O Restauro dos Frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina

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II Jornadas Arte e Ciência UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA Centro Regional do Porto Escola das Artes

28 e 29 de Maio de 2004

CENTRO DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO

O restauro dos frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina. A técnica e a pintura de Miguel Ângelo. Gianluigi Colalucci

A Capela Sistina, construída por vontade do Papa Sisto IV Della Rovere, sobre um dos flancos da colina do Vaticano, foi erigida aproveitando os alicerces de uma capela medieval demolida, dita Capela Magna. Desafortunadamente, os velhos alicerces revelaram-se inadequados para suster o grande peso do novo edifício – os muros têm três metros de espessura – razão pela qual o assentamento dos alicerces e a instabilidade do terreno produziram, desde cedo, preocupantes danos nas paredes e em redor da capela, que naquele tempo era ainda decorada com um simples céu estrelado, da autoria de Pier Matteo d’Amelia.

Depois de vários sinais alarmantes e após o desabamento do muro e da arquitrave do portal de acesso, que na noite de Natal de 1522 ruiu sobre o cortejo papal, causando a morte a um guarda que estava ao lado do Papa Adriano VI, foram feitos os trabalhos de recuperação necessários que consistiram na colocação de doze “cadeias” em cima da abóbada e na zona dos alicerces.

Em 1504, quando parecia que a capela se encontrava estabilizada, o Papa Júlio II fez abater o céu estrelado da abóbada e convenceu – ou obrigou – Miguel Ângelo a pintar a obra que conhecemos, a qual foi executada entre 1508 e 1512. Porém, o problema estático não estava ainda resolvido, por isso também após o trabalho de Miguel Ângelo os muros e a pesada abóbada da Capela continuaram a danificar-se seriamente. Mas a abóbada, que é em arco abatido, não era feita de tijolos, mas tinha sido construída com o sistema romano de abóbada de berço ou então mediante a fundição de uma massa de cal e posolana e blocos de tufo

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sobre um suporte de madeira provisória, cuja densidade e espessura – 80 centímetros “al cervello” – impediram o desabamento.

Devido à progressão dos danos, por volta de 1564 e até ao ano de 1569, os arquitectos Pirro Ligorio e Vignola construíram três robustíssimos contrafortes adossados à Capela, que finalmente lhe restituíram estabilidade estática.

Devido ao facto dos danos da abóbada terem prejudicado também os frescos de Miguel Ângelo, foi entregue o encargo do restauro ao pintor Domenico Carnevali, o qual refez, a fresco, duas figuras que tinham sido perdidas na cena do sacrifício de Noé, uma pequena parte da mão de Adão, na cena da criação do homem, a mão de Deus Pai na cena da separação da terra das águas, uma parte da nuca do Profeta Jeremias e a figura do jovem que se encontra nas suas costas, não só, mas também duas figuras da vela representando a “Punição de Haman”, e outras partes menores.

Mas os danos mais visíveis, e que se agravariam ao longo do tempo, eram devidos às infiltrações de águas pluviais provenientes do tecto, que davam logo origem à formação de grandes eflorescências salinas brancas, e à enorme quantidade de fumo de velas, tochas e braseiros, que subia continuamente até à abóbada, e ao longo das paredes da Capela. Estes danos levaram aos muitos restauros com os quais se tentava esconder ou disfarçar as aborrecidas manchas brancas. A operação acontecia estendendo sobre os frescos várias demãos de cola animal muito diluída. Com o debilitar das cores e do modelado e com a contínua formação de eflorescências salinas, tornava-se necessário para os restauradores repintar as sombras negras dos panejamentos e as sombras nas costas das figuras. Daqui a progressiva perda da memória das cores originais e a aquisição por parte dos frescos daquelas carnações castanho-escuras, repletas de manchas que ainda se vêem nas velhas fotografias.

Também o Juízo Final tinha já muitos danos: alguns causados pelas escadas usadas para montar o baldaquino sobre o altar, e outros do fumo gorduroso das velas e do pó que tinham feito as cores escurecerem, tanto até ao ponto de fazer desaparecer quase por completo a vivaça policromia. Precisamente devido à abundante acumulação de fuligem, o Juízo Final

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tinha sido objecto de muitas tentativas antigas de limpeza que, regularmente não bem sucedidas, e se concluíam com um previsível “sujar” artificial da secção limpa.

O Juízo Universal, inaugurado a 31 de Outubro de 1542, criou logo nos contemporâneos sentimentos contrastantes. Ele foi inclusive definido “pintura das mil heresias”, e por isto inserido pelo Concílio de Trento – terminado em 1564 – entre as 33 pinturas que deviam ser imediatamente “corrigidas”. Assim que morreu Miguel Ângelo, a 18 de Fevereiro desse mesmo ano de 1564, Daniele da Volterra foi encarregue de pintar panejamentos que cobrissem as partes das figuras consideradas obscenas. Pela morte de Daniele, a operação foi continuada por Girolamo da Fano e depois por Carnevali. O enfurecimento censório foi retomado também nas centúrias de setecentos e oitocentos. No total, as figuras cobertas foram quarenta e duas. Os drapejados censórios eram pintados a têmpera, à excepção do grupo formado por S. Brás e Santa Catarina, que foi refeito a fresco. A cópia do Juízo Final pintada por Venusti quatro anos mais tarde, antes da intervenção censória, para o Cardeal Farnese – hoje em Nápoles, no Museu di Capodimonte – mostra-nos como apareciam as figuras antes de serem censuradas.

Para pôr fim aos problemas de conservação, em 1980 a Direcção dos Museus do Vaticano decidiu intervir, pelo qual, depois de estudos e investigações científicas preliminares, a equipa do Laboratório de Restauro de Pinturas dos Museus do Vaticano elaborou uma metodologia de limpeza para a abóbada e para o Juízo Final e executou o restauro, terminado este a 8 de Abril de 1994.

As censuras do Juízo Final foram em parte removidas, conservando apenas aquelas do século XVI, pois são consideradas

históricas enquanto

legado de um momento

particularmente importante para a Igreja: a Contra Reforma e o Concílio de Trento; por sua vez, não foram consideradas históricas as censuras das centúrias de setecentos e oitocentos, razão pela qual foram extraídas.

Para manter os frescos em boas condições, o ambiente interno da Capela foi climatizado, por isso a temperatura é mantida constantemente entre os 18 e 25º C, a humidade relativa entre os 50 e 60% e os 10.000 metros cúbicos de volume de ar contidos na Capela são mudados

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com uma regularidade de uma hora e quarenta minutos, com novo ar filtrado, privado de substâncias ou gases poluentes.

A limpeza dos frescos da Capela Sistina permitiu trazer à luz a verdadeira cor da obra-prima de Miguel Ângelo e ao mesmo tempo constituiu um momento excepcional do estudo desta obra, que durante o decorrer dos séculos tinha rápidas modificações graves na singularíssima policromia.

A redescoberta da cor representa seguramente a mais evidente novidade produzida pela limpeza dos frescos da Capela Sistina, todavia, existem nestas pinturas outros aspectos menos óbvios, mais distantes, que se propõem a um estudo atento e reflectido. Miguel Ângelo exprime-se em pintura com a linguagem própria desta arte que é feita de forma e cor, mas reúne à sua expressividade também uma estrutura matérica quase imperceptível, funcional à imagem, obtida através de uma grande variedade de pinceladas e tratamentos de cor.

A pintura de Miguel Ângelo nasce de um projecto de grande calibre estudado em cada pormenor, até à escolha das várias qualidades e elaborações de rebocos em função da opacidade cromática e do aspecto superficial: liso, vidrado ou ligeiramente texturado.

Também o ductus das pinceladas, as quais mencionamos anteriormente, apresenta uma ampla gama de variadas tensões para alcançar os efeitos espaciais e volumétricos previstos na composição.

É então a razão pura, unida a um excepcional senso de arte, que caracteriza a obra de Miguel Ângelo. Ele, de facto, transfere para a pintura a sua sensibilidade volumétrica tridimensional de escultor e a racionalidade de arquitecto e seria um erro procurar nele algo de instintivo e alegre que podemos encontrar por exemplo em Rafael ou em Ticiano, para citar apenas dois nomes de artistas seus contemporâneos, os quais na pintura transferem aquela forma e aquela carga colorística, fascinante e cativante, própria de quem nasce pintor e que faz pintura no preciso momento em que toca um pincel.

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Ver a mão do escultor na obra pictórica de Miguel Ângelo, hoje que o descobrimos forte colorista, pareceria uma insuportável banalidade, mas a proposta nasce não já do velho lugar comum consequente da artificiosa monocromia da abóbada e do Juízo Final, mas sim da nova leitura da recuperada policromia original, a qual explica as diversas razões que levam a uma conclusão igual àquela formulada no passado.

Miguel Ângelo tem em conta os efeitos ópticos ligados tanto à colocação das figuras sozinhas no espaço em relação à maior ou menor distância hipotética da imagem do olho de quem vê, quanto ao volume de cada figura.

Quando a abóbada era muito escura e quase privada de policromia, a composição regia-se exclusivamente pelo desenho e por aquele claro-escuro criado pelos repintes das sombras, executados nos séculos XVIII e XIX. Hoje descobrimos que, pelo contrário, Miguel Ângelo confiou estes efeitos principalmente a três procedimentos pictóricos, dois deles baseados no uso particular da pincelada e a terceira na calibrada justaposição da cor.

Na complexa pintura de Miguel Ângelo, são particularmente interessantes os recursos práticos adoptados para criar em quem olha a ilusão de ver figuras fortemente tridimensionais, dispostas em várias distâncias no espaço.

Partindo do princípio que quanto mais um objecto é próximo ao olho, mais se lhe percepcionam os pormenores, Miguel Ângelo pinta as figuras dos profetas, das sibilas e os jovens nus com nitidez de imagem, a pinceladas estreitas e esbatidas e com pormenores trabalhados, de modo a resultarem mais próximos a quem observa, sendo eles colocados no interior da grande aula, ao contrário das figuras das cenas centrais com a história da criação, que devendo parecer mais longínquas, pairando mais longe no espaço físico da abóbada, foram pintadas com uma trama de pinceladas largas, de modo a esfumar os detalhes dos rostos e dos panejamentos.

Também no Juízo Final Miguel Ângelo adopta o mesmo método mas com variantes e com alguma novidade absoluta, como no grupo de Cristo Juiz e da Virgem, onde o rosto e todo o corpo de Cristo são pintados com uma força e uma nitidez de detalhes adequada a uma figura que está no centro da composição, enquanto a Virgem, que lhe está próxima mas em

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segundo plano, é pintada com menor detalhe e o rosto tem uma espécie de “desfocagem” devida ao esbatimento das linhas, obtido com golpes de cor dados com a ponta do pincel. Mas aqui Miguel Ângelo tem uma intuição genial porque não se limita a pintar com a ponta do pincel: ele cria a carnação da Virgem mediante a justaposição de três cores separadas, branco, vermelho e rosa, antecipando em três séculos o divisionismo e o pontilhismo.

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