colhendo kylobytes (sergio vidal)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Sergio M. S. Vidal

Colhendo Kylobytes: O Growroom e a cultura do cultivo de maconha no Brasil

SALVADOR - BA 2010.1


Sergio M. S. Vidal

Colhendo Kylobytes: O Growroom e a cultura do cultivo de maconha no Brasil

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais com concentração em Antropologia, sob orientação do Prof. Dr. Edward MacRae

Banca Examinadora:

SALVADOR - BA 2010.1

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AGRADECIMENTOS À Família da qual venho (Mãe, Pai e irmão), por terem me apoiado, mesmo quando nem sempre entendiam ou concordavam com todos os meus motivos e formas de agir; À família que estou formando (Laura e o bebê), pela paciência e tolerância que tiveram e ainda terão que ter pelas conseqüências dos caminhos que escolhi trilhar; Aos amig@s verdadeiros, por alimentarem minha alma, me acolherem nos momentos mais difíceis e celebrarem comigo os grandes momentos; Ao Ira, que mais que um amigo é um irmão que já fazia parte da Família antes mesmo de nos conhecermos pessoalmente; Ao meu orientador, que têm atuado de forma muito mais ampla do que esta função, sendo apoiador, incentivador e amigo; Aos Mestres contemporâneos com os quais tenho a honra de compartilhar lições inesquecíveis; Aos ilustres anônimos que me incentivaram, muito ou pouco, por e-mail, telefone; carta, pensamento positivo ou sinal de fumaça; Aos membros da comunidade Growroom, sem os quais nenhuma dessas linhas faria o menor sentido de serem escritas; E à Santa Maria por nos dar a vida e a luz para vivê-la com sabedoria.

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RESUMO Este trabalho discute a cultura do cultivo não-comercial de maconha no Brasil, através dos dados de uma pesquisa realizada em uma comunidade de usuários na Internet. A pesquisa utiliza dados etnográficos sobre a comunidade Growroom (www.growroomnet), relacionando-os com dados quantitativos a respeito do perfil e dos hábitos de consumo de pessoas que plantam maconha para uso pessoal no Brasil, coletados através de um levantamento realizado em 2004 (Censo Cannábico). Além disso, discute o atual status legal da planta e da conduta de cultivar para uso pessoal, reservando também uma discussão a respeito dos aspectos históricos e culturais dessas práticas. A monografia é finalizada com algumas considerações a respeito de mitos existentes em torno desses hábitos, tecendo recomendações que possam embasar mudanças nas políticas e leis que os regulam. Palavras-chave: Cannabis sativa – Maconha - Brasil; Cultivo de maconha para consumo próprio; Aspectos históricos e antropológicos; Legislação e Políticas Públicas; Growroom – seu espaço para crescer

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ABSTRACT

Keywords:

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SUMÁRIO 1. Sobre o lugar do autor neste trabalho.............................................7 2. Sobre este trabalho........................................................................11 3. Drogas, Ciência e Cultura..............................................................15 4. A maconha na História do Brasil...................................................27 5. A maconha no Brasil atual............................................................35 6. O status legal do cultivo não-comercial de maconha......................41 7. A redescoberta da cultura do cultivo de maconha.........................48 8. O nascimento do Growroom.........................................................57 9. Tornando-se usuário do Growroom..............................................61 10. Cultivando maconha para consumo próprio.................................76 11. Sobre o mito da “maconha transgênica” e outras considerações...91 12. Referências.................................................................................105

ANEXOS I. Questionário das entrevistas com usuários do Growroom...........114 II. Questionário do Censo Cannábico...............................................117

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1.Sobre o lugar do autor neste trabalho “pra mim é sagrado, é a minha Santa Maria, minha mãe, é a luz da minha vida, enfim, é a cura para humanidade... É quem me dá o meu valor... Pra eu ser quem sou, do jeito que escolhi ser...” (Cabelo1)

Antes de iniciar as discussões do trabalho apresentado aqui, é preciso compartilhar questionamentos e dúvidas que, ao longo do tempo, tornaram-se reflexões epistemológicas constantes, desde que decidi me enveredar pela Antropologia das drogas e alimentos2. Na experiência do fazer antropológico, desde cedo me deparei com questões que, aos poucos, decidi transformar em pilar para os tão

necessários

exercícios

de

estranhamento

e

vigilância

epistemológica,

fundamentais para o trabalho de campo. Afinal, ao conviver em comunidades para estudar a cultura do uso de drogas, que lugar estaria eu ocupando nessas Observações Participantes? O lugar de antropólogo observando enquanto participa para aprender com os nativos, ou de um nativo que, deixando apenas de participar, passou a aprender com a comunidade de antropólogos as ferramentas que possibilitaram também exercer a observação e outras atuações do fazer antropológico? Essa reflexão se fez cada vez mais necessária, à medida que passei a optar por temáticas específicas dentro da área de estudo escolhida. Antes de entrar na Faculdade já havia experimentado diversas drogas, entre lícitas e ilícitas, bem como me tornado usuário habitual de algumas. Porém, tais fatos, por si, não seriam um motivo especial para que a escolha dessa área de estudos demandasse alguma reflexão específica sobre os dilemas do trabalho de campo. Diversos antropólogos estudam hábitos alimentares, sexuais, crenças religiosas e outros temas que lhes são próximos enquanto indivíduos ou que fazem parte do seu cotidiano extra-acadêmico. Alguns autores inclusive estudam práticas 1

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Escolhi ilustrar cada tópico com um trecho das falas dos usuários entrevistados por mim durante a pesquisa. Existe uma ampla discussão entre os antropólogos sobre qual seria realmente o melhor termo para substituir a palavra drogas, sob argumento de que esta estaria muito estigmatizada atualmente. Substâncias psicoativas, plantas de poder e enteógenos, são apenas alguns dos exemplos dos termos utilizados, num debate que se amplia cada vez mais, sobretudo se formos buscar uma forma de definir o ramo da Antropologia que estudaria a relação dos seres humanos com as “drogas”. Nesse trabalho adotei a definição do historiador Henrique Carneiro, para quem as drogas, na maior parte da história humana, estiveram associadas à alimentos, sendo a origem do termo oriunda do holandês antigo: droog. Tal palavra era utilizada para designar os produtos de origem vegetal condicionados de forma desidratada, na clássica divisão entre secos e molhados, encontrada em diversas tradições humanas até os dias de hoje.

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sexuais que são próximas às suas próprias, ou sistemas religiosos dos quais muitas vezes são praticantes. Existem inúmeros exemplos desse tipo, como o de pesquisadoras feministas que estudam o próprio movimento feminista, ou de antropólogos que fazem parte de Casas de Culto Afro-brasileiras e em seus trabalhos tomam como objeto de estudo seus próprios sistemas de crença. No entanto, sempre acreditei que, qualquer pesquisador que pretenda estudar uma comunidade religiosa da qual faça parte, ou qualquer outro tipo de comunidade ou grupo de indivíduos do qual ele mesmo seja um dos membros, precisará, necessariamente, fazer considerações a respeito desse lugar especial que ocupa. Até mesmo para manter a maior honestidade possível com leitores do seu trabalho, o pesquisador-nativo, ou nativo-pesquisador, precisa expor seu pertencimento ao grupo ou comunidade, e buscar uma forma de trabalhá-lo não só ao longo da pesquisa de campo, mas principalmente na forma de exposição dos dados, ou seja no texto publicado, construindo-o de maneira a deixar claro para o leitor onde termina a fala do nativo e começa a do pesquisador e vice-versa. Quando participei, como Bolsista do Programa de Incentivo à Bolsistas de Iniciação Científica – PIBIC/UFBA – de uma pesquisa de campo por 30 dias no Acre, coordenada pelo prof. Edward MacRae, a respeito do uso religioso de Ayahuasca3, foi mais fácil equacionar essa questão. Apesar de já haver tomado Ayahuasca antes de participar da pesquisa e ter uma relação que pode ser considerada espiritual com a bebida, não sou “fardado”, nem posso afirmar que seja um “daimista” 4, ou nem ao menos um seguidor de alguma das religiões que fazem uso da bebida. Isso significa que, mesmo estando em comunidades onde se faz uso da bebida, e mesmo compartilhando daqueles momentos de uso ritual, não fazia parte das comunidades estudadas. Os códigos, as categorias e os significados compartilhados em torno da bebida e de seus usos tiveram que ser completamente apreendidos por mim, ainda que de forma mediada pelas leituras de trabalhos a respeito do tema, e por minhas 3

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Ayahuasca é uma bebida de origem indígena, utilizada por religiões brasileiras como a União do Vegetal, a Barquinha e o Santo Daime, dentre outras. A ayahuasca é preparada com o cipó Banisteriopsis caapi e com as folhas da Psichotria viridis, fervidos juntos com água durante horas, para reduzir o volume do líquido e extrair o princípios ativos. A bebida contém substâncias como o DMT, Harmalina, Harmina, dentre outras, consideradas psicodélicos tão poderosos como o LSD25, a Mescalina ou MDMA, e capazes de proporcionar estados especiais de percepção existencial. Fardado é o termo utilizado para designar os adeptos do Santo Daime que realizam o ritual no qual se comprometem em seguir a Doutrina e participar frequentemente dos rituais do calendário daimista. Já Daimista é o termo com o qual se auto-denominam os adeptos do Santo Daime. É importante lembrar que o Santo Daime é um sistema de crenças com diferentes vertentes, muitas vezes divergentes entre si. As Igrejas que frequentei durante a pesquisa pertenciam ao CEFLI – Centro Eclético Flor de Lótus Iluminado e CEFLURIS – Centro Eclético Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra.

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próprias experiências com a bebida e com a religião. Não precisei fazer o esforço para me colocar num lugar estranho, já que eu na verdade tive que utilizar todo meu arcabouço teórico sobre essas religiões para realizar o exercício de apreender aspectos da cultura da comunidade específica que eu estava estudando, ou seja, o estranhamento estava dado. Não somente por estar em uma comunidade religiosa com significados a respeito da bebida bastante diversificados dos meus, ou ainda por estar em um contexto ecológico, cultural, social e geográfico totalmente diferente do que eu conhecia, mas principalmente por não fazer parte dessas comunidades. Além disso, não apenas os significados sobre a bebida eram diferenciados, mas as concepções centrais sobre muitos valores de vida eram diferentes das minhas, facilitando a realização de uma observação mais distanciada. A experiência da antropologia ayauasqueira5 é algo discutido há bastante tempo dentro da área dos estudos sobre drogas, especialmente na antropologia brasileira, onde é comum encontrarmos muitos pesquisadores que não apenas comungam significados espirituais sobre a bebida, mas também participam ativamente das religiões. De fato, desde o século XIX diferentes pesquisadores que atuaram em comunidades indígenas no Brasil relataram não apenas a cultura do uso da ayahuasca, mas suas próprias experiências com a bebida. Devido, principalmente, à necessidade de estudos oficiais sobre essas culturas que embasassem o processo de regulamentação do uso religioso dessas substâncias6, diversos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento têm sido chamados a opinar sobre esses grupos. Desde a primeira expedição oficial do governo, no início da década de 1980, antropólogos e sociólogos foram incorporados à equipe e, mesmo antes disso, alguns pesquisadores já realizavam expedições independentes, como Edward MacRae, orientador deste trabalho. Face à estas considerações feitas, posso afirmar que, em minha participação 5

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A antropóloga Beatriz Labate tece uma excelente reflexão a respeito do lugar do antropólogo ayahuasqueiro, discutindo as tensões nesse campo, tanto na comunidade de antropólogos quanto nas comunidades ayahuasqueiras, incluindo considerações sobre ética, regras de conduta, dentre outros temas relevantes. Ver, LABATE, B. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas – SP: Editora Mercado de Letras, 2004. O início do processo de regulamentação da Ayahuasca deu-se a partir da primeira expedição oficial do governo brasileiro para estudar uma comunidade que fazia uso religioso da bebida. Em 1983 o governo brasileiro enviou uma equipe multidisciplinar, que incluía um antropólogo e uma socióloga, para estudar o uso do Daime em comunidades da Igreja CEFLURIS. O processo de regulamentação só foi concluído em 2006, quando um Grupo Multidisciplinar de Trabalho formado por membros do governo, cientistas e representantes de diferentes religiões que fazem uso da bebida firmaram os Princípios Deontológicos do uso da Ayahuasca, que tornou-se, então, o documento base para a atual política sobre o tema.

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nesse trabalho de campo em comunidades religiosas que fazem uso de Ayahuasca, foi mais fácil para mim realizar os exercícios de estranhamento e vigilância epistemológica, já que contava com reflexões de outros autores a respeito desse tipo de experiência e ao mesmo tempo, era muito mais explícito, tanto para mim, quanto para os membros das comunidades, os limites entre meu “lado nativo” e meu “lado antropólogo”. Nessa experiência de campo eu não podia ser considerado um nativo apenas por fazer uso das mesmas plantas que a comunidade e por compartilhar alguns dos seus valores e significados. Eu não era membro da comunidade, nem eles me entendiam como um membro da comunidade, e sim, no máximo, como um pesquisador em condição especial, principalmente por estar trabalhando com Edward MacRae, que é bastante conhecido e respeitado na maioria das comunidades do Santo Daime, especialmente nas que visitamos. No entanto, a experiência do fazer antropológico da pesquisa apresentada nesta Monografia, sobre a comunidade Growroom e a cultura do cultivo de maconha7, a situação é bastante diferente. Não apenas faço uso da mesma planta que outros membros da comunidade, mas também faço parte de sua história desde seu surgimento, conhecendo o fundador antes mesmo da existência do fórum de discussões, estimulando-o e auxiliando-o na organização e moderação. Além disso, atualmente participo do processo de institucionalização do Growroom, que por hora passa por criação de Estatuto e registro de documentos, dentre outras atividades, o que me coloca diretamente ligado à sua estrutura, forma de atuação e funcionamento. Assim, uma vez que faço parte da comunidade à qual me propus estudar antes mesmo de ter definido quais seriam meus rumos na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, achei correto, do ponto de vista da manutenção do estatuto da neutralidade científica8, colocar de forma clara meu envolvimento com a comunidade, com o fórum e com as transformações realizadas ao ao longo de sua história. Por isso, decidi que utilizaria nesse trabalho algumas estratégias para deixar 7

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A maconha é uma planta usada pelos seres humanos há mais de 12.000 anos, para as mais diversas finalidades. Atualmente existem inúmeros termos para designar a planta, sendo maconha o mais conhecido no Brasil e Cannabis sativa, seu nome mais conhecido na taxonomia botânica. Por esse motivo, neste trabalho, usaremos predominantemente maconha e cannabis para nos referirmos à esta planta. Discutir o conceito de neutralidade científica é algo fora dos objetivos e do formato necessário à este trabalho. Por hora, gostaria apenas de afirmar que meu posicionamento é de que a ciência, como todas as práticas humanas, estão impossibilitadas de ter uma neutralidade absoluta, por sua característica intrínseca de estar vinculada aos contextos histórico, econômico, social, cultural, dentre outros, dos quais faz parte. A neutralidade é, dessa forma, entendida neste trabalho como o esforço permanente para exercer a vigilância epistemológica e expor os meus lugares de pesquisador e nativo.

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da maneira mais explícita possível de que forma tem sido a minha participação na comunidade, dentre as quais, utilizar meu próprio perfil e mensagens no fórum como exemplos, quando isso for possível. O tema drogas, e a análise das múltiplas questões envolvidas nele, ainda é um tabu em nossa sociedade, ainda que muito tenhamos avançado nesse debate. Sei que declarar-se usuário de alguma droga, especialmente ilícita, é uma atitude socialmente arriscada, pois, na grande maioria das vezes, trazemos para nós olhares estigmatizantes e discriminatórios. Olhares esses que, de forma superficial e taxativa, provavelmente nos acompanharão a vida toda, mesmo que nossos trabalhos tenham boa qualidade e a nossa relação com o uso da substância seja equilibrada. No entanto, apesar de todos os riscos, acredito que não exista outra forma de fazer antropologia senão sendo extremamente honesto tanto com a comunidade estudada, quanto com a comunidade de antropólogos e com a sociedade em geral. Na verdade, não há outra forma de se fazer qualquer atividade sem haver honestidade com as pessoas direta ou indiretamente participantes do que é estudado e/ou produzido, e talvez influenciadas por aquilo que fazemos ou falamos. Espero ter trilhado este caminho, da melhor forma possível, neste trabalho, com todas as comunidades e indivíduos a quem devo respeito e responsabilidades, e onde busquei trazer colaborações para que a sociedade brasileira compreenda e possa se relacionar melhor com aqueles cidadãos que optaram por cultivar a maconha que consomem.

2.Sobre este Trabalho “É incrível como a planta reage aos estímulos. É impressionante como ela muda diariamente, se relacionando mesmo conosco, de acordo com as condições que oferecemos a ela. Isso sempre me deixa impressionado. Me faz lembrar que sempre posso mudar também”. (Pintolico)

Inicialmente, na pesquisa que deu origem a esta Monografia, eu pretendia analisar apenas a forma como usuários de maconha estabeleciam relações sociais através de um fórum de discussões na Internet (www.growroom.net/board). Minha idéia original era realizar uma observação participante em alguns tópicos de sub11


fóruns com temas específicos, realizar entrevistas com alguns informantes-chaves e traçar o histórico do fórum através de depoimentos do seu fundador. Além disso, também analisaria os dados do Censo Cannábico, projeto do qual fiz parte, e que consistiu num levantamento quantitativo realizado em 2004, que reuniu cerca de 5.400 questionários respondidos, com mais de 70 perguntas sobre os hábitos e o perfil dos usuários de maconha brasileiros, sendo totalmente produzido e divulgado através do Growroom. Os objetos principais da pesquisa era o fórum, sua estrutura, seu histórico, seus espaços, tempos e mecanismos de sociabilidade, e os dados do Censo Cannábico, buscando traçar um perfil do usuário de maconha brasileiro que também faz uso da Internet, e a questão do cultivo para consumo próprio entraria apenas como um dos temas debatido na pesquisa. Porém, diversos acontecimentos ao longo da pesquisa me fizeram redimensionar os espaços reservados a discutir o fórum e os dados do Censo Cannábico e decidir analisar mais aprofundadamente, considerando como uma importante questão a ser debatida, a cultura e condutas de cultivo não-comercial ou para consumo próprio de maconha e seus atuais aspectos sócio-político-legais. Alguns exemplos de fatores que motivaram a decisão de alterar o espaço e os temas trabalhados na Monografia são: mudanças na Lei sobre drogas ocorridas em 2006, equiparando as condutas de portar e plantar para consumo próprio e definindo para estas penas alternativas à prisão; a crescente intensificação do debate público em torno da legalização da maconha e, principalmente, o que, nesse momento, revela-se como o tema mais relevante para a comunidade estudada, que é o alarmante aumento de usuários presos sob acusações de tráfico, devido a desinformação a respeito do cultivo de maconha para uso pessoal. Há também o fato de que a prática de cultivo para consumo próprio é cada vez mais aceita entre os especialistas como uma estratégia de redução de danos eficiente, e como uma forma de diminuir a violência do mercado atual de maconha 9. Além disso, tal prática, e sua regulamentação, é objeto de um Projeto de Lei que o Deputado Paulo Teixeira (PT-SP) pretende propor, e também está sendo discutida por um Grupo de Trabalho, do qual faço parte, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). É importante ressaltar que essa é uma prática ainda muito pouco debatida na sociedade e que, mesmo a Lei 11.343/06 prevendo tal conduta, 9

Publiquei um artigo no qual discuto especificamente os trabalhos que relacionam a regulamentação do cultivo para consumo próprio como uma estratégia de redução de danos e riscos do uso de maconha. Para saber mais ver: Toxicomanias: Abordagens clínicas e sócio-antropológicas. Salvador: Edufba, 2009.

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muitos usuários têm sido acusados injustamente de tráfico de drogas por cultivarem alguns espécies de maconha10. Assim, trazer à tona a discussão sobre essas questões, através da perspectiva antropológica, mostrou-se indispensável para o a compreensão de processos recentes no campo da cultura e das drogas. Considero como sendo a atuação principal do antropólogo a de tradutor cultural. Nesse sentido, o antropólogo teria a função de compreender aspectos da vida de uma comunidade, utilizando as ferramentas da etnografia e da antropologia, enquanto participa do seu cotidiano, procurando elaborar um nível de compreensão mínima a respeito da cultura estudada. Caberia ao antropólogo focar o olhar não apenas para aqueles temas que sejam relevantes para si mesmo e para a comunidade de antropólogos, ou outras a quem precise prestar contas da pesquisa, mas também em questões que sejam relevantes para o grupo específico com o qual está trabalhando e para a sociedade em geral. Em minha convivência com a comunidade de usuários do fórum Growroom, percebi como sendo o principal tema de discussões, o que inclusive o diferencia de outros fóruns e sites sobre o tema, a troca experiências sobre cultivo para consumo próprio e o significado atribuído à esta conduta, vista como uma forma potencial de interferir no mercado de drogas em geral, diminuindo o poder do denominado “tráfico”11 e a violência envolvida. De 2002 para cá, alguns membros da comunidade foram presos e acusados de tráfico de drogas e, em geral, foram submetidos a longos períodos de encarceramento antes de conseguirem ser reconhecidos como usuários. Esses episódios causaram grande comoção na comunidade e o crescimento do interesse de que a figura do cultivador passasse a ser reconhecida social e legalmente. Todos esses processos políticos, legais e sociais e o reconhecimento, nascido na própria experiência de pesquisa de campo, da relevância do tema do cultivo para a comunidade estudada, me levaram a crer que tal prática merecia prioridade na divulgação dos resultados da pesquisa, estimulando uma reflexão sobre mudanças no objeto deste trabalho. Na difícil tarefa de recortar o objeto, procurei redimensionar a 10

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Os casos mais recentes que envolveram diretamente a comunidade Growroom são o de Fábio (RJ) e Alexandre (RS), usuários que foram inicialmente acusados de tráfico e que depois da intervenção de advogados sob orientação e apoio do Growroom conseguiram reverter a acusação para cultivo com fins de consumo pessoal. Para maiores informações sobre o caso de Alexandre ver o tópico iniciado no dia 14 de dezembro, disponível no endereço: http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=33112&st=0. Para maiores informações sobre o caso de Fábio, ver o tópico iniciado no dia 16, disponível em: http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=33125&st=0. A lei define tráfico de drogas como o comércio sem a devida autorização legal. Neste texto, aparecem como sinônimos os termos: tráfico, comércio não-autorizado, comércio ilegal e comércio sem a devida autorização.

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necessidade de produzir uma extensa descrição da história do Growroom, de sua estrutura, formas e mecanismos de sociabilidade e de me debruçar sobre todos os dados do Censo Cannábico. Por mais relevante que seja descrever uma comunidade de maconha no ciberespaço, ou conhecer algumas informações sobre o perfil atual do consumidor de maconha brasileiro, esses tópicos podem esperar um pouco mais para terem a atenção que merecem e, é claro, me dedicarei à publicação desses outros resultados da pesquisa em trabalhos futuros. Assim, , por hora, optei por eleger como objetivo central discutir aspectos sócio-culturais e legais do cultivo para consumo próprio, a partir da comunidade de usuários do fórum Growroom e dos dados do Censo Cannábico, situando o atual status dessa prática segundo as Convenções Internacionais sobre Drogas (1961, 1971 e 1988) e a Lei 11.343/2006 . A pesquisa apresentada aqui é fruto de uma análise baseada em 4 tipos de dados: Bibliográfico, sobre a maconha, seus usos e usuários; Observação Participante realizada na Comunidade do Growroom – www.growroom.net/board; Entrevistas com o fundador do Growroom e com outros usuários que cultivam para consumo próprio; Dados do Censo Cannábico das pessoas que afirmaram plantar pra consumo próprio. O levantamento bibliográfico permitiu traçar um panorama sobre a maconha na História do Brasil, até a atualidade. Os dados coletados em minha participação na comunidade Growroom são utilizados para analisar as formas de sociabilidade entre usuários e de reprodução das informações a respeito das técnicas e experiências de cultivo. Além disso, também são usados para realizar uma descrição do histórico do fórum, de sua estrutura e forma de funcionamento. E os dados das entrevistas realizadas e dos questionários do Censo Cannábico são utilizados para traçar um perfil dos usuários que plantam maconha para consumo próprio e realizar algumas reflexões a respeito dessa prática no Brasil. As entrevistas com os usuários do Growroom foram realizadas através de questionários abertos, respondidos ao longo do último semestre de 2008, sendo que as entrevistas com Ira, fundador do Growroom, foram realizadas através de softwares de comunicação online e em 4 oportunidades em que pude estar pessoalmente com ele. A utilização de metodologias de coleta de dados tão variadas se deve especialmente ao objeto de estudo tão peculiar e que exige o maior número de informações disponíveis para ser possível a realização de análises criteriosas sobre a matéria. Espero ter utilizado da forma mais adequada e proveitosa possível, inclusive 14


expondo as vantagens e desvantagens dos caminhos escolhidos para a obtenção das informações as quais tive acesso para a realização deste trabalho.

3.Drogas, Ciência e Cultura “O Growroom é um verdadeiro centro científico. Lá aprendi muito mais sobre plantas do que nas minhas aulas de biologia no colégio” (Tochiba).

Atualmente, vários pesquisadores têm afirmado a necessidade da utilização de diferentes tipos de abordagens, concomitantemente, quando nos propomos realizar estudos sobre o uso de drogas. (ROMANI, 1999; MACRAE, 2000). As abordagens precisariam obrigatoriamente se debruçar de forma equivalente sobre aspectos biológicos, sociais, culturais e psicológicos, que se relacionariam dentro do contexto no qual uma determinada substância é utilizada. Não se trata de dizer que o efeito farmacológico de uma droga não teria influência sobre a maneira como ela será consumida, ou como seus efeitos serão percebidos, mas de admitir que todo uso de substâncias psicoativas está obrigatoriamente inserido dentro de um contexto sóciocultural. Quando se admite isso, é possível também admitir o fato de que as drogas têm efeitos diferentes entre si e, de acordo com a configuração que o seu uso assuma em um determinado grupo social, têm também efeitos antropológicos diferenciados. Assim, tanto as concepções válidas que circulam na sociedade a respeito de drogas, quanto os pressupostos epistemológicos, teóricos e metodológicos que estariam por trás dos discursos científicos sobre o tema, deveriam se tomados como parte dos objetos a ganhar atenção dos cientistas que estudam o uso de drogas (ROMANÍ, 1999). Os fenômenos sociais relacionados à saúde e enfermidade têm recebido cada vez maior atenção de cientistas sociais das mais diferentes correntes teóricas. Porém, tradicionalmente deixada às ciências biomédicas, a produção do saber sobre essas questões tem sido marcada pela busca do princípio da universalidade de tais fenômenos que, muitas vezes, vêm sendo compreendidos apenas à luz de suas determinantes biológicas. Essa perspectiva é informada pelo paradigma positivista e visa, em última instância, produzir conhecimento para fomentar uma intervenção. 15


Por outro lado, o pensamento antropológico de cunho mais compreensivista, partiria da concepção de que é preciso produzir conhecimento sobre os fenômenos a partir da forma como as populações estudadas se relacionam com eles. Em outras palavras, à Sociologia e Antropologia caberia a compreensão e às ciências biomédicas a resolução dos problemas. Na área dos estudos sobre os fenômenos do consumo de substâncias psicoativas não tem sido muito diferente.

Apesar das suas especificidades, a

produção de conhecimento sobre o tema tem seguido a lógica das ciências biomédicas, buscando modelos explicativos baseados na necessidade de elucidar o nexo causal do problema a ser equacionado, o que, no caso das drogas, seria eminentemente determinado pela relação substância-organismo. O que significa dizer que, os trabalhos a respeito consumo de drogas, têm, em grande medida, buscado o entendimento sobre esses fenômenos partindo de explicações centradas nos efeitos farmacológicos dessas substâncias. Assim, as experiências com drogas não seriam entendidas como práticas sociais diversas, com especificidades envolvendo valores, sujeitos, representações, significados, dentre outros aspectos, mas como padrões comportamentais gerados por indução farmacológica de um princípio ativo. Toda a experiência com drogas, que envolveria não só a substância, mas principalmente o contexto sócio-cultural de uso, seria entendida como causada unicamente pelo efeito da substância no organismo. No Brasil, o crescimento da produção de trabalhos em Ciências Sociais no campo dos fenômenos da saúde se deu principalmente através de sua introdução em cursos de pós-graduação nos campos da Medicina Social e da Epidemiologia (ALVES & RABELO, 1998). Com essa afirmação, não se pretende negar a existência de trabalhos anteriores ao estabelecimento da relação entre ciências sociais e ciências biomédicas e mesmo de trabalhos posteriores oriundos exclusivamente da Sociologia e Antropologia. No entanto, a introdução de uma demanda por parte das ciências biomédicas pela colaboração de cientistas sociais no seu campo traz particularidades ao pensamento social nessa área que são importantes de serem discutidas. Ainda que as preocupações sobre os aspectos coletivos da saúde antecedam a institucionalização de disciplinas especificas, foi somente a partir da década de 1940 que esse processo tomou impulso, sendo também nesse período que Ciências Sociais entraram nos cursos de Pós-Graduação12. Assim, o processo de institucionalização Como exemplo, temos o Curso de Problemas da Sociologia aplicada à Higiene (1945) na Faculdade de Saúde Pública da USP. 12

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das Ciências Sociais no país ocorreu paralelo ao das disciplinas da Saúde Coletiva e Medicina Social, dentre outras iniciativas de tornar o olhar sobre a saúde mais interdisciplinar. (CANESQUI, 1995). Até a década de 60, a introdução das Ciências Sociais no pensamento sobre a saúde no país se deu principalmente pelo que se chamavam de “Ciências da Conduta”, através da cooperação em pesquisas epidemiológicas e que produziram mudanças bastante restritas na compreensão clínica da noção de individuo enquanto ser bio-psico-social (CANESQUI, 1995, p.20-1). Discutindo ainda sobre esse processo, Canesqui identifica entre as décadas de 60 e 70 uma transição da hegemonia do paradigma funcionalista para um materialismo histórico de inspiração althuseriana, o que seria, segundo ela, a troca de um estruturalismo por outro (p. 22). Essa mudança teria aberto um largo espaço para o florescimento de uma Epidemiologia Social ou Crítica, que proporcionou o crescimento da inclusão de cientistas sociais nas iniciativas de pesquisa nessa área. No entanto, ainda que as pesquisas epidemiológicas tenham ampliado sua relação com os fatores sociais das determinantes das doenças e enfermidades, a lógica positivista intrínseca ao fazer epidemiológico excluía a possibilidade da compreensão enquanto meta final, permanecendo a epidemiologia uma ferramenta eminentemente intervencionista. Assim, o saber epidemiológico seria eminente intervencionista, enquanto boa parte do saber sociológico seria produzido em bases epistemológicas compreensivistas. Ou seja, em última instância, à epidemiologia caberia produzir saber sobre um aspecto determinado sobre o qual se possa intervir, sem a obrigação de desvendar o nexo causal entre determinantes, o que teria sugerido a metáfora da Epidemiologia de Caixa-preta (p.24). Nesse contexto, caberia aos cientistas sociais apenas o papel de facilitar a criação dos mecanismos de coleta de dados para as pesquisas realizadas pelos epidemiologistas. Mas, as especificidades das abordagens sociológicas de base compreensivista para os fenômenos da saúde e doença tornaram possível que na década de 80 emergissem novas concepções sobre o tema. Canesqui (1994), analisando 120 trabalhos de ciências sociais na área de saúde, encontrou “crescente interesse antropológico na análise de fenômenos saúde-doença, fugindo evidentemente à visão naturalizada, dominante no modelo médico biologicista e mecaniscista” (p.14). Este interesse teria como reflexo não apenas o crescimento de estudos antropológicos sobre o tema mas, em sentido mais geral, revelar que a produção das 17


Ciências Sociais sobre o tema da saúde havia se ampliado. Até esse período, a produção das Ciências Sociais sobre o tema estava atrelada ao seu papel subsidiário do conhecimento biomédico com vistas à promoção de intervenções médico sanitárias, ou, no máximo, a produzir conhecimento sobre aspectos sociais que facilitassem essas intervenções. No entanto, os trabalhos deixaram de ser inspirados meramente por demandas oriundas dos grupos de interesse ou instituições ligadas às ciências biomédicas, e também surgiram trabalhos baseados nas preocupações emergidas dentro do próprio campo das Ciências Sociais. Assim, o foco deixou de ser a doença ou o processo patológico e passou a ser as populações que estavam sendo estudadas, seus processos culturais e as relações que estabeleciam com os processos de saúde-enfermidade. Canesqui destaca como sendo importantes para esse período as contribuições dadas a partir das discussões sobre os conceitos de disease, illness e sickness, que guardariam “distinções entre manifestações patológica ou biológica da doença, a percepção individual ou subjetiva da doença e a ordem cultural estabelecida” (Eisemberg, 1977; Kleinmam, 1978; Frankenberg, 1980; Yung, 1982; apud CANESQUI, 1994). Esses conceitos abriram a possibilidade de trabalhos que buscaram compreender o saber, fundamentado nas ciências biomédicas, também, como inserido em sistemas de referências socialmente e culturalmente determinados. Essa forma de conceber os fenômenos do adoecer, baseada nos conceitos de disease e illness, serviu de base para o surgimento da “Teoria do Conflito”. Essa teoria parte do suposto de que o sistema médico de referências é intrinsecamente oposto ao sistema leigo de referência, formado a partir das concepções do paciente. Muito utilizada para entender os padrões de utilização dos serviços de saúde, afirma que “a concepção biomédica está usualmente em uma oposição conflituosa com a do paciente, pois para este a doença é formulada através de um ‘sistema leigo de referencia, isto é, um corpo de conhecimentos, crenças e ações que estruturam a percepção leiga do doente” (ALVES, s/d). Assim, os sistemas culturais que informariam as concepções de médicos e pacientes seriam intrinsecamente opostos e, a priori, inconciliáveis, segundo essa teoria. Em outras palavras, a ascensão de paradigmas compreensivistas, dentro da sociologia, possibilitou a emancipação do pensamento social sobre a saúde em relação aos seus vínculos com o saber de origem biomédica. Essa emancipação tem permitido que o saber antropológico sobre os fenômenos da saúde-doença deixem 18


seus pactos com a intervenção sobre as populações estudadas e reatem seus compromissos com a compreensão de tais realidades sociais, ainda que se mantenham interesses intervencionistas, em alguns casos. Podemos concluir, portanto, que o desenvolvimento do pensamento antropológico em relação aos fenômenos da saúde-doença se fez em um primeiro momento ligado às ciências biomédicas e foi à elas subjugado. Em um segundo momento, a influência das Ciências Sociais se fez mais presente e determinou a ascensão dos fatores sociais dentro dos modelos explicativos para esses fenômenos. Foi somente a partir do surgimento de um pensamento sobre os fenômenos relacionados à saúde-doença oriundos das Ciências Sociais e seus próprios pressupostos que pudemos assistir ao crescimento das discussões que compreendem os sistemas médicos e os sistemas leigos enquanto sistemas culturais plurireferenciados e, muitas vezes, conflitivos entre si. Já as contribuições das Ciências Sociais especificamente para os estudos do uso de drogas, tiveram início ainda na década de 1950, quando começaram a surgir os primeiros trabalhos enfocando esses fenômenos dentro de alguns grupos urbanos específicos. Na década de 1950, analisando grupos de usuários de maconha, o sociólogo americano Howard Becker propôs nos Estados Unidos um novo método para abordar a reprodução e manutenção dessas práticas de consumo, buscando respeitar e compreender a lógica interna dos grupos no qual elas se reproduziam. Vivendo em um país onde o uso da Cannabis também é muito difundido, Becker inaugurou o paradigma cientifico que passou levar em conta que os usuários, compartilhavam entre si valores e significados sobre a maconha e seus usos,e que eram diferentes aos socialmente hegemônicos. Ou seja, ainda que em muitos aspectos de suas vidas esses usuários compartilhassem de valores e significados comuns à indivíduos e comunidades de não-usuários, os valores e significados que se relacionavam à Cannabis eram divergentes e até mesmo antagônicos. Becker, utilizou o conceito de cultura definido na Antropologia, para falar em cultura da droga, passando a clamar pela necessidade de um olhar diferenciado para as comunidades de usuários de drogas, afirmando ser preciso entender tais grupos dentro de seus próprios termos (BECKER, 1966). Em seus trabalhos, Becker analisou a maneira como usuários de maconha, a partir das experiências em grupo, construíam os significados que justificavam a 19


permanência naquilo que ele chamou de carreira de maconheiro. Ele destacou a maneira como a quantidade, a qualidade, as informações e as formas de uso, que circulavam nesses grupos de usuários, influenciavam e determinavam as representações dos usuários sobre seus hábitos, determinando inclusive as configurações que esse hábito assumia. Dessa forma ele demonstrou que, para se tornar um maconheiro, seria necessário ao usuário participar da cultura da droga, para poder saber utilizar a substância da maneira adequada e aprender a identificar dentre os efeitos obtidos, aqueles que buscava, bem como

percebê-los como

prazerosos e reconstruir os próprios valores sobre a substância e suas práticas de uso, distanciando-se daqueles reproduzidos no senso comum, que tendem a categorizar a cultura da droga como algo negativo. Com esse trabalho, Becker forneceu uma importante contribuição e construiu as primeiras ferramentas teóricas e metodológicas para que os pesquisadores pudessem analisar comunidades de usuários de drogas sem, no entanto, partirem do estatuto de que toda a experiência com essas substâncias é determinada meramente pelos fatores farmacológicos. Segundo ele:

“Evidências experimentais, antropológicas e sociológicas convenceram grande parte dos observadores de que os efeitos da droga variam muito, dependendo de variações na fisiologia e psicologia das pessoas que as tomam, do estado em que a pessoa se encontra quando ingere a droga e da situação social na qual ocorre a ingestão da droga”. (BECKER, 1977). Assim, em sua perspectiva, o usuário aprende socialmente a perceber tais efeitos e a interpretá-los como sendo ou não causados pela droga, bem como se tais efeitos devem ou não ser encarados como prazerosos. Dessa forma, uma determinada droga pode causar distorção na percepção do tempo e isso ser experimentado como algo ruim por um indivíduo, mas pode ser o efeito buscado por um outro e ser tido como prazeiroso. Nesse sentido, a quantidade e a qualidade de informações sobre a substância consumida, na medida em que uma substância desencadeia múltiplos efeitos sobre o organismo, o acesso a quais são esses efeitos e a forma como tais efeitos devem ser percebidos pelo usuário, influenciariam diretamente a experiência psicoativa. 20


Informações sobre quais dosagens são necessárias para se obter os efeitos esperados, a forma de consumir e as sensações que devem ser buscadas nesse leque de efeitos são apenas alguns dos exemplos do que é aprendido em fontes que o usuário considera confiáveis: normalmente usuários mais experientes, ou grupos de usuários com os quais podem compartilhar experiências. Os usuários aprenderiam também com sua própria experimentação e com informações buscadas em publicações, pesquisas, livros, revistas e outros meios de comunicação, tanto dos sistemas de especialistas como dos sistemas leigos de referência. Tudo isso formaria o que Becker chamou de saber informal sobre a droga, que seria o conjunto de informações que circulam nas redes de sociabilidade formadas por usuários (BECKER, 1977). Dessa forma, as representações que grupos na sociedade em geral e os grupos formados por usuários em particular, constroem sobre a substância, sobre a cultura em torno do seu consumo, e sobre seus efeitos, tanto individuais quantos sociais, são de fundamental importância na elaboração das experiências com psicoativos. Por outro lado, a maneira como a droga e os usuários são entendidas por um grupo social específico e na sociedade em geral também podem determinar o caráter das informações sobre as substâncias e seus usuários que serão produzidas pelas instituições dessa sociedade. Sabe-se que se uma determinada substância é historicamente categorizada de forma negativa e sofre um longo processo de estigmatização, é comum que boa parte das informações divulgadas pelos veículos de comunicação, principalmente os de massa, estejam de acordo com esses significados e inibam o acesso de cidadãos, usuários ou não de drogas, a outros tipos de informações, influenciando especialmente a interpretação que os usuários têm para o uso e para os efeitos experimentados em suas carreiras. É nesse sentido que, usuários de maconha, que tenham que conviver com a ilegalidade do seu hábito, sentem necessidade de reforçar valores que justifiquem a sua opção e a continuidade de sua carreira desviante, buscando a construção de uma imagem positiva tanto para seu hábito, quanto para si, em contraposição às representações sociais que ligam a maconha e os usuários de maconha à imagens de marginalidade, imoralidade, insanidade e vício. (MACRAE & SIMÕES, 2000). Como vimos, as representações que os usuários têm sobre a droga, seu consumo e seus efeitos são construídas em redes de sociabilidade de usuários, 21


quando os usuários de determinada substância se mantêm ligados, mesmo que indiretamente, por um certo período, fazendo circular uma grande quantidade de informações sobre suas experiências formando o que se chama cultura da droga. (BECKER, 1977). A cultura da droga é muitas vezes ignorada ou contestada nas análises sobre os usuários construídas meramente sobre dados farmacológicos ou jurídico-legais. Tais análises tendem a ignorar as opiniões e motivações dos indivíduos na busca pelo uso de drogas, elaborando interpretações sobre os usuários e seus hábitos desprovidas de qualquer relação com a cultura da droga. Todas essas representações negativas elaboradas em torno da cultura da droga acabam gerando um volume de informações que concorrem diretamente com as informações que circulam nas redes informais de sociabilidade de usuários, gerando uma disputa por legitimidade de duas posições que discordam em muitos aspectos. As representações sobre a substância, os usuários, o consumo e os efeitos de determinada substância, que são elaboradas em cima dessa visão reducionista, tendem a empurrar de forma ainda mais acentuada os usuários para a marginalidade e a intensificar na sociedade a construção de imagens negativas relacionadas às substâncias psicoativas e seus usuários. (MACRAE, 2000). No Brasil, os trabalhos de Becker e outros autores começaram a inspirar o surgimento de novas abordagens, que passaram a levar em conta os contextos socioculturais no qual o consumo de drogas se desenvolve, e destacam-se os trabalhos de Gilberto Velho sobre os comportamentos desviantes. (VELHO, 1974). Em meados de 1980, as publicações sobre o consumo de Cannabis já revelavam uma forte identificação do hábito entre as diversas camadas sociais do país e a preocupação em analisá-los a partir de olhar mais compreensivista. (HENMAN e PESSOA Jr., falta o ano, pq não foi citado antes.; MACIEL, 1985). No entanto, até esse período, a produção de dados a respeito dos fenômenos relacionados ao uso de drogas se refere basicamente a estatísticas policiais, hospitalares e de institutos médico-legais (BUCHER, 1992), com ênfase nos aspectos ligados ao tráfico e ao uso de drogas ilícitas. Richard Bucher, afirma que somente a partir de 1986 é que muitos estudos realmente relevantes começaram a surgir na área, a partir do incentivo de instituições de fomento à pesquisa, nacionais e internacionais, “... graças a uma política de incentivo à investigação 22


científica sobre o tema (com apoio do CNPq, do UNDCP, da OMS e outros), aliada ao esforço de diversos grupos de pesquisadores universitários, o Brasil se destaca como o país latinoamericano que mais dispõe de dados epidemiológicos recentes sobre o consumo de substâncias psicoativas ” (BUCHER, 1992, p. 12) Dessa forma, foi somente a partir do final da década de 80 que surgem as primeiras pesquisas de grande porte a respeito do consumo de drogas no Brasil. No entanto, é importante ressaltar que tais pesquisas referem-se principalmente a levantamentos quantitativos baseados em técnicas de survey, apoiados nos paradigmas epidemiológicos emprestados da biomedicina, a exemplo dos estudos de Bucher & Totugui (1986/87), Carlini-Cotrim & Carlini (1987), Almeida Filho & Santana (1987/8), Carvalho Neto e outros (1987), Achutti (1989) (BUCHER, Op. Cit., p.9-23). Na década de 1990 as abordagens interdisciplinares consolidaram sua legitimidade enquanto perspectivas eficientes para os estudos sobre os usos de psicoativos e os aspectos sócio-culturais do consumo passaram a ser cada vez mais levados em consideração nas discussões sobre o tema. Nesse processo, os indivíduos começam a ser vistos como sujeitos ativos na busca pelas substâncias e responsáveis pela atualização das práticas e representações que justificam a manutenção desses hábitos. (Espinheira; Neri Filho; Bucher In: BUCHER et al, 1994). Desde então, as várias configurações que o uso, os padrões de consumo e os hábitos relacionados assumem, e como esses têm sido articulados nos mais diversos contextos dentro da sociedade, têm sido objeto de variados métodos de observação. Assim, populações com características específicas passaram a ser estudas a luz das determinantes sócioculturais que tecem as suas especificidades e ao mesmo tempo indicam as melhores abordagens. A partir daí, têm surgido diversos trabalhos estudando situações em que o uso de substâncias psicoativas não se relaciona necessariamente com problemas sociais ou à saúde e muitas vezes é parte importante da cultura da população estudada. Entre os temas estudados estão as práticas de uso tradicional, ritual e religioso de maconha entre populações indígenas e caboclas13; uso ritual e religioso de Ayahuasca (Daime, Yagé) entre povos indígenas e populações caboclas e urbanas14; e o uso ritual de Sobre esse assunto ver o trabalho de Anthony Henman (1986). Sobre o tema ver os trabalhos de Beatriz Labate (2002) e as coletâneas “O uso ritual de Ayahuasca” (LABATE & GOULART, 2004) e “O uso ritual de plantas de Poder” (LABATE & ARAÚJO, 2004). 13 14

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fermentados alcoólicos (Mocororó, Cauim)15. Assim, o que se assistiu foi o reconhecimento da importância de se observar a singularidade de cada uso de drogas, o que levou, finalmente, a uma preocupação com o contexto sócio-cultural em que o ato de tomar a substância está inserido, pois é nele que se forma o que poderia ser chamado de efeito antropológico, ou seja, tudo que uma população se habituou a esperar de uma droga e de seus usuários (BUCHER, Op. Cit.). Lima, discutindo as concepções teóricas que das abordagens sobre o tema no Brasil, considera como sendo três os modelos principais: 1. Modelo Experimental – ligado aos paradigmas posteriores aos trabalhos de Darwin e Pasteur, fortemente influenciados pelo modelo explicativo da biomedicina experimental do século XIX, baseando suas análises à substância usada e aos seus efeitos farmacológicos como principal foco de saber sobre os fenômenos relacionados ao consumo. 2. Modelo Clínico – baseado na experiência clínica junto a pacientes em tratamento, e que constrói seu quadro analítico a partir do referencial de um conjunto de sintomas que apontariam para possíveis desordens. A causalidade deixaria de ser apenas farmacológica, mas continuaria a perspectiva de que o uso é um sintoma do vício, doença que teria agora origem biopsicosocial. 3. Modelo Estrutural – associado às perspectivas de Saúde Pública e da Medicina Social, buscando adotar abordagens sistêmicas, multi e interdisciplinares para analisar os fenômenos. Esse modelo ainda estaria influenciado pelo paradigma da biomedicina e o aporte teórico metodológico estaria ainda muito embasado na epidemiologia, mas também é marcado por uma preocupação em incluir fatores relativos aos aspectos sociais do consumo. (LIMA, 1997. p. 94-8) No entanto, essas três vertentes apontadas por Lima dão conta apenas dos trabalhos preocupados com de que maneira o uso de drogas está sendo realizado, visando possíveis intervenções no sentido de combater o problema das drogas. Na perspectiva de Lima, os modelos dariam conta de explicar que paradigmas estariam informando os estudos sobre drogas de acordo com diferentes referenciais. Mas, para ele, os modelos experimental, clínico e estrutural seriam permeados constantemente pelo risco de um determinismo farmacológico intrínseco às abordagens tradicionais 15

Sobre o uso do Cauim e outras bebidas fermentadas tradicionais ver Henrique Carneiro (2005).

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sobre o uso de drogas16. Assim, para ele, nos estudos sobre o uso de substâncias psicoativas seria recorrente a compreensão de que a substância em si é portadora de fatores de explicação causal. Seguindo a sugestão de Richard Bucher, podemos dividir os estudos sobre a Cannabis no Brasil entre o que ele chama de perspectivas moralista e liberal17. No primeiro grupo estariam os estudos voltados para discutir os aspectos negativos do uso da maconha, a partir dos efeitos farmacológicos da substância, focalizando as análises na discussão dos potencias riscos e danos relacionados com o uso abusivo. Nesse caso, à ciência caberia não apenas o papel de compreender o fenômeno, mas também de julgá-lo, considerando-o em si negativo ou positivo e, por isso, ilícito ou lícito. No segundo, estariam os estudos que entendem a maconha e outras drogas como sendo objetos de consumo, em si, neutros ou vazios, não podendo ser analisados fora de seus contextos culturais específicos, e que não atribuem julgamentos de valor supostamente baseados em conhecimentos científicos (BUCHER, 1992). Para os autores inseridos nesse segundo grupo, qualquer que fosse o “problema das drogas”, este seria expressão de uma configuração específica, num contexto sócio-cultural determinado, mas que não poderia ser generalizado para todos os casos, já que as experiências com drogas na maioria das vezes não é entendida como um problema para o usuário. Seguindo essa linha, na maioria dos estudos, as práticas relacionadas com uso de drogas não são analisadas como problemas, uma vez que não seria de grande valia uma ciência da cultura que, a priori, considerasse como problema uma prática cultural tida como comum para o grupo estudado. O antropólogo Oriol Romaní, discutindo o papel do cientista social no campo de estudo dos fenômenos relacionados ao uso de substâncias psicoativas, afirma que não apenas tais fenômenos, mas também os próprios paradigmas que orientam as reflexões sobre eles, precisam ser entendidos à luz das características sócio-culturais da sociedade da qual são fruto. Assim, para além de constituir conclusões a respeito das substâncias em si, o antropólogo inserido nesse campo precisa constituir um discurso sistemático a respeito do maior número de fenômenos relacionados às LIMA, Élson da Silva. Existe um paradigma epidemiológico para o estudo do fenômeno da drogadição?. In; BAPTISTA, Marcos; INEm, Clara (Orgs.) TOXICOMANIAS – abordagem multidisciplinar Rio de Janeiro – RJ: Editora Sette Letras, 1997. p. 94. 17 BUCHER, Richard. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre – RS: Editora Artes Médicas, 1992. p. 89-91. 16

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formas com as quais a sociedade que estuda lida com essas substâncias. Tanto as concepções válidas que circulam na sociedade a respeito das drogas, seus usos e usuários (sistemas leigos), quanto os pressupostos epistemológicos, teóricos e metodológicos que estariam por trás dos discursos científicos sobre o tema (sistemas especialistas) deveriam ser objetos da atenção do cientista social na área do uso de psicoativos (ROMANÍ, 1999.p.135-174). Romaní afirma ainda que, por fazerem parte tão intrínseca da cultura das sociedades, as drogas devem ser estudadas de uma forma muito especial, voltada para a compreensão de toda a diversidade e formas singulares de expressão do fenômeno, ao invés da comum busca obsessiva por uma explicação causal. Em suas palavras “considerando que en el caso de las drogas estamos ante un fenómeno expresivo, tendremos una mayor capacidad de entenderlo si lo situamos en el contexto de los paradigmas científicos que priman la comprensión a la explicación” (ROMANÍ, Op. Cit.p. 138). O papel das ciências sociais na produção do conhecimento a respeito dos fenômenos sobre o uso de drogas estaria, portanto, vinculado não apenas à produção de dados a respeito da ação das substâncias, ou dos problemas relacionados ao seu uso, mas, sobretudo, à compreensão crítica da forma como toda sociedade que ele analisa se relaciona com as drogas, seus usos e usuários. Nesse sentido, ao cientista social caberia o papel de compreender como a droga é usada social e culturalmente não apenas por seus usuários, mas por diversos grupos na sociedade, inclusive os que querem combatê-las ou analisá-las. Durante essa pesquisa procurei elaborar reflexões críticas não apenas a respeito do uso da maconha, mas também a respeito da prática científica relacionada com o tema. Nessa pesquisa, adotei a postura sugerida por Romani e antes dele por Bucher e muitos outros, procurando utilizar o texto para realizar uma tradução o mais eficaz possível da realidade estudada, numa linguagem inteligível para antropólogos e não-antropólogos. Devido a meu lugar especial de nativo-antropólogo, já mencionado anteriormente, essa postura se fez ainda mais inevitável, devido ao meu conhecimento sobre quais temas são de maior relevância para os cultivadores e que precisavam ter maior destaque. Ao me colocar neste papel procurei não criar julgamento baseados em valores morais ou ideológicos, mas sim me ater à tarefa de analisar e discutir a respeito da cultura estudada sem “maquiá-la” de forma alguma. Espero que o papel a que me propus nessa pesquisa tenha sido realmente a melhor 26


escolha e que, através desse trabalho, tenha podido realizar boas análises críticas a respeito do tema e também trazido dados e informações relevantes que ajudem na compreensão da maconha, seus usos e usuários, no Brasil atual.

4. A Maconha na História do Brasil “Conheço político, advogado, policial, médico, professora de jardim de infância, preto, branco, azul e verde. Todo mundo fuma, pô!” (Fangorn)

As práticas culturais relacionadas com o consumo de maconha no Brasil atual não poderiam ser discutidas sem antes fazer algumas considerações a respeito dos usos e papéis que a planta teve na história do país. Também considerei que deveria discutir de que maneira foi construída a imagem negativa associada à planta e seus usos e como se deu o processo de criminalização da maconha no Brasil, tendo como principal fonte de conhecimento os dados encontrados ao longo da pesquisa bibliográfica. No Brasil, as práticas sociais associadas ao consumo Cannabis sativa e seus derivados sempre foram bastante comuns, desde o inicio da colonização, e incorporadas junto com outros elementos culturais de diferentes grupos étnicos que vieram ou foram trazidos para o país (Dória, 1915; Iglesias, 1918; Moreno, 1946; Mott, 1986; In; HENMAN & PESSOA Jr, 1986). Embora a maioria dos registros históricos aponte que, nesse período inicial essas práticas fossem quase exclusivamente restritas aos escravos, sabe-se que com o passar dos anos, assumiram as mais variadas configurações, com uma maior ou menor penetração em diferentes camadas sociais. Certamente, os colonizadores, agentes do Império Lusitano, já estavam habituados,

desde

o

período

denominado

como

Expansão

Marítima,

ao

relacionamento com diferentes culturas consumidoras da planta. Além de conhecerem os usos lúdicos e medicinais de sua resina, a partir do seu contato com populações de países asiáticos e africanos, onde mantinham outras colônias, também conheciam as utilidades de sua fibra. Denominada na Europa mais comumente de Linho-cânhamo, ou somente Cânhamo, as fibras da planta eram amplamente utilizadas na indústria têxtil, sendo reconhecidamente um dos produtos centrais à 27


economia e sociedade da época (HERER, 1985; BOOTH, 2003; BENTO, 1992). Apesar dos dados históricos apontarem que as contribuições dos africanos e seus descendentes à cultura do uso da maconha no país sejam bem antigas, tudo indica que as contribuições dos colonizadores também foram bastante relevantes para a disseminação dessa espécie vegetal em todo país. Se por um lado a introdução e utilização de Cannabis seguiram a mesma lógica que outros aspectos da vida das populações de escravos e ex-escravos, estando restritas às determinações das elites econômicas, sociais e políticas, por outro, os colonizadores cultivaram oficialmente variedades da planta de diversas origens, em diferentes regiões do país. Pesquisas evidenciam a existência de fazendas e benfeitorias com plantio de maconha, instaladas no sul do país, em regiões que atualmente ficam entre os municípios de Canguçu e Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul ainda no século XVIII. Também foi a partir desse período que ocorreu um amplo movimento, inserido num projeto de fortalecimento do Estado através da busca por riquezas naturais que pudesses ser exploradas economicamente, de cultivo da planta no Brasil, com ações oficiais entre as quais se destacam a importação de sementes da Índia e Europa para serem distribuídas e cultivadas em diferentes pontos do país, tradução de manuais de cultivo para o português, e estudos e investimento na adaptação climática de variedades da planta. Os Hortos Botânicos Imperiais trabalharam na produção desse conhecimento e alguns relatórios e correspondências apontam para as discussões sobre o desempenho das plantas em solo nacional, sendo que para alguns, era um cultivo considerado altamente promissor (SANTOS & VIDAL, 2009). Fora esse período de iniciativas oficiais de usos e os registros de usos entre africanos, há ainda poucos registros encontrados sobre as práticas de uso da maconha, anteriores ao século XX. Mas, ainda assim, sabe-se que já no início do século XIX, havia um cenário de usos distinto do que havia no início da colonização, e nesse contexto, apesar de ainda bastante limitado às populações rurais, os usos já eram identificados também entre brancos, indígenas e mestiços, com os quais os antigos fumadores possivelmente mantiveram algum contato (HENMAN e PESSOA Jr., Op. Cit). Do século XIX é o primeiro documento proibindo o uso da maconha, uma Postura18 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1830, penalizando a venda e o uso do denominado pito do pango, sem, no entanto obter quaisquer repercussões 18

Nome dado à época aos decretos de validade municipal.

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significativas. Foi somente no início do século XX, com a intensificação do processo de urbanização, quando o hábito ganhou adeptos entre os habitantes das zonas urbanas, que ele passou a figurar entre as preocupações das autoridades governamentais. Apesar de sua ampla utilização como matéria-prima para fibra têxtil,em determinado período, principalmente pelas populações ligadas às elites econômicas e sociais, a imagem da planta ficou marcada permanente por sua associação com o uso por parte das populações pobres, negras e indígenas. Até o final do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, a planta era bastante difundida nas regiões norte e nordeste do país, sendo consumida por ex-escravos, mestiços e grupos indígenas, principalmente nas zonas rurais, mas com o avanço do processo de urbanização, as populações migrantes passam a ser vistas como fonte de problema sociais e sanitários. Os hábitos de consumo e higiene desses grupos tornaram-se objeto de estudo e controle das instituições e autoridades médicas e sanitárias. Foram criadas delegacias e outras instituições específicas para tratar do assunto, a exemplo da Inspetoria de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificações, que também era responsável pela repressão às práticas religiosas de origem africana, afro-brasileira e afroindígenas, em geral consideradas feitiçaria, curandeirismo ou magia-negra. (MACRAE & SIMÕES, 2000; ADIALA, 2006). A partir de 1910, alguns cientistas, como Rodrigues Dória e Francisco Iglesias, passaram a divulgar e descrever, em artigos e congressos científicos internacionais, suas teorias relacionando o comportamento considerado por eles, e outros eugenistas, como natural19 das populações de origem africana, com os efeitos farmacológicos da Cannabis. Segundo essa perspectiva, a maconha causaria em seus consumidores

“degeneração

mental

e

moral”,

“analgesia/entorpecimento”,

“vício/compulsão”, “loucura, psicose e crime”. Esses efeitos seriam os responsáveis pelo comportamento atribuído por esses cientistas à natureza das populações de origem africana, que seriam caracterizadas pela “ignorância”, “resistência física”, “intemperança”, “fetichismo” e “criminalidade” (ADIALA, 1986, 2006; RODRIGUES, 19

A eugenia é um paradigma científico que se ampara na teoria evolucionista para afirmar que é importante atuar rigorosamente de forma seletiva na reprodução para garantir a “evolução” das espécies. Durante o final do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, ela foi amplamente utilizada como justificativa para políticas de controle social e cultural, como base científica de diversas iniciativas de cunho racista e de perseguição à práticas culturais de populações consideradas “inferiores”. Um dos maiores exemplos históricos desse tipo de uso do paradigma eugenista foram as políticas de controle das populações “indesejáveis”, como Judeus, ciganos, imigrantes, dentre outros, durante os regimes nazistas na Alemanha, na primeira metade do séc. XX.

29


2004). Essas idéias se difundiram facilmente no ambiente acadêmico da época, quando muitos dos conceitos ligados às teses eugênicas estavam no auge de sua influência nos meios científicos do país. As drogas foram consideradas “venenos sociais” e o hábito de consumi-las uma doença socialmente transmissível. (STEPAN, 2005). Bem aceita no meio acadêmico e na sociedade em geral, essa tese alcançou repercussões nacionais e internacionais. As posições do Dr. Dória sobre o que ele chamou de “a vingança dos vencidos” podem ser resumidas no trecho que encerra sua comunicação no Segundo Congresso Científico Pan-americano, realizado em Washington, 1915: “A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos estases fantásticos, lhe faria rever talvez as areais ardentes e os desertos sem fim de sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva” (DÓRIA, 1915. p.37) A partir dos esforços do Dr. Dória e seus colaboradores, as práticas e representações sobre o uso, plantio e preparo de Cannabis, tradicionalmente transmitidas e socialmente validadas através das diversas gerações de brasileiros que a consumiam há séculos, passaram a ser oficialmente desqualificadas, deslegitimadas e consideradas sintomas de uma doença social (MACRAE e SIMÕES, 2000). Foi como doença transmissível de população para população que o hábito de consumir Cannabis foi introduzido nos meios científicos da época, e foi dessa forma que passou a ser discutido e pensado dentro de boa parte da comunidade científica. Interpretadas como sintomas de uma “psicose hetero-tóxica” e compreendidas a partir das categorias “maconhismo” ou “canabismo”, essas práticas passaram a ser objeto de estudos e pesquisas em grande parte fomentadas ou promovidas pelas autoridades oficialmente legitimadas sobre o assunto. (ADIALA, 1986, 2006). Em 1921, as autoridades brasileiras que lidavam com as questões das drogas se alinharam às posições repressoras dos EUA, seu principal aliado comercial e político, aderindo aos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas através da 30


aprovação da Lei Federal nº 4.294, de 6 de julho de 1921, que “estabelecia medidas penais mais rígidas para os vendedores ilegais, fortalecia a polícia sanitária nas suas prerrogativas e reafirmava a restrição do uso legal de substâncias psicoativas para fins terapêuticos” (RODRIGUES, 2004, p. 135). Com essa lei, o país estabeleceu os primeiros passos para a burocratização da repressão

e

do

controle

das

substâncias

proscritas.

Essa

norma

previa

encarceramento para os traficantes, mas interpretava os consumidores como doentes, vítimas das substâncias, prevendo para eles o tratamento compulsório. Apesar dos esforços das autoridades ligadas ao aparelho de repressão estatal, o ordenamento jurídico brasileiro em relação ao tema só voltaria a sofrer alterações significativas na década de 1930, período de promulgação de uma nova Constituição. A partir da década de 1930, a repressão ao uso da maconha, no Brasil, ganhou força e se intensificou, principalmente devido à postura adotada pelo representante brasileiro na reunião da Liga das Nações, em 1924, que, de forma arbitrária e contradizendo importantes estudos científicos realizados no país, incluindo os dele próprio, comparou os perigos da maconha aos do ópio, exigindo equivalência na lista classificatória da Convenção20 (CARLINI, 2004; MILLS, 2005). A equivalência solicitada pelas autoridades brasileiras foi aceita, a após isso houve a inclusão da planta como substância proscrita no país e a promoção de uma campanha para erradicação do seu cultivo e consumo, com a implantação do Decreto 20.930, em 1932, onde os crimes de “vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou, de qualquer modo, proporcionar substâncias entorpecentes, sem a devida autorização” passaram a ser previstas penas de 1 a 5 anos. O mesmo Decreto passou a incluir a maconha na lista de substâncias proscritas, sob a denominação de Cannabis indica, descrevendo o uso como doença passível de internação e notificação compulsórias, inaugurando ainda a prisão para usuários, ao prever penas de até nove meses para “[...] quem for encontrado tendo consigo, em sua casa, ou sob sua guarda” (RODRIGUES, Op. Cit.). Em 1934, foi promulgada uma nova Constituição, em meio a muitas agitações políticas e sociais e, um ano depois, o Poder Executivo decretou a Lei de Segurança Nacional (LSN), através da qual passou a vigorar um Estado de Exceção, com 20

É importante informar que no dia 2 de março de 2008, em Reunião do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, o Brasil aprovou o encaminhamento à Organização das Nações Unidas de um documento no qual se retrata oficialmente pela postura dos seus representantes nas Reuniões Internacionais de 1924 e 1961, e no qual sugere que, em reparação às consequências desse erro a Cannabis seja retirada da Lista IV da Convenção Única de 1961.

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restrições às liberdades individuais e direitos constitucionais. Em 1937, o então presidente Getúlio Vargas fechou o Congresso, prendeu parlamentares e decretou o estabelecimento de uma ditadura que vigoraria até 1945, conhecida como Estado Novo. Um ano após a instauração do Estado Novo, Getúlio Vargas impôs o Decretolei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que punia com penas ainda mais severas o comércio não-autorizado e os usuários, ao prever pena de até quatro anos de prisão para a conduta de “ter consigo [...] sem prescrição do médico ou cirurgião-dentista [...] ou sem observância das prescrições legais ou regulamentares”. Segundo o Cientista Político Thiago Rodrigues: “A condenação moral de fundo religioso, que criou um caldo de pressão política na sociedade da década de 1910, é absorvido pelo Estado; o saber médico, da mesma forma, é capturado pelas instâncias sanitárias estatais, que com essa apropriação passam a determinar quais drogas são permitidas e quais não são, indicando aquelas que poderiam ser receitadas [...] Mesmo modificada, a lei de 1938 lança as bases de um ordenamento repressivo moderno, afinado com as determinações internacionais e fundante do controle ampliado do Estado sobre a sociedade e a conduta individual, tônica da estratégia de controle social condensada nas leis antidrogas a partir de então” (RODRIGUES, Op. Cit.,p. 148-9). O Decreto-lei n. 891 tinha como principais pontos a regulamentação e definição das atribuições da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), criada em 1936 e o estabelecimento de penalidades de encarceramento para condenados por uso ou porte para consumo pessoal. Além de introduzir o entendimento de que o usuário não era mais um doente e sim um criminoso, a lei regulamentou no ordenamento jurídico o papel da CNFE, órgão centralizador de todos as ações anti-drogas. A partir disso, outras instituições estaduais e municipais passaram a ser formadas especificamente para tratar das questões relacionadas ao consumo e comércio das substâncias proscritas, que passaram a ser chamadas genericamente de tóxicas ou entorpecentes. Houve um crescimento do número de delegacias, departamentos de polícias, clínicas e outros órgãos e instituições que passaram a ter como principal atividade designar aos usuários e comerciantes nãoautorizados das drogas tornadas ilícitas um tratamento burocrático-legal21. 21

É interessante notar que, apesar de prever exceções para uso medicinal e científico, as leis antidrogas foram tão parcialmente e erroneamente utilizadas, que esses usos também foram

32


A CNFE surgiu para centralizar todos os esforços anti-drogas em uma só agência Federal, e a Cannabis e seus usuários entraram nesse processo como o elo de caráter nacional que faltava para a unificação das iniciativas de combate às drogas. Como planta psicoativa de uso bastante difundido em todo território nacional, a maconha se transformou no estandarte unificador dessas iniciativas, e em mito explorável para promover e justificar as “medidas enérgicas de profilaxia” recomendadas pelos especialistas. (ADIALA, Op. Cit.; CARDOSO, 1994). Em 1943, uma expedição científica foi destacada para visitar comunidades onde se fazia uso nos estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, principalmente nos povoados às margens do Rio São Francisco. Ao término da expedição um relatório foi encaminhado à CNFE alertando que a planta era cultivada e consumida principalmente entre as “classes baixas”, mas que na Bahia, o uso também ocorria nas “classes altas”. É importante ressaltar o fato de que, a despeito das leis vigentes, o relatório aponta que quase a totalidade dos cultivadores e consumidores visitados desconhecia a proibição da planta, que era vendida livremente por mateiros e herboristas em feiras e mercados sob a denominação de “fumo bravo”. O relatório recomendava a CNFE que promovesse uma intensa campanha mostrando os “malefícios do cultivo e do uso da maconha”, e buscasse maior articulação entre os diversos Estados da Nação com o objetivo de erradicação da planta e de seu uso. (CNFE, 1951). Para isso, a CNFE promoveu a realização do Convênio Interestadual da Maconha, em 1946, reunindo em Salvador representantes das Comissões de Fiscalização de Entorpecentes dos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. Após dezenas de palestras e outras exposições de agrônomos, médicos, autoridades policiais e outros especialistas, os trabalhos foram encerrados com a publicação do Relatório Final, redigido pelo Dr. Pernambuco, e com o lançamento da Campanha Nacional de Repressão ao Uso e Comércio da Maconha. O Relatório estabeleceu as seguintes normas, que deveriam passar a ser seguidas rigidamente em todo o Território Nacional: 1)

Planejamento de ações e padronização de estudos visando a promoção

de uma intensa campanha educativa contra o uso e plantio; paulatinamente exterminados no processo de criminalização da maconha. Atualmente, apesar da Lei 11.343 também prever tais exceções, não há conhecimento de cidadão ou instituição que tenham conseguido autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para sequer cultivar a planta.

33


2)

Organização de cursos práticos para as autoridades policiais e sanitárias

para ampliar os conhecimentos sobre a botânica e os “males” da planta, buscando principalmente facilitar o trabalho de identificação dos “criminosos e viciados”; 3)

Estímulo a classe médica para promover estudos sobre os “males da

maconha” e sobre as características dos usuários; 4)

Promoção da inclusão do tema nos congressos e reuniões de psiquiatria;

5)

Incentivo a cooperação e articulação entre as Comissões de Fiscalização

dos estados onde o uso e plantio seriam mais disseminados – Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas – promovendo o estabelecimento de convênios e a obrigatoriedade do intercâmbio de todo tipo de informações (relatórios, dados estatísticos, fichas criminais, dentre outros); 6)

Criação nos Departamento de Segurança Pública, em nível federal e

estadual, de órgãos especializados na repressão e combate ao uso; 7)

Registro de indivíduos e grupos ligados a cultos afro-brasileiros onde se

fazia uso da planta, a partir de fontes médicas e sociológicas, e encaminhamento dos dados às autoridades responsáveis; 8)

Estabelecimento de gratificações aos membros das Comissões de

Fiscalização de Entorpecentes do país, “em vista dos extraordinários serviços prestados por eles à sociedade”. (CNFE, op. cit.; 237-9). Apesar de toda repressão, a partir da segunda metade da década de 1960 a maconha deixou de ser apenas hábito de negros, pobres e marginalizados (se é que algum dia esteve restrito a eles), para ser cada vez mais consumida nas chamadas classes médias e altas. Os inimigos da saúde pública, da moral e dos bons costumes deixaram de ser habitantes das favelas e das camadas baixas dos estados do Norte e Nordeste, para serem os jovens adeptos da contra-cultura, do movimento hippie, das experimentações psicodélicas e de outras manifestações culturais alternativas, oriundos das camadas médias e altas urbanas. Em 1964 foi publicado o Decreto-lei nº 54.216, incorporando ao ordenamento interno do país os acordos firmados na Convenção Única sobre Entorpecentes, realizada em Nova York (1961). Em 1968, um novo Decreto passou a estabelecer equivalência penal entre condenados por tráfico e por uso. Mais uma vez as leis de controle sobre hábitos culturais voltaram a ser utilizadas para controlar populações específicas. Para manter sob constante vigilância grupos considerados como potencialmente ameaçadores as ordem social, cultural, política mantida à força, as 34


leis sobre drogas foram uma oportunidade de ampliar os controles sobre a sociedade. Mas as principais mudanças foram inseridas com a Lei 6368, de 1976, conhecida como Lei de Tóxico, que passou a reunir todos os ordenamentos jurídicos relacionados com tema em apenas um documento. Os poderes de repressão do Estado em relação ao uso da maconha e outras drogas ganharam novas dimensões e, na prática, passaram a marginalizar ainda mais os consumidores, submetendo-os a violência e arbitrariedades maiores que antes. Um exemplo de uma das principais distorções dessa legislação é a tipificação do crime de “apologia ao uso de drogas”, que também tornaria possível a condenação de qualquer um que falasse dos aspectos positivos de uma substância ou da sua legalização, mesmo que não estivesse vendendo ou consumindo, como foi o caso dos integrantes do grupo musical Planet Hemp, que ficaram presos por 5 dias, em 1997, acusados de infração à Lei 6368/76 (MUNDIM, 2006, p.151-174).

6.A Maconha no Brasil Atual “Chega de subsidiar o tráfico de drogas punindo brasileiros que querem apenas se libertar desses mesmos traficantes!” (Beque)

Apesar de proibida no Brasil desde 1932, a maconha é uma das plantas mais antigas cultivadas pelos seres humanos e, atualmente, é a droga ilícita mais consumida em todo o mundo. Há, pelo menos, 12.000 anos, pessoas de diferentes países e tradições culturais de todo o planeta fazem uso tanto das partes psicoativas quanto das partes não-psicoativas da planta (ABEL, 1980). Seja por suas potencialidades medicinais, nutricionais, pelas utilidades de suas fibras têxteis, de seu óleo combustível, ou ainda por suas propriedades psicoativas, consumir derivados de Cannabis sempre foi algo natural às sociedades humanas. No entanto, como vimos, desde o início do séc. XX e, principalmente, a partir da década de 1960, o hábito de fumar a planta vem se intensificando em diversos países, tornando-se um fenômeno de massa bastante integrado à sociedade capitalista de consumo.

Ao

mesmo no tempo, a partir da década de 1970, se ampliaram os esforços repressivos em todo o mundo e, no Brasil, isso se traduziu em operações de erradicação de cultivos no norte e nordeste do país e aumento da repressão em centros urbanos. Por

outro,

lado

também

houve

o

surgimento

dos

movimentos 35


antiproibicionistas e as lutas por mudanças nas leis. Os primeiros movimentos antiproicionistas podem ser datados do final da década de 1960 e inicio dos anos 1970. Em 1967, foi lançado na capa do New York Times o primeiro manifesto internacional pela legalização da maconha, assinado por diversos artistas, entre os quais os Beatles. Na década de 1970, surgiram organizações pela legalização da planta e a primeira revista de cultura canábica, a High Times22, nos EUA, que desde 1974 publica mensalmente matérias sobre a cultura da planta, técnicas de cultivo, ativismo pró-legalização, dando um exemplo da extensa rede antiproibicionista que já estava em crescimento nesse período. No Brasil, os primeiros movimentos pela revisão das leis anti-drogas também centravam o discurso no pedido de legalização da Cannabis sativa. Em 1976, estudantes da USP organizaram um encontro para debater o tema que reuniu cerca de 400 pessoas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. A partir dali, diversas outras iniciativas do gênero passaram a ocorrer com maior frequência. Outra forma de organização do movimento antiproibicionista brasileiro passou a ser a publicação de revistas e jornais sobre o tema. Nessa época, circulavam no Rio de Janeiro, por exemplo, publicações como o Ato Vapor, Panflema, o Jornal da Massa e o Patuá, esse último editado por estudantes de Ciências Sociais da UFRJ. Em 1982, na PUC, foi organizado um evento que reuniu cerca de 200 pessoas e resultou no que pode ser considerado o 1º Manifesto Brasileiro pela Legalização da Cannabis. O documento pedia a descriminalização total da Cannabis, do seu uso, posse e cultivo para consumo próprio. Assinavam o documento diversas personalidades, entre as quais músicos como Jorge Mautner e Hermeto Paschoal e parlamentares como Fernando Gabeira, José Genoíno e Lúcia Arruda. Em 1983, alguns estudantes e jovens intelectuais que formavam o denominado Coletivo Maria Sabina, em homenagem à curandeira mexicana que utilizava cogumelos psicodélicos em seus rituais de cura, organizaram um debate de 5 dias no qual filósofos, advogados, antropólogos, juízes, escritores, deputados e outros debatedores de diferentes áreas discutiram variados aspectos do tema. As perspectivas giravam em torno do respeito aos direitos individuais, à pluralidade cultural e não deixaram de abordar as consequências negativas das políticas proibicionistas. O debate foi transcrito e em 1985, a editora Brasiliense publicou o livro Maconha em Debate, com o texto das exposições no evento, dando maior 22

Atualmente, além dos EUA e diversos países da Europa, existem publicações desse tipo na Argentina, Chile e Peru.

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divulgação aos conteúdos debatidos. A década de 1980 foi marcada por muita discussão na Academia e na chamada “imprensa nanica” a respeito do tema. O pesquisador Pedro Mundim, em sua análise sobre o discurso produzido pelo grupo musical Planet Hemp, realizou uma detalhada historiografia a respeito do debate público sobre o tema nas décadas de 1970 a 1990. Segundo ele, além dos espaços nas universidades e em algumas publicações impressas, o debate também ganhou os espaços políticos ao ser usado por diversos candidatos em diferentes momentos a partir da década de 1980. Isso tudo revela que, desde o momento da abertura política em 1978, a demanda oprimida por discutir a questão passou a ser atendida de diferentes maneiras (MUNDIM, 2006). O debate antiproibicionista no Brasil parece ter ficado um pouco apagado na década de 1990. Apesar de existirem alguns trabalhos a respeito de décadas anteriores, nenhum dos autores estudados ao longo da pesquisa discutem maiores informações a respeito desse período, no máximo chamando atenção para o papel desempenhado pelo Deputado Fernando Gabeira e a atuação da banda Planet Hemp. Mesmo Mundim, que analisa detalhadamente a história do grupo e o contexto sóciopolítico da época com relação ao tema, atém sua análise do período à atuação do grupo, algumas pesquisas de opinião sobre o tema e suas repercussões na imprensa e na sociedade. Isso não significa que os trabalhos estejam falhando em suas análises, mas que talvez a década de 1990 realmente tenha apresentado um vácuo importante e preocupante, nas discussões sobre legalização. Alguns pesquisadores com quem tenho dialogado admitem a possibilidade de que o estabelecimento de espaços de tolerância ao consumo em certos ambientes e circunstâncias dentro da sociedade brasileira tenha feito com que o consumo tenha se normalizado, sem ser legalizado, em alguns espaços específicos. Ou seja, ainda que ilícito, o consumo de maconha, como outras práticas sociais ilícitas a exemplo do “jogo do bixo”, a pirataria de Cd's e DVD's, etc, passou a ser mais socialmente aceito. Não que o preconceito e a estigmatização das pessoas que fumam maconha tenha diminuído, ou mesmo que tenha diminuído a quantidade de presos por consumo ou porte da planta, mas passou a ser mais aceita a existência de rodas de fumo em festas, e outros ambientes. Assim, as pessoas que fumam maconha puderam seguir com seus hábitos sem sentirem a necessidade de se engajar na luta pela legalização. Essa tese ajuda entender um pouco, mas não explica completamente o fato do movimento antiproibicionista ter diminuído suas atividades nesse período. Até 37


porque, apesar disso, o discurso pró-legalização retomou forças a partir da segunda metade dos anos 90, através das músicas de grupos como o Planet Hemp e outros . Nos anos 2000, o debate ganhou força novamente com algumas iniciativas. Em 2002 surgiu o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), primeiro grupo de cientistas brasileiros antiproibicionistas (www.neip.info). E, no mesmo ano surgiu o Growroom, um centro de convivência e redução de danos para usuários de Cannabis na Internet. A partir do Growroom muitos usuários puderam se conhecer e começar a ser articular para organizar passeatas e outras formas de manifestação e ativismo. Um dos exemplos foram as Passeatas Verde, realizadas de 2003 a 2006, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades. Além disso, muitos dos organizadores das Marchas da Maconha, que ocorrem todos os anos desde 2004, em diversas cidades do país, também se conheceram e começaram suas atividades de militância através do Growroom. Atualmente existem dezenas de sites e blogs a respeito do tema, abordando-o a partir das mais variadas perspectivas, num claro exemplo do avanço da democratização da produção e difusão de informações sobre o assunto, num contexto em que cresce o uso da planta. Em 2006, o Relatório Mundial da Agência das Nações Unidas para o Combate às Drogas e à Criminalidade – UNODC, baseado nos dados enviados pelas autoridades policiais brasileiras, apontou o país como o principal consumidor de maconha da América do Sul (UNODC, 2006). Segundo o Relatório, a produção brasileira de maconha se concentraria nas regiões Norte e Nordeste do país, em áreas onde os períodos de sol possibilitam um maior número de colheitas por ano, e onde tradicionalmente se cultiva a planta desde o início da colonização. O valor final da produção é de U$ 30,00 o quilo, custando até U$ 220,00 nas zonas urbanas, chegando ao consumidor final por um preço de até U$ 2.000 o quilo, ou U$ 2,00 a grama (UNODC, 2006, p.167-168). O Relatório apontou ainda que as autoridades do Paraguai relataram que 85% da produção do país foi destinada ao mercado brasileiro, 12% ao mercado do Cone Sul e apenas 3% ao mercado paraguaio. Além disso, a forte demanda brasileira fez com que os cultivadores paraguaios contratassem agrônomos para lhes ensinar técnicas de cultivo, colheita e preparo, e a utilizar variedades melhores adaptadas ao clima do país, ganhando em rendimento e potência. Com isso, os cultivadores do Paraguai têm conseguido uma produção maior e até desenvolveram uma técnica de confecção de haxixe de qualidade apreciada em toda na América Latina, 38


principalmente no Brasil. O relatório ainda chama atenção para o fato de que o país produz apenas 20% do que consome, importando o restante de países vizinhos, principalmente do Paraguai. (UNODC, Op. Cit.). Já as estatísticas do II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, afirmam que cerca de 2,6% de brasileiros entre 12 e 65 anos fumaram maconha no ano 2005 (CARLINI et al., 2005, p. 23). Esse mesmo trabalho apontou que cerca de 8,8% das pessoas entrevistadas havia fumado maconha pelo menos 1 vez em toda a vida, um crescimento em relação aos 6,9% encontrados em 2001 (CARLINI et al, 2001). Nesse mesmo ano, segundo Relatório do Departamento Penitenciário Nacional, existiam 296.919 mil detentos em presídios, dividindo as apenas 206.347 vagas existentes (DEPEN, 2006, p. 34). À época estavam em vigor, as Leis nº 6.368, de 1976 e 10.409, de 11 de janeiro de 2002, essa última não substituindo completamente a anterior por ter tido grande parte de seu conteúdo vetado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Ainda que a forma de coleta dessas informações torne questionável o alcance dos seus dados a respeito dos detalhes sobre os padrões e frequências de consumo para substâncias ilícitas23, eles são importantes fontes de informações sobre a atual magnitude do uso de maconha no Brasil. Além disso, em relação ao uso de maconha e outras drogas atualmente consideradas ilícitas, eles nos ajudam a pensar qual seria o impacto no Sistema Penitenciário, caso todas as quase seis milhões de pessoas estimadas que, em 2005, afirmaram já ter fumado maconha ao menos uma vez na vida, por exemplo, tivessem sido responsabilizadas penalmente pelo crime de portar maconha (à época sob pena de 6 meses a 2 anos), e tivessem que cumprir pena no Sistema Penitenciário, já sobrecarregado. Esses dados nos ajudam a refletir um pouco sobre o atual cenário do uso de maconha no Brasil e a relevância de discutir esse tema e de propor que as políticas e leis relacionadas sejam mais justas, humanas e eficientes. Além disso, ajudam-nos a avaliar se os objetivos propostos pela atual política proibicionista realmente têm sido alcançados, ajudando a medir a eficácia das leis e políticas públicas que priorizam a repressão às condutas de porte e cultivo sem intenção de comercializar. Mesmo que, em suas origens, essas leis e políticas tivessem a intenção de proteger a saúde e a ordem públicas, atualmente, essas estratégias têm conseguido 23

Os conceitos conhecidos como dependência e, uso indevido, abuso, uso crônico são utilizados de forma pouco homogênea e, muitas vezes, bastante ambígua, pelos autores que tratam do tema. Para uma discussão crítica sobre o conceito de dependência utilizado nos levantamentos epidemiológicos sobre o uso de drogas, ver FIORE (2006); MACRAE; VIDAL (2007).

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apenas agravar os fatores causadores de danos e custos sociais associados ao mercado consumidor dos derivados da planta, obtendo pouco ou nenhum sucesso na diminuição das práticas de produção e distribuição não-autorizadas. A proibição não diminuiu os problemas relacionados com o uso indevido de maconha e outras drogas, nem diminuiu o consumo. Como vimos mais acima, há um crescente movimento de utilização da maconha dentro do contexto urbano, inserido e bastante integrado à sociedade capitalista de consumo. Nesse novo contexto, saberes e significados sobre a planta, sua história, seus usos, têm sido resgatados, reformulados e re-apropriados, formando o que alguns autores têm chamado de tradição ultramoderna cannábica24. Nesse movimento de re-apropriação de saberes e significados sobre a planta e seus usos, está incluída a retomada da prática do cultivo não-comercial da planta para subsistência, formando um movimento social que prega o cultivo doméstico como uma das alternativas ao mercado criminalizado da planta – seja para não financiar a violência, seja para melhorar a qualidade do que é consumido ou para qualquer outro objetivo. Isso tem exigido dos estudiosos novos olhares sobre a prática do consumo de maconha e suas representações, sobre o conceito de Redução de Danos25 e sobre a elaboração de leis e políticas que busquem dar conta dessas e de outras novas modalidades de consumo. O nascimento de uma cultura centrada na prática do cultivo de Cannabis sem fins lucrativos exigiu a emergência de leituras mais amplas sobre diversos conceitos, principalmente sobre o de usuário de drogas, que deixou de ser apenas aquele que consome, porta ou armazena, mas também aquele que cultiva ou prepara o que consome. Agora, cada vez mais se torna obrigatória a inclusão dessa nova figura nas discussões sobre o uso de maconha, especialmente as que visem a elaboração de leis e políticas públicas: as pessoas que plantam a maconha que fumam.

7.O Status Legal do Cultivo Não-Comercial26 de Maconha 24

Para conhecer a discussão sobre a tradição ultramoderna da Cannabis, ver GAMELLA et al, 2004, p. 23-54. 25 A redução de danos é um paradigma redescoberto a partir dos anos 1980, quando os saberes oriundos da cultura do uso de drogas passaram a ser levado em consideração na elaboração das estratégicas de intervenção. Atualmente diversos autores discutem aspectos históricos e conceituais da redução de danos e esse paradigma já faz parte das políticas e leis sobre drogas no Brasil, faltando-lhe apenas maior regulamentação e aplicação. 26 O termo não-comercial foi escolhido em detrimento do termo para uso pessoal, que é o termo utilizado na Lei 11343 para definir as condutas relacionadas com o uso. Isso porque na experiência de

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“O problema não é o comércio, é a proibição. Pô, com a proibição, os bandidos se aproveitam do negócio pra tirar uma grana. Não seria muito melhor dar uma grana pra o tiozinho que já planta tomate, cebola, completar a renda pra pagar os estudos das crianças do que por dinheiro na mão de vagabundo?” (Macanudo)

Apesar do foco das regulamentações propostas através das Convenções Internacionais terem sido desde o princípio a repressão de condutas destinadas à comercialização não-autorizada, as Leis brasileiras pós-Convenções reproduziram os equívocos históricos das Leis e Decretos anteriores, que tendiam a centralizar os esforços da repressão nas condutas relacionadas com o consumo pessoal. Além disso, as autoridades brasileiras também optaram pela interpretação mais repressora das Convenções, negando qualquer nível de regulamentação, mesmo que para fins médicos ou científicos, em flagrante oposição às Convenções. Segundo a interpretação oficial do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC)27, as Convenções das Nações Unidas Sobre Controle de Drogas, de 1961 a 1988, têm como principal objetivo regular o uso medicinal e científico de drogas28 e restringir o comércio não-autorizado, principalmente de nível internacional. A Convenção de 1961, por exemplo, afirma que os países signatários não são obrigados a extinguir a produção autorizada das substâncias listadas na Convenção, incluindo a Cannabis, apenas indicando a proibição como uma das possibilidades a serem levadas em consideração na elaboração de medidas que restrinjam o comércio não-autorizado. Ainda segundo a UNODC, mesmo se, após estudos e análises do contexto sócio-cultural da sociedade em questão, um dos países signatários decidir que a proibição da produção, distribuição e consumo é mesmo a melhor estratégia para reprimir o comércio ilegal, os usos médicos e científicos não campo percebi que todos os usuários compartilham o uso do fumo produzido a partir de cultivos domésticos com amigos e conhecidos. Dessa forma, optamos por utilizar no título o termo nãocomercial, entendendo como usuário mesmo aquele que produz e distribuí pequena quantidade sem que tenha obtido lucro com tal atividade, ou seja, sem interesse de mercância. Durante o texto também são usados os termos uso pessoal, uso próprio, dentre outros, mas com esse mesmo significado. 27 Os dados apresentados a respeito do status da Cannabis sativa nas Convenções sobre Drogas da ONU (1961, 1971, 1988), são baseadas na fala de Valerie Labaux, Ph.D. em leis na área judicial, formada pela Universidade Paris II em Direito, à época representante do escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC), durante o “Simpósio Cannabis sativa L. e substâncias Canabinóides em Medicina” (CARLINI et al, 2004). 28 É importante destacar que o cultivo de Cannabis para exploração comercial das partes nãopsicoativas da planta não é controlado pelas Convenções sobre Drogas das Nações Unidas, que se referem apenas às finalidades medicinais e científicas das partes psicoativas. Países como Holanda, Canadá e Alemanha, atualmente, empreendem cultivos controlados pelo governo para abastecimento do mercado médico-farmacêutico e, além desses, diversos outros países como França, Hungria, Itália, Romênia, EUA, dentre outros, têm explorado de diferentes formas o mercado voltado ao uso industrial das fibras da planta.

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devem ser obstruídos por tal medida (LEBAUX, 2004, p. 109-10). A Convenção Única de 1961 não menciona nada sobre condutas relacionadas ao consumo pessoal e, nesse caso, a interpretação oficial é de que todas as recomendações dessa Convenção, visando o estabelecimento de regulamentações e punições para as condutas de porte e plantio, se referem apenas às que têm intenção de gerar comércio não-autorizado (LEBAUX, Op. Cit., p. 111). Somente na Convenção de 1988, as condutas de porte, aquisição e plantio para consumo pessoal são mencionadas, sugerindo-se, mais uma vez, que cada país signatário deva tratá-las respeitando os princípios constitucionais e os conceitos básicos de cada sistema jurídico-legal, e, é claro, suas especificidades sócio-culturais. Ainda segundo a Convenção de 1988, os países signatários, ao estabelecerem tais condutas como proibidas, não são obrigados a processar ou punir as pessoas que usam maconha através do sistema de justiça criminal (LEBAUX, Op. Cit.,2004, p. 112-3). Assim, apesar das Convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) darem aos países signatários uma grande margem de atuação para a criação de leis e políticas sobre drogas, adaptadas às suas próprias realidades, diversos países têm dado prioridade àquelas que concentram seus objetivos na repressão às condutas de porte, aquisição e plantio destinadas a consumo próprio. É a própria UNODC quem denuncia os abusos cometidos em nome de uma suposta obediência às Convenções. Entre os itens que chama de “discrepâncias na implementação das Convenções da ONU”, Lebaux cita as nações onde a prioridade são os processos judiciais contra condutas relacionadas com o consumo pessoal. Segundo ela, esses casos são preferidos por serem de fácil execução já que, em geral, os réus dispõem de poucos recursos para a defesa, aumentando de forma equivocada as estatísticas sobre combate ao crime de drogas. No entanto, ela alerta para o fato de que, nos países que adotam essa postura, há um desvio de recursos que poderiam estar sendo empreendidos contra grandes organizações que realmente estejam ameaçando a ordem social e uma superlotação desnecessária do sistema judicial. (LEBAUX, Op. Cit., p. 104). Segundo Maria Lúcia Karam, importante jurista que, nos últimos anos, tem denunciado incansavelmente os danos causados pela adoção desse tipo de política, “Além de ocultar os riscos e danos à saúde pública, o proibicionismo oculta ainda o fato de que ,com a intervenção do sistema penal sobre as condutas de produtores e 42


distribuidores das substâncias e matérias primas proibidas, o Estado cria e fomenta a violência. Não são as drogas que criam a violência. A violência só acompanha as atividades econômicas de produção e distribuição das drogas classificadas de ilícitas porque o mercado é ilegal” (KARAM, 2008). Fica claro que, apesar das Convenções Internacionais sobre Drogas da ONU não focarem a atenção sobre as condutas relacionadas ao uso pessoal e até mesmo serem flexíveis quanto à possibilidade de adaptação para as realidades dos países signatários, o Brasil optou por uma das interpretações mais duras das Convenções. Isso ajuda a entender porque, durante o séc. XX, as políticas de drogas no Brasil buscaram se amparar numa “ideologia do combate à maconha que serviu para orientar o sistema punitivo disciplinar para as áreas ocupadas pela população negra e mestiça” (CARDOSO, 1994, p. 81). Usadas para reforçar os mecanismos institucionais de punição e controle sobre essas populações, seus hábitos e costumes tradicionais, essas leis e políticas foram implantadas durante períodos marcados pelo autoritarismo estatal e pela restrição de direitos e liberdades adquiridos, ignorando ou se opondo aos saberes científicos sobre o tema, sem maiores debates ou diálogo com os setores interessados da sociedade civil. Em outubro de 2006, entrou em vigor a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, trazendo algumas alterações significativas, dentre as quais, o fato de que as condutas de posse, porte e plantio destinados ao consumo pessoal foram equiparadas. Apesar da Lei 11.343 abrir novos caminhos para a atuação de policiais, juízes e outros operadores do Direito, conforme citado anteriormente, ela reproduz a maioria dos erros históricos das Leis e Decretos anteriores. Além disso, não teve sua implantação efetivamente realizada, já que lhe faltam reformas e regulamentação em diversos pontos, e a maioria dos policiais e operadores do direito aplicam interpretações proibicionistas para essa Lei, o que faz com que continue violando boa parte dos princípios fundamentais da Constituição Brasileira. Dessa forma, a Lei ainda [...] impede um controle de qualidade das substâncias entregues ao consumo, impõem obstáculos ao uso medicinal, dificulta a informação e a assistência, cria a necessidade de aproveitamento de circunstâncias que permitam um consumo 43


que não seja descoberto, incentivando o consumo descuidado ou anti-higiênico[...]. (KARAM, Op. Cit., p.118). Antes da Lei 11.343, não havia o tipo penal do usuário que planta para consumo pessoal. Os verbos “semear, cultivar, preparar, colher”, dentre outros relacionados com a produção de maconha, eram exclusivos do artigo que tipificava a conduta de comércio não-autorizado. Esse fato fazia com que boa parte dos casos nos quais usuários cultivavam pés de maconha para uso pessoal fossem sentenciados como tráfico. Durante a vigência da Lei 6.368/76, as condutas de “semear, cultivar ou fazer a colheita” estavam descritas apenas no artigo 12, que tratava do comércio nãoautorizado da planta. Nesse contexto, inexistia no artigo 16, que tratava da “posse, armazenamento, transporte”, condutas relacionados com o uso, descrições que previssem a figura do usuário que planta para consumo pessoal. Os juristas Junqueira e Fuller29, afirmam que nesse período existiam três tipos de interpretações dadas pelos magistrados, formando correntes diferenciadas de posicionamentos sobre o tema. A primeira, dava à essa conduta a interpretação através do artigo 16, sentenciando-os a penas por uso. A segunda, seguia de forma quase ortodoxa as definições do texto legal, dando à conduta de cultivo para consumo próprio sentenças baseadas numa interpretação fundamentalista do artigo 12, devido ao fato de ser o único que contemplava os verbos necessários para descrever a conduta, justificando que, nesses casos, havia exclusivamente o delito de tráfico, independentemente das intenções do agente. Uma terceira corrente, que se restringia a pouquíssimas decisões, defendia que tratava-se de conduta atípica, e que por isso não poderia ser qualificada penalmente30. A Lei 11.343, portanto, trouxe algum avanço ao dar aos magistrados uma possibilidade maior de atuação no sentido de sentenciar mais corretamente o cidadão que cultiva maconha para seu próprio consumo. Porém, como já afirmei, não houve uma iniciativa no sentido de capacitar os magistrados e outros operadores do direito para lidarem com a figura do cultivador não-comercial. Isso se reflete no fato de que apenas uma pequena parte dos magistrados, na prática, entendiam a conduta como atípica e boa parte deles ainda reservava à essa conduta a sentença de tráfico. Há 29

30

Ver: FULLER, P. H.; JUNQUEIRA, G. D. Legislação penal especial. 3. Ed. São Paulo: Premier, 2006. v. 1, p. 181. Ver: ARRUDA, S. M. Drogas: Aspectos penais e processuais penais (Lei 11.343/2006). São Paulo: Método, 2007. p. 27-28.

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ainda o fato de que a Lei prevê a emissão de autorização para plantio que sejam destinados apenas a uso científico ou medicinal, criminalizando cidadãos que fazem uso recreativo da planta e cultivam sua própria maconha, mesmo que sejam adultos, sem antecedentes criminais e sem históricos de problemas de saúde física ou mental. No entanto, na prática, nem mesmo para uso medicinal tem sido emitida autorizações para cultivo legal e muitos usuários têm se submetido ao conflito com a lei para ter acesso ao seu medicamento. Um caso que merece destaque é o de Alexandre, portador de um tumor maligno, que utiliza Cannabis para tratar os sintomas das terapias de combate ao tumor. Alexandre foi autuado por cultivo nãoautorizado e atualmente conta com ajuda de membros do Growroom para realizar sua defesa jurídico no caso. O caso de Alexandre tem causado grande comoção entre os membros do Growroom, desde o dia 13/12/2009, quando a polícia invadiu seu sítio e apreendeu 22 espécimes de Cannabis. Alexandre ficou foragido cerca de 1 semana antes de comparecer com um advogado para prestar depoimento e explicar sua situação. Outro caso interessante que ajuda a analisar a real eficácia das mudanças na Lei é o caso de Fábio, usuário que cultivava para consumo pessoal no Rio de Janeiro e foi preso acusado de tráfico. Sua imagem foi divulgada de forma deturpada por quase toda a imprensa, até que eu e outros ativistas como o sociólogo Renato Cinco e o advogado Gerardo Santiago, ambos do Rio de Janeiro, nos envolvêssemos no caso e lutássemos para reverter a acusação de tráfico inicialmente proposta pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, para a de usuário. É relevante ressaltar que, nesse caso, devido à hiper exposição na mídia, foi possível que pessoas envolvidas com movimentos prólegalização tomassem conhecimento e buscassem ajudar, mas muitos outros casos como o de Fábio devem passar anônimos cotidianamente. Casos, sobretudo, de garotos pobres, moradores de bairros populares, afro descendentes sem acesso à ajuda financeira, jurídica, ou de qualquer ordem, flagrados com alguns pés de maconha e acusados de tráfico por isso. Os exemplos de Alexandre e Fábio me levam a crer que, ainda que faltem dados oficiais substanciais sobre a real aplicabilidade da Lei 11.343, ao menos na questão de considerar quem cultiva como usuário, ela ainda está longe de ser aplicada como

está

escrita.

Esses

e

muitos

outros

casos

semelhantes

aparecem

constantemente no fórum do Growroom e as repercussões de cada um podem ser acompanhadas diariamente. 45


Desde março de 2009 está em curso um processo de construção de reformas e regulamentações visando melhorias na aplicação da Lei 11.343. O marco inicial desse processo foi o pronunciamento do General Félix, Secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, na Sessão Especial das Nações Unidas sobre as Drogas – UNGASS – , realizada em Viena. Esse pronunciamento foi construído de forma democrática no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas - CONAD, órgão normativo máximo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD, com estrutura de representação paritária. O posicionamento brasileiro se deu no sentido de afirmar que a meta de um mundo sem drogas é inatingível e que, mais do que simplesmente reprimir ou combater a oferta e a demanda, é necessário admitir novas posturas sobre o tema para poder lidar melhor com as consequências do uso indevido de drogas. Segundo ele, Em dezembro de 2006, o Brasil deu mais um importante passo na modernização legislativa e na garantia dos direitos humanos, ao estabelecer que conduta que não envolva prática de mercancia não pode ser considerada como tráfico ilícito de drogas. Com essa medida, permite-se tratamento diferenciado entre pequenos e grandes traficantes de drogas. Nesse sentido, a nova Lei de drogas brasileira já, em 2006, aboliu definitivamente a pena privativa de liberdade para o cidadão usuário de drogas[...] Temos clareza de que as metas de um “mundo sem drogas” se mostraram inatingíveis, com visível agravamento das “consequências não desejadas”, tais como aumento da população carcerária por delitos de drogas, aumento da violência associada ao mercado ilegal das drogas, aumento da mortalidade por homicídio e violência entre jovens - com reflexo dramático nos indicadores de mortalidade e de expectativa de vida da população. (Gen. Félix, SENAD, 2009) A UNGASS foi um exemplo de como está em curso no mundo um verdadeiro movimento de mudança na postura política com relação às drogas, engendrado por países atualmente insatisfeitos com o resultado do proibicionismo31. Pela primeira vez na história dessa Reunião não houve consenso entre os países e diversos temas, como 31

Proibicionismo é um termo utilizado frequentemente para designar as posturas oficias, políticas e leis, incluindo aí a forma como são colocadas em prática, que têm a proibição às drogas como a principal meta a ser atingida, independentemente dos custos econômicos, sociais, políticos, dentre outros, em jogo. O conceito de proibicionismo é utilizado de forma variada pelos pesquisadores da área e pelos ativistas ligados a movimentos sociais. Nesse trabalho consideramos proibicionismo a utilização de regras, leis e políticas de proibição de condutas que causem mais danos e riscos do que as condutas que pretendem proibir.

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a inclusão da redução de danos como um dos pilares da política de drogas mundial, ficaram em aberto, sem definições consensuais. Em agosto de 2009, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD – convidou uma parte dos membros do CONAD e especialistas na área, parar formar um Grupo de Trabalho e sugerir reformas e regulamentações à Lei 11.343. Em paralelo, a Ong Viva Rio, com o apoio do Deputado Federal Paulo Teixeira (PT-SP), lançou a Comissão Brasileira Drogas e Democracia, formada por 50 membros de diversos setores da sociedade civil. Esses dois espaços têm como objetivo articular um Projeto de Lei a ser proposto ao Congresso nacional, solicitando a regulamentação do cultivo de maconha para consumo próprio e a descriminalização do porte de outras drogas para uso pessoal. Desde dezembro de 2008, sou representante da União Nacional dos Estudantes – UNE – no CONAD e, por isso, também represento a UNE no GT da Lei 11.343, a partir das discussões que estão sendo realizadas, considero que o objetivo não é apenas fazer pequenas reformas na Lei, mas alterá-la de forma que realmente seja possível minimizar as consequências negativas que o mercado ilícito tem gerado. Tanto no CONAD, quanto no GT, a maioria dos pontos de vista são de que os principais danos causados pela proibição da maconha são a exposição do usuário aos pontos de tráfico de drogas, a criminalização e a discriminação e estigmatização a que estão sujeitos, e, é claro, as consequências do atual comércio não-autorizado e do proibicionismo para toda a sociedade. A proposta discutida nesses espaços e que embasa o Projeto de Lei do Deputado Paulo Teixeira é a regulamentação do cultivo de maconha para consumo próprio e a descriminalização do porte de pequenas quantidades de outras drogas. Nesse sentido, é mais do que essencial se discutir a regulamentação do cultivo para consumo próprio com base na realidade brasileira a respeito do tema, com vistas colocá-la em prática com um mínimo de conhecimento necessário à elaboração de qualquer política pública. Dessa forma, a pesquisa apresentada aqui procura ajudar a plantar as primeiras sementes sobre um solo tão fértil para o florescimento de discussões e políticas públicas interessantes e necessárias, mas que até então tem sido pouquíssimo explorado.

8.O Ressurgimento32 da Cultura do Cultivo de Maconha 32

Ao usar o termo ressurgimento ao invés de surgimento, estou fazendo uma referência ao fato de que existiam, no período anterior à proibição, diversos culturas relacionadas com o cultivo não-

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“Cannabis é uma planta. Seu uso já é conhecido há milhares de anos. Todos os seres vivos têm uma função no grande bioma que é a Terra. Não existe esse poder especial que vocês acham que têm de dizer o que pode crescer no solo de sua nação ou não”. (Txapuan)

Em 1972, o governo do presidente estadunidenses Richard Nixon criou a Drug Enforcemente Agency – DEA, com poderes para atuar realizando revistas, escutas e visitas a domicílios sem necessidade de mandado e centralizando em nível federal todos os órgãos e agências relacionadas às drogas ilícitas. Esse pode ser considerado o início oficial da War on Drugs, que inaugurou um novo patamar nos investimentos para reprimir a produção, distribuição e consumo de maconha e outras drogas. Em 1975, a Agência lançou uma série de atuações buscando a supressão do fornecimento de maconha com origens em plantações mexicanas. Entre elas, numa parceria entre os governos dos EUA e do México, a DEA iniciou pulverizações de plantações mexicanas de Cannabis sativa com o herbicida Paraquat33®. Em 1979, após quatro anos de pulverizações, o Secretário de Saúde dos EUA publicou alertas, em diverso meios de comunicação, afirmando que fumar a marijuana fumigada com o herbicida poderia causar danos permanentes, câncer e levar à morte. No mesmo ano, o DEA iniciou o Domestic Cannabis Eradication and Suppression Program, intensificando as operações de erradicação de cultivos da planta dentro dos EUA, antes centralizados apenas no Havaí e Califórnia, ampliandoas para mais de cinqüenta estados da União. (DEA, 2007) As operações de fumigação em cooperação bilateral só pararam em 1981, depois que o governo dos EUA pulverizou plantações no estado da Geórgia, e recebeu diversas pressões internas e externas. As pressões da empresa distribuidora do Paraquat® nos EUA, a Chevron Chemical Co., que chegou a declarar publicamente que “a etiqueta do produto exibe a palavra ‘veneno, com uma caveira e ossos cruzados como insígnia, mas aterrorizar populações para forçá-las a mudar comportamentos sociais não está entre os usos registrados do produto’”, além do

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comercial e comercial da planta. Essa história só poderá ser escrita com um ampla pesquisa que inclua a contribuição dos processos ocorridos nos países europeus também. Para atender às restrições desse trabalho nos limitaremos à descrever apenas a realidade estadunidense e brasileira. A opção pelos EUA se deve ao fato da sua reconhecida importância para a história do proibicionismo. O Paraquat é um dos nomes comerciais do conhecido “Agente Laranja”, substância utilizada pelo Exército dos EUA durante a Guerra do Vietnã para exterminar as florestas vietnamitas esperando, com isso, facilitar a identificação das bases consideradas inimigas.

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fato da Agência de Proteção Ambiental nos EUA ter proibido o comércio do produto em solo estadunidense, são exemplos do que determinou o fim dessas operações com o herbicida. (JELSMA, 2001). No entanto, ainda que os EUA tenham cortado as operações bilaterais com o México usando o Paraquat®, continuaram estimulando testes em território mexicano, colombianos, bolivianos e outros. Além disso, diversos testes com alternativas como o Roundup® foram realizadas e os EUA abertamente facilitaram a manutenção de operações locais de fumigação de plantações de Cannabis, papoula34 e coca35, em diversos países aliados. De fato, os EUA obtiveram muito êxito na exportação de tecnologias antidrogas, já que México e Colômbia prosseguiram fumigando suas plantações e em 2001 o governo mexicano registrava a destruição anual de mais de 85% dos 50.000 hectares estimados de plantações de Cannabis no país, embora o próprio governo admitisse que essas fossem replantadas quase imediatamente e que existiam centenas de vítimas com problemas de saúde devido à contaminação pelos herbicidas usados nas operações. (JELSMA, op. cit.). Dessa maneira, o DEA procurava reprimir radicalmente a oferta de Cannabis no mercado consumidor dos EUA. No entanto, as evidências apontam para que a crescente demanda por derivados da planta, e o intenso combate ao seu cultivo empreendido pelos EUA nesse período, atuaram conjuntamente para que ocorresse o crescimento do que a juíza Maria Lúcia Karam chama de “demanda artificial”, incentivando que novos atores se interessassem pelo negócio. (KARAM, 2003, p.4647). Nesse sentido, a elevação dos preços dos derivados de Cannabis se deu pela supressão sistemática do fornecimento do produto, o que criaria no mercado uma variável introduzida por fatores externos aos envolvidos diretamente na dinâmica de mercado, fazendo com que houvesse uma elevação dos preços, sem uma justificada base real. Plantar e colher Cannabis, ou mesmo separar as inflorescências femininas não é uma tarefa custosa, que envolva muitos gastos para o produtor, mesmo em cultivos de larga escala. No entanto, sob regimes proibicionistas, outros fatores, que não apenas os que envolvem o processo de cultivo, colheita e preparo do fumo, passam também a serem tomados como intrínsecos à produção. 34

35

Nome popular da planta denominada pela botânica como Papaver soninferum, cujos bulbos floridos onde são produzidas as sementes têm uma resina rica em diversas substâncias, muito procurada por suas propriedades psicoativas. O nome mais conhecido dessa resina é ópio. Nome comum da planta denominada botanicamente como Erythroxylon coca, cujas folhas são tradicionalmente utilizadas como estimulante e consideradas como manifestações divinas por diversos povos em toda América Latina. A substância mais conhecida extraída dessa planta é a cocaína.

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Assim, quando uma legislação fomenta a supressão ao acesso às substâncias, o mercado sofre uma interferência externa e os preços são superestimados, por agregarem valores estranhos à produção do bem em si (fatores como violência, riscos de prisão, marginalização, vácuos extraordinários na oferta, dentre outros). Com as possibilidades de obter lucro artificialmente elevadas e as fontes de oferta do produto estagnadas, segundo essa tese, cresceria o interesse pela lucratividade gerada pelo negócio e aumentaria o número de indivíduos atraídos para o empreendimento. Nesse sentido, o mercado de drogas estaria constantemente influenciado em termos de elevação de preço, e principalmente, por oportunidade de trabalhar nos vácuos de oferta, criados pelos fatores que poderíamos chamar de “risco proibição”. (KARAM, op. cit:45-97). O sociólogo Paulo Morais analisa esse processo destacando que, na era Reagan (1981-1989), com o aumento da repressão, o preço da maconha teve elevação de até 14%, tendo como consequência principal a exclusão de pequenos e médios investidores e a geração de um mercado de importação e distribuição oligopolizado, sem qualquer registro de diminuição no consumo. (MORAIS, 2005, p.3). Isso significa dizer que o aumento da repressão à produção e distribuição da planta não diminuiu o consumo, apenas criou condições para as quais passaram a ser necessárias a criação de estratégias alternativas. A intensa campanha do governo dos EUA fez com que as pessoas que consumiam Cannabis, preocupadas com sua saúde, passassem a evitar os fumos cujas procedências ou aparências levantassem a menor suspeita de que suas origens fossem campos contaminados. No entanto o consumo não parou e as pessoas que usavam Cannabis tiveram apenas que inserir no seu rol de preocupações o cuidado com a procedência do fumo. O que essas intensas campanhas de erradicação de plantações de Cannabis conseguiram, de fato, foi diminuir os canais de oferta do produto num momento específico no qual a demanda era crescente. A escassez de oferta fez com que os cidadãos dos EUA passassem a buscar no cultivo da planta excelentes oportunidade de alcançar grandes lucros rapidamente, ou de obter colheitas que permitissem ficar independentes do mercado fornecedor. Além do surgimento de um mercado de cultivo doméstico da planta para consumo próprio, a atividade de cultivador de Cannabis tornou-se altamente atrativa e as relações entre as tradições fortes no país em empreendimentos comerciais e no cultivo da planta, moldaram o contexto propício para o ressurgimento de técnicas de 50


cultivo que permitiram a adaptação à criminalização do mercado produtor. Como discutido anteriormente, os consumidores de derivados de Cannabis compartilham saberes específicos essenciais para a manutenção do seu consumo, que são desenvolvidos de forma mais ou menos individual para a resolução de problemas comuns. Os usuários desenvolvem e compartilham um conjunto mais ou menos comum de símbolos, significados, representações, regras de conduta e outros elementos que os definiria enquanto coletividade sui generis, formando o que se chama de cultura da Cannabis. (BECKER, Op. Cit.). Embora tenham existido culturas da maconha há milhares de anos, desde que os seres humanos começaram a utilizá-la, em diferentes regiões do globo, somente no início na década de 1960 surgiram os primeiros discursos públicos sobre legalização da planta e passou a ocorrer o ressurgimento da cultura do cultivo de Cannabis para consumo próprio, que alguns autores têm chamado de ‘cultura ultra-moderna da Cannabis’ (GAMELLA & RODRIGO; 2004), e a ONU tem chamado de re-engineering of cannabis e rediscovery of sinsemilla (UNODC, 2006, p.155-196). No início, os principais veículos de divulgação dessa cultura eram os relatos orais e as publicações impressas. Em 1966, uma coletânea de artigos sobre cultivo da planta foi publicada sob o título “How to Grow the Finest Marijuana Indoors Under Lights” , que é a publicação mais antiga que encontrei sobre o tema36. A partir daí, surgiram uma série de publicações em língua inglesa sistematizando, compilando e principalmente divulgando e registrando as informações relacionadas a técnicas de cultivo. No início da década de 1970, esses conteúdos passam a ser publicados com maior frequência e intensidade, a exemplo de: 1969 (GAINAGE & ZERKIN; SUPERWEED); 1970 (DRAKE; SUPERWEED); 1971 (DRAKE; KRANZ & KRANZ); 1973 (STEVENS); 1974 (DRAKE; FABER; FLEMING; FRANK & ROSENTHAL; KRAMER; MURPHY); 1975 (FITCH; GOTTLIEB); 1976 (RICHARDSON & WOODS; DANIELS); 1977 (CLARKE; MURPHY; OAKUM); 1978 (FRANK & ROSENTHAL; IRVING); 1979 (DRAKE; STEVENS); 1981 (CLARKE). Essas obras não apenas criaram um meio físico que pudesse servir de registro dos saberes relacionados ao cultivo da planta, até então transmitidos apenas oralmente, mas forneceram base de consulta para milhares de leitores, principalmente em língua inglesa. Não é possível 36

Por estarmos tratando do ressurgimento da cultura do cultivo de maconha para consumo próprio e não da sua formação que tem origem imemorável, estamos considerando nessa reconstituição apenas o período histórico pós-proibição, quando a cultura da planta passou a ser perseguida, deslegitimada e ignorada.

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dizer ao certo em que medida o acesso a essas obras influenciou as transformações no mercado fornecedor da planta nos EUA e em todo o mundo, mas essas publicações certamente são parte integrante desse processo. A partir da década de 1980, a DEA começou a encontrar as primeiras plantações que utilizavam técnicas de cultivo indoor37 e, é claro, a promover operações de combate a esse tipo de práticas. No entanto, o mesmo período que poderíamos considerar como o de nascimento da cultura do cultivo indoor (19661980), foi o de maiores iniciativas de repressão ao fornecimento dos derivados da planta. Tanto a repressão à importação com a intensificação do controle das fronteiras, quanto o recrudescimento das iniciativas de combate às plantações de Cannabis nos EUA (manualmente) e no México, Jamaica, Colômbia e outros países (quimicamente), causaram um vácuo no fornecimento de derivados da planta. É possível afirmar que cultivadores estadunidenses tenham passado a querer preencher esse vácuo, mas se depararam com uma intensificação do combate ao cultivo dentro do próprio território estadunidense. Até 1980, somente 10% da maconha consumida nos EUA era produzida no próprio país. Em 1984 era12,5%., 25% em 1989 e em 1995 esse número chegava a 50%, ainda que a legislação aplicasse à posse de 100 espécimes da planta penas idênticas às da posse de 100g de heroína – 5 a 40 anos de reclusão. (POLLAN, 1995). Até a década de 1970, quase toda a maconha consumida nos EUA era proveniente dos campos mexicanos, ainda que muitos cidadãos estadunidenses já cultivassem suas próprias colheitas, dentro do engajamento nos princípios do “Grow your own”38. A situação foi alterada a partir das operações de fumigação com Paraquat® e com a intensificação da War on Drugs. Mas até então, o empreendimento de cultivo indoor era considerado muito dispendioso e pouco rentável, pois as variedades da planta que cresciam no México, Jamaica, Colômbia e outros países da América do Sul, não se desenvolviam muito bem na maioria das regiões dos EUA. Nesse período, hippies que viajavam por países orientais como Marrocos e Afeganistão, visitando comunidades das regiões que ficaram conhecidas como “the 37

O termo indoor é usado aqui para designar os empreendimentos de cultivo que usam lâmpadas, ventiladores e outros mecanismos para reproduzir em ambientes fechados as condições necessárias para o desenvolvimento da planta. 38 O Grow your own foi um movimento cultural que preconizava que cada indivíduo deveria tentar se responsabilizar ao máximo pela produção do seu alimento e dos bens necessários à sua sobrevivência. Esse movimento surgiu nos anos 1980 e em suas versões mais radicais proclamava o cultivo de vegetais usados para produção de roupas, utensílios, etc.

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hashish trail”, levaram para os EUA sementes de variedades de fenótipo indica, cultivadas tradicionalmente há dezenas de gerações, e selecionadas, na busca por espécies mais resinosas, principalmente para finalidades medicinais e religiosas. A partir dessas sementes selecionadas, os cultivadores estadunidenses passaram a fazer cruzamentos entre as diversas variedades que tinham à mão, obtendo espécies sui generis, que mantinham características de ambos os fenótipos, indica e sativa. Com o tempo, passaram desenvolver variedades com características que podiam ser melhor utilizadas comercialmente, como floração densa, alta produção de resina e ciclo de vida curto, características de plantas indica, e o grande porte das plantas e concentrações de proporção de THC na resina, características de plantas sativa. Nesse período, foram desenvolvidas variedades como Skunk, Big Bud, Haze, Califórnia Orange e Northern Lights39, ganhadoras de diversas premiações internacionais em festivais de colheita e base para as variedades atualmente mais valorizadas no comércio legal de sementes de Cannabis. (POLLAN, 2002; pp. 128139). Nesse período os cultivadores passaram a utilizar o maior número de técnicas agrícolas já existentes, aperfeiçoando-as constantemente e adaptando-as às especificidades botânicas da Cannabis, procurando dominar as condições de crescimento das plantas para otimizar os resultados da colheita. A necessidade de migrar as colheitas para ambientes indoor impôs novos fatores a serem considerados na seleção dos espécimes que iriam ser reproduzidos. Nesse processo, as experimentações com diferentes linhagens da planta, para poder recriar em ambientes fechados as condições climáticas ideais, resultaram em saberes específicos sobre esse tipo de cultivo, que envolvem botânica, agronomia e até mesmo engenharia. As experimentações com novas linhagens e cruzamentos de plantas com genótipos variados resultou no desenvolvimento de linhagens híbridas adaptadas às 39

Em 2003, o mercado legal de sementes de Cannabis contava com 450 variedades registradas, das quais muitas com origens genéticas em variedades nativas de países como Jamaica, Colômbia, México, E.U.A e Brasil, além de países na Ásia e África. (GREEN, 2003, p. 16). Muitas landraces, como são comercialmente conhecidas as variedades que não sofreram hibridização e que por isso mantém as características desenvolvidas no habitat de uma determinada região, têm origem em países onde o cultivo da Cannabis é bastante reprimido. No entanto, os espécimes mais apreciadas pelos breeders, profissionais desenvolvedores de variedades, são provenientes de landraces, porque guardam possibilidades genéticas inéditas e ainda não exploradas. O exemplo do Brasil pode ilustrar bem o caso de países de política repressora que exportam qualidade genética canábica, sem que a maioria dos seus cidadãos nem o imagine. Variedades como Bahia Black Head, Black Widow, El Niño, Leda Uno, Medicine Man,White Shark, Great White Shark, White Widow, dentre outras, são exemplos de marcas registradas em propriedade de bancos de sementes holandeses, ganhadoras de prêmios internacionais, que têm origens genéticas em landraces brasileiras. (ROSENTHAL, 2001).

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condições indoor e às características buscadas pelos cultivadores – maior produção de inflorescências, aromas, cores e sabores variados e, especialmente, plantas com ciclos de vida mais curtos. Michael Pollan identifica 1987 como o ano de surgimento do conjunto de técnicas que marcaria definitivamente o modelo indoor como exemplo de eficiência e controle de produtividade. O modelo que ficou conhecido como “Sea of Green” ou “Mar Verde”, consiste na aplicação de técnicas de clonagem (mudas, estacas), amplamente utilizadas em outros tipos de agricultura, aos saberes relacionados às especificidades do ciclo de vida e do metabolismo das plantas Cannabis sativa. Planta anual, a Cannabis só floresce quando o seu ambiente de crescimento lhe fornece um período sem luz (noite), mais longo do que o período com luz (dia), e a planta entende que é chegado o outono e é preciso iniciar o processo de floração. O ciclo de vida da planta é dividido pelos cultivadores em períodos de “germinação”, “vegetação” e “floração”, com durações que podem variar respectivamente entre 1 a 4 semanas, 8 a 32 semanas e 7 a 24 semanas. Assim, uma planta in natura, pode levar até 15 meses para completar seu ciclo de vida, de acordo com sua variedade, que se encerra com a maturação completa das inflorescências. Os cultivadores que utilizam ambientes indoor procuram encurtar ao máximo o ciclo de vida da planta, sem prejudicar sua saúde, controlando o fotoperíodo e simulando a chegada da época de floração através da diminuição do período em a planta fica exposta à luz. Assim, esses cultivadores procuraram criar condições de cultivo ideais a partir da adoção das seguintes práticas: controlar o ciclo de vida da planta, mantendo-a o mínimo possível no período “vegetativo” e administrando um regime de luz que force a floração precoce40; manter as melhores condições de cultivo para as plantas com exposição máxima à iluminação, buscando lâmpadas com maior eficiência e estudando as respostas das plantas aos diferentes tipos de irradiações41; inserir as plantas em condições de nutrição ideais, a partir do uso do cultivo hidropônico42 com 40

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Alguns cultivadores administram o regime de 24hs de luz e 0hs de escuridão, durante o período “vegetativo”, outros optam por regimes de 20/4hs, 18/6hs ou até mesmo de 14/8, mas é unânime o reconhecimento de que as plantas iniciam a fase de produção de inflorescências quando lhes é administrado um período de no mínimo 12hs de escuridão diário. As lâmpadas usadas inicialmente eram lâmpadas de vapor de flúor em baixa pressão, que conferem uma quantidade razoável de iluminação sem produzir muito calor. Com o surgimento das lâmpadas de vapor em alta pressão, as lâmpadas de vapor de Sódio (HPS) e vapor metálico (HQI) substituíram as fluorescentes na maioria dos empreendimentos de cultivo por oferecerem uma maior quantidade de iluminação, e frequências luminosas mais eficientes, ainda que produzam muito mais calor, exigindo o investimento num sistema de refrigeração. As técnicas de cultivo hidropônico foram desenvolvidas em Israel. Elas têm conseguido proporcionar o fornecimento de alimentos de qualidade cultivados em locais onde o acesso à terra com nutrientes adequados é difícil. As técnicas hidropônicas baseiam-se no conceito de dar às

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quantidade e qualidade de nutrientes, acidez (Ph) e temperaturas equilibrados; eliminar os espécimes machos das plantações43 e seleçionar os mais saudáveis espécimes fêmea e macho que apresentem as características que interessam para o desenvolvimento de híbridos melhores adaptados ao cultivo indoor (curto ciclo de vida, rápida floração, enraização homogênea, etc) O “Sea of Green”, ou SOG marca o ápice desse processo moderno de domesticação da planta visando a intensificação da produção em ambientes fechados. O intenso desenvolvimento das práticas de cultivo tornou possível que os cultivadores mantivessem o que se denomina de “planta mãe”, uma espécie fêmea escolhida após um período de experiência com o cultivo e seleção em uma determinada população de plantas. Essa planta passa a ser a base para a aplicação da variedade de técnicas acumuladas para produzir o máximo de colheita com o mínimo de espaço. Assim, os cultivadores recolhem mudas das linhagens que desejem manter das “plantas mãe” e administram condições adequadas para que possam produzir mais facilmente as raízes. Em cerca de dez a quinze dias elas já estarão na fase “vegetativa”, ainda que tenham apenas alguns centímetro de altura. Dessa forma, os cultivadores obtêm plantas geneticamente idênticas às “plantas mãe”, mas com um porte menor e um metabolismo em fase adulta. Ou seja, os espécimes serão todos fêmeas, com as características das “plantas mãe” e poderão ter sua estatura mais facilmente controlada, ainda que tenham potencial para floração semelhante ao de uma planta de grande porte. O ressurgimento da cultura do cultivo de maconha e o desenvolvimento das técnicas de cultivo indoor não podem ser relacionados diretamente à ampliação do mercado produtor de maconha nos EUA. No entanto, essas evidências apontam ser possível uma reflexão no sentido de admitir que, de certa forma, o trabalho de domesticação

da

planta

empreendido

por

esses

cultivadores,

coletiva

ou

individualmente, transformou o mercado da planta não só nos EUA, mas também na Europa e outras partes do planeta. Atualmente, o cultivo e Cannabis é o maior

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plantas condições de nutrição máxima para o crescimento de um vegetal. Assim, cultivam as plantas em soluções à base de água e nutrientes em quantidade previamente estudada, mantendo-a enriquecida com oxigênio. A quantidade de resina produzida por espécimes machos é irrelevante para o uso. O que se considera como maconha, marijuana, ou seja, de onde se deriva o fumo de valor comercial são as inflorescências dos espécimes fêmeas. A maconha chamada “sinsemilla” (sem semente) nada mais é do que a colheita de plantações onde os machos são regularmente controlados e eliminados antes de florirem e polinizarem os espécimes fêmeas. Quando não são polinizadas, as inflorescências femininas continuam produzindo resina até a sua colheita, o que não acontece quando são fecundadas pelo pólen e têm que se dedicar a produção das sementes.

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agronegócio dos EUA, gerando uma renda anual de cerca de 36 bilhões de dólares, em um mercado dominado pelos empreendimentos de cultivo de linhagens híbridas em ambientes indoor. (GETTMAN, 2006). O Relatório Mundial da Agência da Organização das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC), referente ao consumo mundial de substâncias psicoativas no ano de 2006, dedicou um capítulo especial à Cannabis (UNODC, 2006, p.161). Ainda que mantendo o discurso alarmista em relação ao consumo dos derivados da planta, a ONU admitiu que as atuais técnicas de cultivo em ambientes indoor permitem que a produção seja realizada em países onde as condições climáticas impedem o cultivo da planta, favorecendo o surgimento de produtores de pequena e média escala, que muitas vezes vendem diretamente ao consumidor final. Segundo o Relatório, atualmente os cultivadores holandeses, utilizando práticas de cultivo em ambientes indoor, conseguem produzir toda a Cannabis consumida no país e são responsáveis por 25% da maconha em países como Áustria, Belarus e Bélgica; 50% na República Checa; 20% Estônia; 50% na França, Alemanha, Hong Kong e Hungria; 17% na Islândia, Irlanda e Itália; 75% na Lituânia; além de exportar também para países como Espanha, Polônia, Suíça e Estados Unidos (UNODC, Op. Cit.:170-171). A Agência estima também que, com base nas apreensões reportadas pelos países que participaram da pesquisa, a produção mundial de maconha seja de 30.000 toneladas e a de haxixe ultrapasse as 7.000 toneladas (UNODC,Oop. Cit.:174). O mercado consumidor norte-americano está estimado entre 10 e 60 bilhões de dólares e é abastecido em sua maioria por cultivadores locais, que respondem pela 3ª maior colheita mundial de maconha, atrás do México e do Marrocos, respectivamente. (UNODC, Op. Cit.; 164). O relatório chama a atenção para o fato dos EUA ser um país que produz uma grande quantidade de Cannabis e que também tem revelado altos índices de consumo dos derivados da planta. Assim, não apenas consome toda a Cannabis que produz, como importa de produtores no Canadá e México. Ao estimar o consumo mundial de derivados da planta, o Relatório chama atenção para os desvios inerentes aos dados produzidos dessa forma, alertando para as dificuldades intrínsecas em se fazer levantamentos sobre o uso de drogas, práticas consideradas criminosas, especialmente nos países onde o uso é estigmatizado e bastante reprimido. 56


Esses dados nos fazem refletir sobre o ressurgimento da cultura do cultivo de maconha e a difusão de saberes associados que, ao mesmo tempo que possibilita aos usuários se tornarem auto-suficientes, facilitam a inserção de novos atores na função de produtores não-autorizados da planta. Existem poucos trabalhos que tratam das consequências da popularização desses saberes na configuração do mercado ilícito da planta em países como Austrália, Inglaterra, Holanda, EUA, dentre outros, e neste trabalho iremos analisar e discutir ressurgimento dessa cultura no Brasil, através de uma comunidade específica na Internet, que abriga usuários de maconha que falam português: O Growroom – seu espaço para crescer.

9.O Nascimento do Growroom “Me apaixonei desde o início!” (Ira, fundador do Growroom)

A Internet é um ambiente fértil para as novas experiências de sociabilidade e compartilhamento de interesses e significados. Nesse espaço é possível que se formem grupos que discutam sobre quaisquer assuntos de maneira mais ou menos livre, compartilhando experiências, informações, significados e representações. (GUIMARÃES, 1997). Não é possível datar exatamente quando a cultura canábica, já bastante registrada em revistas, livros, fotos, outros tipos de publicações impressas e em vídeos, passou também a ser divulgada através da Internet. Seria uma tarefa exaustiva e impossível de ser realizada fazer o levantamento de cada site publicado. A alta velocidade e os diversos caminhos possíveis de publicação na Internet tornaram bastante trabalhosa a tarefa de acompanhar o fluxo de conteúdos que atualmente são publicados por essa via. Ademais, a Internet é considerada pelos principais autores da área como um instrumento potencializador e veículo facilitador de divulgação de culturas existentes no mundo off-line e não como uma cultura diferenciada em si mesma. Dessa forma, podemos admitir que, desde que o primeiro entusiasta da cultura canábica teve acesso às tecnologias de comunicação em rede, fez uso delas da forma que lhe era possível. No caso dos fóruns de discussão sobre a maconha, essa tarefa é mais restrita, mas ainda assim é muito ampla e fugiria aos objetivos deste trabalho. Por me propor 57


uma análise restrita à cultura relacionada com o cultivo para consumo próprio no fórum Growroom, cabe registrar a história dos fóruns de discussão em língua portuguesa, que são onde se desenvolveram os processos que me coloquei como tarefa analisar. Em 2002, Ira44, um brasileiro à época residindo na Holanda, criou o “Growroom – seu espaço para crescer” www.growroom.net, um blog de notícias sobre maconha que abriga o fórum de discussões on-line cujo objetivo inicial era proporcionar um espaço onde pessoas adultas, usuárias de maconha, pudessem trocar suas experiências sobre o tema em uma plataforma de sociabilidade on-line, comumente chamadas de fórum de discussões, ou apenas fóruns. Situado no ciberespaço, está estruturado para receber usuários de qualquer parte do mundo que tenham acesso à Internet, disponibilizando um espaço no qual é possível consultar um banco de experiências e informações gerado pela interação de milhares de pessoas.. Nessa época, já existiam diversos fóruns do mesmo estilo, mas nenhum deles tinha o português como idioma utilizado. Havia fóruns do mesmo tipo nos EUA, Inglaterra, Espanha, França, Itália, Canadá, Holanda, Alemanha, dentre outros países. Nesse tipo de espaço de sociabilidade online, os internautas encontraram a possibilidade de construir perfis, como em outros sites de relacionamento, mas para discutirem temas relacionados especificamente a maconha e seus usos. Entre 1997 e 2008, Ira morou na Europa, em países como Holanda, Alemanha, Espanha e Portugal, onde teve contato com uma realidade completamente diferente da brasileira, com relação não só ao uso da planta, mas também às políticas públicas e iniciativas sociais e culturais relacionadas aos usuários. Nesse período, visitou diversos países europeus e conheceu ativistas e pessoas ligadas à cultura canábica em diferentes cidades. Em seu relato, ele conta:

“Cara! É impressionante como são mundos diferentes. Enquanto nêgo ta falando de legalizar ou não legalizar por aqui, os caras lá tão debatendo se o grau de

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Ira é o pseudônimo do criador do Growroom. Por motivos de segurança, os dados sobre ele foram cuidadosamente estudados, procurando utilizar somente aquilo que interessava para facilitar a compreensão das informações relevantes para a discussão deste trabalho, preservando-o de uma exposição desnecessária e que poderia incorrer em riscos à sua segurança e privacidade.

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pureza das flores45 dos cafés46 é adequado mesmo para o uso medicinal ou se é melhor consumir o produto cultivado pelo governo(...). Naquela época (2002), tudo que eu queria era tentar fazer com que os brasileiros pudessem ter acesso a esse tipo de informação. A galera precisava saber que, mesmo ilegal, essa planta é vista de forma muito diferente em outros países(...). O Growroom era principalmente uma forma de ver se os brasileiros acordavam pra vida, saca? Pra ver se eles corriam atrás e mudavam um pouco a realidade por aqui(...)” Em 2002, quando criou o Growroom, Ira passou a abrir tópicos no Overgrow e em outros fóruns em línguas diferentes, chamando os brasileiros a se cadastrarem no fórum do Growroom. O Overgrow era uma plataforma de relacionamento em língua inglesa e durante anos foi o principal canal de diálogo entre milhares usuários de maconha de todo o mundo. Apesar de terem acesso aberto a pessoas de todas as nacionalidades, o Overgrow e outros fóruns eram direcionados para pessoas em países com idiomas e realidades completamente diferente da brasileira, dificultando o acesso de boa parte dos brasileiros , que ficavam sem um espaço específico no qual pudessem debater seus temas locais. Por isso, mesmo que as discussões abarcassem questões e problemas comuns a pessoas que consomem Cannabis e derivados, seja no Brasil, nos EUA ou em outros países, o Overgrow e o outros fóruns do gênero nunca conseguiram proporcionar a reunião de muitos brasileiros. Era essa lacuna que Ira queria ocupar com a criação do Growroom e seu fórum. O Growroom nasceu, portanto, da ideia de criar um espaço de sociabilidade que funcionasse como um ponto de diálogo entre a cultura sobre a maconha que existia em outros países e os usuários brasileiros que não tinha acesso à essas outras realidades, nem tinha um espaço onde pudessem trocar experiências e dialogar com outros brasileiros. Além disso, Ira tinha como objetivo central promover o debate sobre a maconha dentro da comunidade de brasileiros. Ele acreditava que, se os brasileiros tivessem acesso à existência de discussões sobre manifestações pela legalização e políticas e leis voltadas para a tolerância ao cultivo para consumo próprio, talvez começasse a surgir um movimento social no país que fosse baseado no 45

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As flores dos espécimes femininos são as partes da Cannabis com maior concentração de princípios ativos. Em países onde há certa regulamentação do mercado consumidor somente as flores são comercializadas. Na Holanda algumas cidades autorizam que estabelecimentos possam vender flores de maconha e haxixe, a resina psicoativa extraída das flores, sob algumas regras. Essa política é constantemente revisada de acordo com as mudanças sociais, culturais, políticas e principalmente a utilização de dados das pesquisas sobre o tema.

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autocultivo, como existia em diversos países desde a década de 1960. Foi no Overgrow que conheci Ira e foi através dele que Ira conseguiu os primeiros parceiros para trabalhar na administração do fórum. Em maio de 2002 o Growroom começou a funcionar na Internet e, em menos de 10 dias, mais de 400 pessoas se inscreveram no fórum, entre elas eu, que passei a acompanhar as discussões e ajudar na administração, participando da equipe de moderação. Fato na História do Growroom

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10.Tornando-se usuário do Growroom “Para mim o Growroom representa uma esperança para quem luta pela Cannabis. Ajuda para quem quer cultivar sua própria erva e não mais contribuir com o tráfico. O Growroom é uma família, uma escola, uma irmandade. É um espaço para aprender e ensinar” (Tito)

O endereço www.growroom.net, dá ao internauta acesso a um blog de notícias sobre a cultura da maconha e, nele, há um botão redirecionando o usuário para o fórum. Quando clicado, o botão apresenta uma versão restrita do fórum, onde só é possível visualizar os sub-fóruns sobre avisos, notícias, uso medicinal e as discussões desenvolvidas neles. O objetivo dessa restrição é limitar o acesso aos espaços de discussões às pessoas devidamente cadastradas e que tenham afirmado, para o reenchimento de formulário de cadastro, que leram, entenderam e aceitaram as Regras de Conduta e Termos de Utilização do Fórum. Após isso, precisam escolher um apelido e uma senha, informando também um endereço de e-mail válido através do qual será confirmada a veracidade dos dados emitidos. Com essa política, o Growroom se reserva apenas a obrigação de confirmar que o endereço de correio eletrônico informado é realmente existente e é utilizado pela mesma pessoa que pediu o cadastro no fórum, tornando desnecessário a utilização de nomes pessoais no cadastro do fórum, preservando o anonimato dos usuários. Dessa forma o Growroom, como outros sites de relacionamento, passa às empresas que prestam serviço de correio eletrônico a responsabilidade pela veracidade dos dados dos usuários do serviço de correio eletrônico, se reservando apenas a obrigação de avaliar a veracidade do e-mail fornecido. Após realizar o cadastro, em cerca de 10 minutos a pessoa recebe uma mensagem em seu email com as informações para realizar a validação desse cadastro no fórum. Nessa mensagem o usuário recebe um endereço de Internet, um código de identidade do usuário (User ID) e a chave de validação (Validation Key). Na primeira visita é preciso acessar através do endereço citado no e-mail de boas-vindas e utilizar o User ID e a Validation Key. Só após esta operação o usuário tem acesso à página do Growroom, onde deverá usar seu apelido e senha escolhidos. Feito isso, o usuário pode acessar todos os tópicos do fórum e sub-fóruns e tambémsua página pessoal, onde poderá alterar as configurações do seu perfil . O fórum é baseado num tipo de software de relacionamento conhecida como 61


board, que permite aos usuários registrados criarem perfis com informações básicas a respeito de si mesmos, possibilitando que formem uma representação de si para a comunidade, a exemplo de outras plataformas de relacionamento populares como orkut (www.orkut.com), MSN – (www.msn.com.br) e twitter (www.twitter.com). Abaixo, uso meu próprio perfil no fórum como exemplo:

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Painel de controle do meu perfil no Growroom (Alma_Rastafari) Esse tipo de plataforma permite aos usuários trocarem mensagens através de duas maneiras: 1) Tópicos e Postagens no fórum; 2) Mensagens Privadas – MP´s. As mensagens privadas funcionam como um sistema de correio eletrônico interno do fórum, onde cada membro possui uma caixa de mensagens e pode se corresponder com outros usuários sem que terceiros tenham acesso à troca de mensagens e seus conteúdos. Os tópicos e postagens são abertas e podem ser visualizadas por qualquer membro do fórum. Os membros moderadores são voluntários que trabalham na administração do fórum. Os moderadores foram sendo recrutados à medida que Ira estabelecia um circulo de relacionamentos com usuários específicos do fórum, que passaram a se destacar por suas contribuições em alguns tópicos. A equipe de moderadores se alterou ao longo do tempo, de acordo com a disponibilidade das pessoas para a função e com o nível de engajamento dos usuários do fórum. No início, as Regras de Conduta e os Termos de Utilização do fórum, dois documentos centrais para definir o que é o fórum e como ele pode ser usado, ainda 63


eram documentos muito pouco claros e com apenas algumas linhas escritas. Esses dois documentos, juntos com os registros das discussões de casos específicos no subfórum de acesso restrito aos moderadores, podem ser considerados como a política de funcionamento do Growroom. Enquanto os tópicos no sub-fórum de moderadores serve como orientação para que estes saibam como se portar em casos semelhantes, as Regras de Conduta e os Termos de Utilização do Fórum são documentos usados como referência pelos moderadores para justificarem uma advertência ou punição à alguma conduta dos usuários do fórum que desrespeite às Regras e/ou os Termos. Uma vez cadastrado, o usuário pode abrir tópicos ou publicar postagem em quaisquer dos sub-fóruns, para discutir algum tema de seu interesse. Nos “Termos de Utilização de Uso do Site Growroom” é recomendado que antes de abrir um novo tópico os usuários consultem a busca para saber se já não há outros tópicos discutindo o assunto sobre o qual ele quer se informar ou trocar experiências. Nos caso do tema já estar sendo contemplado em algum tópico, é recomendado que o usuário leia todas as postagens de outros usuários a respeito do tópico e caso deseje fazer algum comentário, publique uma nova postagem, que será adicionada ao fim do tópico. Assim, os tópicos são uma espécie de mural de recados, onde um usuário inicia um assunto e aguarda comentários de outros usuários, a partir dos quais constroem réplicas, tréplicas, sem uma data limite para ser finalizado. No início, os tópicos eram abertos como uma forma de puxar assunto sobre um determinado tema e, com isso, facilitar estabelecimento de relações com outros membros, como em qualquer espaço semelhante na Internet. As pessoas não usavam o espaço para tirar dúvidas e a grande maioria dos tópicos eram abertos para discutir temas como filmes, livros e outros assuntos relacionados com maconha e outras drogas. A maioria dos usuários desconhecia a cultura do cultivo para consumo próprio, que só passou a ser introduzida no fórum à medida que os brasileiros que já plantavam e utilizavam fóruns em outros idiomas passaram a se cadastrar no Growroom e postar suas experiências. Inicialmente, muitos tópicos eram abertos pedindo conselho sobre locais seguros para comprar drogas em uma determinada cidade, ou sobre qual o melhor espaço público para fumar sem ser incomodado. Esse tipo de discussão rapidamente foi identificada e rechaçada pela equipe de moderadores como sendo limítrofe entre liberdade de expressão e apologia, e estes se reuniram e publicaram atualizações nos “Termos de Utilização de Uso do Site Growroom”, o que passou a ser feito 64


periodicamente, buscando dar conta das questões que surgiam ao longo do desenvolvimento do fórum. Com o passar do tempo e a intensificação das relações sociais estabelecidas via fórum, os próprios usuários passaram a criar controle informais. Aos poucos, regras informais de conduta, que nunca foram colocadas em nenhum dos documentos oficiais do fórum, se estabeleceram como consenso e seguem sendo praticadas até hoje. Em minha leitura, essa etiqueta coletiva é baseada principalmente em três princípios: 1) Garantir a segurança do fórum acima de tudo; 2) Garantir a harmonia entre os participantes do fórum; 3) Garantir a qualidade e organização das informações no fórum. Aos poucos, uma série de tipos de comportamento passaram a ser criticados e combatidos publicamente, mesmo quando não mereciam atenção dos moderadores. Criar tópicos com temas repetidos, divulgar dados pessoais, criar tópicos em subfóruns que não correspondem ao tema proposto e falar de drogas ou plantas que não sejam variedades de maconha, são apenas algumas dentre as muitas condutas que estão previstas nos documentos oficiais do fórum, mas são reprimidas pelos próprios usuários. Por outro lado, ao mesmo tempo em que alguns tipos de condutas são reprimidas, outros tipos de conduta são extremamente valorizados. Compartilhar fotos e relatos de experiências de cultivo para consumo próprio, dar dicas e responder dúvidas sobre os cultivos de outros usuários do fórum e produzir manuais, guias, ou relatórios que possam facilitar a compreensão sobre um determinado assunto específico, são alguns exemplos de condutas valorizadas dentro da comunidade. Aos poucos, o banco de dados com informações e experiências sobre os mais variados temas foi se tornando cada vez maior e mais abrangente. Em 2002, o fórum dispunha de menos de 10 sub-fóruns, em contraste com os atuais 46 sub-fóruns, divididos em assuntos que vão de técnicas avançadas de cultivo para consumo próprio à farmacodinâmica da interação entre maconha e medicamentos. Para melhor compreender o funcionamento de uma discussão realizada através do fórum e as informações ali compartilhadas, analisaremos abaixo exemplos de tópicos sobre temas diferentes: um aberto pelo usuário Tapa na pantera, outro pelo usuário Cezar e por último o tópico aberto pelo usuário SRV. Através dos exemplos do Tapa na Pantera e Cezar discutirei os aspectos apresentados acima a respeito da formação do que podemos chamar código de ética e conduta do usuário do Growroom. Através do exemplo do SRV, discutirei alguns aspectos relacionados 65


com a socialização do saber a respeito do cultivo de maconha para consumo próprio através do fórum. O tema escolhido por Tapa na pantera foi a própria experiência de utilização do fórum, em especial o uso da ferramenta de busca para consultas no banco de dados. Ele inicia o tópico com um manual bem elaborado a respeito de como utilizar a busca, formulado a parir da sua própria experiência. Em seguida, diversos outros usuários comentam seu tópico através de postagens. Nesse caso, o tema pode ser considerado esgotado e não vemos entre os comentários qualquer acréscimo de informações sobre o assunto. O tutorial criado por Tapa na pantera é um manual bem elaborado com informações de utilização do fórum que os próprios moderadores do Growroom não tinham produzido. Seu tópico explica em detalhes e com ilustrações como utilizar a ferramenta de busca, facilitando o trabalho dos milhares de usuários do site. Todos as postagem são comentários elogiosos e muitos recomendam que os moderadores coloquem o tópico fixo no alto do sub-fórum. Quando um tópico é considerado relevante para a comunidade, uma das opções utilizadas pelos moderadores é colocálo fixo na página inicial do sub-fórum, medida que foi adotada nesse caso. O caso do tópico aberto pelo usuário Cezar será utilizado aqui em contraste com o tópico do Tapa na pantera. O tópico do Cezar trata de um pedido de ajuda a respeito da planta que ele estava cultivando pela primeira vez. Ele iniciou o tópico afirmando ser novato e tratando do caso específico da sua planta, que, segundo ele, estaria passando por dificuldade no desenvolvimento. Um outro usuário, Pedrogs bike, imediatamente respondeu seu tópico, afirmando que a postura do Cezar de abrir um tópico só para discutir esse tema era desnecessária. Pedrogs bike rechaça o tópico de Cezar, recorrendo à uma das categorias mais estigmatizantes do Growroom, a de novato. O novato tanto pode ser aquele que desconhece as técnicas de cultivo, como aquele que desconhece o código de ética implícito do site. É curioso notar que essa categoria não é formal, ou seja, não é encontrada nos Termos de Utilização e Regras do Fórum. Do mesmo modo, não são previstas sansões ou regras de moderação especialmente para alguém por ser novato. Ao mesmo tempo, informalmente, tanto os moderadores quanto usuários mais velhos se sentem à vontade para corrigir e disciplinar usuários mais novos do site. É interessante notar também que não necessariamente a categoria novato é acionada apenas por usuários muito antigos ou moderadores, nem mesmo é sempre 66


associada à uma interpretação pejorativa. O próprio Cezar inclusive já inicia o tópico se colocando como novato no cultivo. Além disso, a categoria também pode ser acionada, mesmo em casos onde não há explicitamente um consenso sobre se a atitude foi ou não de novato. No caso citado, o usuário Cezar, está registrado no fórum desde setembro de 2009, enquanto o usuário Pedrogs bike foi registrado em julho, ou seja, apenas 2 meses antes. Assim, o próprio Pedrogs bike também poderia ser considerado um novato, mas não houve nenhuma utilização por parte de outros membros no tópico, a não ser eles dois, da categoria em questão.

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O exemplo acima não é um caso de comportamento proibido no fórum, tanto que, o único moderador que respondeu ao tópico, Zóio vermeio, disse para o Cezar “relaxa... brow... posta uma foto...”. Zóio vermeio, ao afirmar isso está sinalizando que o tópico não infringiu nenhuma das regras e que não há motivo para se assustar com a resposta do Pedrogs bike. Já ao afirmar “posta uma foto...” ele sinaliza que seria de bom tom haver mais informações sobre a planta para a qual o Cezar deseja um diagnóstico e que essa seria uma forma mais interessante de pedir ajuda sobre um cultivo. Seja por ter ficado envergonhando por uma de suas primeiras aparições no fórum ter sido rapidamente reprimida por outro usuário, ou porque descobriu como usar a busca, o próprio Cezar solicitou o trancamento do tópico. Esse exemplo nos ajudar a vislumbrar de que forma os quase 8 anos de acúmulo de experiência e de estabelecimento de relacionamentos ajudaram a criar os códigos e regras informais de conduta no fórum e os mecanismos que asseguram seu funcionamento. O contraste entre as reações ao tópico do Tapa na pantera e ao tópico do Cezar são bastante ilustrativas sobre como são construídos os valores a respeito de que forma e quais sãos os temas que merecem ser debatidos, e quais temas e tipos de comportamento devem ser rechaçados. Além desse jogo entre o tipo de comportamento valorizado e o que é rechaçado, toda a estrutura de sociabilidade no fórum é baseada na noção da pontuação por qualidade dos tópicos. Os usuários podem pontuar os tópicos de outros usuários, fazendo com que o tipo de conteúdo e a forma de um comentário possam não apenas influenciar a opinião de outras pessoas a respeito de um usuário, mas alterar a forma de exibição do seu perfil. Assim, os melhores tópicos e postagens são pontuados com estrelas que podem ir de 0 a 5. Dessa forma, os usuários desenvolveram a cultura de pontuar as contribuições uns dos outros, de acordo com os critérios próprios de cada área temática do fórum. Em relação ao tópico aberto pelo usuário SRV, utilizo-o para ilustrar de que forma são socializados os conhecimentos a respeito do cultivo de maconha. Nesse tópico, SRV expõe dados de sua primeira experiência de cultivo hidropônico, no qual estava germinando 5 sementes da variedade The Pure, desenvolvidas pelo banco de sementes The Flying Dutchmen e compradas através da Internet, e 2 sementes de variedade híbrida obtidas a partir de um cruzamento entre plantas de variedades Skunk e Haze. SRV descreveu as características da sua estufa e adiciona à sua descrição fotos para ajudar a ilustrar seu tópico. 69


Apesar de demonstrar bastante conhecimento sobre projeto e construção de estufas e até mesmo sobre técnicas de cultivo, SRV não abriu o tópico somente para compartilhar sua experiências, mas também para tirar dúvidas. Esse é um tipo de tópico bastante comum, já que raramente se encontra um no qual o usuário posta toda a experiência de cultivo, sem receber qualquer comentário ou sugestão. No tópico citado, ele busca informações sobre manejo de nutrientes, que é o aspecto que parece ser o mais difícil de dominar no cultivo hidropônico. SRV questionou especificamente se o sal amargo, nome popular para o Sulfeto de Magnésio, poderia ser usado na mistura de água com os fertilizante para hidroponia. O Sulfeto de Magnésio é um laxante mineral para uso humano, vendido em farmácias e utilizado pelos cultivadores para acrescentar magnésio à dieta das plantas. O magnésio é um elemento essencial para a maioria dos processos metabólicos da Cannabis sativa e da maioria dos vegetais, atuando na formação da clorofila, substância essencial para os processos nos quais a planta transforma a energia solar, utilizando-a para absorver os macronutrientes como nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), minerais (cobre, ferro, zinco, dentre outros) e aminoácidos vitais como tiamina (vitamina B1), dentre outras. É interessante notar que, para a maioria da população, até mesmo cidadãos acostumados a praticar como hobby a jardinagem, esse tipo de informação é pouco conhecida. Porém, em se tratando de um tipo de cultivo destinado à subsistência de uma necessidade de consumo, qualquer diferença na produção final é significativa, forçando os usuários a procurarem controlar o máximo de fatores determinantes, conforme discutido anteriormente. O exemplo do sal amargo citado no tópico do SRV pode ser utilizado por nós para refletirmos sobre o grau de aprofundamento em conhecimento de nutrição vegetal, necessário ao cultivo de maconha. SRV abriu o tópico no dia 12 de setembro de 200947, pedindo sugestões sobre a dúvida sobre o sal amargo. Desde esse dia, diversas mensagens elogiando seu cultivo surgiram, mas só no dia 16 o usuário Usainbolt respondeu ao tópico com uma sugestão de quantidade de Sulfeto de Magnésio a ser acrescentada na fórmula hidropônica. SRV respondeu agradecendo, afirmando que já estava experimentando por conta própria uma quantidade menor do mineral, obtendo resposta positiva das plantas e que iria aumentar para a dose sugerida. No dia 18, ele respondeu ao tópico 47

Acompanhei dezenas de tópicos desde que iniciei minha colaboração no Growroom e todas as reflexões feitas a partir dos exemplos citados se baseiam em observações de outros tópicos também, não apenas nos tópicos usados como exemplos.

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informando que as plantas estavam aparentemente melhor nutridas e se recuperando bem da falta de nutrientes do período inicial do cultivo, no qual as quantidade de magnésio ainda eram administradas de forma insuficiente. Esse exemplo permite ver de que maneira a interação mediada pelo fórum Growroom permitiu a dois usuários de maconha compartilharem informações sobre a dose de um mineral específica da nutrição da planta. A rapidez da comunicação permitiu com que a informação disponível pela experiência da carreira de cultivador de Usainbolt fosse facilmente assimilada por SRV que, em poucos dias pôde passar a aplicar um novo conhecimento e melhorar o seu cultivo. A agilidade nesse tipo de sociabilidade proporciona aos usuários suprir as necessidades das plantas que estão sob seus cuidados de maneira que um erro ou inaptidão possam ser corrigidos em tempo hábil para manutenção da saúde do vegetal. No dia 22 do mesmo mês, SRV postou uma nova mensagem, colocando mais algumas informações sobre o tipo de fertilizantes usados na planta. Ele afirmou que usava fertilizantes da série Dyna, mas que antes usava dosagens menores, até ter sido aconselhado por outros usuários a aumentar as doses, obtendo realmente melhores resultados. Mais uma vez ele não usou o tópico somente para colocar informações sobre o cultivo, mas para tirar dúvidas. Ele perguntou se era possível que os órgãos pré-flores já estivessem nascendo com apenas 5 semanas de crescimento. SRV utilizou uma foto para ilustrar as pré-flores, para que cultivadores mais experientes pudessem identificar se eram pré-flores e, em caso afiirmativo, qual o sexo da planta. O próprio SRV, que também é cultivador experiente descobriu que se tratavam de pré-flores denunciando uma planta macho, o que é possível perceber pela forma como respondeu o tópico. No entanto, a esperança de estar enganado, já que plantas macho não servem para produzir fumo, ou o desejo de socializar uma nova informação sobre o seu cultivo, o tenham motivado a tirar uma foto e publicar no site, mesmo tendo quase certeza da resposta às sua dúvida. Sete minutos depois de sua postagem, o usuário MaldororBR respondeu, taxativo, “Sim, dá pra ver... são sacudos mesmo! Passa a faca!”, dando a sugestão de eliminar o espécime macho e assegurar que

as flores das outras plantas fossem sinsemilla. Diversas outras

respostas se seguem a essa, dando-lhe a mesma sugestão e ironizando o fato de ter nascido um macho. A interação em um tópico não se dá apenas entre o usuário que abriu o tópico e os usuários que o respondem, sendo livre que os usuários dialoguem entre si casos 71


semelhantes ao debatido no tópico. No caso analisado, o usuário Blackweed respondeu afirmando que pretendia usar um sistema de gotejamento da solução hidropônica semelhante ao utilizado por SRV, aproveitando para consultar se este estaria satisfeito com o tipo de fertilizante – Dynagro. O usuário Usainbolt, que havia respondido a dúvida do SRV sobre se era possível acrescentar sal amargo à nutrição das plantas em hidroponia, respondeu afirmando que o Dynagro é um fertilizante razoável, bastante completo e dá indicações de tipos do produtos e formas de utilização . No entanto, ele chama atenção que, no período de floração, no qual a planta necessita de maiores quantidade de micronutrientes, é preciso utilizar algum tipo de suplementação.

Os aspectos de nutrição da planta são apenas um dos fatores que devem ser controlados para conseguir otimizar as colheitas. Um bom cultivador sabe que a relação das plantas com as fontes de energia é o que determina o resultado final. Por isso a qualidade e quantidade das fontes de luz, água e nutrientes são os principais pontos de interesse das discussões no fórum. As discussões, em geral, são a socialização de experiências de cultivo com objetivo de que o saber coletivo possibilite que esses fatores sejam melhor controlados. No dia 1 de outubro de 2009, SRV colocou outra resposta no fórum atualizando a comunidade a respeito de suas plantas. Animado com os resultados da 72


fórmula de nutrientes, informou que havia iniciado o processo de forçar a floração nas plantas da variedade The Pure. Ele informou ainda que todas as plantas estavam bem, mas as híbridas de Skunk com Haze estavam ainda com pouca saúde e por isso ele havia decidido não incluí-la no grupo de plantas que iria colocar em regime de floração. SRV aproveitou para dizer que fez mudas, chamadas pelos usuários do Growroom mais comumente de clones, antes de colocar as The Pure para florir, usando mais uma vez uma foto para ilustrar o fato.

No dia seguinte, 2 de outubro, SRV publicou uma resposta com outra foto, dessa vez pedindo uma ajuda para solucionar os problemas de desenvolvimento de algumas mudas, que apresentam folhas amareladas e retorcidas nas pontas. Para ajudar no diagnóstico, SRV utilizou mais uma vez o recurso da fotografia.

73


Poderia analisar toda a experiência de cultivo de SRV e a troca de experiências geradas pelo seu tópico, ou ainda acompanhar e descrever toda uma experiência de cultivo, analisando cada assunto debatido no tópico. Mas acredito que a análise dos temas debatido nos casos citados acima ilustraram bem a forma como se dá a sociabilidade no fórum Growroom, possibilitando conhecer um pouco melhor os caminhos de formação da cultura da maconha nessa comunidade, atendendo aos limites estabelecidos e propostos neste trabalho. As especificidades da comunidade Growroom se expressam de maneira mais acentuada quando se compara essa cultura da maconha com a descritas pelas pesquisas de Becker na década de 1950, e de MacRae e Simões, na década de 1980. Os saberes informais sobre a maconha e seus usos, nos casos estudados por esses autores, se reproduziam através da interação direta e presencial dos usuários em redes e círculos de amizade em que ocorria o consumo. Já na comunidade do Growroom, o saber surge tanto de interações diretas, quanto da interação indiretas dos usuários. As interações diretas podem ocorrer através da troca de mensagens no fórum, ou mesmo de encontros pessoais ou em outros espaços virtuais, marcados através do fórum. Já as interações indiretas são os casos no qual um tema já foi suficientemente explorado e o usuário apenas lê a interação de outros usuários sobre um determinado assunto. 74


Essa rede de sociabilidades, construída através das contribuições de muitos indivíduos, possibilita que usuários de diversas partes do mundo compartilhem experiências, informações e significados sobre diversos aspectos relacionados com a maconha, seus usos, usuários e a forma como esse hábito é visto na sociedade. Talvez de nenhuma outra forma um número tão grande de usuários poderia se manter em contato direto. Essa nova forma de sociabilidade precisa ser analisada à luz das contribuições de Becker e outros autores sobre a importância do saber que circula na comunidade de usuários para o processo de construção da cultura da droga. Percebi, a partir do Growroom, as especificidades dessa nova forma de comunicação e a maneira como os desdobramentos da virtualização48 das informações, e da própria experiência de sociabilidade, dão uma dinâmica e configuração especificas a conceitos, práticas, valores e saberes que circulam nessa comunidade de usuários de maconha. Esse tipo de sociabilidade permite que um grande número de usuários esteja em constante contato, mantendo uma rede de sociabilidade virtual, com a qual todos eles interagem sem que os desdobramentos de tais contribuições se encerrem em algum deles especificamente. Os textos escritos pelos usuários, em geral, também contém links que levam a outros sítios da Internet, onde o usuário poderá ir buscar maiores informações sobre as idéias e experiências que influenciaram a construção daquele texto. Pode-se, assim, construir suas próprias idéias sobre aquele tema debatido, a partir da sua relação com todo o emaranhado complexo de informações disponibilizadas na Internet, para daí tornar sua própria experiência enriquecida por esse acervo de informações. Tal forma de expor conteúdos cria uma teia de informações abrindo inúmeras possibilidades para que cada tópico, texto ou link seja analisado e interpretado de uma maneira especifica pelos diversos usuários do fórum, possibilitando que as referências que cada um tenha sobre determinado assunto possam ser compartilhadas de forma direta com outros. Nas redes de usuários analisadas por Becker, por MacRae e Simões e outros pesquisadores, a maior parte dos saberes que circulavam nas redes de usuários provinham do acervo coletivo de informações, baseadas principalmente nas 48

Virtualização aqui é usado no sentido apresentado por Levy (1999). Virtualizar é não encerrar no objeto suas possibilidades, levando em consideração sempre as pressões e inferências externas ao objeto como determinantes do próprio objeto, ou seja, as informações virtualizadas em um fórum de discussões no ciberespaço nunca se encerram na sua leitura, sempre existem desdobramentos, hipertextos e interatividade constante, no sentido de garantir o eterno fazer-se das informações virtualizadas.

75


experiências individuais dos membros dos diversos grupos que acessavam essa rede. Na rede de usuários do Growroom, além das informações disponibilizadas pelas experiências individuais de consumo, é possível ter acesso a uma grande quantidade de publicações ,cientificas ou não, sobre o tema, bem como de sítios do Brasil e de muitos outros países que tratam do mesmo assunto, ampliando, assim, a quantidade e a qualidade de informações disponíveis para os usuários. Dessa forma, podemos afirmar que a cultura da maconha que é compartilhada pelos usuários do Growroom é, de certa forma, bastante distinta da descrita pelos trabalhos citados, tanto em seus conteúdos, como na forma como ela se reproduz e difunde. Nesse sentido, destaco que a compreensão da cultura da maconha na comunidade Growroom é peça fundamental para ajudar a entender melhor a prática do cultivo de maconha para consumo próprio na atualidade, quem são as pessoas que estão exercendo tal atividade e de que maneira a estão realizando.

11.Cultivando maconha para consumo próprio “A grande maioria dos cannabicultores são pessoas que se preocupam com a realidade ambiental que os cercam e, de forma equivocada ou não, estão dispostos a pensar um caminho melhor. Eles dizem que somos nós que financiamos o tráfico, pois bem, e eles? Criam o mercado de trabalho dos traficantes, geram mão-de-obra e, pior, ainda cobram caro por isso! Se nós financiamos o tráfico, já estamos tentando achar uma solução, venham construí-la junto conosco, ao invés de atrapalhar!” (Pintolico)

Nesta parte do trabalho, tentarei traçar um perfil do usuário de maconha que planta para consumo próprio, com base na análise dos dados da etnografia realizada na convivência no fórum, da amostra do Censo Cannábico relacionada com as pessoas que afirmaram já terem cultivado, e dos questionários distribuídos por mim a alguns usuários do Growroom. Durante o segundo semestre de 2007, publiquei uma chamada no fórum pedindo voluntários para participar da pesquisa preenchendo questionários abertos (Anexo I). Recebi diversas mensagens solicitando participação, dentre as quais selecionei 20 pessoas, seguindo alguns critérios. Para participar da pesquisa, o 76


indivíduo deveria ter realizado ao menos um cultivo de ciclo completo, isto é, semeado e cuidado de uma planta da germinação até sua colheita. O perfil desses usuários é bastante variado, com idade mínima de 22 e máxima de 41 anos. Todos os usuários que responderam a este questionário são homens, com profissões variadas, incluindo estudantes, professores, empresários, um advogado e até mesmo um agente da Polícia Rodoviária Federal. Os dados referentes a amostra de pessoas que afirmaram já ter plantado no questionário do Censo Cannábico foi de mais difícil análise, devido a falta

de

ferramentas tecnológicas necessárias para trabalhar com o extenso banco de dados que possuo49. O Censo Cannábico foi uma iniciativa de alguns moderadores do Growroom que, constatando a existência de uma escassez de dados sobre os usuários da Cannabis no Brasil, procuraram uma forma de trazer à tona informações até então ignoradas e que pudessem ser úteis no debate sobre a planta e o seus usos. A intenção era levantar informações que pudessem elucidar diversos aspectos mais gerais relacionados ao uso da maconha e mais específicos dos perfis dos usuários e seus hábitos de consumo. Em novembro de 2003, em uma reunião online, alguns moderadores do fórum, entre eles eu, conversaram sobre as possibilidades técnicas de realizar um levantamento através da Internet, que pudesse alcançar um grande número de usuários de maconha e produzir dados relevantes e inéditos sobre o tema. Acolhida com entusiasmo, a idéia passou a ser desenvolvida pelo moderador de pseudônimo Meriadoc, um programador de informática versado na linguagem mySQL50. Nessa fase inicial do projeto a equipe de colaboradores era formada pelos moderadores Alma Rastafari (autor deste trabalho), Ira (designer gráfico fundador do Growroom), Luluds (técnica em programação mySQL e processamento de dados, versada em SPSS51) e

Meriadoc, que dialogaram entre si através de e-mails e

encontros virtuais52 para a troca de idéias e sugestões sobre qual seria a melhor forma 49

50 51

52

É preciso ser dito também que os dados do Censo não foram publicados até hoje porque o grupo que realizou o projeto se desfez e boa parte dos integrantes romperam relações entre si e nunca foi possível retomar uma equipe com tempo e qualificação necessária para realizar a análise e publicação dos resultados. Isso se deve principalmente a grande dificuldade em obter financiamentos para essa pesquisa, sobre Cannabis, que há anos vem sendo realizada. MySQL é um tipo de programação específica para criação e gerenciamento de banco de dados. Software de tratamento estatístico para dados de análises sociais. SPSS – Statiscial Package for Social Science. Os encontros virtuais se baseavam em softwares de comunicação instantânea como o MSN messenger® e o YAHOO! messenger®, bem como através de mensagens trocadas através do fórum do Growroom.

77


de confeccionar o questionário, quais perguntas inserir e de que forma recrutar informantes interessados em respondê-las. Após as primeiras semanas de debate, uma primeira versão do questionário já estava confeccionada e foi decidido que mais três pessoas seriam convidadas a participarem

do

projeto:

Luchiano

(técnico

em

programação

mySQL

e

processamento de dados que, à época, havia sido recém admitido como moderador do fórum), e dois sobrinhos do Luchiano, que o auxiliavam na elaboração do banco de dados. A importância da admissão do Luchiano, seus sobrinhos e da Luluds se deveram à necessidade de pessoas que se dedicassem com afinco à tarefa de extração dos dados da base em mySQL. Além disso, Luluds tinha experiência em trabalhar com bancos de dados de pesquisas quantitativas. A linguagem mySQL funciona baseada no sistema operacional Linux53 e, para que os dados produzidos ,utilizando-a como ferramenta, pudessem ser tratados pelo SPSS ou por outros softwares de banco de dados, como o Excel ou Acces, foi necessário converter os formatos originais. A opção pelo uso da linguagem mySQL se fez pelo fato de que toda a plataforma do fórum e do portal do Growroom estão baseadas no sistema operacional Linux e, estando o Censo Cannábico hospedado na Internet através do Growroom, ele precisaria estar programado em linguagem com a qual o Linux pudesse dialogar de forma menos trabalhosa. No início de janeiro de 2004, o questionário (Anexo II) foi considerado concluído pela maior parte da equipe, e era composto por 79 questões, em cinco grupos temáticos: Dados Pessoais, Dados Econômicos, Dados Sócio-culturais, Hábitos de Consumo e Efeitos Colaterais e Danos. As perguntas 2 a 12, 14 a 16 e 22 cobrem algumas características socioeconômicas dos usuários e, apesar de terem sofrido algumas adaptações, tiveram como base as pesquisas censitárias do IBGE 54. As perguntas 13, 21 a 24, 28 e 32 a 65 estão relacionadas diretamente aos hábitos de consumo e abrangem uma quantidade ampla de aspectos, incluindo os usos religiosos e medicinais, que foram abordados pela primeira vez em uma pesquisa do tipo, é importante destacar.55 Detalhes sobre da cultura da maconha foram trabalhados nas Sistema operacional baseado nos princípios do software livre, no qual os usuários não precisam pagar pela programação e podem ajudar comunidades de programadores a melhorar o sistema e os softwares a ele relacionados. 54 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – www.ibge.org.br. 55 As perguntas sobre uso medicinal da cannábis, e algumas sobre os hábitos e práticas de consumo foram adaptadas ou inspiradas no Questionário para Registro dos Pacientes de Cannabis, iniciativa da Multidiciplinary Association for Psychedelic Studies (Associação Multidisciplinar para Estudo Psicodélicos – www.maps.org. O questionário é um anexo do livro HEMP – Uso Medicinal e 53

78


perguntas sobre a iniciação ao uso, práticas e hábitos de consumo e aquisição56 e sobre a experiência psicoativa com a planta. As perguntas 17 a 20, 25 a 27, 30 e 31 procuraram abordar as representações sociais sobre o uso, através das opiniões dos usuários sobre o tráfico, sobre a legislação relacionada e sobre a estigmatização de usuários. Essas perguntas atendem boa parte das demandas sociais contemporâneas sobre o tema e foram desenvolvidas a partir dos referenciais e experiências do grupo de colaboradores do Censo. Outro grupo de perguntas está relacionado aos efeitos colaterais e danos, possíveis problemas de saúde, distúrbios sociais ou psicológicos e dependência ao qual se confrontam alguns usuários da Cannabis. Esse grupo também contempla perguntas relacionadas aos possíveis problemas ocorridos em decorrência do status legal da planta e do seu uso. Toda a estratégia de distribuição dos questionários representou um desafio para conseguir levar a pesquisa ao maior número de usuários possível, ultrapassando os limites impostos pela comunicação via Internet, sem comprometer a idoneidade da amostra. A solução encontrada para iniciar a distribuição do questionário foi utilizar banners57 no Portal Growroom, convidando usuários que frequentavam o fórum a respondê-lo. Contudo, esse tipo de convite influenciaria para que boa parte dos que respondessem pudessem ser formada apenas de freqüentadores do fórum. Para minimizar esse viés da amostra, na própria página do Censo foi disponibilizada a opção para que as pessoas que o respondessem pudessem divulgar com facilidade a existência desse tipo de iniciativa para amigos e conhecidos usuários de Cannabis, enviando convites para até 10 pessoas por vez. Dessa forma, cada visitante do Censo que acionou a ferramenta de divulgação atuou como agente distribuidor

de

questionários,

contribuindo

para

ampliar

os

níveis

de

heterogeneidade e aleatoriedade da amostra. Esse tipo de metodologia de coleta, conhecida como bola de neve, dispensa o prévio estabelecimento do tamanho da amostra, deixando-o à mercê do sucesso do esquema de distribuição dos questionários. Os 5.44358 questionários, respondidos de 05 de março a 01 de maio de 2004, Nutricional da Maconha, do autor Chris Conrad. 56 As perguntas sobre métodos e práticas de aquisição abordaram especialmente aspectos relacionados ao autocultivo de Cannabis, devido ao envolvimento do portal Growroom com tal movimento. É um movimento social que se expressa nos empreendimentos de usuários, ou grupos de usuários, que desenvolvem e compartilham técnicas de cultivo e preparo da planta, única e exclusivamente com o objetivo de consumi-la sem precisar comprá-la. 57 Banners são mídias eletrônicas utilizadas em páginas de Internet que consistem em imagens e textos animados expostos em um espaço de destaque. 58 A amostra original era de 8.190 questionários respondidos. No entanto, foram adotadas algumas

79


constituem uma amostra de proporções suficientemente seguras para servir de base para pesquisas, análises e estudos. Mesmo garantida a margem de segurança da amostra, o fato do questionário só ter sido respondido por pessoas que tinham acesso à Internet é um fator que deve ser considerado em todas as etapas da pesquisa. Qualquer projeção das análises em um universo maior de usuários requer uma relativização dos dados e um cuidado constante para não invadir espaços alheios à amostra. O volume e a amplitude dos dados do Censo Cannábico são suficientes para colher uma amostra expressiva de uma população específica de usuários de maconha no Brasil e de diversos aspectos importantes relacionados aos seus hábitos. Porém, é preciso tecer com cuidado qualquer tipo de consideração sustentada através deles. Devido ao fato de sua divulgação e aplicação ter sido feita exclusivamente pela Internet, os dados do Censo têm, logo de saída, um alcance restrito à população com algum tipo de acesso à Rede. Mesmo no Brasil, um dos líderes de acesso mundial e o maior da América Latina, “só se pode constatar um número aproximativamente exato da abrangência de utilização da Internet por meio de estimativas”. (German, 2000). A dificuldade em precisar esse universo se revela mais claramente quando levamos em consideração de que há múltiplas formas de acessar a Rede. Já em 1999, quando o número de usuários era apenas 3,3 milhões de pessoas59, mais da metade dos acessos era realizado em locais como trabalho, escola e estabelecimentos de acesso à internet, revelando uma ampla profusão de modos de uso da Rede. Dessa forma, ainda que os dados permitam uma certa aproximação com a realidade de acesso à Internet, a profusão e a variedade de formas pela qual ele é feito nos impedem de afirmar que apenas pessoas com computadores em casa tenham respondido ao Censo. Mesmo que o fato de ser proprietário de um computador com acesso à internet pudesse nos fazer considerar que as pessoas que responderam ao Censo são de camadas social e economicamente privilegiadas, a variedade de modos de acessar à Rede nos dá margem para afirmar que a amostra do Censo tenha em sua formação uma ampla participação de pessoas das mais diversas camadas sociais e econômicas. Ainda que a recente popularização da Internet já tenha permitido que o Brasil estratégias para evitar repetição de questionários enviados pela mesma pessoa, como os enviados com menos de 10 segundos de intervalo, ou que tivessem as respostas totalmente iguais ou ainda que tivessem sido enviados pelo mesmo IP (identidade individual de cada máquina na Internet). 59 Cf. www.ibope.com.br/digital/produtos/adpprc60.htm In; German, 2000.

80


figure entre os países com maior acesso à Internet, os custos de acesso e de aquisição de um computador e a obrigatoriedade de familiaridade com um conjunto de conhecimentos técnicos para o controle da tecnologia utilizada, ainda são alguns dos fatores que mantém a maioria dos brasileiros excluídas do universo digital. Ainda que a Internet brasileira, hoje, seja acessível a parcelas cada vez maiores e mais amplas da população do país, ela demanda dos seus usuários um certo engajamento na sociedade de mercado informatizada, seja através do consumo direto ou do aluguel do acesso à Internet, ou do vínculo com alguma instituição que permita esse acesso, ou ainda do acesso à educação formal ou informal sobre tecnologias informacionais. É importante destacar que a abrangência dos dados do Censo e o alcance de quaisquer projeções que se possa fazer com seus dados estão limitados a essa população específica de brasileiros que têm acesso a serviços de correio eletrônico60. Nesse sentido, após ter descrito suficientemente as características das metodologias que foram usadas na coleta dos dados utilizados na análise do perfil do usuário que cultiva para consumo próprio, inclusive dedicando uma crítica aos aspectos positivos e negativos, acredito que podemos nos debruçar sobre esses dados com a consciência adequada a respeito das suas possibilidades e limitações. Os dados do Censo que são usados nessa discussão foram selecionados da subamostra de pessoas que responderam a alternativa sim à questão de número 54, “Você planta?”61. Das 5.443 que responderam ao questionário, 609 afirmaram “Sim”, correspondendo a pouco mais de 11%. A amostra de pessoas que responderam positivamente à questão sobre cultivo acompanha outras pesquisas sobre o uso de drogas, sendo predominantemente formada por pessoas do sexo masculino. Das 609, 534 são homens (87,68%), enquanto apenas 75 afirmaram ser do sexo feminino (12,22%). É interessante notar que a segmentação por faixa etária segue proporções semelhantes na amostra do sexo masculino e feminino em quase todas as questões. Essa proporção é constante em quase todos os dados relativos tanto às pessoas que plantam como às pessoas que não plantam. A seguir exponho alguns gráficos 60

61

O Censo foi respondido apenas por pessoas que o acessaram através do banner no Growroom, ou que receberem um convite enviado por amigo através de correspondência eletrônica. É importante destacar que aqui há uma distinção importante com relação à amostra de cultivadores selecionada no Growroom para entrevistas semi-estruturadas. Enquanto o critério para esta última era o de ter realizado ao menos uma colheita, a pergunta do Censo Cannábico dá margem para que pessoas que tenham apenas semeado algumas sementes em qualquer oportunidade sejam incluídas na amostra. Dessa forma, o universo onde foram coletados os dados do Censo deve ser tomado com bastante cuidado, entendido inclusive como mais abrangente do que o de onde foi retirado a amostra mais restrita.

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ilustrando os dados a respeito do perfil das pessoas que responderam “sim” à pergunta “você planta?”, do questionário do Censo Cannábico. Faixa etária

41% 250 200

22%

27%

150 100 50

6%

2%

2%

1%

23%

49%

24%

3% 0%

10 a 15 anos 16 a 20 anos 21 a 25 anos 26 a 30 anos 31 a 40 anos mais de 40 anos

0 Homens

Mulheres

É possível notar que nos dois grupos o maior número de cultivadores é encontrada entre os jovens de 16 a 30 anos, grupo que entre os homens chega a 90% e entre as mulheres 96%.

Cor e/ou identificação racial

82


450

77%

400 350 Branco(a) Mestiço(a) Outro(a) Afro-descendente Negro(a) Oriental Albino(a) Índia

300 250 200 150

14%

75%

100 50

4% 2%

1% 1% 1% 0%

15%4% 3% 0% 1% 1% 1%

0 Homens

Mulheres

Os dados referentes à cor/identificação62 racial revelam uma predominância de branco(a)s. Notamos que houve um maior número de pessoas que optou pela categoria afro-descendentes ao invés de negro. Os dados referentes talvez não sirvam para analisar o uso de maconha, mas podem demonstrar uma desigualdade social com relação ao acesso à internet e, por isso, também ao acesso à cultura do cultivo para consumo próprio, difundida principalmente através da WEB. Com relação à ocupação das pessoas que plantam para consumo próprio é bastante difícil expressar os dados em uma tabela, já que se tratam de dezenas de categorias. É suficiente dizer que para todas as categorias disponíveis, entre as quais cito como exemplo, policiais, atletas profissionais, médicos, psicólogos, professores, políticos, pilotos de avião e designer, houve no mínimo 1 pessoa que respondeu exercê-las como profissão. A categoria mais expressiva é a de estudantes, que fica em quase 27%, coerente com a faixa etária da maioria dos cultivadores, 16 a 30 anos. A maior parte dos usuários tem nível superior completo, ou está cursando a graduação ou pós-graduação, somando 82% da amostra. A renda dos usuários também sinaliza uma boa inserção no mercado de circulação de bens e serviços, já que mais da metade deles, 62%, possui renda pessoal superior a 500 reais por mês63. Em relação aos hábitos de cultivo metade dos usuários afirmou utilizar 62 63

As categorias contempladas no questionário foram fruto de um trabalho coletivo. Existem diversos outros dados referentes ao Censo, mas que não seriam interessantes de serem explorados neste trabalho, e mereceriam muitas críticas antes de serem utilizados de forma honesta.

83


sementes recolhidas de fumos comprados para consumo e apenas 28% afirmou comprar sementes de seed banks64. Apesar do clima brasileiro possibilitar o cultivo de maconha sem a necessidade do uso de lâmpadas e ambientes indoor, a maior parte dos usuários, 55%, realiza o cultivo utilizando esse método. Pouco menos de 5% dos usuários utilizam técnicas hidropônicas de cultivo. Esse fato se deve principalmente à necessidade de ocultar a prática de vizinhos, amigos ou familiares que poderiam se escandalizar com o fato ou até mesmo realizar uma denúncia formal à polícia. Sobre esse dado, é interessante analisar algumas das respostas dos usuários do Growroom, obtidas através dos qustionários, a respeito dos motivos que os levariam a optar pelo cultivo indoor. Todos os cultivadores que optaram pelo cultivo indoor são taxativos ao afirmarem que não preferem esse tipo de cultivo, só optando por ele por segurança: “Olha, eu não prefiro não. O que acontece é que no atual estado das coisas, a gente tem que viver dando um jeitinho nas coisas, entende? E o indoor é uma coisa escondida, que tem as vantagens de te permitir controlar o crescimento da planta, manter plantas-mãe eternamente vegetando... mas preferir, eu prefiro o Sol, o que acontece é que temos que usar tudo a nosso favor e em favor da causa. Eu também já plantei usando lâmpadas uma época e depois usando só o Sol... agora eu uso o melhor de cada mundo!” (Cabelo) “Prefiro indoor porque o risco de alguma pessoa descobrir sua horta é menor. Os muros da minha casa são baixos, mas se eu morasse em um local apropriado com certeza utilizaria a energia do Deus Sol.” (Txapuan) As falas de Cabelo e Txapuan ilustram bem a posição dos cultivadores a respeito da real necessidade do uso de ambientes de cultivo indoor. Para eles, como para a maioria dos usuários, o que determina a opção pelo indoor são as possibilidades de controlar o ciclo de vida da planta e a segurança do cultivo. Dessa forma, seriam características relacionadas com as leis sobre o cultivo e com o significado desta prática na sociedade em geral que influenciariam para que os usuários optassem pelo uso do indoor. Ou seja, motivos semelhantes aos que fizeram 64

Os seed banks são estabelecimentos regulamentados em países onde plantar maconha para produção de sementes é uma atividade legal. Apesar desses estabelecimentos não venderem diretamente para o Brasil, existem atualmente centenas de sites que fazem a mediação entre os seed banks e os clientes em países como o Brasil.

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as técnicas indoor se desenvolverem e adquirirem legitimidade nos EUA: a Guerra às Drogas, que mantém atualmente as condições para que esse tipo de iniciativa esteja se proliferando em diversos países. Entre os usuários que responderam ao Censo, o hábito de cultivar maconha é algo recente para a maioria, 61%, respondeu realizar a atividade há menos de 1 ano na época. A forma como os usuários têm adquirido os conhecimentos necessários para o cultivo revelam algumas particularidades dessa cultura e reforçam alguns dados encontrados na observação na comunidade Growroom. As diferenças entre os dados a respeito dos hábitos dos homens e mulheres seguiram uma proporção bastante semelhante, não sendo relevante separar as informações, que foram apresentadas acima de modo geral. No entanto, os dados sobre as fontes de informação sobre o cultivo apontam reflexões que merecem destacar novamente essas diferenças. Em minha observação no Growroom, constatei que é bem reduzido o número de mulheres no fórum e a participação na sessão de cultivo é quase nula, sendo, inclusive, motivo de comemoração por parte dos usuários, quando ocorrem. Durante o período em que selecionei usuários para participar da pesquisa apenas uma cultivadora entrou em contato. Após a troca de algumas mensagens tentando esclarecer-lhe sobre a segurança e o anonimato na participação da pesquisa, me apresentando e explicando as intenções do levantamento, ela desistiu e parou de me responder sem dar qualquer explicação. Seja por receio maior de se expor, ou pela falta de acesso à informações sobre a existência do fórum, de fato a menor quantidade de mulheres é um dado comum desde a sua fundação, ainda que nos últimos dois anos tenha aumentado muito a participação feminina no fórum.

Fontes de Informação sobre Cultivo

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400

69%

350 300 Internet Amigos Livros Revistas

250 200 150

18% 10%

100

3%

30%

51%

50

16%

3%

0 Homens

Mulheres

É interessante notar nesses dados que, no caso dos homens, a grande maioria busca informações na Internet, opção de 69% dos cultivadores. Já entre as mulheres a fonte de informação preferida sãos os amigos, em seguida a Internet e, aparentemente, as mulheres também lêem mais livros sobre o tema do que os homens. Essa preferência feminina por obter informações através dos amigos também pode sinalizar que é o contato com outros cultivadores no seu círculo de amizade que as têm estimulado a plantar. Tanto os resultados do Censo como o resultado das entrevistas realizadas apontam o Growroom como o principal espaço de aprendizado sobre o tema. Nas palavras de alguns entrevistados: “O Growroom sempre foi minha principal fonte de informação sobre cultivo, notícias, leis e ativismo, além de ser um instrumento de integração entre eu e meus amigos growers que adquiri no site. Ampliei incrivelmente meus horizontes. Além dos conhecimentos sobre botânica, adquiri noções de marcenaria, elétrica, luminotécnica, dentre outras”. (Tito) “Tenho ótima relação com o Growroom. Lá aprendi, ensinei e tento ajudar outros cidadãos interessados em fugir do tráfico. Para mim o Growroom representa um poderoso mecanismo de apoio às pessoas que, como eu, querem fumar seu beck sem ter que recorrer ao crime, afinal de contas, também somos honestos e odiamos ter que conviver com o estigma de contribuir com a violência. Ele é a chave que nos traz a informação que precisamos para poder fumar sem precisar sujar as mãos de sangue comprando do crime organizado. Ele é um exemplo de como nós, maconheiros, somos pessoas organizados, sociáveis e mentalmente saudavéis”. 86


(Cabelo). Esses depoimentos nos permitem entender de que maneira a prática do cultivo para consumo próprio e o acesso a informações sobre o tema, bem como a outros usuários, têm tido um impacto positivo na vida dos indivíduos. Para muitos usuários, a convivência no Growroom tem proporcionado transformações não apenas no tipo e na qualidade da maconha consumida, mas na relação estabelecida com o uso e com a planta. Algumas falas a respeito da atual relação dos usuários com a maconha podem ajudar a ilustrar essas reflexões: “Minha relação com as plantas é muito boa. Eu adoro cuidar das minhas 'filhas' e, até hoje, todo dia, eu faço alguma coisa no meu grow65, é uma verdadeira terapia. Tanto o fato de cuidar das plantas, como o de bolar as estufas, planejar a iluminação, ventilação, etc.” (Nem me viu) “Hoje eu a utilizo como um instrumento para me conhecer e conhecer a Deus. Essa é minha relação atual com a erva, como uma planta sagrada, mestra, criada por Deus para fazermos uso consagrado, não atrapalhado, que se vem praticando para uso de ego e dinheiro... Por isso ela é proibida, querem fazer dinheiro mantendo ela proibida... Ela é minha mãezinha santa que nunca fez mal mas é crucificada todos os dias... essa é minha relação com ela, pra mim é sagrado, é a minha Santa Maria, minha mãe, é a luz da minha vida, enfim, é a cura para humanidade... É quem me dá o meu valor... Pra eu ser quem sou, do jeito que escolhi ser...” (Cabelo) Em minha análise, pude perceber que uma das principais preocupações a respeito da cultura do cultivo para uso pessoal se refere ao risco dos usuários se tornarem pequenos traficantes. Apenas um dos usuários entrevistados afirmou já ter vendido sua produção, justificando ter utilizado o dinheiro para cobrir parte dos custos com energia elétrica. Porém, muitos deles, ao contrário, afirmam que evitam até mesmo doar aos amigos, devido à grande dificuldade em se produzir o fumo. Todos eles demonstraram valorizar muito a produção doméstica, reservando-a apenas ao consumo pessoal, e no máximo compartilhando com amigos mais 65

Nome dado à estufa onde se cultiva maconha Do inglês, Grow – crescer, cultivar; Room – sala, ambiente; Growroom – Sala para o cultivo. Dessa expressão vem o nome do fórum, Growroom – Espaço para crescer.

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próximos. A fala do usuário Nem me viu ilustra bastante esse fato, ainda sendo representativo da mudança de significado sobre o uso, proporcionado pela cultura do cultivo: “Já doei algumas poucas vezes, e fumei também com alguns conhecidos. Não faço mais isso, pois não me agrada a ideia de ver o resultado do meu trabalho banalizado, fumado sem propósito, apenas para ficar doidão, como faz a esmagadora maioria dos maconheiros, sem a consciência do trabalho que deu criá-la, desde a germinação até a colheita e a secagem, a cura, acho que isso tudo tem um propósito, não acho que fico doidão quando eu fumo, alcanço um estado de consciência que me permite enxergar o mundo sob outro prisma”. (Nem me viu) O tema do comércio com os frutos da colheita doméstica é bastante controverso no fórum e, desde a abertura do Growroom, tem sido encarado das mais variadas formas. Atualmente é possível notar que, como em outros países, a figura do cidadão que cultiva e vende maconha, sem se envolver com outros crimes, tem sofrido uma sensível modificação na forma como é entendida no fórum. Não faz parte do objeto de estudo deste trabalho, mas vale a pena apenas destacar que o cultivador que tem vendido seu excedente tem sido cada vez menos considerado criminoso e mais entendido como uma figura necessária num contexto de injustiça forçada. Num contexto de extrema violência urbana relacionada com o comércio de maconha oriunda do crime organizado, muitos usuários têm preferido comprar colheitas excedentes de amigos à alimentarem esquemas violentos e corruptos, abrindo a possibilidade de novas configurações no atual mercado ilícito de drogas. Esse tema merece ser explorado numa oportunidade mais adequada, na qual seus diversos pontos polêmicos possam ser analisados e debatidos com maior propriedade. Dos 20 usuários entrevistados através dos questionários, apenas 4 (20%), haviam conseguido obter o sustento total do seu consumo através do cultivo. Quando questionados sobre o motivo que os impedia de obter a independência, todos os usuários atribuíam como principal causador dessa situação o fato de não poderem cultivar muitos pés, sob risco de serem interpretados como traficantes caso decidissem cultivar mais plantas. Nesse sentido, é importante destacar que não há como atribuir à uma determinada conduta de cultivo uma interpretação como sendo destinada ao comércio não-autorizado sem qualquer indício de intenção de 88


comercializar. Esse receio de ter uma quantidade maior de espécimes de maconha tem feito com que a maioria dos usuários cultivadores não obtenham uma autonomia com relação ao seu abastecimento. Dessa forma, o fumo produzido por cultivo doméstico é um produto escasso bastante valorizado pelos cultivadores, raramente é doado ou mesmo compartilhado e quase nunca é vendido. É importante destacar também que a grande maioria dos usuários afirmaram estarem dispostos a se adequar aos limites legais de uma eventual regulamentação para uso pessoal. Apenas dois deles (10%) afirmaram que só se adequariam caso os limites estivessem de acordo com as suas necessidades pessoais. Todos eles foram enfáticos ao afirmarem ser bastante difícil obter auto-suficiência com poucos pés de maconha. Ao serem questionados sobre qual deveria ser o número máximo de plantas por pessoa, nenhum deles conseguiu responder de forma definitiva à questão e as respostas oscilaram entre 3 e 40 espécimes. É importante destacar que nem todos concordaram com a utilização de quantidades máximas para uso pessoal e todos enfatizaram a necessidade de se levar em conta principalmente as técnicas e as condições de cultivo para se avaliar a real produtividade de um empreendimento do gênero. Devido à variedade de respostas, ficou claro que o único critério possível de ser adotado é o das evidências de comércio para a caracterização de tráfico. É até possível estabelecer um teto máximo de plantas por usuário, mas sabendo que qualquer limite fixo não dará conta de todos os padrões de uso, nem das condições de cultivo de todos os cidadãos. Nesse sentido, de fato, a melhor maneira de construir uma regulamentação seria não estabelecer limites de número de plantas para uso pessoal, sendo necessária apenas autorização prévia, mediante fiscalização de Agência de Estado. No atual contexto, em que se mantém a Lei 11.343 sem alteração, prevendo punições aos crimes de semear, cultivar ou preparar maconha para consumo pessoal, é recomendado que se siga a orientação constitucional de presunção da inocência. Ou seja, até que haja julgamento, o cidadão acusado deverá ser presumido inocente, a não ser em casos de flagrante delito. Nos casos em que haja dúvida a respeito de se o cultivo destinava-se ao comércio ou não, é importante levar em consideração a real ameaça que representa à sociedade uma pessoa que apenas cultive maconha. Em casos onde não há flagrante, a não ser que hajam provas, resultantes de investigação autorizada judicialmente, nenhum cidadão deveria ser presumido culpado. Em outras 89


palavras, sem provas ou flagrante de venda, nenhuma quantidade de pés de maconha deveria ser considerada suficiente para iniciar um processo por tráfico contra nenhum cidadão brasileiro. Antes de iniciar as considerações finais, acho importante destacar ainda, um dado do Censo que nos ajuda a refletir sobre o grau de mudança na relação com o consumo de maconha, proporcionado pelo engajamento na cultura do cultivo para consumo próprio. Já vimos como o engajamento na cultura do cultivo para consumo próprio demanda um envolvimento e a aquisição de uma série de saberes específicos, mais amplos do que os descritos nas pesquisas de Becker, MacRae e Simões e outros. Dentre essas especificidades, seria interessante discutir até que ponto há de fato transformações no significado atribuído ao uso de maconha e temas afins. Enquanto, entre na amostra de pessoas que responderam ao Censo e que não plantam, somente 10% afirmaram participar de algum movimento pela legalização da planta, entre a amostra dos que cultivam esse número sobe para 32%. Isso me faz crer que o envolvimento com outros aspectos relacionados com a cultura da planta amplie a percepção do usuário tanto do seu papel enquanto consumidor, quanto do seu papel de cidadão. Esse fato se revela ainda mais interessante quando o relacionamos com o fato de que todos os cultivadores entrevistados por mim afirmaram saber que a Lei brasileira sobre drogas tinha mudado e quase a totalidade, 85%, afirmou já ter lido a Lei. Esse dado revela um grau de politização e reflexividade a respeito da sua própria conduta não encontrado nos usuários de maconha e outras drogas de um modo geral. Mesmo havendo poucas discussões e pesquisas a esse respeito, é possível afirmar que o Growroom e outros espaços de sociabilidade para usuários de drogas têm servido como espaços de politização do debate público sobre o tema. A esse respeito é interessante citar algumas das falas dos usuários, quando questionados sobre se gostariam de deixar alguma mensagem para as autoridades que eventualmente fossem ler este trabalho. Esse depoimentos demonstram engajamento no debate a respeito das questões políticas do tema, reforçando os indícios de que o compartilhamento do espaço no fórum facilita a politização dos cidadãos usuários de maconha que frequentam o Growroom: “Diria que, antes de condenar quem cultiva pequenas quantidades, seria interessante que fosse feita uma reflexão baseada em três questionamentos: Essa pessoa 90


está prejudicando alguém com seu cultivo? Essa pessoa está prejudicando a si própria? Está prejudicando ou destruindo o meio ambiente e a natureza? Caso as três respostas sejam negativas, ou apenas a segunda seja positiva, que deixem as pessoas em paz e que vão fazer o trabalho que se espera dos repressores que é proibir e prender os verdadeiros criminosos que são os responsáveis pela roubalheira e corrupção absurda que assolam este país!” (Nem me viu). “Eu diria a eles o que na verdade eles já sabem. O cultivo para consumo próprio descaracteriza qualquer argumento que associe o consumo de maconha ao crime. Não existem vitimas, pois não é proveniente do tráfico de drogas, considerado atualmente o maior problema do país, mas que só existe por causa da proibição, que financia toda a máquina criminosa do país. Enquanto os governantes de todo o país ignorarem soluções simples como a Gaiola de Faraday (para acabar com os celulares em presídios) e a legalização, ao menos do cultivo para consumo pessoal e dos clubes coletivos, nosso país vai continuar seguindo o caminho do colapso que tem seguido nas últimas décadas” (Tito). Diversos outros temas de discussão e objetos de estudo poderiam ser analisados através dos dados do Censo, da Observação Participante e das entrevistas realizadas com cultivadores. Espero ainda publicar esses resultados e as discussões afins em diversas outras oportunidades e seguir com as pesquisas sobre esse tema, com o intuito de explorar melhor e mais profundamente essa tão ampla e pouquíssima explorada área de estudo.

12.Sobre

o

mito

da

“maconha

transgênica”

e

outras

considerações finais “Sou empresário e pago meus impostos em dia há 10 anos. Tenho automóvel há mais de 15 anos e nenhum histórico de acidente, muito menos que envolvesse o uso de drogas lícitas ou ilícitas. Gostaria que as autoridades enxergassem os usuários de maconha, não como criminosos, mas como eles são. Me considero um cidadão comum, que não faria mal algum a outro indivíduo ou ao Estado e não como um criminoso” (Oversize)

Não poderia finalizar este trabalho, sem me debruçar sobre um dos maiores mitos formados a partir do ressurgimento da cultura do cultivo de maconha. Em 91


muitos países do mundo essa discussão já foi ou está sendo travada e estudada por pesquisadores, mas, no Brasil, entretanto, essa questão tem sido debatida apenas pela imprensa, ou por poucos parlamentares, em geral de forma pouco informada66. Diversas notícias têm criado alarde sobre os perigos do Skunk67, da maconha hidropônica ou da “maconha transgênica”68, baseadas principalmente em situações de apreensão no qual plantas estavam sendo cultivadas por usuários para consumo próprio, em geral quando esses utilizam técnicas indoor ou sementes de seed banks. Esse processo de estigmatização sobre as práticas de cultivo não-comercial é fundamentado na desinformação a respeito das características botânicas da planta e nas características culturais das comunidades que realizam esse tipo de prática. Um dos principais mitos relacionados com esse tipo de cultura é a acusação de que tais técnicas de cultivo e os novos híbridos da planta possibilitariam plantas com maiores quantidades de resina e princípios ativos, incorrendo em maiores riscos e danos à saúde dos usuários. De fato, a produção de resina e inflorescências depende, como vimos, dos cuidados do cultivador e das técnicas empregadas. Porém, alguns pesquisadores afirmam que qualquer linhagem de maconha, quando bem cuidada, poderá produzir muitas flores e grandes quantidades de resina. No entanto, isso não significa dizer que, por isso, as plantas sejam geneticamente modificadas, muito menos que os usuários estejam consumindo maconha de forma mais arriscada ou perigosa. O citado ressurgimento da cultura de cultivo de maconha é um movimento relativamente recente na história da humanidade e ainda mais recente na história da evolução dessa espécie vegetal. Seria muita pretensão acreditar que os cultivadores contemporâneos, em menos de 50 anos de relação com o vegetal, tenham conseguido desenvolver técnicas de cultivo assim tão inovadoras e revolucionárias. Como vimos 66

67

68

Sobre esse tema é curioso a afirmação do Senador Demóstenes Torres na ocasião em que a Lei 11.343 estava sendo discutida no Senado, durante o debate sobre o artigo que classificava o cultivo para consumo próprio como conduta de usuário. Ele afirmou que para produzir um cigarro de maconha eram necessários de 2 a 3 pés da planta, demonstrando ou um total desconhecimento a respeito do tema ou uma postura completamente negligente com a realidade. Apesar de atualmente existirem centenas de variedades híbridas vendidas no mercado legal de sementes e registradas comercialmente, no senso comum, o nome Skunk, apenas uma dessas muitas variedades, é utilizado como sinônimo de maconha cultivada com sementes selecionadas vendidas em banco de sementes internacionais. Tanto veículos de imprensa quando a população em geral têm usado erroneamente o termo transgênico para se referir às variedades hibridas. Transgênicos são espécies desenvolvidas com alguns genes de outras espécies e o processo é realizado através de modificações em laboratórios de genética. Os híbridos da maconha são desenvolvidos mediante seleção manual de espécimes e o cruzamento entre as diferentes linhagens é realizado utilizando técnicas semelhantes às utilizadas há milhares de anos: coleta manual de pólem das plantas macho que deverá ser levado às plantas fêmeas.

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em outros momentos deste trabalho, tudo o que eles fizeram foi resgatar, registrar, difundir e adaptar dentro das condições específicas do regime proibicionista em cada localidade, uma ampla variedade de saberes que já estavam por aí difundidos. Além disso, o mercado legalizado de variedades da planta tem investido muito mais em propriedades como aroma, sabor, proporção dos canabinóis69, cores e formatos das inflorescências, do que somente na busca de maiores quantidades de flores ou resina70. Dessa forma, tem procurado ampliar a possibilidade da cultura canábica desenvolver-se de forma semelhante à cultura do consumo de vinho, cerveja ou café, por exemplo. Quando fazemos considerações comparando a maconha produzida por um cultivo doméstico, com o fumo apreendido em operações policias, precisamos fazer ponderações importantes, afim de assegurar um mínimo de equidade. A maconha é um produto bastante frágil, que perde a maior parte das suas propriedades quando armazenado, transportado ou manuseado em condições inadequadas. A resina psicoativa, que atualmente lhe dá valor no mercado ilícito de drogas, se apresenta na planta apenas nas inflorescências dos espécimes fêmeas, na forma de pequenas gotas de óleo, que facilmente se desprendem. Essa resina se desprende tão facilmente da planta que, durante uma colheita doméstica, somente com a resina que cai na manipulação da planta no processo de manicuração71, é possível obter pequena quantidade de haxixe. O próprio método tradicional de extração da resina para manufaturação de haxixe é feito colocando a planta sobre um tecido de seda esticado, cobrindo a planta com uma lona e batendo com varas por cima, para que a resina passe pela seda e se acumule em um recipiente. Isso significa que todo tipo de manipulação das flores após a colheita, até mesmo as realizadas com bastante cuidado, ocasionam perda de resina. Não há pesquisas sobre o grau de perda da resina no processo de produção, armazenamento, transporte e distribuição de maconha sob regimes proibicionistas. Além disso, todas as pesquisas 69

70

71

Até o momento, são conhecidos cerca 70 princípios ativos produzidos especificamente por plantas Cannabis, conhecidos como canabinóis, dos quais 9 são psicoativos. Atualmente sabemos que não só a quantidade de princípios ativos, mas sua configuração, ou seja, a proporção de cada um deles também é um importante fator para determinar os efeitos da planta nos usuários. A produção de resina não é um fator atrelado à produção de princípios ativos numa planta. Apesar dos canabinóis estarem presentes na resina, isso não significa que todas as variedades produzam a mesma proporção de canabinóis por grama de resina. Isso significa dizer que, na prática, uma planta menos resinosa pode até mesmo ser mais psicoativa do que uma outra que produza mais resina. Após colher as plantas é preciso cortar todas as folhas grandes e as folhas anexas às flores, deixando o mínimo de matéria vegetal que não seja inflorescências. À esse processo os cultivadores denominam manicuração.

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realizadas para medir o nível de resina e princípios ativos são feitas com amostras de maconha apreendidas bem depois de terem sido colhidas, o que faz com que tenham boa parte da sua resina já deteriorada ou perdida.

Flor de cannabis cultivada para consumo pessoal72. Dessa forma, não pode-se afirmar que a maconha cultivada atualmente é mais forte que a cultivada no período pré-proibicionismo, a não ser que se façam estudos comparando as características das híbridas de seed banks com land races brasileiras. Com base nos conhecimentos botânicos sobre a planta e sua resina, pode-se apenas especular

que o produto vendido ao consumidor final na maioria dos

empreendimentos atuais que comercializam maconha sem autorização perde boa parte da sua resina antes de ser consumida pelo usuário. Isso se deve não só aos rústicos processos de colheita, armazenamento, transporte e distribuição, que têm que seguir a lógica da priorização da quantidade, mas também ao fato dos pólos consumidores se encontrarem a longas distâncias dos locais de cultivo. Nesse contexto, grande parte da maconha vendida no Brasil está em estado de deterioração 72

É interessante notar que, segundo o usuário Serth, que gentilmente nos cedeu esta foto, essa planta foi cultivada utilizando sementes comuns, recolhidas de fumo comprado na região nordeste do país. Nota-se que, ao contrário do fumo comumente vendido, a flor ainda preserva a resina cobrindo-a e lhe dando o brilho peculiar.

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avançado, muitas vezes contaminada com fungos e bactérias nocivas. Portanto, quaisquer comparações entre os níveis de resina e princípios ativos da produção doméstica e os da produção comercial não-autorizada merecem bastante ressalva, já que as diferenças não estão na qualidade da maconha produzida numa e noutra situação, mas no estado do produto e na quantidade de resina que chega até o consumidor final. É verdade que, ao cultivar para consumo próprio, os usuários podem obter fumo fresco, recém colhido e livre de fungos e outros fatores deteriorantes, mantendo boa parte da resina produzida pela planta. Porém, isso não significa que estejam consumindo maiores quantidades de resina ou princípios ativos. Nesse sentido, precisamos admitir que existe uma diferença entre quantidade de resina e de princípios ativos contidos na maconha colhida e preparada pelos próprios usuários e pela maconha apreendida pela polícia. Mas, nesse caso, a maconha cultivada não é mais potente e por isso mais perigosa e arriscada. É a maconha vendida nas ruas que está mais deteriorada, por ser armazenada, transportada e manuseada em condições inadequadas, e com isso, aumentando os riscos à saúde dos usuários. Uma leitura patologizante da cultura da maconha tende a afirmar que os usuários buscam um fumo mais potente e, quando o encontram, isso não significa uma diminuição nas dosagens. Em outras palavras, dentro dessa tese, se um usuário de maconha consome por mês 100 gramas contendo 1% de princípios ativos e passa a plantar, obtendo uma maconha com uma proporção maior de princípios ativos, ele consumiria a mesma quantidade, apenas mantendo-se sob efeitos mais intensos. O relatório da ONU sobre drogas de 2006 dedica um capítulo especial ao tema chamado de re-enginnering of cannabis (UNODC, 2006). Porém, apesar de tecer comentários alarmistas sobre a potência da maconha produzida atualmente, o relatório afirma que, antes da utilização dessa técnica, grande parte do que era comercializado como maconha era, na verdade, composta de folhas, galhos, sementes e outras partes da planta não aproveitadas pelos usuários. O relatório alerta que, apesar dos esforços em reprimir o comércio não-autorizado, a partir da década de 1970, os produtores passaram a optar por vender quantidade menores que tivessem melhor qualidade e, com isso, pudessem obter maior lucro por grama da erva. Isso significa que no início do proibicionismo grande parte da erva disponível para consumo era de péssima qualidade e continha muitas partes não-psicoativas da planta. Com o surgimento, a partir da década de 1970, do que o relatório chamou de 95


redescoberta da marijuana sinsemilla e a retomada de técnicas de cultivo e adaptação dessas técnicas aos ambientes indoor, os comerciantes não-autorizados passaram a oferecer maconha de boa qualidade para os usuários. Tendo acesso à maconha em condições de preservação que mantenham boas quantidades de resina nas flores, os usuários, em geral, consomem quantidades de material vegetal menor. Ou seja, para obter os mesmos efeitos, inalam menos fumaça. Assim, quando tem acesso apenas à maconha com pouca resina, os usuários tendem a inalar maiores quantidade de fumaça para obter o efeito desejado. O próprio relatório da ONU, ao traçar comparações entre os hábitos de consumo de usuários de diferentes países, traz dados que ilustram bem essa afirmação: Adaptado da tabela disponível no Relatório da ONU de 2006, página 1977374. País Holanda ReinoUnido Canadá EUA Jamaica

Gramas demaconhaem1baseado 0,1g–0,25g 0,15g–0,33g 0,2g–0,33g 0,4g–0,5g 2g–3g

Adicionatabaco?* Sim Sim Às vezes Não Não

Sinsemilla** Sim Sim Sim Não Não

Baseados feitos com1grama 4–10 3–7 3–5 2 0,5–0,33

É claro que diversos outros fatores de ordem cultural, social, política, econômica, dentre outras, determinam as quantidades de maconha utilizadas em cada país, tanto quanto a quantidade de princípios ativos disponíveis por grama de maconha. No entanto, esses dados nos ajudam a refletir sobre a necessidade de relativizar a noção de que maior acesso à maconha de melhor qualidade signifique necessariamente um maior consumo do vegetal ou de seus princípios ativos, ou mesmo maiores danos à saúde. Os danos ocasionados pelos padrões de consumo geralmente estão ligados à utilização de métodos de ingestão que usam a fumaça da planta como veículo condutor dos princípios ativos (CORRIGALL et al, 1999; MACRAE, 2006). A ingestão de qualquer conteúdo inalando a fumaça da sua queima provoca irritação e danos nos órgãos e tecidos dos aparelhos digestivos e respiratórios, que podem levar ao desenvolvimento de feridas e, até mesmo, ao câncer. Usada na forma de cigarros, além da fumaça em alta temperatura, a Cannabis libera substâncias tóxicas, como o monóxido de carbono, que podem apresentar o mesmo potencial de risco que as 73

Países em que há cultura de adicionar tabaco nos cigarros confeccionados com maconha (baseados). Um país estar na tabela marcado como sim, não significa que não hajam pessoas que fumem maconha sem adicionar tabaco, apenas que este é a forma mais predominante de consumo de maconha. 74 A técnica sinsemilla, como falamos anteriormente faz com que a maconha produza mais resina do que quando o espécime é polinizado e passa a dedicar sua energia à produção da semente. Como no caso da prática de adicionar tabaco, o uso da técnica sinsemilla é expressa aqui como sendo a de maior predominância ou não no país citado, o que não exclui a existência de exceções à regra.

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liberadas pela queima do tabaco e outras plantas. Quando o consumo é feito em locais reservados, os indivíduos muitas vezes procuram evitar fumar pontas de cigarros ou utilizam técnicas para resfriar a fumaça (cachimbos, piteiras, cachimbos d’água, bongs, etc.) ou se alimentam com preparados à base da erva, buscando métodos para eliminar os riscos da inalação de fumaça em alta temperatura (LOPES-MALCHER; RIBEIRO, 2007, p. 91). Desde a década de 1990, também estão disponíveis no mercado aparelhos que aquecem as inflorescências a uma temperatura que varia entre 150Cº e 250Cº, o suficiente para transformar em vapor toda a água e grande parte da resina contida na matéria vegetal, sem necessidade de provocar a queima. Estas tecnologias reduzem ao máximo os riscos do ato de inalar a resina, com uma perda mínima dos princípios ativos contidos na matéria vegetal. Tais mecanismos diminuem muito os riscos do consumo dos compostos ativos da Cannabis. (GIERGINGER et al, 2004). O uso das propriedades psicoativas da planta também é contra-indicado no caso de pessoas com propensão a problemas psiquiátricos, embora haja mais controvérsias do que confirmações sobre as possibilidades da maconha provocar danos ao cérebro ou à psique. Alguns autores afirmam que o número de dependentes da planta e ou de usuários crônicos é bastante variável e os principais riscos à saúde estariam ligados a esses padrões de consumo. Para outros: A maconha é a droga ilícita mais consumida no mundo e é a primeira da lista em um grande número de países. Ainda assim, não há descrito sequer um único caso de morte por ‘overdose’ da droga. Constata-se que mesmo a maconha sendo consumida por muitos milhões de pessoas, é extremamente pequeno o número dos que estão em tratamento ou dele precisam por problemas de saúde física ou mental verdadeiramente induzidos pela droga. A maconha é uma droga pouco tóxica e sem grande poder de levar pessoas à dependência ou a prejuízos físicos e mentais graves. Na realidade, apesar de séculos de uso, somente nas últimas 2 ou 3 décadas algumas correntes passaram a pregoar poder indutor de dependência à maconha. (ABRAMD, 2006, p. 6). Pelas razões expostas, fica claro porque alguns autores têm sugerido que os principais danos decorrentes do consumo da planta seriam causados pela forma como a sociedade lida com a produção, a distribuição e o consumo dos seus derivados (WENDY et al, 2000; MAUER; KING, 2006; GOLUB et al., 2006). Em meio a tantas 97


controvérsias a respeito do potencial danoso do consumo da Cannabis, a única certeza é que os mercados de derivados da planta, quando tornados ilícitos, têm assumido configurações muitas vezes violentas e quase sempre relacionadas com outros crimes, causando mais problemas na vida dos indivíduos consumidores e da comunidade da qual fazem parte do que os que poderiam ser causados pelas propriedades farmacológicas da planta. Quando a produção, distribuição e consumo de uma determinada droga tornam-se legalmente atividades criminosas e condutas altamente repreendidas, variáveis não inerentes às propriedades específicas da substância são inseridas dentro dos contextos de consumo. O contato com ambientes violentos, a repressão policial e produtos em condições inadequadas seriam algumas das principais conseqüências diretas da adoção de políticas públicas focadas na repressão às condutas relacionadas com o consumo pessoal (KARAM, 2003; MACRAE, 2000). Se, por um lado, as políticas proibicionistas atuam introduzindo fatores geradores de danos sobre um determinado mercado consumidor, por outro, sua eficácia, enquanto estratégia para prevenção e diminuição do consumo de drogas, é bastante questionável. Um estudo conduzido na Austrália entrevistou pessoas entre 18 e 29 anos e concluiu que proibição e repressão não são os únicos fatores que atuam desestimulando o consumo de Cannabis e que as decisões dos indivíduos são tomadas levando em consideração muitos outros aspectos. Quase a metade dos entrevistados (47%) respondeu que nunca havia usado a planta (47%) porque nunca haviam pensado sobre o assunto, enquanto 41% afirmaram nunca ter fumado por preocupações com a saúde. Dentre os que já haviam experimentado, mas não seguiram com o hábito, 52% afirmaram não o fazer por não ter gostado da experiência com a planta. Dos que nunca experimentaram a erva, apenas 29% afirmou ter sido a proibição a principal motivação para não ter usado (WEATHERBURN; JONES, 2001, p. 5). De fato, estudos anteriores realizados nos EUA já apontavam a ineficácia das políticas proibicionistas e a sua posição desconfortável com relação ao custobenefício, quando comparadas com políticas mais voltadas para a redução de dano e prevenção. Um artigo publicado por Saffer & Chaloupka, em 1998, afirma que a persuasão à redução do consumo e a prevenção são estratégias eficientes, mas que medidas de restrição à liberdade eram pouco produtivas, chegando a custar quatro vezes mais do que as medidas preventivas. 98


O estudo conduzido na Austrália, permite reflexões sobre a ineficácia das políticas baseadas no sistema criminal com relação à promoção da diminuição do consumo de derivados de Cannabis e à prevenção ao seu uso inadequado. Outros estudos têm apontado dados ainda mais relevantes não apenas sobre os custos de tais políticas, mas sobre suas consequências, indicando serem tais políticas as principais responsáveis por danos à sociedade bastante específicos, como: criação de condições para o surgimento de um mercado criminoso das substâncias; desrespeito às liberdades individuais e direitos civis; uso ineficiente dos recursos humanos e materiais dos setores judiciais e policiais; dentre outros (LENTON et al., 1999a, 1999b, 2000; HALL, 2000). Além de não coibirem o uso, as intervenções desse tipo não têm grandes resultados na diminuição da oferta e na elevação dos preços. Diversos autores têm apontado para o fato de que, ainda que as intervenções de repressão ao comércio ocasionem uma elevação do preço temporária em uma determinada região, esse crescimento tem um limite e o mercado rapidamente se estabiliza novamente (DESIMONE, 1998; SHEPARD; BLACKLEY, 2005; OURS; WILLIAMS, 2005). No Brasil, não existem pesquisas semelhantes que possam nos ajudar a refletir mais detalhadamente sobre os custos e os impactos da proibição na vida dos consumidores e da sociedade. Porém, alguns levantamentos realizados entre 1997 e 2003 apontaram para o fato de que, nas regiões onde há cultivos de larga-escala de Cannabis e em centros urbanos onde há distribuição da droga, ocorre o desenvolvimento de relações sociais violentas e outros crimes, principalmente devido ao enfrentamento com outros grupos concorrentes no mercado de produção e distribuição não-autorizado e à necessidade de auto-regulamentação dos conflitos entre esses grupos (IULIANELLI, 2000; GUANABARA et al., 2004; RIBEIRO, 2006). Esse fenômeno vem ocorrendo desde a década de 1970, período em que se intensificaram as operações de erradicação e repressão ao cultivo da planta no Norte e Nordeste do país. Estudos mais recentes acrescentam que, além de todos esses problemas, esses contextos de produção também estariam submetendo jovens e adultos camponeses engajados em pequenos e médios empreendimentos de cultivo comercial a condições subumanas de trabalho (MOREIRA, 2004; LIMA et al., 2005; IULIANELLI et al., 2006). O sociólogo Paulo César Morais sugere que, ao focar a atenção na proibição e repressão ao uso, tais políticas geralmente não atingem os objetivos de constranger o 99


comércio não-autorizado e o consumo, gerando o que ele chama de efeito perverso. Isso se deve, principalmente, ao fato de se basearem em “interpretações equivocadas sobre o comportamento de usuários, sobre a relação entre usuários e traficantes, e entre traficantes e pequenos varejistas; em suma, sobre o mercado de drogas” (2005, p. 1). O consumo de drogas deve ser visto como um fenômeno de massa bastante complexo, que, para ser analisado com vistas ao estabelecimento de medidas de intervenção, requer que sejam levados em consideração dois fatores básicos: 1) uma lei só pode ser eficaz quando é respeitada e considerada justa; e 2) o consumo de drogas é um fenômeno que ocorre das maneiras mais variadas possíveis, dentro de episódios esparsos na história de vida de milhões de pessoas diferentes. Tendo isso em vista, a amplitude de tais comportamentos e a óbvia dificuldade em torná-los ilícitos, é possível entender os motivos para a pouca efetividades das leis sobre drogas que se baseiam na proibição do porte, aquisição e cultivo para consumo pessoal. Fenômeno de massa, o consumo de drogas acontece geralmente em ambiente privado, ou em ambientes públicos tolerantes onde o uso é feito de maneira que possa ser ocultado ou dissimulado, ocorrendo com uma periodicidade variável e em companhia de pessoas diferentes. Em tais circunstâncias, um ato privado praticado por milhões de pessoas, que já se acostumaram a desenvolver técnicas para garantir a segurança da prática e ocultá-la de pessoas indesejáveis, torna-se praticamente impossível de ser controlado por autoridades policiais. Como outros comportamentos de âmbito privado, o controle e a formação de regras e sanções sobre o consumo de drogas sempre esteve a cargo dos grupos e comunidades nas quais o consumo era empreendido e só no período recente da história da humanidade isso foi alterado. A persuasão e o convencimento sempre foram as principais maneiras de atuar na promoção de padrões e modos seguros de consumo de quaisquer substâncias psicoativas. Intervenções que visem diminuir os problemas em decorrência do consumo de Cannabis e da configuração do seu mercado precisam levar em conta os múltiplos fatores que se inter-relacionam na formação do mercado consumidor e adotar estratégias que atinjam esse mercado de maneira mais ampla. Admitir a heterogeneidade e fluidez das estruturas de produção e distribuição dessa planta e de seus derivados pode ser uma primeira medida nesse sentido. A criação de leis mais adequadas e embasadas nessa realidade e o treinamento das autoridades policiais 100


para o enfrentamento de situações concretas de forma a estarem amparadas em informações reais sobre esse cenário são essenciais, se quisermos criar políticas que promovam de fato a saúde das pessoas que fazem uso de drogas e o bem-estar da sociedade em geral. O uso controlado de drogas, muito mais do que pela polícia ou pela lei, é fundamentalmente regulado pela forma como as sanções e rituais sociais são socialmente apreendidos pelos usuários, ou seja, pela cultura da droga e a comunidade que lhe dá sentido. Tal aprendizado depende diretamente da disponibilidade e da qualidade das informações sobre a substância, os efeitos, os usuários, seus hábitos, sobre a própria cultura da droga e todos os temas relacionados. Atualmente vivemos um tempo em que as opiniões sobre o tema são, muitas vezes, cercadas de maniqueísmos estéreis e a escassez de informações isentas de parcialidade se faz predominante. Ter na Internet possibilidades para que grupos de usuários possam ter acesso a formas de sociabilidade dinâmicas e abertas, na qual informações de todos os tipos de fontes e experiências estejam disponíveis é, de certa forma, tranquilizador. Me faz ter esperança que, de uma forma ou de outra, a cultura da droga sobrevive reproduzida pelos milhões de usuários e dando-lhes amparo, num contexto no qual só encontram exclusão social, política e legal do Estado. Ainda que o uso da Cannabis possa causar alguns danos, em uma sociedade na qual informações sobre maneiras seguras de consumir a planta circulassem abertamente,

certamente

esses

danos seriam

menores

e

mais

facilmente

equacionados. As principais formas de diminuir os problemas decorrentes do uso, no atual contexto, seriam políticas que garantissem o acesso a informações seguras e diversificadas sobre o tema, capacitando as pessoas que usem maconha a estabelecerem uma relação menos prejudicial de consumo. Assim, as melhores estratégias de redução de danos são aquelas que alteram de forma persuasiva os métodos de consumo utilizados, dialogando de maneira franca com os usuários. Para isso, seriam necessários espaços de convivência, promoção de debates, seminários, palestras e, até mesmo, a utilização de fóruns de discussão. Fica claro que, em meio às discussões e divergências sobre modelos preventivos e de regulamentação a serem adotados, a preocupação de todos os atores envolvidos nesses debates é com a saúde e o bem-estar dos cidadãos brasileiros que 101


fazem ou não uso de derivados da maconha. Admitindo isso, devemos também entender que a persistência em defender a proibição e a manutenção do foco da repressão nas práticas de porte e plantio para consumo próprio é realizada em um contexto de desconhecimento do histórico de políticas públicas sobre o tema, dos seus resultados e de suas consequências, bem como no vácuo de pesquisas sobre os reais riscos à saúde provocados pela planta. No entanto, ao observarmos o atual cenário, no qual a atuação pública sobre o tema é hegemonicamente proibicionista, vemos que os resultados das medidas adotadas, supostamente visando à proteção da saúde dos usuários e a segurança e o bem-estar dos cidadãos, estão longe de alcançar os objetivos que se propõem. Assim, acredito ser uma agressão aos fundamentos constitucionais brasileiros, que atualmente um adulto que cultive, prepare e armazene uma quantidade de maconha para seu uso pessoal ou compartilhamento entre amigos seja considerado um criminoso. A despeito de se deve ou não ser legalizada a maconha e outras drogas e de como deveria ser uma eventual produção regulamentada, é inadmissível que adultos não possam optar sobre o tipo de vegetais que irão cultivar para seu próprio uso. Como afirmei acima, não se trata de negar riscos e danos do uso de maconha, mas de admitir que desde a proibição da planta no território nacional a cultura do seu uso não foi exterminada, como prevista pelos proibicionistas, ao contrário, persiste e tem se adaptado. Ao admitirmos isso, ampliamos a compreensão sobre o uso da maconha e podemos entender que a Guerra à Maconha e outras drogas não é só um esforço de promoção da extinção de uma espécie vegetal, o que já seria um absurdo, mas o extermínio sistemático das culturas de utilização de algumas plantas selecionadas para serem mantidas na ilicitude. Nesse sentido, a Guerra às Drogas seria, na verdade, uma guerra etnocida, que visa o encarceramento de pessoas que fazem parte de culturas onde o consumo de drogas é compreendido de forma diversa do que prega a legislação atualmente em vigor (HENMAN, op. Cit.). Com este trabalho espero ter podido trazer alguns dados e informações importantes sobre a cultura do cultivo não-comercial de maconha, desejando, com isso, auxiliar na tarefa de promover reflexões críticas a respeito do atual status social e político-legal desse hábito. Assim, talvez possamos produzir reflexões a respeito da realidade brasileira e das possibilidades de transformá-la através de processos que, verdadeiramente, melhorem a qualidade de vida das pessoas, sejam elas 102


consumidoras ou não de Cannabis e derivados, reduzindo os custos da administração pública e da violência associados ao mercado criminalizado. Desejo, com esta pesquisa, ter conseguido realizar a função de tradutor cultural a que me propus, facilitando a compreensão da comunidade de antropólogos e outros cientistas sobre os usuários de maconha, mas também possibilitando que usuários de maconha tenham acesso a informações e dados que lhes ajudem na luta pela garantia dos seus direitos. Só assim, num contexto de garantias de Direitos Constitucionais e acesso real e igualitário à esses direitos poderemos realmente diminuir os danos e riscos do consumo de qualquer droga. Por fim, quero registrar algumas recomendações que, em minha opinião, poderiam ajudar a acelerar a implantação desse tipo de política na realidade brasileira: Promoção de debates, palestras e outras iniciativas de cunho informativo sobre a nova lei n. 11.343, o histórico de Leis brasileiras e internacionais, a interpretação oficial da UNODC sobre as Convenções da ONU e sobre as possibilidades da regulamentação do cultivo não-comercial de Cannabis, destinados a todas as pessoas ligadas ao SISNAD e outros cidadãos interessados no tema; 2. Dar seguimento ao envio da petição pela retirada da Cannabis sativa da Cédula IV, da Convenção de 1961, em reconhecimento dos erros históricos cometidos pela delegação brasileira, em 1924, conforme o processo iniciado em 2004 pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD). (CARLINI et. al., 2004); 3. Estabelecimento de parcerias com os governos dos países que têm adotado uma interpretação mais flexível das Convenções da ONU, promovendo o intercâmbio de experiências, dados e informações a respeito de políticas e leis sobre drogas; 4. Estabelecimento de parcerias com instituições de pesquisas, nesses países, para a promoção de estudos comparativos sobre a viabilidade da aplicação dessas políticas, no Brasil; 5. Fomento e incentivo para realização de pesquisas que tenham como objetivo analisar a implantação da Lei nº 11.343 e seus impactos na sociedade, assim como o funcionamento dos diferentes setores do SISNAD; 6. incentivo a grupos de pessoas e instituições para criação de espaços de convivência, mesmo que em ambiente on-line, para compartilhamento de experiências e informações, sempre atentando para a criação de espaços de diálogo entre as pessoas que usam Cannabis ou outras drogas e o Sistema Único de Saúde (SUS); 7. promoção de estudo sob coordenação do Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) sobre as possibilidades de implantação de modelos de regulamentação da posse, aquisição e cultivo para consumo próprio, a exemplo

1.

103


do Office of Medicinal Cannabis75, na Holanda, dos Medical Clubs nos EUA76 ou dos Cannabis Social Clubs77; 8. fortalecimento do diálogo com os grupos, comunidades, associações e outros coletivos de pessoas que usam Cannabis e outras drogas, buscando entender as demandas e as necessidades específicas dessas populações.

Para saber mais sobre a Office of Medicinal Cannabis, na Holanda, visite: www.cannabisoffice.nl. Sobre as experiências de regulamentação do uso medicinal da Cannabis nos EUA, ver: GERBER, 2004, p. 121-34; GIERINGER, 2003). 77 O Cannabis Social Clubs é um modelo de regulamentação criado pela Coligação Européia por Políticas de Drogas Justas e Eficazes (ENCOD), colocado em prática, atualmente, por Organizações Não-governamentais (ONG’s), na Espanha, Bélgica e Suíça, e foi apresentado oficialmente como proposta de redução de danos, durante a 4ª Conferência Latina de Redução de Riscos relacionados ao Consumo de Drogas (CLAT), em 2007. A proposta se baseia na formação de associações de consumidores que teriam como princípios: 1) não ter fins comerciais nem buscar obtenção de lucro; 2) só aceitar como associados pessoas maiores de 18 anos; 3) não fazer qualquer tipo de publicidade; 4) notificar constantemente a quantidade de plantas cultivadas, e de flores colhidas e distribuídas; 5) não realizar qualquer tipo de comércio ou de distribuição gratuita a pessoas não associadas; e 6) manter um constante diálogo com os órgãos de Saúde Pública. Para saber mais sobre a proposta, visite o endereço: www.encod.org/info/test. 75 76

104


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113


ANEXO I Questionário das entrevistas com usuários do Growroom

“Prezado Usuário, Você está sendo convidado a fazer parte de um levantamento a respeito das pessoas que consomem Cannabis sativa, e que também a cultivam. Se aceitar, deverá responder ao questionário abaixo, elaborado para coletar alguns dados a respeito das pessoas que plantam Cannabis sativa para consumo próprio. As informações que você me fornecer serão usadas de uma forma que não prejudique ou identifique as pessoas que colaborarem com a pesquisa. O sigilo e o anonimato das pessoas que participam deste tipo de pesquisa é assegurado pelas diretrizes impostas pelo Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia. Ou seja, ao assumir realizar uma pesquisa de cunho antropológico, para resultar na produção de uma monografia de graduação em antropologia, estou me comprometendo em seguir todas as normas e regulamentações próprias do fazer antropológico, o que inclui a preservação das fontes, especialmente em casos em que algumas informações possam prejudicar a comunidade estudada, como é o caso desse trabalho. Não se preocupe quanto ao sigilo com relação às informações que for me enviar, asseguro que são de uso exclusivo para análise científica e os dados publicados não identificarão nenhum dos entrevistados, nem direta nem indiretamente. O Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), pode ser consultado no site da instituição www.abant.org.br O questionário pode ser respondido livremente, ou seja, não se limite a dizer sim ou não, aproveite o espaço para explicitar tudo que deseja com relação ao tema. Todo o conteúdo sobre você e seu histórico de vida relacionado com o tema que tiver interesse de revelar é importante para meu trabalho. (NÃO TENHA PRESSA PARA RESPONDER, FAÇA NO SEU TEMPO). Acredito que talvez seja interessante me enviar ele respondido em um arquivo de Word anexado, para o endereço de emaiL: sergiociso@yahoo.com.br a não ser que prefira por aqui. Aguardo notícias. Qualquer dúvida pode entrar em contato no mesmo endereço, ou via Mensagem Privada no fórum.

IDADE?

COR / ETNIA / RAÇA?

SEXUALIDADE?

QUAL SUA OCUPAÇÃO NO MOMENTO, INDEPENDETEMENTE DE SE 114


LHE TRAZ RENDA OU NÃO? •

RENDA MENSAL? COMO ELA É ADIQUIRIDA?

É CASADO, SOLTEIRO, ETC...?

COMO É SUA RESIDÊNCIA E COM QUEM A DIVIDE?

O QUE VOCÊ COSTUMA FAZER PRA SE DIVERTIR?

COM QUANTOS ANOS VOCÊ FICOU BÊBADO PELA PRIMEIRA VEZ?

COMO FOI SUA RELAÇÃO COM AS BEBIDAS ALCÓOLICAS NO INÍCIO?

COMO É ATUALMENTE SUA RELAÇÃO COM AS BEBIDAS ALCÓOLICAS?

QUANTOS ANOS TINHA QUANDO FUMOU O 1º BASEADO?

COMO FOI SUA RELAÇÃO COM A MACONHA NO INÍCIO?

COMO É ATUALMENTE SUA RELAÇÃO COM A MACONHA?

VOCÊ JÁ EXPERIMENTOU OUTRAS DROGAS? QUAIS?

ATUALMENTE, COMO É SUA RELAÇÃO COM OUTRAS DROGAS?

COM QUANTOS ANOS VOCÊ PLANTOU MACONHA PELA PRIMEIRA VEZ?

VOCÊ JÁ CONHECIA O GROWROOM?

COMO ERA SUA RELAÇÃO COM O GROWROOM NO INÍCIO?

COMO É SUA RELAÇÃO COM O GROWROOM ATUALMENTE?

O QUE REPRESENTA O GROWROOM PARA VOCÊ?

COMO FOI SUA RELAÇÃO COM O PLANTIO DE MACONHA NO ÍNICIO?

E ATUALMENTE COMO É?

PORQUE VOCÊ PLANTA MACONHA?

VOCÊ PLANTA USANDO O SOL OU USANDO LÂMPADAS?

SE VOCÊ PLANTA USANDO LÂMPADAS, PORQUE PREFERE O CULTIVO INDOOR?

115


SE VOCÊ PLANTA COM LÂMPADAS, COMO É O SEU “GROWROOM”?

SE VOCÊ PLANTA COM O SOL, QUAIS SÃO AS CONDIÇÕES DO LUGAR (QUANTIDADE DE LUZ, SE É GUERRILHA OU DOMÉSTICO, ETC)?

QUE TIPO DE SEMENTES VOCÊ CULTIVA?

QUAIS TÉCNICAS DE CULTIVO VOCÊ COSTUMA UTILIZAR?

VOCÊ UTILIZA FERTILIZANTES? DE QUE TIPO?

QUAL É ATUALMENTE SUA MAIOR FONTE DE INFORMAÇÕES SOBRE O TEMA?

VOCÊ ESTARIA DISPOSTO A ADEQUAR SUAS PRÁTICAS DE CULTIVO E CONSUMO A UMA LEGISLAÇÃO QUE PREVESSE O CULTIVO DE UMA QUANTIDADE LIMITADA PARA CONSUMO PRÓPRIO?

QUAL VOCÊ ACHA QUE SERIAM OS LIMITES DE UM CULTIVO PARA CONSUMO PRÓPRIO?

COMO VOCÊ ACHA QUE DEVERIA SER A LEIS QUE REGULAMENTAM A POSSE E O CULTIVO DE MACONHA?

VOCÊ SABE QUE A LEI BRASILEIRA SOBRE DROGAS MUDOU?

VOCÊ JÁ LEU A LEI 11.343?

O QUE VOCÊ ACHOU/ENTENDEU DESSA NOVA LEI?

VOCÊ ATUALMENTE CONSUMO?

SE NÃO, COMO CONSEGUE O RESTANTE?

VOCÊ COSTUMA DOAR ALGUMA QUANTIDADE DA COLHEITA A AMIGOS E CONHECIDOS?

VOCÊ JÁ VENDEU ALGUMA VEZ ALGUMA QUANTIDADE DA COLHEITA? PORQUE? FOI PARA UM AMIGO, CONHECIDO PRÓXIMO, CONHECIDO DISTANTE OU PARA UM ESTRANHO?

O

QUE

VOCÊ

COLHE

GOSTARIA

O

DE

SUFICIENTE

DIZER

PARA

PARA

AS

TODO

SEU

AUTORIDADES

BRASILEIRAS SOBRE O CULTIVO PARA CONSUMO PRÓPRIO?”

116


ANEXO II Questionário do Censo Cannábico 1. E-mail (opcional) 2. Cidade onde mora 3. Estado 4. Faixa etária 10 a 15 16 a 20 21 a 25 25 a 30 31 a 40 mais de 40 5. Sexo Masculino Feminino 6. Cor e/ou identificação étnica Negro Branco Mestiço Afro-descendente Oriental Albino Indígena Outro 7. Religião Afro-brasileira Budismo Islamismo Cristianismo Rastafarianismo Agnóstico Ateu Hinduísmo Semitismo Nenhuma Outra 8. Opção Sexual Heterossexual Homossexual Bissexual 117


9. Ocupação 10. Renda pessoal (em R$) até 500 500 a 800 800 a 1.500 1.500 a 2.500 2.500 a 4.000 4.000 a 7.000 7.000 a 12.000 mais de 12.000 11. Renda familiar até 500 500 a 800 800 a 1.500 1.500 a 2.500 2.500 a 4.000 4.000 a 7.000 7.000 a 12.000 mais de 12.000 12. Você contribui na renda da família? Sim Não 13. Quanto você gasta por mês em maconha? (em R$) Nada ou quase nada até 10 entre 11 e 20 entre 21 e 30 entre 31 e 50 entre 50 e 100 mais de 100 14. Número de pessoas na família, residentes no mesmo lar 1a3 4a6 7 a 10 10 a 15 mais de 15 15. Escolaridade 1 grau Ginásio incompleto Ginásio com incompleto 2 grau incompleto 2 grau completo Superior incompleto Superior completo Pós-graduação 118


16. Grau de escolaridade do chefe da família 1 grau Ginásio incompleto Ginásio com incompleto 2 grau incompleto 2 grau completo Superior incompleto Superior completo Pós-graduação 17. Qual a sua posição quanto às leis relacionadas a drogas psicoativas? A favor da legalização total de todas as drogas Só as mais leves (Cannabis, p. ex.) Descriminalização e permissão de plantio/produção Punir apenas o tráfico, usuário não é criminoso Liberar o consumo em locais específicos 18. Você acredita que usar drogas ilegais contribui com o tráfico (mercado negro), aumenta a violência e faz mal à sociedade como um todo? Sim Não 19. Você costuma se sentir culpado acreditando que pode estar financiando a violência? Sim Não 20. Você considera hipócrita o fato de cigarro e cerveja serem drogas liberadas para consumo, enquanto a maconha é proibida? Sim Não 21. Você associa o consumo à alguma religião e/ou prática religiosa? Sim Não 22. A qual religião e/ou prática religiosa você associa seu consumo? (selecione até três opções) Cristianismo Budismo Espiritismo Hinduísmo Islamismo Práticas Místicas Religiões Afro-brasileiras Seitas daimistas Outras 23. Você utiliza Cannabis medicinalmente? Sim 119


Não 24. Em caso afirmativo, qual tipo de uso? (selecione até três opções) Analgésico Estimulador de apetite Tópico Psicológico 25. Você participa de algum movimento pró-legalização? Sim Não 26. Que tipo de movimento? (selecione até três opções) Lista de discussões Fóruns de discussões Entidades partidárias Organizações não-governamentais 27. Já sofreu algum tipo de descriminação? Sim Não 28. O que você mais gosta de fazer quando está sob efeito da droga? (selecione três opções) matar a larica (comer) transar (fazer sexo) zoar com a galera andar de carro escutar um som tocar um instrumento musical cinema trabalhar beber praticar esportes coletivos praticar esportes individuais shows e espetáculos ler relaxar e não fazer nada 29. Quais estilos de música você prefere? (selecione três opções) Rock Pop-rock Rock progressivo Reggae Soul/R&B Jazz/Blues Clássico Latina Hip-Hop/Rap Axé Pagode Pop 120


Samba/Pagode “raiz” Heavy-metal e afins Música internacional (indiana, celta, russa, etc.) Techno Trance House Drum and bass MPB/Bossa Nova Pop 30. Você estuda o assunto (Cannabis e a relação do homem com ela)? Sim Não 31. O que você estuda sobre o assunto? (selecione até três opções) Uso medicinal Legislação Cultivo Dependência, tratamento e/ou Redução de danos Psicologia do uso História Aspectos sócio-antropológicos Tráfico e violência Todos 32. Quanto você fuma em média? Algumas vezes por ano uma ou outra vez por mês alguns fins de semana todo fim de semana mais de três vezes por semana todo dia 2 a 3 baseados por dia mais de 3 baseados por dia 33. Quantas gramas consome por mês? Entre 1 e 10 Entre 11 e 30 Entre 30 e 50 51 e 100 100 e 150 150 e 200 mais de 200 quase nada (menos de 1 g) 34. Em geral você fuma mais... sozinho acompanhado meio a meio 35. Quanto você gasta por mês com equipamentos (sedas, cachimbos, pipes, bongs, 121


etc.)?

Menos de R$ 3,00 De R$ 3,00 a R$ 7,00 De R$ 7,00 a R4 15,00 De R$ 15,00 a R$ 30,00 De R$ 30,00 a R$ 50,00 Acima de R$ 50,00

36. Como você mais costuma consumir? Alimentos (Cannabis culinária) Baseado (cigarro) Bong Cachimbo ou marica Chillum Narguillé Tinturas, chás, bebidas à base de Cannabis Vaporizador Outro 37. Se você costuma optar por consumir em baseados, que tipo de papel prefere para fazê-los? Papel de Arroz Papel de Cânhamo Industrial Papel de seda Papel de guardanapo de lanchonete 38. Já comeu maconha? Sim Não 39. Com que frequência você come? Raramente Ocasionalmente Frequentemente 40. Em quais locais prefere fumar? (selecione duas opções) Em casa Na praia Em bares e boates No campo Shows e espetáculos No carro Na Faculdade/Escola No trabalho 41. Você consome por motivo de tratamento médico? Sim Não 42. Quantas pessoas conhece que são usuários ativos? Entre 1 e 5 122


Entre 6 e 10 Entre 11 e 20 Entre 21 e 30 Mais de 30 43. Começou a fumar com quantos anos? Entre 10 e 15 Entre 16 e 19 Entre 20 e 25 Mais de 25 44. Seus pais fumam ou fumaram maconha? Sim Não 45. Já fumou com seus pais? Sim Não 46. Seus pais sabem que você consome? Sim Não 47. Que tipo de maconha consome com mais frequência? Solto Prensado Haxixe “Skunk” 48. Você usa outras drogas regularmente? Sim Não 49. Quais outras drogas costuma usar regularmente? (selecione até três opções) Álcool Alucinógenos (cogumelo, LSD, etc.) Anfetaminas Calmantes e Xaropes Cocaína Crack Narcóticos (morfina, heroína, ópio) Tabaco Tranquilizantes e Soníferos Outras plantas psicoativas 50. Você costuma associar o uso de Cannabis à outras drogas (álcool, anfetaminas, etc.)? Sim Não 51. Alguém te aplicou (te induziu ou convenceu a fumar) ou você decidiu sozinho? 123


Sozinho Fui aplicado (a) 52. É fácil conseguir maconha? Sim Não 53. Como você consegue sua maconha? (selecione até quatro opções) Plantando Doações de amigos e conhecidos Compro de alguém que conhece Compro direto do traficante 54. Você planta? Sim Não 55. Planta o que? Genética comum (semente de fumo comum) Genética qualificada (sementes de seed bank) Ambos Nada 56. Planta em que ambiente? Indoor (interior) Outdoor (exterior) 57. Qual meio de cultura usa na plantação? Terra Hidroponia Côco Outros 58. Quanto tem investido em seu cultivo? Até R$ 50,00 Até R$ 200,00 Até R$ 500,00 mais de R$ 500,00 mais de R$ 1.000,00 59. Há quanto tempo cultiva? A pouco tempo mais de 1 ano de 2 a 5 anos mais de 5 anos 60. Onde aprende sobre cultivo? Livros Web Amigos Revistas 124


61. Planta apenas para o consumo próprio? Sim Não 62. Com quem fumou o primeiro baseado? Amigo(a) Namorado(a) Irmã(o)/Primo(a) Pai/Mãe/Tio(a) Cônjuge Colega de trabalho 63. Aonde foi? Na Escola/Faculdade Na praia No campo Na nigth Show ou estáculo Festa No trabalho Na casa de amigos ou parentes 64. Que tipos de efeitos ou reações prefere? (selecione duas opções) Viajar/filosofar Morgar/relaxar Estímulo/empolgação Alucinações visuais e auditivas 65. Você acredita que fumar aumenta sua libido (tesão)? Sim Não Ás vezes Raramente 66. Você acredita que a maconha te levou a usar outras drogas? Sim Não 67. Já teve algum problema de saúde causado pelo uso da maconha? Sim Não 68. Se respondeu “Sim” na pergunta acima, quais? (selecione até três opções) Respiração ofegante Tosse Dor de garganta Ardência nos olhos Confusão mental Perda de memória Dificuldade de concentração 125


69. Já se sentiu prejudicado em sua vida profissional/ acadêmica devido ao consumo da erva? Sim Não 70. Você percebe que passa dos limites... Na maioria das vezes Ás vezes Poucas vezes Quase nunca Nunca 71. Você já se sentiu dependente? Sim Não 72. Você consegue se controlar com facilidade? Sim Não 73. Você já pensou em parar de consumir Cannabis? Sim Não 74. Você já tentou parar de fumar? Sim Não 75. Quantas vezes já tentou parar de usar maconha? Uma vez De 2 a 5 vezes Mais de 5 vezes 76. Você já “rodou” (foi pego em flagrante pela polícia)? Sim Não 77. Mais de uma vez? Sim Não 78. Na ocasião, ocorreu suborno aos oficiais? Sim Não 79. Já assinou o 12 ou o 16? Só o 12 Só o 16 Os dois Nenhum 126


O que é isso?

127


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