9 minute read

A fé cristã, a Igreja e a política na história recente (Magno Paganelli

A fé cristã, a Igreja e a política na história recente

Magno Paganelli

Advertisement

Uma das grandes e acaloradas discussões internas na Igreja evangélica gira em torno da separação dos poderes no cenário democrático. Está embutida nessa questão a discussão ou defesa da laicidade do Estado e a relativa pressão exercida por alguns grupos evangélicos. A tal laicidade, como sabemos, é a prerrogativa do Estado não defender uma fé em detrimento de outras. Ele deve agir no rigor da Lei e não ser movido por preferências ou pretensos apoios. A questão não é simplesmente resumida à pergunta “evangélicos podem participar da política?”. A isso a resposta é “sim”, obviamente, pois a cidadania confere esse direito nos regimes democráticos. Queremos refletir sobre outra abordagem, isto é, se a mistura entre a Igreja e a política é legítima, ou se é possível ou real essa separação.

Sabemos que a religiosidade humana, por ser inerente ao indivíduo, está entranhada em outros aspectos da identidade cultural. A religião de uma pessoa por vezes vem a ela pela etnia, produz reflexos em sua conceituação de gênero e pode dar a orientação política para um lado ou outro. Sendo assim, como divorciar religião da política? É esse o melhor exercício democrático que temos a fazer?

Quando olhamos para a longa história da fé cristã, vemos o papel determinante da religião na vida política comum das sociedades europeia, norte-americana e, mais recentemente, latino-americana. Até há bem pouco tempo – falo de cento e trinta anos atrás –, Estado e Igreja eram engrenagens no mesmo mecanismo. O sistema do padroado1 vigorou no Brasil desde D. Pedro II até a Proclamação da República (1889). No entanto, por meio de longos processos históricos, no Brasil e antes dele na Europa, houve uma clara separação entre os poderes temporais e espirituais ou, se preferir, os poderes públicos e os religiosos. Por poderes públicos consideramos a autoridade política, a economia, a cultura, educação e artes, a imprensa.

1 O padroado católico no Brasil era o sistema no qual o Imperador dispunha de poderes como representante de Roma no país, nomeando as lideranças religiosas católicas e arcando com os rendimentos delas, sendo a folha de pagamento uma responsabilidade do Estado. Decorre daí a possibilidade de corrupção desses líderes.

MAS A PRÓPRIA REFORMA PRECISA SER VISTA COMO A CULMINAÇÃO DE PARTE DE OUTRO PROCESSO PARA O QUAL O HUMANISMO E OUTROS MOVIMENTOS DERAM GRANDES CONTRIBUIÇÕES.

Temos o hábito de afirmar a Reforma Protestante no século XVI como o evento que rompeu o mecanismo híbrido, separando política e religião, e promoveu a volta às Escrituras e o fomento e a exaltação da liberdade do indivíduo. Mas a própria Reforma precisa ser vista como a culminação de parte de outro processo para o qual o Humanismo e outros movimentos deram grandes contribuições. De modo concomitante veio o Renascimento (1300-1600). O termo francês Renaissance designa o reavivamento literário e artístico na Itália dos séculos XIV e XV, e temse considerado que o Renascimento deu origem à Era Moderna, quando muitos começaram a pensar de modo independente, como indivíduos.

Bem antes da Revolução Francesa – outro evento que acentuou a separação entre poderes, reforçando a ideia da democracia como o poder que emana do povo –, Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês, lançou formulações para um governo que mantivesse a ordem se e quando a temperatura subisse entre a população com conflitos sociais. Hobbes escreveu no período

entre o Humanismo2 e o alvorecer do Iluminismo (séc. XVIII), de modo a considerar que não a religião, mas a razão deveria reger a ordem social, tendo um governo secular em oposição ao dogma da religião e um papa.

Na sua teoria, chamada de o Contrato Social, Hobbes defendia que as pessoas seriam governadas pela minoria, governantes e governados, num modelo em que estes últimos renunciariam parte de sua liberdade em favor de proteção e da garantia de direitos e liberdade com deveres. É assim que pensam os conservadores. No modelo de Hobbes, a legitimidade do governante se daria enquanto ele cumprisse a sua parte no contrato social, sendo um governante justo; caso contrário, deveria ser substituído, porque não teria cumprido a sua parte no contrato. Depois de Hobbes, o filósofo JeanJacques Rousseau (1712-1778) semeou as primeiras ideias do que hoje chamamos esquerda. Diferentemente de Hobbes, que

2 O Humanismo foi um movimento dedicado ao estudo da literatura e línguas clássicas e a um conjunto de ideias, abrangendo a nova filosofia do Renascimento. acreditava que as pessoas se inclinariam para o bem quando criadas condições para uma boa vida,3 Rousseau defendia que as pessoas eram naturalmente boas e a sociedade funcionaria bem, em harmonia, fraternalmente; sem as intervenções injustas, como a propriedade privada, por exemplo, parte das desigualdades existentes.

Como se vê, o estado da natureza humana era questão em pauta entre os dois filósofos. Dadas certas condições sociais e econômicas, como as pessoas se comportariam? Elas seriam justas, tendo compaixão pelo próximo, promovendo o bem comum ou deixariam que o egoísmo e a ambição dominassem o cenário social, aumentando a pobreza de uns enquanto outros acumulariam bens e posses? Os pontos de vista opostos entre Hobbes e Rousseau geraram modelos distintos, não religiosos, mas que contemplam subliminarmente aspectos da fé, como a questão da natureza humana e as virtudes do indivíduo. Em Hobbes, encontramos o pensamento que consideramos

3 A boa vida era tema da antiga filosofia grega, não como hoje nós chamamos boa vida, “curtição” ou algo do tipo.

A ATUAL COMPOSIÇÃO DO CONGRESSO CONTA COM 84 DEPUTADOS FEDERAIS E SETE SENADORES EVANGÉLICOS. É A MAIOR BANCADA EVANGÉLICA DA HISTÓRIA.

mais à direita,4 em que a humanidade deveria desfrutar liberdades e assumir seus deveres e responsabilidades, ajustando-se às condições encontradas entre si e sendo dirigidas por seus próprios interesses, que seriam resolvidos entre as partes, sem a interferência rigorosa de um poder público, como é o Estado. Seria como um contrato, em que há cláusulas acordadas entre as partes interessadas ditando direitos e deveres.

Hobbes expressou essas ideias em sua obra Leviatã (ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil). O papel político do governo seria mediar casos mais específicos, colocando ordem (leis), garantindo a segurança (paz) e a liberdade (propriedade privada e direito à vida). Antes, isso era feito pela Igreja, sempre em tensão com o rei, a monarquia. Assumia-se que esses poderes eram concedidos por Deus. Daí a razão de, por séculos, a Igreja insistir na afirmação do papa como vigário ou representante de Cristo na terra.

4 Não estamos, com isso, afirmando que a política de direita é algo como a vontade de Deus.

Já em Rousseau, que considerava a necessidade de dar às pessoas liberdade e igualdade de direitos – como em geral pensam as pessoas da esquerda –, o papel político do governo é ajustar a sociedade, ou seja, regular o seu comportamento. As pessoas precisariam ser levadas a esse estado natural de igualdade e liberdade pela ação do Estado e de instituições eficientes e fortes, administradas por pessoas competentes e que imporiam de cima para baixo as leis, condicionando os governados, isto é, condicionando o ser humano a seguir rumo a um mundo idealizado.5

Penso que podemos interromper neste ponto essa brevíssima narrativa sobre ocorrências históricas que contribuíram com o processo de chegada ao ponto em que estamos no país. O leitor mais atento terá percebido que a separação dos poderes pode ser necessária para o melhor desempenho ou a efetiva ação política, deixada nas mãos de “especialistas”, isso considerando um quadro ideal. Indistintamente

5 Parte desse artigo irá compor um novo livro do autor sobre conservadorismo. de quem estiver no poder, a condução dos programas de governo se dará a partir dos princípios, valores ou interesses dessas pessoas. Nas últimas décadas, nós, brasileiros, vimos esses interesses suplantarem qualquer outra expectativa.

A atual composição do Congresso conta com 84 deputados federais e sete senadores evangélicos. É a maior bancada evangélica da história. O primeiro escalão do Governo Federal conta com seis ministros evangélicos, dos quais três são pastores, dirigindo pastas cruciais para o desenvolvimento do país. É o caso do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, dirigido pela pentecostal Damares Alves; da Educação, com o pastor presbiteriano Milton Ribeiro; André Mendonça, pastor presbiteriano e ministro da Justiça; o ministro Onyx Lorenzoni da Secretaria Geral da Presidência, que é luterano (e político de carreira); o Ministrochefe da Secretaria de Governo, Gal. Luiz Eduardo Ramos, da Igreja Batista; e Fábio Farias, Ministro da Comunicação.

O NÚMERO DE EVANGÉLICOS NO GOVERNO CADA VEZ MAIS É OBJETO DAS ANÁLISES DE CIENTISTAS SOCIAIS E DE POLÍTICOS EM BUSCA DE ALIANÇAS.

Até onde apurei, todos esses nomes já atuavam nas áreas cujas pautas são objetos da atuação de seus Ministérios. Mais do que isso, apuramos que os assessores desses ministros e postos de segundo e terceiro escalões que estão ocupados por evangélicos não se justificam simplesmente pela fé professada, mas por consistente formação acadêmica, incluindo pós-graduados e pós-graduadas cursados no Brasil e no exterior, com anos de experiência no atual campo de atuação, e chegou-se a exigir inglês para a admissão (como é o caso do Ministério da Mulher).

O número de evangélicos no Governo cada vez mais é objeto das análises de cientistas sociais e de políticos em busca de alianças, em parte em razão da laicidade; mas não se dá tanta ênfase no fato de a fé ser barreira para a competência de ninguém. Então, questiona-se: a presença desses profissionais mancharia a imagem do Evangelho ou comprometeria o trabalho da Igreja? Afinal, é tênue a linha que separa a luta por direitos e a aplicação da Constituição Federal garantindo um estado laico, de um lado, e a aproximação do poder em

busca por interesses e favores que contemplem interesses pessoais, por outro.

Sobre a natureza humana, a posição de Hobbes em favor de as pessoas inclinarem-se para o lado bom havendo condições positivas, e Rousseau, para quem as pessoas eram naturalmente boas e a sociedade funcionaria maravilhosamente bem dadas condições justas, sabemos que não há um meio de cauterizar o elemento religioso nas pessoas – somos incorrigivelmente religiosos, independentemente de qual seja a divindade cultuada: Jesus, o poder, o time de futebol, o dinheiro ou qualquer outro ídolo. – O mesmo se dá com relação ao caráter daqueles que ocupam postos públicos e políticos: não há uma vacina contra o câncer da corrupção nem contra o vírus da incompetência. Se os cristãos reúnem condições técnicas para os postos disponíveis, eu prefiro que estejam lá, dados os princípios nos quais dizem acreditar, ainda que em certas questões tenham que decidir contrariamente ao modo dogmático como a Igreja pensa.

Segundo o currículo dos evangélicos no presente Governo (o que inclui as pessoas de outra fé, como apurei no caso de fiéis das religiões afro), nenhum deles tem o menor demérito por ser religioso. Ao contrário, essas pessoas estão acima da média em termos de capacitação profissional quando comparadas com o nível de preparo de seus pares na Igreja. Considerando o papel deles como cristãos, penso que durante um mandado reúnem condições de dar um testemunho que cada um de nós conseguirá em uma vida toda. ▣

MAGNO PAGANELLI é doutor em História Social (USP), mestre em Ciências da Religião (Mackenzie). Coordena o Master em Teologia no Betel Brasileiro e leciona na Faesp, no STBI e no SBL.

This article is from: