CANNABIS E SOCIEDADE: UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO REPORTAGEM 1 Redução de Danos representa mudança no tratamento do usuário de drogas Profissionais da área de saúde constatam que um grande número de pessoas não obtém sucesso com a abstinência, e trabalham para diminuir os riscos associados ao consumo de entorpecentes Bernardo Lisboa Carvalho Aldo Luis Farias foi autuado por porte de maconha em 2004, antes de entrar em vigor, em 2006, a lei 11.343, a partir da qual o usuário não vai mais para a prisão. Ao julgar o caso, o juiz substituiu o encarceramento por um tratamento de um ano e meio no centro Eulâmpio Cordeiro. Depois de receber alta, o antigo paciente retornou ao local, dessa vez como profissional convidado, trabalhando com terapia musical com pessoas em situação semelhante a que vivera. Nesse período, entrou em contato com a redução de danos para o usuário, uma abordagem que busca diminuir os riscos envolvidos no consumo de entorpecentes. Nos quatro anos seguintes, Aldo Farias passou num concurso para trabalhar como agente redutor de danos para a prefeitura da Cidade do Recife, e resolveu largar de vez todas as drogas, inclusive o álcool. 1
Aldo Farias é um exemplo dos benefícios da redução de danos para o usuário. A abordagem se diferencia das formas tradicionais de tratamento por não exigir que os consumidores de drogas abandonem as substâncias, embora possa ser um caminho para que isso aconteça no futuro. “A idéia é reduzir, com medidas de proteção, os riscos envolvidos no uso”, explica o agente da prefeitura. Tais perigos podem ser sociais, como demissões no trabalho, estigmas dentro da comunidade ou problemas com a Justiça. Também podem ser de saúde, a partir dos efeitos nocivos causados por cada substância no organismo, que podem ser reduzidos ou agravados pela maneira com que são utilizadas. Para os riscos sociais, as medidas de proteção incluem evitar o consumo em lugares públicos e dicas de conduta no caso de abordagens policiais, com o conhecimento da legislação pela qual o usuário não é mais preso. “Em relação aos males à saúde, os cuidados incluem beber muita água e estar bem alimentado na hora do consumo, não compartilhando objetos utilizados na prática, como copos, cigarros, cachimbos ou seringas”, afirma Aldo Farias, frisando a importância de evitar os abusos, que aumentam as chances de danos mais graves. Os profissionais de redução de danos compreendem bem o universo dos usuários. Reconhecem que, em muitos casos, os consumidores de drogas não querem, ou não conseguem, entrar em abstinência num 2
determinado momento. Procuram desenvolver suas estratégias de atuação em conjunto com seu público-alvo. “Nós entendemos que o problema não é a droga em si, mas o vínculo que o sujeito vai desenvolver com ela”, afirma Rossana Rameh, técnica de saúde mental e redução de danos da Secretaria de Saúde da Prefeitura do Recife. “Nosso trabalho é identificar as possibilidades de cada paciente para melhorar essa relação”, completa Apenas 30 por cento dos pacientes permanecem nos tratamentos pautados pela abstinência, de acordo com Flávio Campos, especialista em álcool e outras drogas da Gerência de Atenção à Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco. “Os outros 70 por cento eram excluídos do sistema de saúde, o que contrariava seu princípio de universalidade. Com a redução de danos, a gente consegue atingir esse enorme contingente de pessoas que não obtém sucesso com as abordagens tradicionais", afirma o especialista. Faz parte do trabalho de redução de danos, que se tornou uma política pública do Ministério da Saúde a partir de 2005, ir a locais onde há uso de drogas, abordando as pessoas para conscientizá-las sobre as medidas de proteção. Algumas ações envolvem distribuição de objetos utilizados no consumo que reduzem riscos, como cachimbos de madeira para evitar que usuários de crack consumam a droga na lata de alumínio, cujos vapores podem levar à demência precoce. 3
Ao fazerem esse trabalho de campo, os redutores de danos promovem a aproximação dos usuários com a rede pública de saúde. “O maior benefício da nova abordagem é tornar acessíveis pessoas que não eram alcançadas pelas técnicas anteriores, fazendo com que os cuidados não fiquem limitados àqueles que procuram ajuda nos consultórios”, afirma Evaldo Melo, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd). CONTROVÉRSIAS
Embora a redução de danos seja uma política
pública do Ministério da Saúde do Brasil e de diversos outros países, algumas de suas práticas são questionadas por setores da Justiça e da área de saúde, que as encaram como crime de incentivo ao uso de drogas. Existem portarias que incentivam e legitimam a nova abordagem, mas não deixam claro quais ações específicas se encaixam dentro dela e quais atos configuram crime de apologia. “Na prática, a distinção entre o que é uma atividade de redução de danos e o que é estímulo ao uso de drogas fica nas mãos dos profissionais que aplicam a lei”, afirma Rossana Rameh. Existem profissionais de redução de danos que enxergam a maconha como uma ferramenta poderosa no tratamento de dependentes de crack. Na ausência do entorpecente, eles experimentam muita angústia e nervosismo, fenômeno conhecido como fissura, ou síndrome de abstinência. "A cannabis atenua esse estado de ansiedade, no qual se encontram a maior 4
parte dos usuários que cometem crimes", afirma Flávio Campos. Esse tipo de terapia de substituição, onde se troca uma droga mais nociva por outra de menor dano, é uma política extra-oficial, já que a maconha é ilegal, e muito criticada por outros profissionais que trabalham com dependência química. “Para mim, não existe programa de redução de danos para o crack. Eu não gostaria que um filho meu fosse tratado para deixar o crack usando cannabis”, afirma Irinea Catarino, chefe do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco e conselheira da política estadual sobre drogas no estado. Alguns profissionais da saúde acreditam que a redução de danos não pode ser aplicada a todos os usuários. Para Enildes Melo, ex-diretora do Centro de Prevenção e Tratamento e Reabilitação do Alcoolismo (Cptras, antigamente vinculado ao Governo do Estado, agora pertencente à Prefeitura do Recife) no caso de dependentes, mulheres grávidas e adolescentes, é preciso trabalhar com um programa de tolerância zero, fazendo com que eles entrem em abstinência. O trabalho dos redutores de danos com menores é especialmente polêmico. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê como crime a indução ou o estímulo de tais jovens para o uso de qualquer tipo de droga. Flávio Campos recebeu um aviso do psicólogo do Ministério Público de Pernambuco, Gilberto Lúcio: se os redutores de danos trabalhassem com 5
essa parcela da população no estado, seriam processados. Procurado pela reportagem, Gilberto Lúcio se recusou a dar entrevista. Para Jandira Saraiva, antiga responsável pela parte de álcool e drogas da Gerência de Atenção à Saude Mental (Gasam), não se pode estimular o uso de drogas para a juventude, porque nessa fase o cérebro ainda não está formado. "Esse tipo de ação está fora da lei. É um absurdo que se queira dar uma droga em substituição a outra para quem ainda não atingiu a maioridade, é preciso encontrar outros caminhos", afirma. Já Evaldo Melo acredita que é preciso encarar uma realidade concreta: os adolescentes estão usando drogas. "Ao atuar para diminuir os riscos desse uso, os redutores de danos estão cuidando da saúde desses jovens", afirma o presidente da Abramd. Muitos profissionais da saúde tendem a encarar a nova abordagem como uma estratégia para se chegar à abstinência. “Se redução de danos é utilizada como o objetivo final, as possibilidades de recuperação ficam limitadas. Não se pode reduzir as abordagens de tratamento a ela”, afirma Magda Figueiroa, especialista em saúde mental pela Universidade Federal de Pernambuco, que trabalha com dependência química há dezesseis anos. Já os profissionais mais ligados a direitos humanos e movimentos sociais enxergam o usuário como um sujeito com autonomia sobre seu corpo, que pode exercer seu livre arbítrio para decidir sobre seu consumo, e 6
que tem direito Ă ajuda, independentemente da sua escolha.
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CANNABIS E SOCIEDADE: UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO REPORTAGEM 2 Legalização da maconha divide especialistas Embora a proibição da droga fortaleça a violência ligada ao tráfico, sua liberação poderia multiplicar os problemas decorrentes de um consumo abusivo Bernardo Lisboa Carvalho A maconha é a droga ilícita mais utilizada no mundo. No Brasil, são cerca de oito milhões de usuários, de acordo com um estudo realizado em 2005 pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). A proibição da substância obriga a maior parte dessas pessoas a dar dinheiro aos criminosos que tomam conta desse mercado, responsáveis por grande parte da violência urbana. Muitos esforços têm sido feitos no combate ao entorpecente, sem conseguir uma diminuição do seu consumo. Esse quadro tem levado a um questionamento do modelo repressivo por parte de pessoas como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o prêmio Nobel de economia Milton Friedman, que era a favor da liberação de todas as drogas. Profissionais que trabalham com dependência química, no entanto, temem as conseqüências disso num país cheio de vulnerabilidades como o Brasil. “O fácil acesso à substância é um fator de 8
risco que contribui para o consumo, e isso traria mais danos justamente para as pessoas com menos estrutura para lidar com isso”, afirma Irinéa Catarino, chefe do Departamento de Psicologia da Unicap e conselheira da política estadual sobre drogas em Pernambuco. As substâncias ilegais, em tese, são proibidas por serem capazes de causar sérios danos à saúde do indivíduo, alterando seu comportamento e pondo em risco não apenas ele, mas também as pessoas ao redor. No caso da maconha, há uma grande controvérsia em relação ao seu potencial ofensivo, especialmente quando comparado ao álcool, uma droga lícita. O vereador Luciano Siqueira, que também é médico, afirmou em entrevista no seu gabinete: “Estudos comprovam que a ação da maconha sobre o organismo humano é menos danosa do que a do álcool e do cigarro. A simples proibição e o combate como se dá hoje são ineficazes e têm o efeito paradoxal de aumentar o consumo, gerando uma reação de querer o que é proibido, como aconteceu com o álcool durante a Lei Seca nos EUA. Não vejo razão para se manter a política que está em vigor.” Alguns estudiosos vêem na história da proibição da maconha uma discriminação, por parte das culturas dominantes, em relação aos povos que tradicionalmente faziam uso da substância. “É o que nós vamos observar nas primeiras restrições à cannabis no século 19, associada a egípcios e negros, proibida por Napoleão e pelo governo brasileiro no Rio de Janeiro”, 9
afirmou, em entrevista pelo Skype, o historiador Henrique Carneiro, doutor em História Social pela USP e pesquisador fundador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), entrevistado por Regina Casé no programa “Pé de Quê?” sobre maconha, para o canal Futura. Pesquisas recentes, no entanto, têm revelado os danos cerebrais que a maconha pode causar. Além da perda da memória recente, a droga afeta as áreas da função executiva do cérebro, responsável por tomada de decisões, planejamentos de vida, busca de metas. “A maconha causa sérios prejuízos cognitivos, deixa a pessoa com menos vontade e determinação, embora não haja consenso em relação ao tempo de uso necessário para que esse dano ocorra”, afirma Cláudia Pires, psiquiatra formada pela UPE, e mestranda em neuropsiquiatria pela UFPE. Em pessoas com pré-disposição genética a surtos psicóticos, a maconha pode ter um efeito devastador, especialmente se usada durante a adolescência. “A cannabis pode despertar a ação desse gene que estava adormecido, desencadeando uma psicose para a vida toda, causando um prejuízo enorme em uma população que poderia ficar mais tempo sem esse surto”, afirma Cláudia Pires. A maior parte das pessoas, cerca de 80 por cento, não vai apresentar problemas com o uso de maconha, de acordo com Evaldo Melo, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas 10
(Abramd). O problema é que não há como prever se uma pessoa será uma usuária
funcional
ou
problemática.
Existem
alguns
fatores
de
vulnerabilidade, como problemas na família e baixa escolaridade, assim como uma família organizada e uma estrutura educacional são fatores de proteção. “Mas nada que garanta que uma pessoa vai usar de maneira funcional. Em princípio, qualquer pessoa pode ter danos por uso de drogas”, afirma o presidente da Abramd. É nesse ponto que a legalização gera receios nas pessoas que trabalham com dependentes. Em entrevista no Fórum Joana Bezerra, o Juíz Evanildo Coelho, da Segunda Vara Criminal dos Feitos Relativos a Entorpecentes do Recife, se colocou contra a liberação: “Me preocupo com as crianças e os adolescentes, que ainda não têm maturidade para exercer seu livre arbítrio”. Uma legislação poderia ser criada para inibir esse consumo entre os menores. Mas a experiência que existe com o álcool no Brasil revela a dificuldade de se fazer cumprir esse tipo de regulamentação no país. “Se não há um controle sobre o álcool, como eu posso imaginar que as restrições à maconha seriam cumpridas, caso ela fosse legalizada?”, questiona Enildes Melo, ex-diretora do Cptras. De acordo com Enildes Melo, o álcool é a droga que mais provoca atos violentos, ligado a violência doméstica, brigas, homicídios, acidentes 11
de trânsito. “Se a maconha for legalizada, vai causar tantos problemas quanto o álcool, porque hoje em dia as pessoas ainda têm uma certa dificuldade em fazer um uso mais pesado de cannabis, pelo fato de ser uma droga ilícita”, afirma. Por outro lado, o combate às drogas também causa muitos danos à sociedade. “É quase uma guerra convencional. Envolve exércitos, armas, perda de vidas, invasões de países, quebras de soberania, um dinheiro fantástico inclusive na repressão, e os resultados são muito pífios. A gente sabe que as drogas sempre vão fazer parte da humanidade, é impossível exterminá-las”, afirma o juíz Flávio Fontes, titular da Vara de Execução de Penas Alternativas de Pernambuco, cuja tese de mestrado analisa a questão da guerra às drogas. Evaldo Melo sintetiza o dilema: “A legalização, ao facilitar o acesso à droga, vai aumentar problemas decorrentes do uso, como ocorre com o álcool. E a proibição aumenta problemas decorrentes do tráfico.” E não há garantias de que a legalização resolverá a violência ligada ao mercado ilegal de entorpecentes. “Se as pessoas estão buscando o tráfico de drogas como alternativa de sobrevivência, não é liberando a droga que eu vou oferecer uma política de emprego”, afirma Irinéa Catarino. Por isso, para Magda Figueiroa, mais importante do que proibir ou liberar a droga é oferecer a todos políticas públicas de qualidade. Com 12
planejamentos de vida, projetos consistentes, escolas de qualidade, atividades físicas e artísticas estimulantes. “Quando a gente preenche a nossa vida com atividades prazerosas, produtivas e que fazem constituir nossa vida para o futuro, a possibilidade de a gente precisar de uma substância para viver uma realidade ou para fugir dela é bem menor.”
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CANNABIS E SOCIEDADE: UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO REPORTAGEM 3 Usuários tentam permanecer anônimos Longe das páginas policiais, fumantes de cannabis levam uma vida produtiva normal, ocultando seu consumo para driblar os estigmas associados a ele Bernardo Lisboa Carvalho Quando se fala em usuário de drogas, grande parte das pessoas coloca, na mesma categoria, consumidores de maconha, cocaína e crack, substâncias ilícitas. “Drogado” é um adjetivo de conotações pejorativas, associado a comportamentos violentos, banditismo, vício, incapacidade de trabalhar. Existem, no entanto, muitos apreciadores de cannabis que não se encaixam nesse estereótipo: trabalham, se relacionam bem com as pessoas ao redor e respeitam as leis, exceto pelo fato de fumarem maconha. De acordo com um estudo realizado em 2005 pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), existem cerca de oito milhões de usuários no Brasil. É provável que você conheça algum deles, cujo hábito ninguém desconfia. O médico Ronaldo (pseudônimo escolhido pela fonte por não querer se assumir publicamente como usuário), 27 anos, é um desses usuários 14
acima de qualquer suspeita. Seu trabalho exige que ele esteja sempre bem apresentável, disposto a ouvir as pessoas falarem de seus problemas. Ao chegar em casa, ainda precisa de concentração para estudar os casos dos pacientes. “Isso faz com que eu esteja sempre monitorando o meu consumo de maconha, para que não atrapalhe meu rendimento, minha atividade intelectual e minha estabilidade emocional. Se fumo em excesso fico irritadiço e sem pique para estudar. Procuro restringir a droga ao meu tempo livre” Ronaldo fumou maconha pela primeira vez com 16 anos, na época do colégio. Nessa fase, usava a droga muito esporadicamente. Embora nunca tenha tido reprovações ou notas baixas, acha que o consumo interferiu um pouco no seu rendimento escolar. “Mas vários amigos meus tiveram seus desempenhos de estudante bastante prejudicados por conta da cannabis, alguns chegaram a abandonar a escola.” Ronaldo acredita que, se por um lado existe uma visão preconceituosa e apocalíptica sobre o consumo de maconha, o outro extremo, de que é isento de problemas, é uma visão romântica. “A incidência de várias doenças mentais é muito maior nas pessoas que consomem maconha do que nas que não o fazem. Não se sabe qual é a causalidade, se elas têm problemas e passam a consumir ou se passam a consumir e ter problemas. Mas a gente sabe que há uma relação.” 15
A maconha pode ser bastante problemática para o adolescente, que ainda não tem maturidade para fazer um uso controlado. Essa é a razão pela qual a artesã Dalva (pseudônimo usado pela fonte por não querer se assumir publicamente como usuária), de 57 anos, que utiliza a droga desde os 23, é contra sua legalização, pela possibilidade de um aumento no consumo entre aqueles que não têm estrutura para isso. “Vários filhos de amigas minhas perderam anos de escola por conta da cannabis. O jovem tem algo para estudar e fuma um baseado, não vai ler nada, vai ficar no delírio, na fantasia.” Dalva, assim como Ronaldo, gosta de consumir a droga depois do expediente, quando as metas do dia já foram alcançadas. “Se eu fumar durante o dia eu não produzo, a maconha me ajuda muito a ter idéias, mas dificulta executá-las”, afirma a artesã. Ronaldo procura restringir seu consumo a uma ou duas vezes por semana, normalmente quando não precisa trabalhar no dia seguinte. “Às vezes acontece de eu fumar durante a semana, mas normalmente faço isso em casa, cedo da noite, não exagero no consumo e durmo cedo, para ter uma boa noite de sono e estar bem disposto para trabalhar no outro dia”. Algumas pessoas, no entanto, se sentem bem para realizar certos tipos de trabalho sob o efeito da maconha, especialmente aqueles que envolvem criatividade. A assistente social Valentina (pseudônimo 16
empregado pela fonte para evitar exposição), 27 anos, começou a fumar maconha com 12, por achar que seus ídolos Caetano Veloso e Gilberto Gil eram mais legais por terem feito uso da droga. “Eu tinha impulsos criativos muito fortes, passava as tardes chapada, pintando, desenhando, esculpindo”, afirma. Embora não tenha sido uma boa aluna na época da escola, por achar que todos aqueles conteúdos não lhe acrescentavam nada, Valentina foi uma ótima aluna na faculdade, quando passou a estudar coisas que lhe interessavam. “Fumar maconha me ajudava a estudar, eu interpretava os conteúdos de uma maneira diferente, indo mais além, e percebia que essas minhas idéias continuavam fazendo sentido depois de passado o efeito, o que minhas ótimas notas na faculdade comprovaram. Escrevia melhor sob o efeito também, as palavras fluíam com mais facilidade na hora de passar pro papel.”, afirma. O arquiteto Carlos (pseudônimo usado para não se assumir publicamente), 35 anos, também se beneficia criativamente da maconha. “Quando estou com muito trabalho, às vezes gosto de fumar para projetar, ajuda a expandir o meu lado de artista”. Seu uso preferencial, no entanto, é depois de terminado o dia de trabalho, para descansar a cabeça vendo um filme. “A maconha tem um efeito relaxante. Eu sou muito inquieto, ela me tira a ansiedade, acalma os pensamentos, me ajuda a manter uma conversa 17
interna na mente onde eu consigo expandir as conexões entre diferentes idéias.” Para Ronaldo, além de diminuir as ansiedades, a maconha facilita entrar num estado mais meditativo, de escutar a si próprio, ajuda a ouvir mais e falar menos. “Isso acontece não somente sob o efeito, mas no meu dia-a-dia. É algo muito pessoal, não dá para transpor isso para outras pessoas, embora eu conheça outros médicos que utilizam a droga, e isso não compromete o trabalho deles.” HÁBITO OCULTO
Todos os entrevistados, que utilizam maconha e
levam uma vida normal, sendo a erva a única substância ilícita que consomem, procuram ocultar o seu hábito por conta do estigma social que o acompanha. Consomem a droga em casa, somente na presença de pessoas muito próximas. “Eu só me assumo como usuário de cannabis para os amigos que também fumam”, afirma Carlos. “A maioria das pessoas acredita que as drogas são a ruína da sociedade, que os traficantes são os lobos maus, ou mesmo o próprio usuário: hoje em dia existe essa lógica do fenômeno Tropa de Elite, de enxergar o consumidor de drogas como o principal culpado dessa questão do tráfico, como financiador da violência do país”, afirma o professor de Filosofia Douglas (pseudônimo selecionado pela fonte para preservar sua 18
identidade), 31 anos, que atua em escolas do Ensino Médio da rede pública do estado de Pernambuco. Essa recusa dos usuários de maconha respeitáveis em “sair do armário” contribui para que o estereótipo negativo associado a esse consumo se perpetue. Os casos de maior visibilidade de fumantes de cannabis são aqueles que ganham as páginas policiais dos jornais por conta do banditismo, em circunstâncias nas quais usuários, muitas vezes, também utilizam outras drogas, como o crack. “A maioria das pessoas que convive comigo não imagina que eu fumo, isso vai contra aquela imagem formada que elas têm”, afirma Valentina. Para Douglas, todas as drogas, inclusive o álcool, podem ter um efeito devastador na vida das pessoas. “No caso da maconha, a gente não sabe se o dano que ela causa se deve mais ao efeito dela em si ou ao estigma social que a envolve. Existe uma opinião massificada que o usuário ou é alguém doente ou alguém com um desvio de caráter, que não contribuiria para a melhoria da sociedade, pelo contrário, seria responsável por uma certa marginalidade.” Ronaldo acredita que os casos trágicos envolvendo usuários de maconha servem de alerta para o fato de que o consumo de drogas é uma conduta que envolve riscos para saúde, seja física ou mental, e para as relações sociais. “É algo que você tem que manter vigilância. A maior parte 19
dos usuários não vai passar por problemas dessa natureza ao longo da vida, mas quando isso acontece, os efeitos são destruidores, tende a arrastar toda a família”.
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CANNABIS E SOCIEDADE: UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO REPORTAGEM 4 Marcha da maconha ainda provoca polêmica Entre blogs, estigmas e acusações de apologia, os defensores da droga organizam eventos que reúnem milhares de pessoas ao redor do mundo Bernardo Lisboa Carvalho A Marcha da Maconha de 2010, realizada no Recife no dia 2 de maio, reuniu no centro histórico cerca de duas mil pessoas, segundo os responsáveis pelo evento. Contou com participações ilustres, como a representante do Ministério da Cultura no Nordeste, Tarciana Portela, defendendo a manifestação como um espaço da liberdade de expressão, e o presidente da TV Pernambuco, Roger de Renoir, a favor da consolidação do evento no calendário da cidade. Mensagens em cartazes e camisas dos participantes deixavam claro seu desejo de poderem utilizar a erva sem penalizações, e sem que isso signifique dar dinheiro a criminosos. Os organizadores da Marcha da Maconha sabem que questões ligadas à droga são vistas de forma negativa pela maior parte da sociedade. “Uma pesquisa no Estadão mostrou que, em relação ao aborto, 51 por cento das pessoas são contra. Para a legalização da cannabis, esse número sobe 21
para 72%. Temos um longo caminho a percorrer”, afirma Gilberto Borges, organizador do evento na capital pernambucana, formado em História pela UFPE e gestor de políticas públicas de lazer da Prefeitura do Recife. Ciente da necessidade de deixar claro para as pessoas a diferença entre luta pela legalização e apologia ao uso, Gilberto Borges define a posição da marcha: “Não incentivamos as pessoas a usarem maconha, e sim uma mudança na lei para que aqueles que usam não sejam considerados criminosos. A passeata é um instrumento para ampliar o debate na sociedade.” A legalidade da Marcha da Maconha é um assunto controverso. Neste ano ela aconteceu no Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre, mas foi impedida em São Paulo e Fortaleza por ações do Ministério Público. Em São Paulo, mesmo proibida, chegou a reunir 400 pessoas, de acordo com o antropólogo Sérgio Vidal, formado pela UFBA, membro do Coletivo Marcha da Maconha, atualmente residindo na capital paulista. “Foi um clima de muita tensão, os policiais recolheram cartazes, proibiram a gente de pronunciar a palavra maconha, só autorizaram a gente a fazer uma marcha pela liberdade de expressão”, afirmou, em entrevista por telefone. Uma atmosfera bem diferente da que marcou o evento em Recife, onde os participantes gritavam bordões como: “Ei, Polícia! Maconha é uma delícia!” 22
Em entrevista no seu gabinete no Fórum Joana Bezerra, o juiz Evanildo Coelho, da Segunda Vara Criminal dos Feitos Relativos a Entorpecentes do Recife, afirmou: “A manifestação divulga o consumo da droga, que é ilegal, configurando, portanto, apologia ao crime.” Já para o juiz aposentado Alípio Carvalho Filho, que negou um pedido do Ministério Público para proibir o evento em Recife no ano passado, a passeata é um exercício da liberdade de expressão. “Para impedir a Marcha da Maconha também teríamos que banir passeatas que lutam pela descriminalização do aborto. A apologia ao crime, a meu ver, só se configura quando há uma situação concreta que promova a realização do ato ilícito.” A despeito da discussão jurídica, a Marcha da Maconha já acontece em 314 cidades ao redor do mundo. No Recife o evento tem conseguido, nos últimos três anos, levar mais de mil participantes para as ruas. “São poucos os setores da sociedade que conseguem juntar essa quantidade de gente sem uma certa estrutura, como ônibus para levar as pessoas aos locais”, afirma Gilberto Borges, para quem essa mobilização indica a existência de uma parcela significativa da população que quer uma mudança na política sobre a droga. As ações do Coletivo Marcha da Maconha são custeadas pelos seus membros. Os atos incluem panfletagens e atividades como o CineMassa, 23
onde são exibidos filmes seguidos de debates que abordam a proibição da maconha de uma maneira crítica, revelando a perseguição a grupos étnicos e interesses econômicos por trás da guerra à droga. Trata-se de uma organização apartidária, embora participem dela militantes de partidos políticos. “Procuramos dialogar com todas as tendências, na busca pela ampliação do debate. É importante que os políticos participem”, afirma Gilberto Borges. O vereador Luciano Siqueira, do PCdoB, expôs sua posição a respeito da marcha, em entrevista no seu gabinete na Av. Agamenon Magalhães: “A proibição legal da manifestação, em nome da defesa da família, da moralidade, é uma tremenda hipocrisia e uma atitude autoritária e antidemocrática. É como se a sociedade, ao invés de discutir o tema, procurasse escondê-lo. A maconha merece um debate sério, desarmado.” Poucos dias antes de sua realização neste ano, a Marcha da Maconha foi discutida numa audiência pública na Câmara dos Vereadores, convocada por Osmar Ricardo, do PT. O vereador Luiz Eustáquio, também do PT, se colocou contra a realização da manifestação: “Ela ajuda a mais pessoas usarem a cannabis, que é uma grande porta de entrada para o crack. A gente precisa trabalhar para deixar as pessoas livres da droga”, disse durante a audiência pública.
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Já o médico Gilliate Coelho, do Programa Saúde da Família da Prefeitura do Recife, afirmou na audiência que a maconha é uma aliada poderosa para muitos dependentes de crack que tentam parar o consumo, por ajudar a aliviar a angústia e ansiedade fortíssimas que eles sentem na ausência do entorpecente. A capacidade da maconha de causar dependência é muito inferior à do crack, menor até mesmo que a do álcool. De acordo com Aldo Luis Farias, agente de redução de danos da Prefeitura do Recife, de cada 100 pessoas que utilizam maconha, oito se tornam dependentes. “No caso do álcool, esse número sobre para dez. Com o crack, 90 por cento dos usuários se viciam”, afirma Para Gilberto Borges, os maiores danos causados pela maconha são conseqüências da proibição: “Existe um grande número de pessoas com problemas com a Justiça, um forte estigma social contra o usuário, com vários mitos criados ao redor disso. O Brasil tem cerca de oito milhões de usuários de maconha, e muita gente pensa que eles são todos violentos, perigosos, não produzem nada para o país”. INTERNET
Os consumidores da droga passaram a ter um grande
poder de mobilização com a popularização da internet. Blogs e fóruns como o do Coletivo Marcha da Maconha, Growroom, Hempadão e Filipeta da Massa tornaram possível a troca de informações entre usuários de forma 25
anônima, driblando a repressão e o estigma em volta da planta. Os assuntos vão desde técnicas de plantio caseiro para que não seja preciso comprar a droga de traficantes, passando por uma contagem das pessoas mortas pelas operações da guerra às drogas no Rio de Janeiro, até um concurso de beleza feminina para eleger a Miss Marijuana 2010. De acordo com Sérgio Vidal, especialista em questões ligadas à cannabis, houve dois importantes momentos de luta antiproibicionista no Brasil: os anos 70 e começo dos 80, e o período atual. “Nos anos 70, com as pessoas unidas na luta contra a ditadura, a bandeira da legalização era levantada por alguns indivíduos de esquerda, já estigmatizados por outras razões. E hoje, com o boom da internet, vivemos outro período fértil de esforços para superar a proibição”, afirma o antropólogo. As informações sobre maconha disponíveis na internet, no entanto, tendem a ser vistas somente por aqueles que já são simpáticos em relação à droga. “É importante que mais produtos surjam para levar a discussão para fora da bolha dos blogs e fóruns”, afirma Neco Tabosa, jornalista formado pela Unicap, responsável pelo blog Filipeta da Massa. Ele organizou o livro “O Fino da Massa”, para levar as informações sobre a cannabis a quem não tem acesso a computador. Também produziu as camisas da série Barralombra (uma alusão ao efeito sentido por quem consome a erva), com
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desenhos e mensagens relativas à droga, que ajudam os usuários a “saírem do armário”.
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RELAÇÃO DAS FONTES PELA ORDEM EM QUE APARECEM NAS REPORTAGENS. REPORTAGEM 1
- Aldo Luis Farias, agente de redução de danos da prefeitura da Cidade do
Recife, personagem beneficiado pela abordagem: 8151.8016. - Rossana Rameh, técnica de saúde mental e redução de danos da Secretaria de Saúde da Prefeitura do Recife: 9156.9145 ou 3032.3775. - Flávio Campos, especialista em álcool e outras drogas da Gerência de Atenção à Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco: 9247.3193. - Evaldo Melo, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd): 9961.8800. - Irinea Catarino, chefe do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco e conselheira da política estadual sobre drogas no estado: 9978.5644. - Enildes Melo, ex-diretora do Centro de Prevenção e Tratamento e Reabilitação do Alcoolismo: 3241.3141 (clínica) ou 3427-0101(casa). - Jandira Saraiva, antiga responsável pela parte de álcool e drogas da Gerência de Atenção à Saude Mental: 9262.9977. - Magda Figueiroa, especialista em saúde mental pela Universidade Federal de Pernambuco, que trabalha com dependência química há dezesseis anos: 28
3355.4252. REPORTAGEM 2: - Vereador e médico Luciano Siqueira, do PCdoB. Assessora Inamara: 9954.1051 ou 9433.2150. - Historiador Henrique Carneiro, doutor em História Social pela USP e pesquisador fundador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip): ) (11) 3726.5927 - Cláudia Pires, psiquiatra formada pela UPE, e mestranda em neuropsiquiatria pela UFPE: 3423.3855 ou 9469.4387. - Juíz Evanildo Coelho, da Segunda Vara Criminal dos Feitos Relativos a Entorpecentes do Recife: 3412.5967. - Juíz Flávio Fontes, titular da Vara de Execução de Penas Alternativas de Pernambuco: 3412.5175/5176 ou 9974.9984 REPORTAGEM 3: - As fontes só aceitaram dar entrevista com a condição de terem suas identidades preservadas. REPORTAGEM: 4 - Gilberto Borges, organizador da marcha da maconha no Recife, formado em História pela UFPE e gestor de políticas públicas de lazer da Prefeitura do Recife: 3355.1220. 29
- Antropólogo Sérgio Vidal, formado pela UFBA, membro do Coletivo Marcha da Maconha: (11) 2667.0420. - Juiz aposentado Alípio Carvalho Filho: 9952.2804. - Neco Tabosa, jornalista formado pela Unicap, responsável pelo blog Filipeta da Massa, organizador do livro “O Fino da Massa” e produtor das camisas Barralombra: 8737.6150.
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