põe-se sobre o calo, entre os dedos, um pouco de algodão hidrófilo e durante a noite substitui-se-o por uma pequena camada de sebo. Na manhã seguinte mete-se o pé em água quente, lava-se
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i) Phonographo: seção reservada a uma anedota sobre quatro amigos fictícios, Pandorgas (catraieiro), Xumbregas (que é noivo), Matreiro (recém-contratado como criado no Hotel Dois Irmãos) e Bilontra (que conseguiu um emprego como cocheiro e também acabou de se casar). Nas piadas, eles tentam aprender esgrima, participar dos bailes da alta sociedade, mobiliar a casa de acordo com a última moda e passear de barco. j) Pequenas Informações: como o próprio nome indica, tratava-se de uma nota, onde constava a quantidade de guardas militares que haviam feito o policiamento no dia anterior. k) Editaes / Alfandega do Pará: tarifas da Alfândega, listas de passageiros e de encomendas chegadas ao Estado. l) O Cambio: as taxas de câmbio nacionais e internacionais, em forma de tabela. m) Noticiario Religioso: divulgava as atividades religiosas, sejam missas fúnebres, sejam festejos para santos, com local e data. Os eventos eram separados por tópicos iniciados por travessões, de forma objetiva. No entanto, alguns acontecimentos recebiam destaque por parte do redator. n) Diversões Publicas: era uma relação dos cafés e teatros de Belém, dizendo o que havia de melhor nestes lugares, divulgando o endereço e às vezes os preços. o) Os Mortos: relação dos óbitos recentes, categorizados pelo nome completo, a
idade, a cor da pessoa e a causa da morte. Não foram encontrados, nas edições lidas, diferenças de tratamento entre pobres e ricos. Apenas na edição de 13 de junho que um fazendeiro recebeu destaque: “Faleceu ontem nesta capital, às 3 horas da tarde, o sr. Francisco Martins da Silva, rico fazendeiro em Monte Alegre. Contava a idade de 78 anos. O enterro sairá hoje, às 9 horas da manhã, da casa n.76, à rua Jeronymo Pimentel”44. p) Vida Social: espaço dedicado às atividades da elite belenense, como aniversários, festas e banquetes, cujas descrições eram permeadas por adjetivos. q) A Provincia do Pará: não chegava a ser uma seção, mas a equipe intitulava assim os textos em que dava algum recado – no caso das edições analisadas,
o sebo e tiram-se, muito de leve, com um canivete ou antes com uma espátula de marfim, as peles, que se despregam. Continua-se em tratamento durante o tempo necessário.”(A Província do Pará,13 de junho de 1898, p.2. Receituario da Mãe de Familia) 44 A Província do Pará, 13 de junho de 1898, p.2. Os Mortos.
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eram sobre os pontos de venda do jornal, os critérios de recebimento de propagandas e o valor das assinaturas. r) Notícias Diversas: basicamente tudo o que não se encaixava nas outras seções nem tinha importância o suficiente para receber um título próprio vinha para este espaço do jornal. Eram notícias sobre furtos, denúncias, discussões, mortes por doença, dentre outros acontecimentos. s) Annuncios: espetáculos teatrais, alimentos, roupas, imóveis, leilões, pessoas à procura de serviçais, remédios, serviços de médico, dentista, advogado, dentre outros. Havia ainda propagandas fora desta seção, escritas como se fossem notícias, e que saíram em quase todos os números do nosso corpus. t) Ultima Hora / Noticias da Noite: conforme observado nas edições, acreditamos que a equipe d´A Província do Pará reservava uma coluna na terceira página para o caso de acontecer algo excepcional logo antes do fechamento do número, durante a noite. Por isso, aqui apareciam notícias que poderiam ter feito parte de alguma seção fixa, mas devido ao horário do fato, foram colocadas neste espaço.
4.1.1 Notícias referentes ao estilo de vida da época A linguagem opinativa da imprensa, na época, seria essencial para a autoafirmação de Antonio Lemos como intendente. Publicavam-se os comportamentos “transgressores”, como os das pessoas que brigavam no meio da rua, e os roubos, com ironia. Já os colunistas comentavam as últimas descobertas das Artes e das Ciências. Em ambos, havia a presença dos valores capitalistas da nobreza do trabalho, da ordem, da urbanização, da erudição e o da educação versus a ignorância, como aparece neste artigo de 4 de abril: Não é difícil o início da reforma social que agora se impõe à nossa civilização. Afigurasse-nos, até, que será coroada do melhor êxito possível, desde que a ela presidam método e entusiasmo. E é das classes mais abastadas que deve partir o exemplo. Para nós, a solução do problema doméstico que ora serve de espectro a toda família constituída – a falta de servos – só pode ser obtida quando [...] toda moça se capacite de que não há desdoiro algum em que ela trate de seu próprio ménage e dispense o concurso da clássica escrava dasvelhas eras tolerada em tudo pela muita ignorância em que vivia, e por que era serva demais para receber noções ou impressões de dignidade ou brio. [...] Com isto não queremos dizer que as senhoras donas de casa, moças ou não, sejam moças escravas pelo serviço doméstico. [...] Mas, se todas se capacitassem da enorme vantagem que poderão fruir, [...] todas as moças se
51 dedicariam de corpo e alma a esse máster que tanto as habilitaria e emancipar-se-iam do elemento servil, estúpido e indisciplinado. J. Simão da Costa. (A Província do Pará, 04 de abril de 1898, p. 2.
Problemas Domesticos.)
A serva – ou criada – é uma pessoa que veio da zona rural ou das regiões mais pobres da cidade. É desprovida de estudo, mas conhecedora dos provérbios, superstições e receitas populares. Ter uma prejudicaria não só o cuidado com o lar como o desenvolvimento das crianças da casa, pois ela transmitiria seus costumes através do convívio. No Relatório do Município escrito pelo intendente de Belém (LEMOS, 1907, p. 124), consta que ele não só concordava com esta opinião como enxergava ainda mais “riscos” quando se tratava da ama-de-leite: ela ingeria alimentos “nocivos” que, segundo ele, contaminavam o leite materno e poderiam até matar as crianças, como açaí, cerveja, café e bacaba. Ele também não gostava das “liberdades” que a ama e a serva comum recebiam dos patrões – e que também contribuíam para a disseminação dos valores populares. De qualquer modo, a serva passava bastante tempo dentro do lar burguês, tendo mais contato com a dona da casa e as crianças do que o pai, que era o chefe do lar. Como naquela época a mulher burguesa era inteiramente responsável pela educação dos filhos, é ela quem é chamada a atenção pelo autor do artigo: para se livrar da ignorância servil, é preciso que a patroa aprenda os serviços domésticos para que ela mesma ensine a criada. Assim, todos se tornariam civilizados: a mulher, a criada e o restante da família. Note que apesar de criticar a “ignorância” das trabalhadoras de baixa renda, em nenhum momento o autor J. Simão da Costa defende a sua eliminação. Ainda não era desejável que a moça da elite “sujasse as mãos” fora de uma situação emergencial. Para isso existia a mulher pobre, a que nunca teria este luxo, pois era ela quem estava fadada a ser uma serva. Esta discriminação é nítida no primeiro parágrafo do texto: “Não é difícil o início das reforma social que agora se impõe à nossa civilização”. (grifo meu). Considerando que o jornal é lido por todos, este “nossa” poderia incluir todas as classes. Ambiguidade que é prontamente retratada: E é das classes mais abastadas que deve partir o exemplo. Para nós, a solução do problema doméstico que ora serve de espectro a toda família constituída – a falta de servos – só pode ser obtida quando habilitarmos as nossas filhas a ser absolutamente independentes; a poder passar, em casos de emergência, sem esses auxiliares, ou a ensiná-los quando sejam ignorantes (grifos meus).
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Os adjetivos, como o “ignorante” acima, são os principais indicadores do que os autores realmente queriam dizer. Quando escreviam sobre um hábito que eles queriam que perdurasse, valiam-se de termos elogiosos, como os proferidos a um teclado movido à eletricidade, apresentado em uma ópera parisiense. A invenção era inovadora porque o tal teclado acendia quando tocado, sendo considerada pelo redator “uma fantasia sublime”, “uma das invenções mais estupendas deste fim de século” (A Província do Pará, 07 de março de 1898, p. 2. Revista das Sciencias). A própria festa em que ele aparecera recebeu uma descrição exaltada, chamada de “realmente interessante”, e a banda de música era “excelente” e “brilhante”. O texto, que caberia perfeitamente em uma coluna social atual, fazia parte de uma seção denominada “Revistas das Sciencias”, que era destinada às descobertas do Hemisfério Norte. Logo, a presença dos adjetivos era justificável, pois se vivia em uma época de tentativa de imitação da cultura europeia. Assim como em outra notícia, chamada de “Sport” (A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p. 2. Sport.). O artigo discorria sobre um campeonato de ciclismo realizado no domingo anterior no centro de Belém, e que havia sido promovido pelo próprio jornal. Dizia-se que era uma das primeiras vezes que se tentava um evento do gênero, e que era esperada uma repetição. Conforme aparece nas linhas finais: “A festa de ontem, que foi muito divertida e cordialíssima, deve servir de incentivo para a sua repetição a breve trecho. É assim que o ciclismo poderá impor-se rapidamente à opinião pública”. A maneira com que o artigo é iniciado também reforça esta aprovação do jornalista: “Cada festa oficial da velocipedia [ciclismo] organizada em Belém assinala novos progressos e mais avantajados triunfos [...] Acaba de prova-lo o passeio de ontem, - na verdade a mais bonita e numerosa demonstração que jamais se fez aqui.”. O parágrafo diz muita coisa sobre a maneira de agir dos intelectuais do final do século XIX. Por mais que o artigo tenha sido publicado em um veículo lido por todos, por mais que uma parte da população tenha assistido ao torneio, quem realmente participou foram pessoas da elite. Até porque eram elas que sabiam as regras do esporte. Assim como eram elas quem também conheciam as obras de arte, os livros, as músicas ditas eruditas e a maneira “elegante” de se vestir e de se portar.
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Ao exaltar a prática do ciclismo, pode-se dizer que o jornal estava mesmo era incentivando a presença de um maior número de conhecedores do esporte. Ao pedalarem pelas ruas da cidade, eles “ensinariam” os outros que aquele espaço era da elite e que aquela era a forma correta de se divertir. Caso estes conseguissem aprender os novos comportamentos, ótimo, caso não, que eles ao menos fossem para locais mais remotos. Só que a elite não poderia simplesmente impor as suas vontades sobre os demais, pois isto iria de encontro aos princípios republicanos de igualdade, que era justamente o que ela mais prezava. Era preciso disfarçar: é aí que entra o apelo jornalístico de incentivo aos comportamentos considerados – pela classe alta – adequados. O que já havia sido percebido por Martín-Barbero (2003): Uma sociedade assim não pode não relegar a liberdade dos cidadãos e a independência individual a um plano secundário: o primeiro ocupará sempre a vontade das maiorias. E desse modo o que vem a ter verdadeira importância não é aquele em que há razão e virtude, mas aquele que é querido pela maioria, isto é, o que se impõe unicamente pela quantidade de pessoas (MARTIN-BARBERO, 2003, p.57).
No jogo criado pela burguesia, então, a população acabaria ela mesma por desejar abandonar o antigo estilo de vida, que aos poucos seria visto como algo atrasado. A exclusão do povo era dupla: a especulação imobiliária o empurrava para as regiões periféricas, e a ideologia capitalista o deixava com vergonha de estar no meio de gente que se vestiria melhor, falaria melhor e que teria mais posses. No caso dos personagens fictícios da seção “Phonographo”, eles tinham vontade de se integrar à burguesia e acabavam cometendo erros: Pandorgas acha-se numa praça d´armas, a aprender o jogo do esgrima. O mestre – Aten....ção! Primeira li...ção! O sr. sabe o que é um bote? Pandorgas. – Perfeitamente, mestre... Pois se eu sou catraieiro... (A
Província do Pará, 07 de novembro, p.1. Phonographo).
Qual é a graça do diálogo? O tal bote, obviamente, não era uma embarcação, como achava Pandorgas. Por mais que ele vivesse em uma cidade que estava se modernizando e estivesse aprendendo coisas novas, o rapaz nunca conseguiria pertencer totalmente à classe alta, pois era naturalmente mais “atrasado”. Bilontra fez-se cocheiro. Há dias apresentou-se em casa de um dos nossos colegas: - Sr. doutor – eu vim aqui pedir a v. s. o obséquio de ir comigo até a chefatura de segurança, porque o sr. 4º prefeito multou-me com 60$ e eu desejava que v.s. intercedesse por mim. - Bem, não é preciso que eu vá, dou-te um cartão...
54 - Não sr. . Ele disse que só indo v.s. mesmo. Veste-se o nosso colega, vai à chefatura e livra-o de pagar a multa. Ontem, reaparece o Bilontra: - Sr. dr. , eu vim receber aquela viagenzinha. - Que viagem? - Aquela... Quando levei v.s. à chefatura para falar com o 4º prefeito... (A
Província do Pará, 09 de maio de 1898, p.1. Phonographo)
Além da dificuldade para compreender os hábitos da classe alta, o povo também precisava assimilar as novas relações trabalhistas, que iam de encontro com o ranço escravocrata ainda existente. Na anedota acima, é nítida esta confusão: Bilontra pede que o patrão ajude-o com sua multa, ou seja, ainda se sentia dependente dele; e depois, ele cobra a viagem que fez com o patrão até a delegacia, como se só porque os novos trabalhos eram assalariados tivesse sido extinto o favor. Assim como em outro texto com o mesmo Bilontra, em que ele se casou e trata a mulher sem regalias. Ele estava acostumado com o namoro popular, no qual a mulher está no mesmo nível que ele, tendo emprego e independência. Mas para a burguesia, ele deveria tratar a esposa com cavalheirismo, originando o humor (A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p.1. Phonographo). Só para que fique ainda mais claro o que está sendo apresentado, vejamos mais uma notícia, sobre uma família que morreu durante a madrugada após a explosão de uma lamparina, que havia entrado em contato com um latão de petróleo (A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p 2. Os Incendios). A família em questão não era conhecida do grande público, então naturalmente apareceria na seção “Diversas Noticias”. Mas foi um caso tão excepcional que ganhou destaque e título próprio. O redator, ao relatar o caso, dá riquezas de detalhes sobre o estado em que foram encontrados os corpos, valendo-se de expressões de lamento – “uma catástrofe”, “triste” e “um horror” -, incluindo até um ponto de exclamação. A história é de fato triste – foi uma criança que se levantou para iluminar a casa e retirou o bocal com a mecha ainda acesa -, mas se soubermos que Antonio Lemos implantou a luz elétrica em 190545, enxergamos a notícia com outros olhos. A lâmpada era um utensílio recém-inventado no Hemisfério Norte, e se popularizava por ser mais segura do que a lamparina. Por isso, expor que a segunda causava acidentes graves e escrever de uma maneira que
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Ano em que a Intendência assinou o contrato com a Pará Eletric Company, de acordo com informação na página 411 do livro de Ernesto Cruz, “História de Belém” (CRUZ, 1973, p. 411)
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indignasse o leitor contribuiria para uma futura aceitação do novo investimento por parte dos habitantes.
4.1.2 Notícias referentes às ações dos populares
Se já havia discriminação nos artigos, era de se esperar que A Província do Pará desse pouca atenção ao que acontecia dentro das camadas mais humildes. Mas não era bem isso o que acontecia. Havia várias notícias nas quais os populares eram os protagonistas, sendo possível ter uma ideia de como era o dia-a-dia destas pessoas. Em 1898, eles chegaram até a ter espaço reservado nas páginas do periódico. É claro, o tratamento recebido por eles era bem diferente do destinado aos personagens das colunas sociais. Nas notícias com títulos próprios ou na seção “Noticias Diversas”, eles eram apresentados por termos como “indivíduo”, “comerciante”, “preto”, “estivador” e “espanhol”. Grande sarilho houve ontem, de madrugada, na casa em que reside *ilegível* Jorge, à travessa Quatorze de Abril, entre as ruas Mundurucus e Pariquis. Seriam 3 da madrugada. Toda a vizinhança foi despertada pelos gritos soltados por mulheres ali residentes, algumas das quais chegaram a saltar janelas. Não se sabe ao certo a causa de semelhante rolo. Entretanto, segundo nos consta, esteve envolvido nele um alferes do regimento estadual. Um preto velho, de nome Januario, coveiro no cemitério Santa Izabel, recebeu no abdômen um ferimento produzido por faca ou navalha. A patrulha de cavalaria que estacionava nas proximidades andou em grande movimento, mas não conseguiu prender ninguém. ( A Província do Pará,
04 de abril de 1898, p.2. Noticias Diversas)
O comportamento deles era geralmente escrito em tom de desaprovação. Na história acima, a descrição do repórter cria uma imagem tenebrosa da festa, chamada por ele de “sarilho” (que significa “barulho”): um lugar onde mulheres não possuem compostura, pessoas não se controlam e machucam umas às outras, sem contar que incomodam os vizinhos. A seção “Psychologia do Jacto”, que ocupava a segunda folha d´A Província do Pará, era sobre pessoas que haviam sido presas por embriaguez. Escrevê-la deveria ser uma diversão à parte para os jornalistas, visto que eles precisavam escolher o caso do dia no meio dos vários relatos colhidos. A linguagem aproximava-se mais da literatura do que do jornalismo em si, fazendo amplo uso de ironias e jogos de palavras com os
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personagens. A brincadeira já começava no título: “jacto” é uma referência à pessoa bêbada. Em vários textos da seção são utilizados o termo e os seus variantes, “enjactado” e “enjactou-se”, para dizer que o personagem principal havia ficado alcoolizado. Tamanho destaque vinha da crença disseminada ainda no século XVIII de que o álcool tinha a capacidade de mudar a conduta de um cidadão, aumentando a probabilidade de ele cometer um crime. Desde aquela época, pensava-se que o vício era transmitido geneticamente, pois “o alcóolatra arrisca-se a engendrar monstros”. Na Inglaterra os operários recebiam cartilhas de combate ao vício, com ilustrações sobre o poder destruidor que ele tinha sobre a família (PERROT, 1995, p. 565 e 566). A França era outro país em que se escrevia sobre o tema. Para esses autores, o álcool favorecia a preguiça, o desperdício do salário, fazia mal à saúde e contribuía para a criminalidade, como afirma Letícia Pantoja (2005, p. 133): O álcool [era] responsável por desencadear tanto a criminalidade hereditária – aquela decorrente de degenerações de caráter nascidas com o indivíduo, tais como as decorrentes da raça ou do histórico de doenças mentais familiares -, quanto os delitos ocasionais – aqueles que podem ser cometidos por qualquer pessoa, desde que sob a ação de um agente tóxico alucinógeno, apontando a presença de uma prática comum entre os trabalhadores das camadas populares, que era beber logo após a jornada de trabalho, como uma forma de aliviar as tensões ou mesmo obter mais energias para continuar o dia e arcar com as tarefas domésticas.
Pode-se dizer que é por isso que havia uma seção sobre o álcool e não sobre a pobreza, a moradia inadequada ou a etnia, fatores que também eram considerados de risco. Por isso também que os personagens do “Psychologia” eram apresentados em relação de causalidade com o delito, como foi com os amigos Francisco e Joaquim: Francisco Rodrigues dos Santos e Joaquim Soares festejaram o dia de ontem com um entusiasmo fora do comum. Foram tantos os botequins em que entraram e tão copiosas as libações que, ao chegarem à rua Manoel Barata, começaram a embirrar um com o outro, resultando grosso e medonho sarilho. Os dois irmãos da opa devem a esta hora estar enormemente surpresos por verem-se transformados em canários, dentro da gaiola da travessa São Matheus. (A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p. 2. Psychologia do Jacto. grifos do autor)
Vê-se que o tom debochado do redator expõe Francisco e Joaquim ao ridículo, contribuindo para a sensação de vergonha já explicada no tópico anterior. Ele também deixaria as pessoas com medo de beberem ou de exagerarem na dose e caírem nas páginas do jornal. O que seria bom para refrear os instintos dos populares, pois os
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europeus poderiam se sentir intimidados a viajar para Belém sabendo que aqui moravam pessoas suspeitas (SEVCENKO, 1999, p. 28). Desta forma, a seção cumpria um papel de mostrar para os leitores o que acontecia com quem fugia da conduta civilizada, e que as autoridades eram eficazes na punição. Porém, havia algumas contradições: ao mesmo tempo em que o jornal fazia campanha contra o álcool, na página 4 do mesmo impresso havia anúncios de cervejas, vinhos e champanhes. Considerando que todos os personagens que apareceram no “Psychologia”, na nossa coleta, eram de baixa renda e que essas bebidas oferecidas nas propagandas eram consumidas principalmente pela elite, A Província do Pará revela influências da corrente determinista. Afinal, se os ricos também bebiam, por que só os pobres causavam confusão? Utilizando-se de doutrinas formuladas no âmbito da constituição do saberes médico-legais em sua interface com o discurso jurídico, os jornais reconheciam que certos indivíduos em virtude de suas características genético-raciais eram mais suscetíveis de viver na miséria, por causa de sua indolência e preguiça inatas; cometer crimes, em virtude da torpeza e degeneração de seu caráter ou adotarem posturas desregradas, marginais ou viciosas, uma vez que fariam parte de grupos raciais enfraquecidos pela miscigenação, que perpetuava, nas gerações seguintes, os caracteres mais primitivos e selvagens de cada grupo humano (PANTOJA, 2005, p. 130).
Apesar de a autora afirmar acima que havia preconceito étnico nas notícias, não foram encontradas discriminações explícitas sobre a aparência dos envolvidos, pelo menos não nos textos do “Psychologia” das edições analisadas neste trabalho. O alvo da discriminação era a classe social. Observou-se que os redatores desta seção davam ainda menor importância ao cotidiano dos populares do que nos outros tipos de notícia em que eles apareciam. Não se perguntava o motivo de eles estarem bebendo, nem do começo dos tumultos. A culpa parecia ser exclusivamente da relação entre a bebida e a condição social em que eles se encontravam. Na notícia exemplificada acima, Francisco e Joaquim eram amigos que discutiram após tomarem algumas doses. Já discorremos no capítulo 2 que os populares valorizavam em demasia a boa relação com os vizinhos, os parentes e os amigos e que por isso eles costumavam resolver a situação na base da conversa, que poderia muito bem descambar para a ofensa e a agressão. O “desafio”, que começava nas zombarias trocadas entre os trabalhadores, também podia terminar em conflitos: O significado mais profundo do desafio é que um confronto específico surgido das tensões provenientes das lutas políticas cotidianas de um determinado microgrupo sócio-culturaljá parece ter esgotado a sua
58 possibilidade de solução pacífica. [...] O machismo é também um corpo de valores que induzem os nossos personagens à ação. O homem despossuído constrói sua identidade social a partir do que faz, e não, obviamente, a partir do que tem, pois, por definição, ele nada ou pouco tem. Sendo assim, pra ele, ser é fazer, e não possuir. (CHALHOUB, 1986, p. 223, grifos meus)
Então, seria errado pensar que Joaquim e Francisco começaram a discutir somente porque beberam. Por mais que o álcool tenha lhes dado coragem de dizer o que pensavam, antes eles já deveriam ter alguma rixa, de motivo desconhecido. Outro costume frequente da seção era descrever os personagens como pessoas solitárias. É que quando os jornalistas utilizavam o termo família, se referiam ao modelo burguês do pai casado com a mãe e morando com os filhos. Eram estranhadas pelos profissionais as relações flexíveis das classes populares, com seus amásios – parceiro sexual que mora com o indivíduo sem ter se casado com este – e parentes convivendo muitas vezes sob o mesmo teto. Como por exemplo, quando o repórter d´A Província do Pará disse que um bonde estava cheio de “famílias, que foram obrigadas, de mau grado seu, a ouvir as amabilidades do irascível condutor”46 que havia se recusado a entregar o troco a um passageiro, ou quando a família do dono do hotel Franckfort47 foi desrespeitada por agentes de segurança que queriam prender um dos criados do local. Mais do que um simples modelo, ela representava a pureza, a dignidade e a coesão. Por isso, se tomarmos a ótica determinista da época, quem tinha família supostamente não se envolvia em crimes. Possivelmente o motivo para que os alvos das notas policiais serem frequentemente retratados como pessoas que possuíam no máximo amigos ou um ou outro parente, como na notícia abaixo, ainda do “Psychologia do Jacto”: João Baptista dos Santos é irmão do 120 réis. Ontem, porém, por ser domingo, achou que devia multiplicar aquele número por 3. Feita a conta, 46
“O condutor do bond chapa nº6, 1ª linha, que saiu de Nazareth ontem à tarde, cerca de 6 ½ horas, não prima pelo conhecimento das noções de civilidade e boa educação. Tendo um passageiro reclamado o troco devido da quantia de 2$ que lhe dera para pagar uma passagem, o bom do homem[...] deu-lhe uma cédula de 1$, negando-se a completar a soma respectiva. O pior é que o bond vinha cheio de famílias, que foram assim obrigadas, de mau grado seu, a ouvir as amabilidades do irascível condutor”.(A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p.2. Diversas Noticias). 47 “Pela madrugada de hoje, às 5 horas, [...] foi subitamente invadida a sua casa por dois indivíduos que, dizendo-se um deles agente de segurança e desrespeitando a sua própria família, queriam, à fins força, prender um dos criados, para garantia não sei de que multa. Espero, portanto, que v. exc. se digne mandar sindicar do fato. Pará, 6 de novembro de 1898. – José Ferreira Soares.”(A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, p. 1. Ao exmo.sr. desembargador chefe de segurança.).
59 tirou do bolso do colete, em bilhetes da Urbana, a quantia correspondente ao resultado obtido na operação – 360, por conseguinte – resolvido a emprega-la em cálices de cachaça. Posta em prática a resolução, o João Baptista, estranhando a catadura, começou a fazer ss e rr pelas ruas da cidade. Consequência: xadrez, me fecit. (A Província do Pará, de 1898, 05 de
setembro. p.2. Psychologia do Jacto)
Baseando-se na pequena biografia apresentada sobre João Baptista dos Santos, podemos inferir que ele era pobre (vestia colete, que era uma roupa barata na época), solteiro e sem filhos, já que passou o domingo gastando o dinheiro que tinha em bebidas e depois vagando bêbado pelas ruas até ser detido. Sua idade e profissão são ignoradas pelo repórter, e se ele tinha mulher, era um marido irresponsável, pois não estava em casa em um dia de descanso. Em ambas as hipóteses, João Baptista fugia do estereótipo de chefe do lar. Para corresponder à periculosidade que se acreditava imperar nessa Belém empobrecida e incivilizada, os jornalistas e os gestores públicos passaram a construir arquétipos sobre o comportamento nutridos por seus habitantes. Por isso, os personagens principais das tramas jornalísticas que noticiam prisões e brigas [...] são descritos e classificados de acordo com os valores morais que partilhavam e pela sua capacidade de domesticar os próprios instintos e sensibilidades. [...] Para a imprensa e para o poder público, essa dimensão do espaço citadino, que em certos momentos se procurava ocultar e em outras ocasiões dar visibilidade – como estratégia de denúncia dos perigos inerentes – era um universo obscuro onde as brigas ocorriam ‘sem motivo justificado’, havia ‘rolos tremendos’ entre mulheres de má vida, ‘grandes xinfrins’ entre moradores de cortiços e ‘ofensas à moral pública’, sendo, portanto, um espaço onde se davam ‘fatos degradantes’ que impediam as famílias honestas de chegar às janelas. (PANTOJA, 2005, p. 129)
Agora, nossa intenção com isso não é a de tachar os jornalistas de negligentes ou manipuladores. Deve-se levar em conta que como a linguagem da imprensa no século XIX era opinativa, não era comum abrir espaço para as falas dos envolvidos. Quando se sentiam ofendidos ou difamados, eles enviavam cartas ou iam pessoalmente à redação para contar as suas versões48. Somente nos casos excepcionais, como assassinatos e roubos planejados, havia uma cobertura ampla, com a íntegra dos depoimentos dos personagens e pesquisa sobre a vida daquelas pessoas. Até a abordagem mudava: passava do desdém à preocupação com a proliferação das práticas em uma cidade tão “pacífica” como Belém. Nesta notícia de 1º de agosto sobre dois roubos a lojas em Belém, já fora da seção “Psychologia do Jacto”, o repórter reproduziu o relato de uma das testemunhas: 48
Como fez o alferes Manoel Rodrigues Borges, que foi até a “Província” dizer que não havia agredido um menino de 4 anos e meio que brincava perto de sua residência, como havia sido publicado em outros jornais. Como defesa, ele alegou que estava fora da cidade na noite do acidente. (A Província do Pará, 13 de junho de 1898, p.2. Ultima Hora.)
60 2ª testemunha. – Luiz Anathalio Braziliense, natural do Estado de Alagoas, de vinte e sete anos de idade, solteiro, criado de servir de Carlos Urbinatti, morador à estrada Independencia, no lugar denominado Villa *ilegível*, afirmou dizer a verdade do que soubesse e lhe fosse perguntado. E, sendo inquerido pelo prefeito sobre o conteúdo da portaria, que lhe foi lida, respondeu que, tendo chegado do Estado do Alagoas no vapor Brazil a esta capital, 15 dias depois, em 23 do mês passado, empregou-se como criado de Carlos Urbinatti e FelicinoLupotti, em cuja casa, à avenidaSerzedello Corrêa, n.53, entra às 7 horas da manhã e da qual se retira às 8 horas da noite; que do dia 10 para 16 do corrente viu por três a quatro vezes em a dita casa o italiano Carletto, cuja conversa com Felicina e Angela nunca compreendeu, porque falavam em linguagem estrangeira (A Província do Pará, 01 de agosto de
1898, p.2. Dois Roubos Importantes).
Esta foi a única vez no corpus em que se descreveu a vida de alguém com tantos detalhes. É que estes dois roubos, especificamente, causaram muito alvoroço em Belém devido ao planejamento dos ladrões. Todas as testemunhas foram ouvidas e seus depoimentos transcritos n´A Província do Pará, além de a investigação policial ter sido acompanhada de perto. Nas notícias e no editorial, os jornalistas contavam que todos os moradores de Belém comentavam o caso nas ruas e cobravam informações da imprensa. Ou seja, a maneira de abordar uma história não era totalmente controlada pelos editores e pela elite. Voltando às notícias policiais sobre roubos e homicídios em geral, a linguagem recebia poucas ironias e adjetivos pejorativos. Porém, o redator emitia sua visão sutilmente, como no texto abaixo, de 9 de maio: Para conhecimento dos nossos leitores – mesmo os que já tinham lido ontem A Província da tarde – abaixo inserimos os pormenores que conseguimos obter sobre esses crimes [...] Deu-se o outro crime às 2 ½ horas da madrugada de ontem, na varanda do prédio em que tem sua sede a sociedade Estrellas do Oriente, à rua Aristides Lobo. Funcionava ali, desde o anoitecer, um bazar de caridade, em benefício da irmandade do Senhor Bom Jesus da Columna. Mais ou menos à 1 hora apresentou-se à porta do edifício um grupo de inferiores do1º corpo de infantaria do regimento estadual, exigindo do porteiro que lhes proporcionasse entrada gratuita. O porteiro, naturalmente, recusou-se a satisfazê-los, ponderando-lhes que não era aquilo uma festa pública, e sim particular, e cujo resultado deveria reverter em bem de uma irmandade. Não atendendo a isso, os do grupo, prorrompendo em impropérios, forçaram a entrada. (A Província do Pará, 09 de maio de 1898, p.2.
Assassinato, grifos meus).
O redator não culpa o porteiro pela entrada do grupo, e sim o próprio grupo. O porteiro não é descrito, mas pelos termos utilizados – “naturalmente” e “ponderandolhe” – ele aparece como uma pessoa tranquila, que conversa para resolver o conflito, numa atitude moralmente aceita. Por outro lado, os funcionários de infantaria aparecem
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como indivíduos sem educação e violentos, a julgar pelos verbos empregados: “exigindo”, “não atendendo”, “prorrompendo”, “forçaram”. Segue a ação, já dentro da festa: Até então a festa correra em meio à maior ordem. Prosseguiam animadas as danças, em que tomava parte o alferes José AmancioÓrleans da Silva, que aí se achava à paisana. [...] No intervalo entre a penúltima e última quadrilha, o cabo do 1º corpo de infantaria João da Cunha Mourão, - um dos do grupo – que se achava desarmado, como os outros, provando assim não estarem de serviço, travou, por motivo fútil, questão com um dos circunstantes, Bonifacio Ribeiro da Silva. [trecho ilegível] com que se armara, cravou-o em Bonifacio, que caiu por terra, banhado em sangue. O agressor, entregando a arma ao alferes Amancio Silva, tentou retirar-se do edifício. (grifos meus)
A violência natural de João da Cunha Mourão seria novamente reforçada mais para frente, quando fosse escrito que ele arrancou as suas divisas de cabo de esquadra. No entanto, em outros trechos ele parece ser inocentado pelo jornalista: é ressaltado que Mourão estava desarmado, que a briga foi por motivo fútil e que ele entregou a arma e as divisas logo após o crime. Sua etnia também não é mencionada na sua descrição. A notícia conta a resolução do crime e uma breve biografia dos envolvidos, começando por Bonifacio Ribeiro da Silva. É dito que ele era pardo e solteiro – apesar de seu cadáver ter sido entregue à sua amásia. Era jovem, mas portava objetos de valor e vestia roupas que lhe conferiam certo status: paletó, gravata, calça e camisa de cores claras. Seu enterro foi custeado por uma loja. Nas notícias sobre crimes hediondos que A Província do Pará publicava neste período, ao contrário do que acontecia no “Psychologia”, o tom da pele, a nacionalidade e os hábitos ganhavam força como causadores do delito que havia sido cometido. Mas no texto acima, mesmo que o grupo de infantaria tenha sido mostrado como naturalmente violento e que por isso brigou na festa, vê-se a ausência de fatores clichês como: eles estavam bebendo? Eles faziam barulho? Eles perturbavam a ordem? É mais uma vez a corrente determinista se fazendo presente, conforme Letícia Pantoja (2005, p. 130) percebe: Assentados na crença de que o delito (desordens e condutas diversas infratoras da ordem social) é um fenômeno que não envolve apenas causas sociais ou econômicas, mas biológicas e morais, esses articulistas privilegiavam, em seus relatos e notícias de denúncia da criminalidade, certos personagens sociais, tais como: imigrantes ibéricos (espanhóis, italianos e
62 portugueses), negros e mestiços (mulatos e cabras), indicando a sutil presença dos pensamentos da “escola positivista italiana49”
Segundo ela, os negros, índios e pardos – como Bonifacio – tinham o seu caráter desqualificado no discurso jornalístico, sendo os seus defeitos morais os responsáveis pelos seus delitos, o que os tornava “ilegítimos habitantes da urbe em processo de civilização” (PANTOJA, 2005, p. 133). Bonifacio era pardo, logo, mais propenso ao crime do que um branco; solteiro, fugindo do padrão burguês; com emprego de baixo escalão, tendo mais chances de roubar do que um branco com a mesma renda. Porém, esse seu emprego era suficiente para lhe dar roupas de qualidade mediana e ter até relógio de níquel. Ele estava, desta forma, em um patamar mais elevado do que o pardo pobre, desempregado e morador de cortiço. O fato de seu enterro ter sido custeado também o torna mais importante do que um morto qualquer. Provavelmente eram estes os motivos para o jornalista não ter sido tão preconceituoso na sua descrição. Voltando para a notícia, temos um personagem considerado, pelo jornal, tão importante quanto os dois protagonistas: o alferes José Amancio, que havia sido convidado para a festa e acudiu o assassinato após a briga. Ele também foi quem recebeu a arma e as divisas do criminoso, e ainda prendeu um paisano que havia tentado segurar Mourão enquanto este fugia50. Não se sabe muito sobre este alferes, mas suas ações são suficientes para elevá-lo a herói da noite por ter ajudado a restaurar a ordem no local. O jornalista também diz que várias pessoas pararam para olhar o cadáver, mas somente os “mais bem avisados” tomaram a atitude de chamar ajuda. “Mais bem avisados” provavelmente pela imprensa e pela intendência, que eram as responsáveis pela disseminação da polícia e das subprefeituras como as solucionadoras de conflitos, visto que em outras notícias aparecia que o subprefeito havia chegado e resolvido o problema, ou que alguém provocava desordem até que a polícia apareceu e o prendeu. A maneira com que eles eram apresentados também dava esse caráter heroico: sempre no final do texto, como se eles fossem pessoas à disposição
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O professor universitário e criminologista italiano Cesare Lombroso foi um dos seguidores desta escola. Ele desenvolveu um estudo em que características físicas indicavam a psicopatia e a tendência que um indivíduo tinha de ser um criminoso (PANTOJA, 2005, p. 130). 50 “Nessa ocasião o paisano de nome Florencio deu voz de prisão ao cabo Mourão, sendo essa ordem relaxada pelo alferes José Amancio, que prendeu a Florencio e lhe disse que um paisano não pode prender um soldado”. (A Província do Pará, 09 de maio de 1898, p.2. Assassinato).
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do povo. Só que nem sempre eles conseguiriam chegar a tempo, muito menos deter todos os envolvidos, ou cometer prisões de inocentes.
4.1.3. Notícias referentes ao próprio jornal ou ao governo de Antônio Lemos
Como A Província do Pará era chefiada pelo intendente de Belém e este trabalhava para aproximar o comportamento da população para o dito civilizado, ela precisava se manter atrativa. Assim, ela entretinha com suas piadas, ensinava com suas notícias, e tinha espaços de utilidade pública em suas páginas. Eram seções que diziam os horários das missas, de chegada e partida dos navios e trens, a lista de passageiros, as cotações da borracha, o calendário das festividades religiosas, a previsão do tempo, os preços e programação dos teatros e cafés, os nomes dos falecidos, dentre outros temas. Lado a lado com tudo isto, Antonio Lemos inseria informações sobre seu governo. Em quase todas as edições coletadas apareceram editais de contratação de empresas para futuras obras e explicações sobre as leis do Código de Posturas. Eram textos técnicos, mas que o redator (nem sempre o próprio Lemos)51 procurava deixar o mais claro possível. Pelo visto, com sucesso, pois em uma nota do “Noticias Diversas” de 7 de novembro, não foi nem explicado que artigo do Código estava sendo infringido: “Maria Rosa, Hilario Ferreira de Mello, Antonio da Silva Pinto e Antonio Dias foram multados pelo subprefeito do 2º distrito, por terem infringido os artigos 174, 192, [parágrafo] 1 do código de posturas municipais.” (A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, p.2 Noticias Diversas). Ao verem tantas notícias deste tipo, criava-se uma ideia de que Belém estava mudando para melhor. E o jeito com que elas eram escritas tornava o governo lemista transparente, pois o povo era apresentado a tudo o que era implantado na cidade. Era fortalecida a confiança do leitor – que também era eleitor – no jornal e no próprio Lemos. Ele valia-se de argumentos, explicando detalhadamente quais pontos da capital precisavam de reparos, que vantagens seriam obtidas com as novas instalações, e em que estado se encontravam as suas negociações. Da maneira com que vemos abaixo, no trecho do Relatório da intendência, publicado no jornal em dezembro: 51
O inspetor Joaquim Nabuco de Oliveira, dentre outros funcionários do governo, também assinava a seção, d’A Província do Pará de 09 de maio de 1898, p.3. Intendencia Municipal.
64 Não obstante o extraordinário aumento que há tido a população desta capital com o êxodo das populações de vários estados flagelados pela seca, nosso mercado tem se conservado regularmente suprido [...] O mesmo podia dizerse da carne verde se, em alguns dias do mês de novembro, não tivesse havido sensível escassez, inclusive um dia em que sentiu-se falta absoluta desse gênero, fato que, aliás, repete-se em certas épocas, anualmente. [...] Em diversas conferências entre o governador do Estado e o chefe do executivo municipal, foram combinadas medidas atinentes a evitar que a população venha a experimentar o efeito de faltas absolutas, repetidamente, no futuro. Ouvidos os interessados nesse ramo do comércio, foram-lhes, em virtude de um acordo entre os dois representantes do Estado e do município, [...] oferecidas as seguintes bases para um contrato que garantisse a introdução mensal de 700 a 800 bois da República Argentina, em nosso mercado. [...] a despesa resultante do contrato correria por conta do tesouro do Estado, para o que se achava o governo autorizado pelo congresso legislativo, cabendo ao município apenas algumas obrigações de outra natureza, em ordem a realizar-se uma medida de alto interesse público, sem entorpecimento da marcha regular dos serviços municipais (A Província do Pará, 05 de dezembro de 1898, p.1. Relatorio Municipal).
Entende-se com isso que mesmo Antonio Lemos já tendo um jornal partidário (A Republica), ele fazia propaganda de si mesmo em A Província do Pará, que deveria ser um jornal neutro. O próprio periódico utilizava as notícias para comentar as novidades da redação, como a aquisição de novos equipamentos, a impressão de gravuras, a boa recepção da edição vespertina e o carinho do público no seu aniversário, assuntos que deveriam ser exclusivos do editorial, “Nossos Echos”. A procura que, desde muito cedo, teve ontem pela manhã, em todo o perímetro da cidade, A Província do Pará – procura aliás plenamente justificada pela curiosidade que se apoderou de todas as classes da população de Belém por conhecer em que consistia o melhoramento por nós inaugurado – provou mais uma vez, enchendo-nos de justíssimo orgulho, o alto conceito que nos dispensa essa mesma população, por cujo favor temos conseguido colocar-nos, moral e materialmente, à vanguarda do jornalismo do norte do Brasil. Infelizmente, porém – e isso sempre acontece com as primeiras experiências de melhoramento da ordem do que ontem iniciamos – o último quadro da engraçadíssima farsa ‘uma brincadeira de mau gosto’ [...] não saiu com a perfeição que seria para desejo que se nota nos três primeiros. [...] Sem embargo, o magnífico êxito dos três primeiros clichês a que acima nos referimos anima-nos a prosseguir, sem desanimar, na trilha que encetamos. (A Província do Pará, 03 de outubro de 1898, p.1. A
Província)
Nota-se a popularidade que A Província alcançara dentro da cidade. O jeito de escrever aproxima-se do leitor, pois é um estilo confidencial, com pedidos de desculpas e promessas, como se fosse uma carta trocada entre amigos. O curioso é a equipe preferir “criar” uma seção qualquer do que utilizar o nome “Nossos Echos”, por mais que ele não aparecesse na mesma edição.
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Todos esses fatores acabavam por fazer com que o povo gostasse mais dos jornalistas do que de instituições que eles buscavam promover, como a polícia e as subprefeituras. Segundo Sidney Chalhoub (1986, p. 206), os dois corpos de profissionais referidos costumavam aparecer somente quando alguém incomodava, prendendo muitas vezes sem perguntar o motivo - enquanto que a imprensa funcionava como porta-voz dos anseios do povo. Por este motivo, muitas pessoas iam até a redação denunciar conhecidos, cobrar atitudes da intendência, entregar objetos perdidos, pedir que fosse divulgado que ela procurava emprego, dentre outras como essa: São constantes as reclamações que nos chegam sobre a deficiência no abastecimento de água ao antigo bairro conhecido por Cidade Velha [...] Entendemo-nos sobre o assunto com o srdr Victor Silva, zeloso diretor da repartição das águas, e o ilustre funcionário demonstrou-o como o único remédio ao mal depende dos melhoramentos projetados, e por via dos quais será alargar o abastecimento a todos os pontos da cidade. Efetivamente, achando-se na parte extrema, o antigo bairro é o que mais sofre; isto, porém, sem responsabilidade ou culpa alguma da repartição. (A
Província do Pará, 04 de abril de 1898, p.1. Agua, grifos meus)
O jornal aproveita sua popularidade para amenizar o lado do governo, que estava com deficiência no abastecimento de água, e elogiar o médico da repartição pelos serviços prestados. O jornal era o informante e também o tranquilizador do povo, pois era ali que sua dúvida era respondida, era ali que ele se via. Julio Lobato (1916; p. 9), ao falar da rotina do seu ofício como repórter da Folha do Norte, dá sua opinião sobre a influência da imprensa dentro da sociedade: A imprensa é, hoje em dia, considerada como a quarta potência, como é também o guia da humanidade, a alavanca do progresso. [...] A humanidade toda, ao acordar, procura o jornal. Quer saber das novidades. O indivíduo habitua-se tanto com o jornal que, às vezes, perde os seus interesses porque ainda não achou o seu diário predileto para ler. E o jornal deve ser bem feito, para agradar os seus leitores [...]. É o repórter que lhe dá vida. É ele, unicamente ele, que faz o jornal ao agrado do público exigente.
Mas, mesmo que os repórteres e articulistas realmente tivessem boas intenções de ajudar o povo, havia o interesse de divulgar o governo lemista para todos: habitantes de Belém, do interior do Estado, do resto do Brasil, de outros países. Assim, ficaria mais fácil de conseguir os empréstimos estrangeiros para urbanizar Belém, além de consolidar a reputação de Antonio Lemos como o grande modernizador e moralizador da capital do Pará (SARGES, 2002b, p. 106).
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4.2 Edições de 1911
A oposição se assanhou com a deflagração da guerra fria [entre Lauro Sodré e Antonio Lemos]. E não teve mãos a medir a fim de aproveitar aquele momento em que começava a entrar água nos porões da nau situacionista. Tanto que, a 30 de dezembro seguinte [1910], rebentou um pequeno motim: populares investiram contra as latas de lixo (obrigatoriedade instituída pela intendência, para evitar a continuação do costume da população deitar lixo nas ruas, ou em caixas velhas ou mesmo nas calçadas), destruindo-as. A 31, houve comícios inflamados; no dia 1º de janeiro, os mesmos populares lançaram-se contra os quiosques e pequenos veículos de venda de frutas e legumes (concessões da Empresa Americana de Veículos), ateando fogo em muitos deles. (ROCQUE, 1990, p. 111)
Eram mesmo tempos difíceis para o chefe municipal da época. O comércio da borracha já sofria a concorrência inglesa e por isso não lucrava tanto quanto antes, reduzindo o orçamento público e a quantidade de obras na cidade. Na política, o Partido Republicano Federal (de Lauro Sodré) e o Democrata fundiram-se ainda em 1900. A aliança com os Chermont se dissolveu no mesmo ano, devido à decisão de Lemos de escolher Augusto Montenegro como candidato a governador, ao invés de Justo Chermont. Este último, apesar de fazer parte do mesmo partido que Antonio Lemos, nunca deixara de ser amigo de Sodré; e ainda por cima, seu irmão Pedro Chermont não gostava muito do intendente de Belém, a quem julgava ser prepotente (ROCQUE, 1990, p. 94). O rompimento com os sócios acabou paralisando a produção do periódico do dia 31 de outubro de 1900 a 1º de maio de 1901, quando retornaria com um editorial contando o quanto os leitores haviam sentido saudade “do tom discreto dos seus artigos, da precisão das suas notícias, da elegância da sua feitura, de toda a série de esclarecimentos e distrações em suma, que formavam o encanto e a utilidade de uma gazeta.” (ROCQUE, 1990, p. 97) Em 1909, nova reviravolta: Augusto Montenegro terminou seu mandato e indicou João Coelho como candidato ao cargo. Coelho, que era secretário de Lemos e por isso conhecia a sua política de alianças com os chefes do interior do Estado, venceria e faria oposição com o intendente – mesmo sendo do mesmo partido que ele. Gostaram os adversários do velho intendente, que atacaram com ainda mais fúria em seus artigos na Folha do Norte laurista, apontando as falhas da política do chefe municipal e a situação caótica em que vivia o povo, com os surtos epidêmicos e a falta
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de recursos. A pressão teria efeito devastador sobre Lemos, que já estava com 70 anos de idade: ele renunciaria ao cargo de intendente em junho de 1911, tirando férias pela primeira vez em décadas e só retornando em janeiro do ano seguinte. Em seu lugar no Conselho Municipal ficou Virgílio Mendonça, que era coelhista, nome dado aos aliados de João Coelho. No jornal, assumiu Arthur Lemos, sobrinho de Antonio e que não mudaria a linha editorial do periódico (ROCQUE, 1990, p. 110). Na época em que deixou de ser comandada pelo seu principal dono, A Província do Pará funcionava no prédio em frente à Praça da República desde 1907. Possuía seis páginas com sete colunas. As quatro últimas reservadas para a publicidade, mas no topo da quarta e da quinta havia espaço para o folhetim e para os telegramas nacionais e estrangeiros. A primeira coluna da primeira página era sempre ocupada por artigos de correspondentes, sendo que os títulos e os autores variavam em cada edição (e desta vez, a grande maioria dos textos era assinada). As seções fixas diminuíram drasticamente; no entanto, as colunas do jornal passaram a ser organizadas por tema, facilitando a leitura. Outra diferença foi a extinção da seção “Ultima Hora”, o que denota melhora na cobertura jornalística, que se tornou mais veloz. Das seções que tinham sempre o mesmo nome, quatro eram bastante frequentes: “A Vida Religiosa”, “Notas Policiaes”, “Noticiario” e “Febre Amarella”. “Arca...” era uma coluna frequente, a sétima da primeira página, porém não apareceu em todas as edições analisadas neste trabalho. a) Arca... De Noé: a última coluna da primeira página, às vezes terminava na segunda folha. Era uma coletânea de contos, comentários e piadas sobre os costumes de Belém e do mundo. b) A Febre Amarella: relação das atividades da intendência no controle da doença, com os médicos, as notificações, as ruas higienizadas e o número de óbitos. Anunciava as inspeções do dia anterior e do dia atual. c) Noticiario: assim como na década anterior, era uma seção para as notícias em geral, que não correspondiam a nenhuma outra seção nem mereciam destaque suficiente. d) Opiniões: eram os artigos principais, seja dos correspondentes, seja dos jornalistas da redação.
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e) A Vida Religiosa: relação dos festejos e missas, separados pelo nome dos santos. Algumas cerimônias recebiam destaque, mas na mesma seção. f) Registo Civil: número de óbitos e nascimentos, desta vez apenas com a quantidade. Nas edições analisadas, o número de mortos era sempre maior do que o de nascimentos, chegando a ser quatro vezes superior (A Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p. 3. Registo Civil). g) Alfandega do Pará: preços e tabelas com quantas pessoas tinham desembarcado e embarcado h) Nossos Echos: editorial, menos frequente do que em 1898. Nas poucas vezes que apareceu, anunciava melhorias na cidade. i) Empregos: anúncios fixos. j) As Datas: coisas importantes que aconteceram naquele mesmo dia, só que em outros anos. k) Noticias Maritimas e Fluviais: listas de passageiros dos paquetes e navios, tanto os que chegavam quanto os que iriam partir, bem como os horários nos portos. l) Aviso: visto somente uma vez, era sobre a intendência. Também encontraram-se avisos com o título de “Impostos Municipaes”. m) Notas Policiaes: relação dos presos, “categorizados” pelo nome e pelo delito. Nem sempre era dito a sua ocupação, no máximo “indigente” ou “indivíduo”. n) A Vida Social: listagem de aniversários do dia, relatos das festas.
4.2.1. Notícias referentes ao estilo de vida da época
Antonio Lemos gostava muito do seu jornal. Tanto que contratava profissionais renomados para trabalhar com ele: Humberto de Campos, que ocupou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras; Paulino de Brito, gramático e poeta; Arthur Vianna, historiador e diretor da Biblioteca Pública do Pará; dentre outros. Eles escreviam sobre as suas especialidades e eram muito bem pagos para isso, logo, tinham a obrigação de divulgar as obras do governo ou falar mal dos opositores. (SARGES, 2002b, p. 110) Esta enxurrada de intelectuais na redação da Província ganhou força a partir dos primeiros anos de 1900, quando o jornal ganhou o apelido de “Talmud da Civilização
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Paraense” por também ser a porta de entrada de novos talentos na arte de escrever, segundo Carlos Rocque (1990). Para Sarges (2002b), Lemos valia-se disto para convencer os seus leitores das legitimidades do poder público. No artigo escrito pelo deputado Ignacio Moura enquanto morava no Rio de Janeiro e publicado n´A Província, a urbanização é retratada de maneira tão otimista que, se nos basearmos somente em seu artigo, teremos a impressão de que aquela época era mesmo uma maravilha. Ele escreve entusiasmado sobre a quantidade de migrações, acordos empresariais e reformas (A Província do Pará, 06 de março de 1911, p.1. Do Rio.). Foi dito no capítulo 2 que apesar da eletricidade e da gasolina terem tornado a vida mais prática, seus preços não eram tão acessíveis assim; e que a migração desordenada e a especulação mobiliária eram as grandes responsáveis por empurrar os mais pobres para os bairros afastados. No entanto, o entusiasmo que podia muito bem contagiar o leitor da primeira coluna da primeira página, onde seu texto fora publicado. Esta sensação de euforia continuou sendo vista em outros textos, como neste sobre o carnaval de 1911: A população de Belém, estando em entusiasmo e alegria, desse júbilo e desse entusiasmo que arrastam as maiores loucuras, derramou-se ontem por toda a cidade, enchendo ruas e praças, entretida com os folguedos naturais da época que atravessamos. Até o céu, o amplo céu ilimitado, amigo de todos os afortunados e infelizes, mostrou-se radiosamente formoso, oferecendo aos que se divertiam às escancaras o prazer de uma tarde magnífica. [...] Todas as praças existentes em Belém regorgitaram de povo. Para a praça Republica desde muito cedo começou a afluir grande número de carros e automóveis, conduzindo famílias e pessoas gradas, sendo às 5 horas compacta a multidão nas avenidas. [...] Nos demais pontos da cidade, notadamente em Batista Campos, travaram-se porfiadas lutas de confetti, sendo também assaz numerosa a frequência de pessoas da nossa sociedade escolhida àquela praça, onde a correta banda de música do Corpo Municipal de Bombeiros deu concerto, sob a regência do tenente Cincinato Souza. Por todas as ruas viam-se em grande quantidade mascarados isolados e cordões. (A Província do Pará, 06 de fevereiro de
1911, p.1. O Carnaval)
O carnaval é descrito nesta notícia como uma festa harmoniosa e organizada, com boa música, que integrava todas as classes sociais. Este sempre foi o modelo almejado por Antonio Lemos. Desde a última década do século XIX que o seu Código de Posturas Municipais tinha leis proibindo o uso das máscaras após as 18h, por exemplo52. No seu relatório de 1906, ele disse que os antigos “bacanais” do Hemisfério 52
“Manda o exmo.sr.dr. José Ferreira Teixeira, chefe de segurança desse estado, declarar que, sob pena de desobediência, fica proibido: [...] 2º - que as pessoas se conservem mascaradas nesses bailes, além da meia-noite.
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Norte já haviam sido revertidos em “instituições decentes”. O mérito da mudança teria sido a assimilação da moral por parte daqueles povos. O intendente escreve que o poder público belenense fazia a sua parte, “guiando todas as classes sociais pelo caminho do bom gosto, pois vai nisto a grande obra da civilização” (LEMOS, 1907, p. 252). Nicolau Sevcenko (1999, p. 34), ao estudar o que era dito sobre o carnaval na São Paulo da época referida neste trabalho, diz haver uma tentativa por parte dos governantes de destruir os modos populares de diversão, como os batuques, as pastorinhas e as fantasias. Segundo ele, desejava-se confinar as cerimônias populares em regiões afastadas do centro da cidade. Mas tanto em São Paulo quanto em Belém os políticos ainda estavam um tanto distantes do seu objetivo. Se sairmos um pouco do mundo da imprensa e mergulharmos na literatura, mais precisamente no conto de Alfredo Ladislau (1904) sobre uma festividade na Praça da República, veremos a distância que uma cerimônia pública ainda mantinha do discurso da notícia da Província. “A imensa confusão de homens e mulheres, moços, velhos, bonitos, feios, elegantes e mal-trajados [...], alegres e tristes, alguns sentados nas longas filas de cadeiras ou pelos bancos da praça; outros de pé, ao lado das avenidas” parava para aplaudir um espetáculo de música negra no pavilhão, com mulatas dançando sensuais ao som das cuias de coco. Quem achasse aquilo imoral andava pela praça, mas acabava parando em uma barraca de lanches vendidos por outras mulheres de cor negra. Ladislau também descreve as filas nas portas dos teatros e igrejas, à espera do fim das missas e concertos para se misturar àquela gente e ir até os botequins para jogar às escondidas da polícia (LADISLAU, 1904, p. 5 e 7). Em algumas poucas linhas ele conseguiu descrever com mais exatidão como era um dia de festa em Belém do que a própria imprensa, sendo que Ladislau (1904) escrevia ficção. Mas mesmo com a linha editorial e as crises políticas, A Província do Pará não poderia se esquecer do compromisso com os leitores. Nos materiais de análise, os redatores reconheciam que as altas taxas e o transporte dificultavam o envio e recebimento de correspondências pelos mais pobres e comentavam o quanto as novas 3º - que transitem pessoas mascaradas pelas ruas e praças, depois das 6 ½ horas da tarde [...]” (A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p.2. Segurança Publica).
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regras de postagem a lugares distantes ajudariam estas pessoas53. Eles também escreveram sobre a preocupação que os estrangeiros tinham com a febre amarela 54, sobre o quanto era prejudicial o hábito dos moradores de não saldarem suas dívidas com o governo55 e sobre a exploração que os seringueiros sofriam no interior da floresta56. Eram textos que tentavam manter o otimismo, mas não conseguiam disfarçar o lamento diante das rachaduras no sonho da modernidade. Ao mesmo tempo em que contavam histórias de pessoas que jamais subiriam na vida por causa das injustiças do capitalismo, não entendiam por que alguns hábitos considerados primitivos continuavam a existir mesmo com todo o apoio do governo para que acabassem.
4.2.2 Notícias referentes às ações dos populares
Se em uma década antes, as notícias policiais já se dedicavam pouco a investigar o contexto dos delitos, no final do governo Lemos passaram a se dedicar ainda menos. Para completar, o espaço reservado para elas se tornou menor, dando preferência para 53
“Aos privilegiados a sorte sorri, a vida corre calma e alegre, as contrariedades se esvaem. Basta que uma vontade só lhes agite o organismo bem tratado, para que a satisfaçam, embora despendendo grandes somas consideráveis para tal fim. [...]À grande maioria dos brasileiros, os colis servirão, e muito, tornando os lares mais cômodos e alegres, enchendo as residências particulares daquilo que constitui o conforto e que, infelizmente, sobretudo no Pará, não está ao alcance da bolsa minguada dos moirejados sem pecúnia avultada ou posses excepcionais...[...]” (A Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p.1. Opiniões) 54 “Os srs. estrangeiros que ainda estão entelados[...] podem escancarar as suas janelas e deixar que o ar penetre, o sol penetre, o vento penetre – que o carapanã não mais penetrará. Salvo – é claro – o inofensivo carapanã de orquestra [...]. A febre amarela foi-se, amigos estrangeiros! Foi-se a patriótica, sem deixar saudades a ninguém, principalmente a vós.[...] Podes dormir tranquilos. Desentelai-vos!”. (A Província do Pará, 01 de maio de 1911, p.1. Providencia Escusada.) 55 “O Município não poderia manter-se decentemente se abrisse mão destas cobranças periódicas ou se estabelecesse preferências antipáticas; a todos, em geral, sejam quais foram as suas opiniões, nos dirigimos certos de que cumprimos o nosso dever doutrinário, estudando [...] uma das maiores imperfeições da nossa cultura, ainda infelizmente incompleta e rudimentar. Os retardatários representam elemento perigoso do atraso, um começo de resistência à lei, que [...] deve sem dúvida dominar as capitais e os homens, ser superior às paixões e ao ódio, inatingível e sagrada nos regimes igualitários e liberais, como o nosso.” (A Província do Pará, 06 de março de 1911, p.1. Opiniões.) 56 “O trabalho modesto e despretensioso do seringueiro que não se eleva a 8$ por dia, quando custa 6$ o quilo da hevea, forgosamente mal dará para tais e tantas extravagâncias quase sempre aventadas e impostas pelos seus aviadores. Prova-se assim que o extrator não pode com as suas tarefas e encargos arrastar com tamanhas despesas, pois o seu lucro muitas vezes não chega para as mercadorias absolutamente desnecessárias.[...]” (A Província do Pará, 05 de junho de 1911, p.1. A Crise do Oiro Negro.)
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os artigos e notícias consideradas mais importantes – mesmo que nestas notícias também fossem abordados crimes, ainda que mais graves. Vê-se abaixo como era a seção “Notas Policiaes”: - A polícia fez recolher ontem ao hospital de Caridade os indigentes José Pereira de Souza, José Fernandes de Lima e Marcellina Candida da Costa. - Por ofensa à moral estão presas na estação policial as mundanas Maria de Brigida Laura e Rosita Gouber. - Da casa de Maria Izabel dos Santos, moradora à vila Teixeira, desapareceu há dias seu filho menor Raymundo Alves dos Santos, de 9 anos. - Pagam multa, por embriaguez, na estação central de polícia, Manoel Ramos, e por desordens João Amaro e Domingos Fernandes. - Está preso na estação policial o menor Benedicto Baptista, que ontem andou a praticar diversos furtos de objetos de pouco valor. (A Província do Pará,
05 de junho de 1911, p. 2. Notas Policiaes.)
Os repórteres não se estendiam na descrição dos personagens, limitando-se ao nome deles ou a termos como “indivíduos”, “moradores”, “indigentes” e “mundanas”. O motivo, além da mudança na cobertura jornalística privilegiando a imparcialidade, pode ser o puro desinteresse dos repórteres. Era mais importante para eles mostrar as melhorias da cidade do que dizer que ainda aconteciam desordens nas ruas. Na seção “A Vida Religiosa” foi vista igual objetividade, sendo que o texto era separado por travessões, semelhante às “Notas Policiaes”. Concentrava-se na data, no nome da Igreja e no local da festa ou da missa, sendo que na nossa coleta não foram percebidas distinções entre as Igrejas. Inclusive, alguns festejos populares foram noticiados com detalhes, como o da Nossa Senhora do Rosario, que saiu em uma nota à parte do periódico: Celebrou-se ontem, com destacado brilhantismo, na igreja de Sant´Anna a festa de Nossa Senhora do Rosario. Desde manhã cedo que o templo se achava repleto de fiéis, a fim de assistirem à missa celebrada às 6 ½ horas por monsenhor Maltez, em honra da milagrosa santa. Durante o ato foram entoados cânticos por um grupo de Filhas de Maria. [...] Finda a cerimônia, organizou-se suntuosa procissão, [...] Sob riquíssimo pálio ia o Santo Lenho, carregado pelo cônego Nabuco Oliveira, ladeado por dois irmãos maristas, seguido da banda de música Rosa Cruz. [...] Ao evangelho ocupou a tribuna sagrada frei Hilario do Amor Divino, que em belíssima oração arrebatou o seleto auditório com sua palavra empolgante. À noite foram celebrados os atos por monsenhor Maltez, os quais se prolongarão até o fim do vigente mês, concluindo sempre com a bênção do Santíssimo Sacramento. (A Província do Pará, 02 de outubro de 1911, p.2. Festas Catholicas, grifos meus)
A presença de tantos adjetivos, principalmente em “seleto auditório”, é curiosa. Conforme dito no Capítulo 2, o festejo de Nossa Senhora do Rosário era predominantemente de negros pobres, que também já se sabem serem vistos com
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preconceito pela elite. A “boa reputação” da festa devia-se então ao seu caráter estritamente religioso, sem badernas, gritos e folguedos mencionados na notícia. Era o tipo de festejo que agradava a intendência, por ser mais organizado. Aliás, conforme explicado também no Capítulo 2, Antonio Lemos era não só convidado para estes eventos como também dava permissão para que eles fossem realizados nas ruas de Belém (SARGES, 2002b, p. 148). Bem diferente foi a cobertura da festa do Divino Espírito Santo, promovida pelo Mestre Martinho, figura conhecida no bairro do Umarizal desde o século XIX. Apesar de Sarges (2002b) confirmar que Lemos também oferecia apoio para tal evento, a notícia sobre ela foi bem mais objetiva, resumindo-se a uma nota publicada dentro da seção “Noticiario”, de assuntos diversos: No bairro Umarizal, terminou ontem a festividade do Divino Espírito Santo, ali anualmente realizada pelo popular mestre Martinho. Às 5 horas da tarde, foi descido o mastro votivo, perante compacta massa de povo. Também findou ontem a festa de Santa Rita dos Impossiveis, celebrada à rua Boaventura da Silva. Estes últimos atos tiveram igualmente bastante concorridos. (A Província do Pará, 05 de junho de 1911, p.2.
Noticiario.)
Nota-se que mesmo sendo tal publicação necessária devido à quantidade de seguidores do folguedo e do tamanho e importância do festejo na cidade, o repórter não parecia muito animado em divulgar a informação. São reservadas apenas três linhas para falar da festa, sem a presença de adjetivos e maiores comentários do redator. Ele chega a escrever a denominação “mestre” em itálico, como se duvidasse que Martinho fosse mesmo especialista em alguma coisa. Pouco a pouco, A Província do Pará transparecia rupturas na política lemista de civilizar a população. Por exemplo, enquanto que nos artigos e propagandas o jornal mostrava as maravilhas da música clássica, o povo continuava comprando violões e bandolins. Na edição de 2 de janeiro, apareceu um anúncio de um estabelecimento especializado na venda destes instrumentos: “Sem mestre e sem música. Conseguireis aprender facilmente e em pouco tempo, comprando o novo método de Luiz Silva. À venda na Casa Mendes Leite.” (A Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p.4 Bandolim) Na seção “Noticiario”, aparecia um tipo de acontecimento cada vez mais frequente: pessoas que enfrentavam as autoridades, como no embarcadiço Eduardo Pereira, preso no vapor Valparaizo ao tentar atacar o comandante do mesmo navio: “No
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vapor Valparaizo foi preso ontem o embarcadiço Eduardo Pereira, que tentou agredir, armado de faca, ao comandante desse navio, segundo a informação prestada por este à polícia.” (A Província do Pará, 06 de fevereiro de 1911, p.2. Noticiario) Pelo visto, mesmo com a – forte - campanha educacional promovida pelos jornalistas, pelo governo e pela polícia, em pleno declínio da Belle Époque as pessoas continuavam a resolver seus problemas através do confronto armado, da discussão e da vingança. A aversão às autoridades era reforçada pelas prisões injustas e calúnias diferidas pelo jornal, acontecidas mais de uma vez nas edições lidas. O próprio Antonio Lemos acreditava que o povo tinha dificuldades para seguir regras, claro, mais uma vez baseado em uma visão determinista (SARGES, 2002b, p.132). Na notícia abaixo, sobre um homem que atacou uma mulher na Aristides Lobo, vemos que a valentia do rapaz não foi maior do que o seu medo da punição: À tarde de ontem, por ciumadas, o marítimo José da Lomba esbordoou, com um guarda-sol, a Julia Alves Freitas, moradora à rua Aristides Lobo, 121, ferindo-a na cabeça. A mulher gritou por socorro, e quando algumas pessoas apareceram em seu auxílio, José da Lomba fugiu, a correr. Na ocasião, porém, em que o rapaz passava pela rua Industria, Josepha de tal, conhecida por Alagoana, da porta do frege Avenida, de que é hóspede, desfechou contra ele um tiro de revólver, cujo projétil não atingiu o alvo. Num abrir e fechar de olhos, Josepha desapareceu, sendo José agarrado pelo bombeiro voluntário Cassiano Pinho, que o conduziu à estação central de polícia, onde ficou preso. Josepha, além de ser conhecida como desordeira, é uma mulher belicosa. Há poucos meses, no hotel Brazil, ao Boulevard Republica, deu um tiro em Severino de tal, ferindo-o na omoplata esquerda e evadindo-se. (A
Província do Pará, 06 de março de 1911, p.2. Noticiario)
A teoria de Chalhoub (1986) explica porque José da Loma escapou quando ela gritou por socorro e porque Josepha atirou no fugitivo, ou seja, tentou fazer a justiça com as próprias mãos. Eram maneiras encontradas por essas pessoas para lidar com os problemas do seu cotidiano. O curioso é que o repórter, mesmo sabendo que Julia correu risco de vida quando foi agredida no meio da rua, se preocupa mesmo é em denunciar Josepha, relatando que a mulher já havia atirado em outra pessoa por motivos desconhecidos, e que ela era conhecida na região por provocar tumultos. O interesse dele é tanto que a mulher é a única com biografia: hóspede de um hotel na rua Industria, conhecida por Alagoana, atingiu a omoplata esquerda de um homem chamado Severino, etc. Enquanto que sobre Julia e o José da Loma, só consta que ela morava na Aristides Lobo e que ele era marítimo. E mais: não se sabe nem que tipo de relação eles tinham – provavelmente eram amásios, já que ele tinha ciúmes dela.
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O repórter também não vai atrás do motivo pelo qual Julia é agredida: ela tinha um amante? O homem já tinha histórico de violência? Provavelmente seja reflexo daquele estranhamento sobre as relações flexíveis dos populares, já mencionado anteriormente. Como os mais pobres trocavam de parceiro com maior frequência e costumavam aparecer nas páginas dos jornais vivenciando crimes passionais, o repórter pode ter pensado que aquele era “mais um caso” insignificante de um homem com ciúmes de uma mulher. Já a outra personagem seria mais perigosa, primeiro porque portava uma arma, e segundo porque atirara em um desconhecido. O repórter pode ter acreditado que ela cometeria crimes de novo, então alertou a população. Apesar disso, a confiança dos leitores em A Província do Pará não pareceu ter sido abalada. Tanto é que na notícia abaixo, os moradores da travessa Nove de Janeiro encaminham uma denúncia ao jornal: “É uma mulherzinha de alto lá com ela a senhora Putcheria do Amor-Divino. Moradora para as bandas da Nove de Janeiro, não há vizinho que não a aborreça, tal o seu modo de vida. E língua! Ah! Poderá haver desgraça maior no mundo, hecatombe tremenda, um caminho direto daqui à lua, que tudo isto por si, ou reunido, não dá em absoluto o tamanho da língua da Putcheria. [...] Arrebados com ela (ela Putcheria ou língua como queiram), escreveramnos ontem alguns moradores da Nove, reclamando contra o imenso infortúnio que os persegue. Aconselhamos daqui aos subscritores da reclamação que se dirijam ao chefe de polícia. Nós também temos pavor de certas línguas... Reporter. (A Província do Pará, 07 de agosto de 1911, p.1. Eles e
Ellas..., grifos meus)
O repórter é o único a lembrar que é a polícia quem se ocupava deste tipo de situação. Ele também diz que a denúncia foi escrita pelos moradores e endereçada ao jornal, mas no texto ele parece revoltado de verdade com a mulher, principalmente no trecho “Poderá haver desgraça maior...” até “língua da megera”. Assim, é impossível saber se ele reproduziu as expressões da denúncia original ou se exagerou para tornar a nota mais sensacionalista e convencer a polícia a ir até a casa da senhora. O que nos leva a uma pergunta: o que era mais importante para este repórter, mostrar serviço ou investigar se a denunciada era mesmo do jeito que falavam? Voltando às diferenças entre uma década e outra, em 1911 apareceram mais notícias sobre um personagem muito importante para o ciclo da borracha: o migrante. Ele, que embarcava em paquetes rumo ao interior da Amazônia para trabalhar, muitas vezes sem conseguir retornar. Naquela época onde o Brasil sofria com as epidemias de varíola, impaludismo e febre amarela, foram muitas as histórias tristes encontradas nas
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edições escolhidas para a nossa análise. Histórias como a de Manoel Thomaz Carneiro, que morreu sozinho dentro de um navio, antes de reencontrar seus filhos em Belém: Já no porto de Manaus, depois de visitado o navio, veio a falecer, sofrendo de impaludismo, o passageiro de 3ª classe Manoel Thomaz Carneiro, que embarcava enfermo no porto M. Oliveira, Acre, com destino a Belém. Era cearense de 45 anos e viúvo, tendo deixado no desamparo três filhos menores, que mais tarde, foram entregues às autoridades de Manaus, à custa das quais foi exumado o cadáver. O espólio deixado compõe-se de 2 baús, contendo o seguinte: 2 relógios de ouro, 1 corrente, 1 chatelaine e 1 peixe de mesmo metal, 2/2 libras esterlinas, 870$ em dinheiro, 2 moedas peruanas, 1 pulseira de ouro, uma conta corrente com o saldo de 771$ a favor de Manoel Carneiro e contra a firma de José Furtado de Mendonça & Cia, joias, roupas para meninas, etc. Todas essas tristes ocorrências foram comunicadas à polícia de Belém. (A Província do Pará, 01 de maio de 1911, p.1.
Diario Negro.)
Todas as mortes eram lamentadas pela redação, e os personagens descritos da mesma maneira. Foi um dos raros momentos em que não houve distinção entre ricos e pobres no jornal.
4.2.3 Notícias referentes ao próprio jornal ou ao governo de Antônio Lemos
O intendente de Belém tinha vontade de construir a imagem de bom governante, atitude não muito diferente da de outros republicanos de sua época. Em 1911, a ideia aumentou por causa dos ataques da oposição, que estava ganhando apoio das camadas populares de Belém. Com isso, cresceu o número de notas, artigos e notícias exaltando os grandes feitos e grandes homens do regime republicano. Quando os grandes comerciantes da cidade prestaram homenagens aos deputados Lyra Castro, Justiniano de Serpa e ao governador João Coelho57, A Província dedicou nada mais nada menos do que três colunas inteiras só para os pronunciamentos dos políticos e dos comerciantes, com direito a descrições de aplausos acalorados e demonstrações carinhosas partidas da população que os assistia. O jornal também comunicava quando era aniversário de alguém importante para a cidade, em nota com
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A Província do Pará, 06 de março de 1911, p.1. A manifestação de hontem.
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título próprio na primeira página, como foi com o desembargador Augusto Olympio, em janeiro: A data de hoje assina o natalício do sr. desembargador Augusto Olympio de Araujo e Souza, secretário de Estado do interior. A Província do Pará sente-se jubilosa em saudar, por este motivo, o ilustre aniversariante, dando-lhe assim testemunho do apreço em que sempre o teve, pelas qualidades distintas que o exaltam. O aniversariante de hoje é uma figura em destaque em nosso meio administrativo solicitando cooperado valiosamente para os progressos locais, o seu nome é repetido com louvores merecidos pelo número incomparável dos correligionários e amigos. (A
Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p.1. Desembargador Augusto Olympio.)
A intenção era claramente a de transformar estas pessoas em personalidades carismáticas e reconhecidas entre o povo como trabalhadoras. Via-se uma preocupação muito grande, beirando ao desespero, do intendente em mostrar que estava a serviço da população. Por exemplo, uma das seções mais repetidas ao longo do material de 1911 é a “Febre Amarella”. Escrita em forma de relatório, ela tinha o objetivo de anunciar que estavam sendo feitas inspeções diárias em toda a cidade, incluindo os bairros afastados. Eram utilizados aparelhos importados, chamados de Clayton, para limpar as valas e os canais onde se concentravam os mosquitos; e os médicos chamados eram de renome, como Ophyr Loyola, Affonso Mac-Dowell e Jayme Ben-Athar. A febre amarela era uma das doenças que mais espantavam os imigrantes de Belém, pois ela levava à morte. Por isso que a seção era bastante objetiva, dizendo onde havia sido encontrados focos e para onde os doentes tinham ido, avisando até quando nada havia sido encontrado. O fato é que Antonio Lemos realmente conseguiu reduzir o índice da doença: na edição de 2 de janeiro, apareceram seis notificações; enquanto que em 5 de junho as expurgações continuavam, mas sem notificações nem óbitos relatados. E quando a febre foi finalmente diminuindo em maio, o jornal ainda publicou o texto mencionado no tópico 3.1, sobre os estrangeiros não precisarem mais “entelar” suas janelas. Permaneciam também os avisos municipais, embora não mais em seção fixa, como em 1898. A capital era varrida e o lixo recolhido diariamente, ganhando fama de ordeira e progressista, pois “toda a população, solidária com o intendente, procura com pressurosa correção contribuir para o perfeito asseio de Belém” (LEMOS, 1907, p. 143).
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Mas ainda havia aqueles que insistiam em atirar detritos, varrer a poeira para as valas ou deixar os vasilhames de lixo na porta de suas casas durante o dia inteiro, à espera da equipe da remoção. Segundo ele, os taverneiros, merceeiros e “certos moradores” eram os principais culpados pelos “abusos” (LEMOS, 1907, p. 144). Daí a publicação constante do aviso “Limpeza da Cidade”, escrito pela Empresa de Limpeza Pública: De ordem superior, faço público que é absolutamente proibido aos moradores da cidade derramarem lixo nas vias públicas ou tê-lo em frente das suas casas, devendo ser conservado, em caixas sanitárias na porta da residência, de onde o condutor do veículo, empregado nesse mister, o removerá para a usina de cremação, dentro das horas marcadas para tal fim; o veículo ocupado nesse serviço dará sinal da sua aproximação pela agitação da campainha de que está munido. O infrator será passível de da multa de cem mil réis de que trata o Código Municipal. Belém, 5 de dezembro de 1910. – O fiscal do contrato da limpeza pública, João V. G. Campos. (A Província do Pará, 06 de fevereiro, p.3. Aviso)
Entende-se que essas notícias se faziam necessárias, pois os ataques da Folha do Norte eram de fato costumeiros e atacavam até a honra das famílias lemistas. Para revidar, os defensores de Antonio Lemos e do antigo governador, Augusto Montenegro, agrediam fisicamente seus adversários, com direito a espancamentos e banhos de pixe. Paulo Maranhão, secretário de redação da Folha do Norte, havia ficado todo o final do mandato de Montenegro trancafiado no prédio do diário, após ter sido retirado de um bonde e espancado por lemistas. O novo governador, João Coelho, romperia com Lemos, deixando A Província e seu dono recebendo sozinhos todas as críticas dos adversários (ROCQUE, 1990, p. 103 e 110). No dia 3 de abril, A Província escreveu que a Folha publicara uma antiga crônica sua sobre os imigrantes que moram em Belém e reclamam da insalubridade e da falta do que fazer na cidade. Na edição feita pelo impresso de Lauro Sodré, o texto transformara-se em crítica dirigida aos imigrantes portugueses, na tentativa de colocalos contra A Província: Imaginem como eles passam mal nesta terra. Chegam em geral armados das melhores intenções para trabalhar por isto. [...] Antes, quando laboravam pelo pecúlio, a terra parecia-lhes razoável. Hoje, que podem ter as malas prontas a qualquer hora e que dispõem de gordas cadernetas bancárias – isto é uma miséria! [...] O leite? Uma infecção. O pão? Uma torpeza. A casa? Uma imundície. Nada presta. Nada serve. Nada conforta. [...] Mas, se é que essas excelências assim se expressam contra a cidade, contra a gente, [...] contra todos os fenômenos naturais e sociais, não será mais razoável, mais justo, mais digno que suas excelências se mudem, uma vez que estão incomodadas? [...]”.
79 Por causa disso, metemo-nos em pancadaria de cego, pois a Folha divisou nas palavras acima intenção de ofensa das cidades de colônia portuguesa. Pois, senhores, tenham a bondade de ler isto, que saiu publicado ontem na primeira coluna da primeira página da mesmíssima Folha do Norte, sob o rótulo Ontem e Hoje: ‘Os que haviam se partido para longas ou exíguas excursões pelo estrangeiro, regressavam agora completamente modificados, com a visão embebida de aspectos superiores e os sapatos cobertos de pó dos grandes boulevards. Encontrando-os, olharam-nos com um olho *ilegível* desdenhoso [...]’ Apenas as da idade: as da Folha são de ontem, as nossas são de quatro anos passados. (A Província do Pará, 03 de abril de 1911, p. 1. Cara a Cara, grifos do autor)
Partindo da Província, não foram vistas no corpus grandes acusações, no máximo artigos em defesa e algumas indiretas nas notícias, sobre não gostarem de certas línguas, sobre certas pessoas que conspirariam contra o governo e o progresso, etc. No meio da discussão, ficavam os leitores, provavelmente se sentindo como cegos em tiroteio sem saber quem falava a verdade.
4.3 Comparações
Foi dito no capítulo 1 que nos números de A Província do Pará na era Lemos vinha, ao lado do nome do jornal, uma frase do escritor Victor Hugo dizendo que todos tinham o direito de emitir opiniões. No entanto, o que se viu foi que A Província do Pará na maior parte das vezes construiu uma bipolaridade entre ricos e pobres, no qual os ricos tinham os comportamentos desejados e os pobres apareciam somente quando transgrediam a norma – servindo de modelos também, mas do que não fazer. Para o periódico, as classes populares eram compostas por gente que não sabia se comportar em público, que bebia além da conta, que era violenta e que precisava abandonar muitos dos seus hábitos para viver do jeito burguês. Porém, superando as expectativas deste trabalho, os populares alcançaram uma visibilidade até alta, pois eles apareceram em todas as edições analisadas. Nos textos, transpareciam indícios de como era a vida destas pessoas. Em 1898 apareceram notícias falando das suas moradias, seus namoros e suas diversões, mostrando alguns exemplos de profissões e de relações sociais que eles desenvolviam na cidade. Na década seguinte, eles continuavam “desrespeitando” a lei, mas ao lado das colunas que exaltavam a modernidade, estavam as que se preocupavam com a não integração deles. Mesmo quando eles não eram o assunto principal, suas dificuldades
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estavam lá, contrastando com o discurso próspero que Lemos havia construído desde que tomara posse. Havia uma distinção entre os textos, havendo os que eram destinados às classes altas e os que eram para as classes de baixa renda. Esta distinção ia desde o tema da notícia até a linguagem, como a presença de termos estrangeiros, que poderiam não ser entendidos por todos. Boa parte deste discurso elitista advinha da presença de muitas empresas patrocinando o jornal em troca de terem seus anúncios divulgados. Apesar disso, o jornal não buscava ocultar as classes populares, até porque elas eram leitoras do diário. A leitura das notícias permitiu ter ideia de como era a rotina jornalística na época e o quanto ela influenciava o conteúdo do periódico. Viu-se que muitas informações eram levadas à redação por meio de telegramas e cartas, que eram trazidas muitas vezes por navios e paquetes, tornando a cobertura dependente destes meios de transporte e podendo atrasar a impressão do diário (fato mais recorrente nas notícias nacionais e internacionais, que não foram objeto deste trabalho). Julio Lobato (1916, p. 17) conta em seu livro que os jornalistas pegavam bondes para fazer suas matérias, acontecendo de alguns demorarem a retornar para a redação. Eles também eram muito cobrados por seus amigos que iam “pedir notícias de aniversário, de casamento, de bailes e outras coisas [...] porque entende que temos obrigação de lhes dar todas as notícias que pedem”. Isso explicaria a presença de notícias na última página que poderiam ter sido encaixadas em seções fixas, quando o jornal já estava diagramado: havia imprevistos e fatos de última hora. Também explicaria por que algumas regiões mais afastadas simplesmente não apareceram nas edições analisadas, como Benevides, Castanhal, os bairros de Val-de-Cães, Pedreira e Telégrafo. Considerando que a cobertura se concentrava basicamente nos bairros nobres (Batista Campos, Campina, Nazaré, Cidade Velha, Marco e Comércio) e que os demais, como o Umarizal e os atuais Cremação e São Brás só eram lembrados nas notas policiais, surge um questionamento. Por que estas ruas não eram citadas? Será que era somente pela dificuldade da locomoção, ou havia um desinteresse dos jornalistas em ir até esses locais, onde eles poderiam encontrar ainda mais mazelas?
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Fato é que em 1898 Antonio Lemos buscava aumentar sua popularidade, além de ter mais tempo para se dedicar ao que julgava interessante, devido à fartura do comércio de látex. Enquanto que em 1911 o seu trabalho ideológico estava ameaçado pelas críticas do Partido Republicano Federal, refletindo nos textos. Ainda sobre o conteúdo das notícias, foram percebidas influências das correntes de pensamento comuns à época, exploradas ao longo do capítulo. No entanto, estes ideais progressistas estavam temporalmente defasados. Como? Os anos de 1898 e 1911 estavam inseridos no período de 1888 a 1914, época em que o racismo encontrou maior apelo no Brasil, ganhando o apelido de “O Espírito da Época”. Renato Ortiz (2006, p. 28) explica que muitos dos livros adotados pelos intelectuais brasileiros foram lançados antes de 1890: O Essais sur les inegalité des races humaines, do conde Gobineau (que seria um dos teóricos da raça ariana), é de 1853 – 1855. Journey in Brazil, de Agassiz, é de 1868; dentre outros. Porém, os autores tupiniquins só escreveriam sobre estes temas justamente na época citada acima, que correspondeu à Belle Époque em Belém. Este “tempo de maturação”, na opinião da autora deste trabalho, se deveu principalmente às dificuldades para importar os livros estrangeiros, devido à demora dos navios e trens. No mesmo período, a Europa já começava a se desvencilhar destas correntes, principalmente da racial, pois ela sofreria muitas críticas de antropólogos e sociólogos e teria o conceito de “raça” substituído pelo de “cultura”. O início da Primeira Guerra Mundial em 1914, que demarcaria o fim do período áureo, seria também o de formar novamente um espírito nacionalista e integrador – tanto no velho continente quanto no Brasil -, no qual a cultura popular seria resgatada (ORTIZ, 2006, p. 22 e 29). Estas mudanças chegaram a Belém com a decadência do ciclo da borracha, na segunda década de 1900. Para completar, com a saída de Antonio Lemos do cargo da intendência de Belém em 1911, a crise política da cidade só aumentou: os lemistas fundaram um novo partido, o Republicano Conservador, e houve fraudes na eleição de 1912. O governo federal precisou pedir para que Lauro Sodré, que estava morando no Rio de Janeiro, voltasse para Belém só para acalmar os ânimos na capital, visto que Sodré estava praticamente eleito governador do Pará naquele ano (ROCQUE, 1990, p. 117 e 120). Mas o caos havia chegado a tal ponto que a vinda de Sodré seria aproveitada pelos seus aliados para simular um falso atentado à sua vida, sendo usado como prova
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de que os lemistas precisavam sair do poder. A situação culminaria em um atentado, desta vez de verdade, à redação de A Província do Pará em agosto de 1912, conforme descrito por Carlos Rocque (1990, p. 126): Tudo estava devidamente planejado: um comício realizado à tarde na Praça da República serviria para reunir o povo; [...] Lauro Sodré seria distraído por seu filho Emanuel para que não percebesse que iam destruir o jornal; no momento do ataque faltaria luz na Praça da República, para que a eletrificação do gradil que isolava o edifício fosse tornado sem efeito; os bombeiros, em vez de água, jogariam querosene; para completar [...] o então tenente Magalhães Barata, afilhado de Sodré, comandaria a tropa do exército que indubitavelmente seria chamada para defender o prédio atacado [...] dando um grande circular pela cidade, de modo a que, quando chegasse ao local do atentando, nada mais tivesse a defender.
Iniciado à tardinha, o ataque continuou até a noite. Após a fuga pela porta dos fundos dos jornalistas que estavam na redação naquele momento, os lauristas se dirigiram até a casa do intendente, na Gentil Bittencourt, que foi saqueada e incendiada. Lemos foi encontrado na manhã seguinte na casa de um amigo, de onde foi arrancado ainda de pijamas pelos revoltados. O atentado só teve fim com a chegada de Lauro Sodré, que retirou o caudilho do meio da rua e o deixou na casa do genro deste. (ROCQUE, 1990, p. 127) Em setembro de 1912, ele se mudaria com sua família para o Rio de Janeiro, após renunciar a todos os seus títulos e propriedades no Pará. Em outubro de 1913, morreria. Somente sessenta anos depois o prefeito de Belém, Nélio Lobato, mandaria buscar os restos mortais do intendente, que percorreriam as ruas da cidade até serem guardados no Palácio da Prefeitura, onde se encontram até os dias atuais. Quanto ao seu jornal, este voltaria a circular no dia 6 de julho de 1920, já sob a propriedade de Pedro Chermont, filho de Vicente Chermont de Miranda (FERREIRA, 2004, p. 7). Foram muitos os populares que apoiaram e participaram destes ataques ao velho Lemos. Após quatorze anos em que ele esteve no poder, a atitude não foi injusta e até ingrata? Mas por que seria injusta, após o que foi apresentado sobre o tratamento que o intendente conferia ao povo mais pobre de Belém? A intenção deste trabalho nunca foi a de colocar o intendente como o vilão e o povo como o mocinho da história. Mas espera-se ter ficado claro o quanto o contexto influenciou as ações do político, pois realmente havia um mito de que Belém era uma cidade atrasada e pacata, e era para destruí-lo que o caudilho sonhava em transformar a cidade em um lugar bonito e desenvolvido, sonho que poucos políticos paraenses
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posteriormente tiveram. A capital precisava mesmo de água encanada, de luz elétrica, de bondes, de calçadas, de arborização, de prédios bonitos e limpos. Se não fosse Lemos a implantar estes elementos, o eleito em seu lugar os teria feito, ou teria agido de forma parecida, pois esta era a demanda daquela época. O que pode ter sido o grande defeito da gestão lemista foi a maneira com que ele introduziu estas inovações. Ele parece ter se esquecido de que era impossível transformar a cidade em uma Paris, e por um motivo óbvio: a população já existia e tinha anseios que precisavam ser atendidos e costumes que precisavam ser respeitados – ou pelo menos compreendidos. Os fiscais e os policiais repreendiam os populares, as leis os repreendiam, a elite os repreendiam. Tudo isto pode ter construído uma imagem de um Antonio Lemos autoritário, que dizia lutar pelos interesses de todos, mas que poderia não ser o que essas pessoas sentiam. Infelizmente, dizer que o Intendente deveria ter tido mais sensibilidade soaria ingênuo, pois até hoje são poucos os políticos que procuram conciliar seus interesses com os das camadas de baixa renda. Além disso, com a crise da borracha, sobravam menos recursos para urbanizar as áreas afastadas, o que provavelmente teria sido o próximo passo de Lemos caso ele tivesse ficado mais tempo no poder e com mais verbas públicas para executar suas obras. A fúria da oposição existiria de qualquer forma. No entanto, a abordagem do seu governo poderia sim ter sido mais branda, procurando integrar ainda mais as classes populares – pois a tentativa de integração existia, visto que as inspeções sanitárias iam até as periferias e ele usava o jornal para doutrinar o povo. Deste modo, ele conseguiria manter o apoio popular até o fim do seu mandato, evitando que a sua saída de cena tivesse sido tão penosa.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seria impossível compreender a representatividade que as classes populares de Belém tinham no jornal A Província do Pará durante o ciclo da borracha sem investigar o contexto histórico daquela época. Por isso, este trabalho procurou relacionar a prática jornalística com as transformações políticas, econômicas e culturais que influenciavam a capital paraense. A época em que o periódico fora produzido era de maturação de um novo sistema governamental: a república. Em vigor há algumas décadas nos Estados Unidos e na Europa, ela era vista com muita expectativa pela elite paraense. O sistema anterior do Brasil, a monarquia, tinha o costume de nomear pessoas de outras províncias para governar o Estado, o que dificultava a formação de novos empreendimentos; além de oferecer pouco apoio financeiro devido à sua política centralizadora que concentrava no Rio de Janeiro a maior parte do dinheiro arrecadado com as exportações paraenses, preferindo financiar projetos no centro-sul do país. Os jornais paraenses, que cresceram em quantidade após a liberação da importação do seu maquinário pelo regente Dom João VI em 1808, eram produzidos por filiados aos partidos Liberal e Conservador que digladiavam uns com os outros em busca de apoio às suas ideias de governo. O Partido Liberal, que defendia maior participação política do Pará, junto com os discursos inflamados publicava trechos de livros franceses e ingleses que falavam de ideais iluministas e utilitaristas, contribuindo para a ânsia populacional por progresso e democracia. Foi no meio desta disputa que surgiu A Província do Pará, mais precisamente em 1876 pelas mãos do fundador do Partido Liberal Dr. Assis e do tipógrafo Francisco Cerqueira, que não demoraram a convidar o amigo Antonio Lemos para participar. A entrada no jornal seria o começo da guinada deste último, que em pouco tempo seria eleito intendente de Belém em 1897 e seria o único proprietário do periódico nos anos utilizados nesta pesquisa. Assim, quando a monarquia finalmente caiu em 1889, a elite paraense se viu com a possibilidade de expurgar tudo o que lembrasse Portugal e caminhar para a semelhança com as sociedades europeias. Esta reforma alcançaria maior êxito durante o mandato de Antonio Lemos. Para chegar lá, ele se valeu de alianças com os intendentes
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interioranos, conquistadas quando ele ainda era um secretário e que seriam vitais para que ele tivesse boa representatividade no Conselho Municipal. Lemos tinha pouca representatividade nacional devido a ser mais conhecido dentro da província, não precisando se envolver em assuntos polêmicos como precisava o antigo governador Lauro Sodré. Este, que se recusou a defender o presidente brasileiro Prudente de Morais durante a cisão do Partido Republicano, perderia seu prestígio, terminando por promover Antonio Lemos a aliado do presidente e chefe do Partido Republicano Paraense, nascido após a cisão. Era esta a situação de Belém, então, quando a economia gomífera atingira seu auge na década de 1890. Participando da euforia da república emergente, Lemos reformaria a cidade aos moldes franceses, renovando a arquitetura, promovendo eventos elitistas e instituindo novos hábitos culturais. De posse disso, este trabalho avançou para o seu segundo capítulo, no qual foram reproduzidos os resultados da política lemista dentro das classes populares da cidade – negros, índios e pardos que lá já habitavam e os imigrantes nacionais e estrangeiros pobres que chegaram atrás de empregos no comércio e nos seringais. Todas estas pessoas teriam dificuldades para viver em Belém durante o mandato do intendente, sendo excluídas de muitas das novidades trazidas pelo político. Procurou-se explicar as razões para esta exclusão, concentrando-se em três eixos considerados importantes: a moradia, o trabalho e o lazer. Foi dito que as pessoas pobres mudavam-se para cortiços, hospedarias e pensões, que se proliferavam mesmo com a proibição municipal. Estas moradias precárias encontradas pelos populares eram fruto da especulação imobiliária de Belém. O preço da borracha foi instável durante toda a Belle Èpoque, tornando-se arriscado para a elite manter dinheiro dentro dos bancos. Preferia-se comprar os casarões antigos ainda não demolidos pelo governo ou os terrenos nas áreas distantes do centro, para depois revendê-los ou aluga-los. Como a cidade estava em expansão e recebendo trabalhadores constantemente, a atividade se mostrava lucrativa, sem contar que os imóveis poderiam valorizar assim que a urbanização chegasse às suas proximidades. Exploraram-se os tipos de empregos encontrados pelos trabalhadores pobres. Devido à quantidade enorme de imigrantes, principalmente nordestinos, que aportavam em Belém, o mercado não tinha cargos suficientes para todos. Muitos trabalharam no
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baixo escalão (pedreiros, sapateiros, empregados públicos), adentraram no comércio informal ou simplesmente não conseguiram cargos fixos, realizando diversos serviços temporários. Havia mulheres trabalhando também, sendo os serviços domésticos os mais exercidos por elas, além da prostituição de baixo meretrício. Sobre o lazer, foram mencionadas as festividades religiosas tipicamente populares, como o Divino Espírito Santo, realizada pelo negro conhecido como Mestre Martinho, dentre outras que moviam multidões pelas ruas de Belém. A música também foi destacada, especialmente o hábito dos populares de promoverem serestas e festas dentro de suas casas, muitas vezes até altas horas da noite. Nestes momentos, eles usavam instrumentos como o violão e o bandolim em gêneros como a modinha e o repente, de onde saíram composições que atualmente fazem parte do nosso folclore. No meio de tudo isto, os populares encontravam suas próprias maneiras de se relacionar com os seus conhecidos e com as políticas de Antonio Lemos, assimilando as mudanças que atendiam às suas necessidades ou que julgavam interessantes, e modificando ou simplesmente ignorando o que não correspondia a isso. Ou seja, em contrapartida à modernização da cidade e ao plano da elite de empurrar estas classes para as periferias, eles tomariam atitudes que não eram as esperadas, mostrando que na Belém da Belle Èpoque havia convivência entre os grupos sociais. Como exemplo, no capítulo dois descobre-se que algumas músicas populares eram compostas por poetas intelectualizados, que havia pessoas pobres frequentando os teatros, que os bondes eram compartilhados e que os trabalhadores bebiam em botequins de forma parecida como a elite bebia nos bares e cafés. Assim, quando a análise das edições de 1898 e 1911 d´A Província do Pará finalmente começou no capítulo três, ficou mais fácil visualizar as sutilezas e as intenções nos termos utilizados. As classes populares apareceram nas notícias policiais, nas anedotas, nas crônicas, nos artigos e até tiveram uma seção criada especialmente para elas, a “Psychologia do Jacto”. Nos dois anos elas foram representadas de maneira pejorativa, algumas vezes tendo seus comportamentos ridicularizados e repreendidos. Era mostrado que o que elas faziam estava errado e havia sido combatido pelas autoridades, podendo construir para a elite e visitantes estrangeiros a imagem de um poder público eficaz, e para os populares, a ideia de que deveriam se manter na linha.
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Suas aparições nos jornais eram por isso, negativas, havendo intuito de prevenir a população a não repetir aquelas ações e não abrindo espaço para as tentativas de integração feitas pelos populares. Elas também recebiam indiretas nos artigos sobre comportamentos elitistas, nos quais estes comportamentos eram elogiados e incentivados – revelando uma separação entre ricos e pobres dentro do jornal. Como explicações para este discurso, têm-se o modelo de linguagem da época, que privilegiava o relato; as condições de produção jornalística, muitas vezes dificultada pela ausência de transporte; e as influências advindas das correntes ideológicas do final daquele século: o darwinismo social e o determinismo do meio eram os responsáveis pelo preconceito com as pessoas pobres, principalmente negras e indígenas; o positivismo pelas ideias de progresso e pelo desejo do intendente de construir sua imagem de político empreendedor e preocupado com a moral da população. Soma-se a isso o fato de os relatórios municipais escritos por Antonio Lemos não serem lidos por todos, sendo A Província a maior ferramenta de disseminação dos ideais civilizatórios do chefe municipal. No entanto, apesar da clara tentativa de doutrinamento, o jornal era o mais lido pelos belenenses. A pesquisa mostrou que mesmo com as políticas lemistas não agradando a todos e com a crescente oposição laurista e coelhista, os leitores do jornal mantiveram o vínculo de confiança com o periódico do intendente, enviando reclamações e pedidos para as suas páginas. existente desde aquele jornal era propriedade somente do Dr. Assis. As notícias coletadas mostraram que Lemos e a sua equipe se preocupavam com a prestação de serviços e com a qualidade de suas informações, adotando uma postura cada vez mais objetiva, importando máquinas mais modernas, renovando a apresentação estética do jornal, pagando altos salários aos jornalistas e incentivando a escrita de artigos por intelectuais da capital. Em 1911, inclusive, os textos adquiriram maior imparcialidade em relação às pessoas pobres, que apareceram nos artigos principais como vítimas de problemas sociais tal qual a exploração nos seringais e a dificuldade para enviar encomendas nos navios. No entanto, apesar da grande popularidade, A Província é um jornal pouco utilizado como fonte pelos pesquisadores elencados neste trabalho, sendo preferidos os seus dois principais concorrentes à época, a Folha do Norte e o Diário de Notícias. Imagina-se que o motivo seja a ideia de que por ser um jornal praticamente oficial, a sua
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credibilidade seja prejudicada, ou que as aparições dos populares seja tendenciosa. Opinião, caso verdadeira, um tanto equivocada devido aos resultados já descritos neste item. Infelizmente devido ao recorte de trabalho não foi possível comparar a representatividade dos populares nesses outros periódicos, mas acredita-se que na ânsia de mostrar as falhas da intendência, eles poderiam exagerar na descrição dos problemas da cidade – sendo tão imparciais quanto A Província do Pará, só que com intenções opostas. Deixa-se assim uma sugestão para que futuros pesquisadores considerem o jornal lemista como fonte bibliográfica.
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FONTES Periódicos de 1898: A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p.2. Dois Roubos Importantes. A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p 2. Os Incendios. A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p.1. Phonographo. A Província do Pará, 01 de agosto de 1898, p. 2. Psychologia do Jacto. A Província do Pará, 03 de outubro de 1898, p.1. A Província. A Província do Pará, 04 de abril de 1898, p.1. Agua. A Província do Pará, 04 de abril de 1898, p.2. Noticias Diversas. A Província do Pará, 04 de abril de 1898, p. 2. Problemas Domesticos. A Província do Pará, 05 de dezembro de 1898, p.1. Relatorio Municipal. A Província do Pará, 05 de setembro de 1898, p.2. Psychologia do Jacto. A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p.2. Diversas Noticias. A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p.2. Segurança Publica. A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1898, p. 2. Sport. A Província do Pará, 07 de março de 1898, p. 2. Revista das Sciencias. A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, p. 1. Ao exmo.sr. desembargador chefe de segurança. A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, pg 1. Cupido em Acção. A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, p.2 Noticias Diversas. A Província do Pará, 07 de novembro de 1898, p.1. Phonographo. A Província do Pará, 09 de maio de 1898, p.2. Assassinato. A Província do Pará, 09 de maio de 1898, p.3. Intendencia Municipal. A Província do Pará, 13 de junho de 1898, p.2. Os Mortos. A Província do Pará, 13 de junho de 1898, p.2. Receituario da Mãe de Familia. A Província do Pará, 13 de junho de 1898, p.2. Ultima Hora. Periódicos de 1911: A Província do Pará, 01 de maio de 1911, p.1. Diario Negro. A Província do Pará, 01 de maio de 1911, p.1. Providencia Escusada. A Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p.4 Bandolim. A Província do Pará, 02 de janeiro de 1911, p.1. Desembargador Augusto Olympio.
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ANEXO A – MIXED PICKLES A Província do Pará, 04 de abril de 1898, p. 1. Andam todos assustados, porque o câmbio vai baixando cada vez mais, parecendo querer, desta feita, abaixar-se tanto, que venha a realizar aquela sábia previsão contida numa espécie de adágio, máxima ou coisa que melhor nome tenha. Não sendo os assuntos financeiros os que fazem jus à minha predileção, pouco teria a importar-me com a baixa, se não fosse obrigado a estar todos os dias dando explicações sobre o caso ao sr Joaquim, o meu padeiro, a primeira figura que encaro, visto que, morando só [...] Eu ia respondendo-lhe o que vinha-me à língua, às cegas, porque a verdade é que eu também não se me dava explicassem-me certas coisas que ele desejava saber. - Mas, sor doitore, e se o camvio passar de 1 para baixo? O dinheiro não baterá mais nada? - Valerá, sr Joaquim, valerá; as cores das notas são muito bonitas e elas poderão servir para forrar salas. - Não é isso o que eu prógunto... [...] E diga-me o sr, quem é um tal Bancarrota, que dizem estar aí a chegar? A apostar que é algum raio de algum monarca de má sorte! E eu expliquei-lhe, pachorrentamente e a meu modo, a que vem a ser bancarrota. - Compreendo, afirmou o homem; é assim uma espécie de banca de roleta que vai á glória... [...] Confesso que estava cada vez mais embaraçado. Acrescente-se que o sr Joaquim dá-me a honra de julgar-me um oráculo [...] A mim não me convém dizer-lhe que ignoro seja o que for do que pensa que sei; tanto assim que, vai para dois meses, curei-o de umas impingens que lhe lavravam pelos braços, receitand0o-lhe peitoral de cambará e banhos semicúpios. Em compensação, a data em que paguei-lhe a última conta de pão já deve estar muito bem registrada no curso de História do Brasil [...] - Que fará aos pois o governo?, insistia ele. [...] – o governo, o sr compreende, é um comerciante como outro qualquer, com a diferença que o é por grosso, muito por grosso... - percebo, assim a modos do lião da América... - É isso mesmo. Pois bem. O estabelecimento do governo é o tesouro federal. O sr conhece a Constituição?
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- A Conceição? Pois se ela está lá em casa há mais de 15 anos... - Não é a Conceição, é a Constituição: a lei a que obedecem todas as leis. Ora, pela Constituição, o tesouro está seguro em todas as companhias; o governo, vendo-se em apuros, ataca-lhe o fogo, e voa tudo pelos ares... - E as companhias pagam o prejuízo! – atalhou o sr Joaquim. - Exatamente. E dentro em breve teremos dinheiro a rodo e câmbio a 29... - Honra e glória! – interrompeu jubiloso o sr Joaquim. E, lançando para os ombros a pesada cesta, afastou-se, estrada de São Jerônimo acima, a resmungar, que eu bem lhe ouvi: - Isso é o que ele já debia ter feito há munto tempo, cum todos os diabos! John Morton.”
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ANEXO B – DO RIO A Província do Pará, 06 de março de 1911, p. 1. O pensamento maiúsculo que preocupa a atividade cientista do nosso país e quiçá do mundo inteiro é o conhecimento exato da topografia do centro do Brasil. Não é pequeno o número de visitantes, observadores e milionários que nestes últimos anos vêm visitando os principais pontos da nossa costa, na indagação especulativa de empregar grandes capitais e braços para a exploração de novas indústrias em melhoramentos dos que rotineiramente existem, de modo a inaugurar uma era de prosperidades, que transformará esta grande pátria, dentro de poucos séculos, na mais adiantada nação do mundo. [...] O interesse de todos que amam verdadeiramente o Pará deve crescer de entusiasmo, por nos ver cada vez mais aproximados da verdadeira classificação do El-Dorado, por que somos conhecidos desde a colônia. O Tocantins deverá se tornar o rio de maior serventia para os interesses coletivos do Brasil, unindo a Amazônia a esse centro misterioso, para onde uma geração mais forte e talvez mais patriótica transportará a Capital da República. Toda esta vitória será devido ao pensamento humano, que fervilha nesta grande cidade sob todos os aspectos, vencendo todas as dificuldades: as montanhas são perfuradas em túneis, a tração animal é quase completamente substituída pela eletricidade e pela gasolina; já funciona o pneumático e trabalha-se para cavar a terra e colocar metropolitasos, como os de Paris e de Londres; almoça-se no Rio e pode-se jantar em São Paulo, em Minas e no Espírito Santo; o homem parece ter vencido a distância e colocado pensamento acima das forças físicas. Para onde caminhamos, meu Deus, a bordo deste minúsculo planeta, através do espaço infinito e nesta viagem eterna...? Quando, todas as manhãs, me debruço da janela, admirando o aspecto estático e calmo, das elevadas montanhas que circundam, como testemunhas mudas do terror das revoluções geológicas do gênese, transporto o meu pensamento até essa terra querida, por cujo progresso tenho trabalhado toda a minha vida e cuja hegemonia deseja assistir nos triunfos do meu espírito. No cordão de pedra que vai desde o Pão de Açúcar até a Ponta do Arpoador vejo reluzir ao sol a fita de aço que recebe e transporta os radiogramas dos navios que não se
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avistam no Oceano. Agora mesmo, ouve-se ali ferver, como em toda panela infernal, a recepção de algum rádio, talvez o pensamento de saudade de um viajante, que manda para a terra os derradeiros carinhos à dileta esposa ou ao gracioso filhinho que aqui deixou... Eu também tenho no peito um instrumento muito mais delicado que aquele, que transporta o meu pensamento mais célere e mais distante que o outro, até essa terra querida, berço dos meus sonhos, estadia das minhas missões e túmulo das minhas desventuras. Ignacio Moura.