ZINE ZAL #00

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[...] me deixa enfurecer e convocar o motim

Ryane Leão 3

(Tudo nela brilha e queima)


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ALINE DIAS

Sim Tudo começa com um sim, mas a gente tem mania de não. Mania de negar sentimento, mania de negar o próprio sonho, a própria vida. Tem hora que a gente é muito bobo negando a vida em si, negando todos os mistérios, negando a visão de todos os caminhos. São muitos caminhos. Eu disse sim. Eu disse “Eu vou. Por que não?”. No caminho as mãos foram se chegando e tantas que tudo se faz em sins e mãos dadas. Revezo minhas mãos entre amores muitos. O caminho da emoção é sem volta, a Bruna me disse. Não nego mais meu choro, não nego mais a dor, não nego mais o amor, a vida, a paixão. Eu digo sim. Eu digo sim ao agora. Lavo louça quando preciso pensar, e digo sim ao eterno que me move. Digo sim à coragem, encaro o medo de frente. Podem vir todas as sombras que eu encaro, eu choro, eu combato o bom combate, eu olho pra mim.

Eu escolhi a alegria dentre todos os infinitos caminhos. Eu disse sim. Comecei a entender as músicas todas, respeitar minha risada, respeitar minhas lágrimas, respeitar meus fins. Estou melhor em criar começos. Eu sei recomeçar, entendi. Eu sei novos caminhos e sei brincar. Foi uma herança que recebi de meu avô, a risada. É uma besteira danada negar as heranças que a gente tem. Pois aceito a falta de palavras de minha mãe, a agressividade de meu pai, as brincadeiras de meu avô e os remendos de minha avó. Porque a falta de palavras de minha mãe também quer dizer cuidado, porque a agressividade de meu pai também quer dizer paixão. Porque os remendos de minha avó vieram com o tempo, porque a brincadeira de meu avô veio com tempo. Eu tenho sim. Eu tenho tempo. Alegria agora, um passo de cada vez, e cambalhotas. Eu digo sim a este nariz de palhaço que me faz mensageira da alegria. E agora um fim, pra você dar risada. Sempre há tempo.

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Depois de aprender a palavra sim, aprendi também a palavra fim. O fim abre portas, e novos sins acontecem. Eu disse fim ontem, mas eu tive muito medo do fim. Eu disse fim com medo mesmo, e a coragem me veio com tranquilidade. Eu não sabia que dava pra ser muito tranquilo. Então eu disse sim pra mim, e pra leveza. Sabe, eu fiz uma escolha: a alegria.


FEPASCHOAL

Corda Embolada Deixou cair como um raio Sucumbiu à ânsia Magnetizada engolidor de fogo Inebriante Maldita dormência demência Engarrafada Foi-se embora no passo Desenhava caras mandalas e músculos O fluido virou vaselina Menina dos olhos que serram E querem mergulha Alterante aldeído Anestesiaste o prazer instantâneo Prometeu que nunca faria de novo As folhas de boldo no dia seguinte As bolhas visíveis pela madrugada A rua é o contorcionista do circo É lindo ver tudo no giro na roda Caminho ao centro onde jazem as mágoas Após hedonisiar todas as moléculas Retorno ao feto genético e curvo Pra piorar, pra piorar Diluição louca luminescente Vinho oculto das preocupações hepáticas Semana de forca de corda embolada Foi-se embora no passo Avultuando os becos em derretimento A sua chegada caída Ali fora já dizem que é dia

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Caído será o inimigo


ISABELLA MARIANO

O abutre um abutre me ronda sei bem o que espera encontrar um corpo estirado adormecido entorpecido quase morto mas quente um corpo alongado com curvas sem curvas um corpo um corpo sem dono um corpo deixado largado abandonado na mesa do bar um corpo que ao acordar só vai saber do abutre

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quando o ventre começar a latejar


JOÃO CHAGAS

Sol na janela Ela engravidou bem cedo. Com quase oito meses, engravidou e nasceram quatro. Enquanto ainda amamentava os primeiros tornou a engravidar e da segunda vez foram sete. Três semanas depois um dos sete morreu, talvez não tivesse leite suficiente, talvez não vingou por falta de destino. Alecrim teve um ano e meio de idade e dez filhos. Hoje mora com sua mais velha, apenas. Aos poucos viu seus filhotes sendo levados da casa; depois viu a casa com quintal e a rua ampla com pássaros que cantam sendo levada de si. Hoje mora num apartamento pequeno com telas pretas nas janelas. Mora ela, sua mais velha e o corpo de seu captor que começa a feder. Se bem que o cheiro dele nunca a agradou. Vê em Fifi um pouco do espírito de curiosidade que há muito já não consegue energia para nutrir. Um dia bom para si era deixarse deitada no sol digerindo a comida e ouvindo as patas rápidas de Fifi brincando com qualquer coisa que se mexesse. Não qualquer coisa, na verdade, Fifi tinha medo dele. Deve ter sido coisa da primeira infância de Fifi. Alecrim fez ninho na cama dele e ele olhava seus filhotes ainda mamando, ainda dormindo sem abrir os olhos, e quando abridos os olhos as patas começando a buscar rumo que ele cortava, pegando, abraçando e tornando-os de volta para a cama. Tonto suportou mais, os ruivos nem tanto. Mas Fifi era quem parecia ser a preferida.

O cheiro que sempre as desagradou era a constância. E quando ele bebia era pior, desarrumava tudo para ignorar arrumar no dia seguinte, até umas semanas depois arrumar tudo de uma vez, reclamando. Fifi e Alecrim observavam apáticas toda vez que acontecia. Até quando não aconteceu mais. Alecrim, dessa vez, passava inveja e dúvida da filha que não sentia o calor que a comia por dentro. A dor e o desconforto do corpo querendo

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Ainda na casa, corriam todos pelo quintal cheio de plantas e pequenos bichos e os pássaros ocasionais. Agora no apartamento não há nada do tipo. As plantas morreram sempre duas semanas depois de chegar na casa, até ele desistir de tentar. Os pequenos bichos agora só são de pano ou plástico. E a pilha de livros em cima da estante que ele ainda não organizou, elas escalam, vigiam, pulam e derrubam os livros, apontando o espaço e o tempo que ele desperdiça ao invés de arrumar.


natureza e ninguém por perto; só a filha, que não conseguiria ajudar, e ele, tampouco.

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Eram dias extremamente quentes, na cidade. O calor dentro de Alecrim estava mais insuportável do que o de costume, se revirava no piso gelado do banheiro tentando roçar alguma coisa, mas nada ajudava. Fifi presumia irritabilidade com seus brinquedos de bolas de papel e entrava no seu caminho, pedindo comida e ignorando a água. Ele só dormia. Já aconteceu antes de ele dormir e Alecrim precisar chamá-lo e apontar para a comida que elas queriam. Chamou uma vez, chamou duas, chamou três dias sem parar. Também o calor não parava, os barulhos se repetiam, os barulhos paravam. Fifi berrava também de calor. Elas não conseguiam abrir as portas dos armários e no quinto dia que ele dormia, os lábios e o resto da pele passaram a parecer o único sustento possível.


JUANE VAILLANT

Fêmea Quando acordo de manhã sou mulher Não faço nada para entrar nesse estado Quando eu acordo de manhã sou mulher Não encaro como um fardo É um fato. Não foi escolha Mas não escolheria nada mais Mesmo quando subjugam minha força Sendo que posso carregar um bebê por nove meses E sangro todo mês 5 vezes. Eu quero ser mulher Mesmo quando controlam o meu corpo Impõem regras crenças e dores Inventam mil palavras com “p” Pra descrever um jeito livre de ser. Salários baixos, taxas altas. De morte violência e desgraça Estou juntando casos, tropeço e embaraço. Vocês não podem julgar nada que eu faço. Eu desejo ser mulher Porque Porque o único sangue em minhas mãos É o que veio do meu útero. Quando vou me deitar permaneço mulher não faço nada para sair desse estado

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muito pelo contrário.


LÍVIA CORBELLARI

veias enferrujadas sangue duro corações engarrafados tentamos negar nossas origens mas o ódio e a mágoa são hereditários ainda assim é irremediável amar e eu não sei fingir igual a minha mãe e a mãe dela mas você sabe machucar igual ao seu pai

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e o pai dele


MARIA GABRIELA VEREDIANO

A mulher do fim do mundo

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Sempre imaginei que gostaria de estar com você no dia que o mundo acabasse. Num silêncio profundo, íntimo, deitada no seu peito ou de mãos dadas. Cúmplices. Todos os desentendimentos menores se dissolveriam mediante a possibilidade do grande fim. Que importa se você me entendeu mal na quinta-feira passada ou se a fatura do cartão fecha no dia 26? Qual o peso da minha irritação com a sua arrogância e preguiça se o mundo acabasse amanhã? O fim é implacável, mas nós somos elásticos. Tudo que sei é que até aqui estivemos juntos. Sei também que ando sentindo medo do mundo pelo estômago e miocárdio. Medo de gente do lado de fora, medo da gente que mora do lado de dentro. Do medo que tenho de amar aquilo que me é estrangeiro, se o mundo acabasse amanhã, eu saberia que amei o quanto pude quem me amou primeiro. Saberia que não quis nem pude amar quem me amou depois. Eis minha limitação dorsal exposta. Medo de gente. Se essa consciência fosse a fatal e derradeira certeza, acho que gostaria de voltar ao pó sozinha, descalça, nua e crua. Com a paz que nunca foi minha, e que nunca soube dar a ninguém. Se o mundo acabasse amanhã eu gostaria de viver a paz e a guerra que é estar sob minha pele mais plena que hoje. Preciso estar preparada para não ter onde me segurar. Dizem que a viagem é longa. Qual é o fim orgânico da poeira cósmica?


MARÍLIA CARREIRO

Ciência Como vão vocês? Estão preparados? Vestiram suas roupas de proteção e lacraram tudo? Muito cuidado com qualquer fresta nessas roupas ou nos equipamentos, hein. Da última visita soubemos que deu errado com o fulano lá que rasgou a calça no que restava de um vergalhão no caminho. Não queremos isso na nossa equipe. Lembrem-se que tudo o que acontece com vocês é de responsabilidade de vocês. Cada um assinou um contrato. Se vocês só assinaram pela grana e não leram o contrato, ou leram e não entenderam, é basicamente isto que ele diz: a empresa não se responsabiliza se você, por algum motivo, morrer; se algum equipamento seu estragar; se você não puder ter filho ou se seu filho nascer com modificações genéticas sem explicação. É a sua conta e vida em risco. Assinou pelo bem da ciência. E porque quis. Vamos ao que realmente interessa: isto aqui era um povoado. Lindo de se ver. A economia local se bastava, todos se conheciam e a subsistência era o turismo de aventura. Como eram maravilhosas as cachoeiras. Tive a oportunidade de vir aqui antes do rompimento da barragem e fazer muitas coisas bacanas neste lugar. Imaginem uma comunidade onde tudo funciona, todo mundo tem peixe fresco todo dia, porque é só ir do outro lado da rua e pescar. Imaginem a loucura que não deve ter sido. Pensem só: você está vivendo seu dia tranquilamente e de repente ouve um aviso para deixar sua casa em cinco minutos porque uma barragem rompeu. E aquele monte de água vem tomando o povoado inteiro, arrancando tudo quanto é coisa do chão. parte alta ali? À noite, a lama lojas, objetos, e você não pode

Os moradores foram para lá destruiu a região inteira. Casa, vidas das pessoas. Toda a sua fazer nada com relação a isso.

Aqui era bonito demais. Hoje é só sílica e barro. Não dá nem para reconstruir nada por enquanto. Acho que só daqui uns trezentos anos, na verdade. E olhe lá. Acabou mesmo. Para mim, esse é o maior desastre que podia ter acontecido no país. Muita gente morreu, muitas cidades foram afetadas. Vi muito bicho morto pelo curso do rio. Muita mosca tentando pousar na água do

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Não tem aquela durante o dia. carro, móveis, vida soterrada Imagina.


mar bem longe daqui. Muita coisa podre. Não se sabe nem quantas vítimas são. Mas não tenham dúvidas de que foram muitas as pessoas prejudicadas por isso que muitos chamam de acidente. Pesquisadores estão sem verbas e carros para agilizar suas pesquisas. Vamos aproveitar o que aconteceu para sermos melhores. Precisamos dar mais sorte do que o grupo que veio aqui antes. Ainda não conseguiram diagnosticar o que houve com os equipamentos deles. Todos estragam. Eles fizeram muitos registros, escreveram artigos com o que encontraram, resultado das amostras, tentando provar para as pessoas que havia alguma vida aqui. Mas, sem provas, ninguém acredita. Viraram chacota nacional. Precisamos focar no resultado. Qualquer coisa que encontrarem, o menor resquício de vida que acharem pelo caminho, registrem. Anotem todas as características, escreveremos, faremos vídeos, daremos entrevistas. Mudaremos o curso desta história. Tentaremos provar que há possibilidade sim de mudança, de que tudo voltará ao normal. As pessoas são fáceis. Se dissermos que há verde nesta região, elas se esquecerão imediatamente do desastre. Ganharemos muito muito dinheiro dessas empresas. Muita fama. E tudo voltará ao normal graças a nós.

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Nunca mais precisaremos trabalhar. Pelo bem da ciência.


Referências dos textos já publicados

Lívia Corbellari “Sem Título”, in Carne Viva (Editora Cousa, 2019).

Marília Carreiro

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“Ciência”, in Lama (Editora Pedregulho, 2019).


Escritores: Aline Dias, Fepaschoal, Isabella Mariano, João Chagas, Juane Vaillant, Lívia Corbellari, Maria Gabriela Verediano, Marília Carreiro Curadoria: Heitor Righetti e Lívia Corbellari Organização: Lívia Corbellari Projeto Gráfico e Diagramação: Heitor Righetti Revisão: Marília Carreiro Patrocínio: Secretária Municipal de Cultura de Vitória - ES Apoio: Editora Pedregulho

Zine nº

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Este zine foi composto na tipografia Consolas e no primeiro dia da primavera de 2019 na cidade de Vitória.


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