ENTRE E FIQUE À VONTADE
Por Luciane Campana Tomasini e João Vicente RibasArevista Entre: Jornalismo e Arte é uma publicação que integra dois cursos de graduação da Universidade de Passo Fundo no Estado do Rio Grande do Sul. Foi concebida a partir de uma proposta de reforma curricular que reuniu os cursos de diversas áreas para pensar e propor um projeto interdisciplinar. Entre as infinitas tentativas de aproximação, e pontos de convergência e divergência entre Jornalismo e Arte, nasceu a revista.
Como o próprio nome diz, “entre” é tanto um verbo imperativo como uma conjunção, uma forma de convidar a criar pontos de contato que permeiam as duas áreas. Com isso, compartilhamos o desafio com os leitores, para o formato de publicação mais aberto e livre na forma de expor conteúdos em uma página.
A revista tem formato impresso, mas para ser folheada em interfaces digitais. Sem fins lucrativos, visa veicular produções de artes e jornalismo produzidos por alunos, professores e convidados. Neste sentido, esta é a primeira produção da UPF no campo das artes e do jornalismo juntos. No entanto, consideramos uma inspiração fundamental o jornal Pensa Fundo, produzido nos anos 90 pelas equipes do Museu de Artes Visuais Ruth Schneider e Museu Histórico Regional.
A primeira edição apresenta um conjunto variado de articulações entre textos e imagens, mesclando estilos de conteúdo das duas áreas. Não tem um formato fechado, ou um tema específico.
Assim, a revista Entre visa constituir-se como espaço permanente de exposição de trabalhos acadêmicos que fomentam a cultura no norte do Rio Grande do Sul.
Universidade de Passo Fundo Instituto de Humanidades, Ciências, Educação e Criatividade
Realização: cursos de graduação em Jornalismo e Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo
Produção: Núcleo Experimental de Jornalismo (NexJor) e Agência de Artes Visuais
Supervisão: Luciane Campana Tomasini e João Vicente Ribas
Edição: João Vicente Ribas, Luciane Campana Tomasini, Fabio Luis Rockenbach e Nadja Hartmann
Projeto gráfico: Fabio Luis Rockenbach e Marcus Vinícius Freitas
Diagramação: Marcus Vinícius Freitas
Conselho editorial: Bibiana Friderichs, Fabiana Beltrami, Fabio Luis Rockenbach, João Vicente Ribas, Luciane Campana Tomasini, Maria Joana Chaise, Marilei Teresinha Dal Vesco, Nadja Hartmann.
Jornalista responsável: João Vicente Ribas (11.429 DRT/RS)
Arte da capa: Walmor Corrêa
Entrelaços, 2020.
Pamela Lili Amorim Wengrat. Acadêmica do Curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo. Realiza trabalhos nas diversas áreas, entre elas pintura, fotografia, instalação. É participante do projeto de pesquisa do Laboratório de Cultura Material e Arqueologia (LACUMA). Vive em Passo Fundo, é natural de Santo Augusto, RS.
Inspirada nas obras dos anos 80 da artista Iole de Freitas e seus trabalhos com estruturas, fios, tubos e tecidos dos anos 80, surgiu o objeto “Entrelaços”. Composto por módulos, feitos de tiras de tela preparada em casa (tinta PVA branca sobre algodão cru) cortadas e tramadas, que ao serem reorganizadas formam a real tridimensionalidade da pintura. O trabalho foi uma proposta da Escultura II, ministrada pela professora Luciane Campana Tomasini, durante as aulas remotas na pandemia.
“ENTRELAÇOS”
AS CONVERGÊNCIAS ENTRE ARTE E JORNALISMO
“REFLEXOS DA PANDEMIA NA SOCIEDADE ATUAL”
UM GRANDE VIVA AOS 70 ANOS DO CURSO DE ARTES EM PASSO FUNDO
WALMOR CORRÊA:
“A MINHA SORTE É QUE EU FUJO PARA OUTROS UNIVERSOS”
DA TELA ÀS TELAS
3 7 8 13 SUMÁRIO
6 10 14
ENTRE, PARA TRANSBORDAR
A DIMENSÃO POLÍTICA DA FANTASIA
AS CONVERGÊNCIAS ENTRE ARTE E JORNALISMO
Francisco Dalcol fala de suas experiências nessas áreas e como elas se relacionam entre si
Há quem diga que jornalismo e arte são campos totalmente distintos. E as diferenças são muitas, realmente. Enquanto jornalistas trabalham com o factual e o objetivo, artistas trabalham com o hipotético e subjetivo. À medida que os primeiros possuem um compromisso com a isenção e a veracidade, os segundos possuem uma maior liberdade para expressar suas ideias e opiniões.
Porém, existem sim pontos de intersecção. E o principal deles é que ambos são criadores de algo: os artistas criam arte e os jornalistas criam notícias. Em tempo, nada impede um jornalista de usar técnicas artísticas para a produção de seus conteúdos, e vice-versa.
Existe ainda um terceiro campo, que faz essa conexão de arte e jornalismo de forma específica: a curadoria e crítica de arte. É acerca desse último campo que trata Francisco Dalcol, atual diretor-curador do Museu de Arte de Rio Grande do Sul (MARGS). Ele já atuou
por quatro anos como repórter e editor do Segundo Caderno da Zero Hora e concedeu uma entrevista ao NexJor.
CRIAÇÃO
Dalcol esteve no dia 24 de maio de 2022 na Universidade de Passo Fundo, palestrando na Aula Magna da Faculdade de Artes e Comunicação (FAC). Em sua fala, enfatizou que o crítico e o historiador de arte não são artistas, mas ambos podem ser vistos como criadores de algo. Assim como os jornalistas são criadores de notícias. A diferença é apontada pela crítica de arte ser parcial e apaixonada. Já o jornalismo, não.
Quando questionado sobre como ele se deteve na área da curadoria de arte, diz que foi um processo gradual. “Eu gradativamente fui passando de um jornalista cultural para um setorista de artes visuais, que era uma figura que fazia reportagens de artes visuais mas também fazia críticas e resenhas de exposição”.
Reflexos da pandemia na sociedade atual, 2020
Gabrielle Sebben de Bastos. Acadêmica do Curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo. Atualmente realiza trabalhos de fotografia conceitual, retratos, autorretratos e fine art. Vive em Carazinho, RS. Site: contatogabrielleba.wixsite.com/my-site-2
O autorretrato foi desenvolvido na disciplina de “Arte e Sociedade”, quando fiz uma pesquisa rápida em relação à indústria farmacêutica, e pude perceber que, além de crescer a cada ano, durante a pandemia houve um aumento gradativo no consumo de medicamentos. Além disso, a produção artística também traz uma crítica ao descarte incorreto das máscaras de material sintético. Por este fato, criei uma máscara com o papel de caixas de remédios, possibilitando também uma reflexão no sentido de haver diversos remédios, mas esses não curam o que estamos passando neste momento. A criação do conceito para esta produção artística foi baseada em referências do cotidiano em que vivemos em relação à pandemia e à utilização de máscaras para sairmos de nossas casas, ao uso e descarte incorreto destas, que causam problemas ambientais, ao crescimento da indústria farmacêutica e às incertezas de medicamentos no tratamento da Covid-19.
DA TELA ÀS
TELAS
Os filmes não são criados no vácuo, eles surgem de uma tradição cinematográfica e são produzidos em um contexto que contribui para percebê-los como leituras do tempo em que foram produzidos – em termos sociais e culturais. E entendemos os filmes em termos de outros filmes, seu universo em termos de outros universos. Como diz Julia Kristeva, “todo texto se constrói como um mosaico de citações. Todo texto é absorção e transformação de outro texto.”
O termo “intertextualidade” foi apresentado por Kristeva no final dos anos 1960. Ela defendia que o significado que encontramos em um tex-
Fábio Rockenbach
Especialista em cinema, Mestre em letras e professor do curso de Jornalismo da UPF
to não deve ser localizado na sua relação com a mente em que parece ter se originado, mas na sua relação com outros textos. Em um sentido bem real, textos têm vida própria, possibilitando, inspirando e gerando outros. Filmes geram filmes – ou como o Bakhtin afirmava, cada enunciado é uma contribuição para um diálogo em andamento, cada palavra reflete a anterior e é formada pela antecipação de como será recebida.
Falo disso porque hoje parece haver uma dificuldade de separar a alusão da apropriação. A alusão é um princípio da intertextualidade no cinema, a referenciação que pede pelo conhecimento do espectador para que seja percebida. A mera apropriação tenta esconder essa
relação. A alusão deixa ela explícita, e o cinema tem uma relação alusiva muito própria com a pintura, uma das artes que mais o influenciou.
Cinema e pintura podem ter diferenças fundamentais, principalmente no conceito de quadro e campo das duas artes. Mas ele herdou da pintura a composição, uso da perspectiva, profundidade, noções de enquadramento, sombra, luz, uso de cores... O cinema aprendeu até a quebrar a parede entre ele e o espectador com a pintura, séculos antes.
Alguns filmes homenageiam esses legados.
Barry Lyndon, do Kubrick, tem momentos em que o filme poderia ser parado, impresso, emoldurado e pendurado, em uma construção semelhante à de Tête à Tête (1743) de William Hogarth’s. Até John Wayne, com seu jeito brucutu, ao dirigir “O Álamo” em 1960 aludiu e homenageou “El Jaleo”, pintura de Sargent, em uma cena próximo ao final. Alatriste (2005), com Viggo Mortensen, foi buscar na obra de Diego Velásquez “A Rendição de Breda”, de 1635, a referência direta em detalhes para uma das cenas do filme. Muito mais complexa é a relação de ‘Pátio de Exercícios de Newgate” (1872), de Gustave Doré, que inspirou Van Gogh a criar “Prisioneiros exercitando (após Gustave Doré)” (1890) e culminou numa homenagem alusiva no Laranja Mecânica, de Kubrick (1974).
É possível sair do campo das alusões explícitas e buscar pela influência estilística.Em “Os Duelistas” de Ridley Scott a luz e o uso de paisagens naturais remete a pinturas do movimento realista, próximo da época em que se passa o filme. Victor Erice, um diretor que infelizmente fez MUITO menos filmes do que deveria, pa-
A INTERTEXTUALIDADE
NO CINEMA PREMIA
O ESPECTADOR
QUE MAIS BUSQUE
AMPLIAR SEU ESCOPO
CULTURAL. NÃO
EXISTE ARTE SEM
QUEM A CONTEMPLE, E NÃO EXISTE
ARTE QUE EXISTA
DESCONECTADA DO HOMEM, DO MUNDO
E DO SEU TEMPO
FILMES GERAM FILMES – OU COMO O BAKHTIN AFIRMAVA, CADA ENUNCIADO É UMA CONTRIBUIÇÃO PARA UM DIÁLOGO
EM ANDAMENTO, CADA PALAVRA REFLETE A ANTERIOR E É FORMADA PELA
ANTECIPAÇÃO DE COMO SERÁ RECEBIDA
rece ter se baseado em pinturas da Escola de Delft, em nomes como Rembrandt, De Hooch e Vermeer para orientar a direção de fotografia de obras como EL SUR (1983).
Em termos mais contemporâneos, a câmera do diretor Michael Mann primeiro foca a arma na mesa e depois, muda de ângulo, para mostrar Robert DeNiro em frente à janela e ao mar. O foco inicial na arma é a pista de que a cena em FOGO CONTRA FOGO é alusão direta a PACIFIC (1967) de Alex Colville.
A intertextualidade no cinema premia o espectador que mais busque ampliar seu escopo cultural. Não existe arte sem quem a contemple, e não existe arte que exista desconectada do homem, do mundo e do seu tempo. n
UM GRANDE
VIVA ”
AOS 70 ANOS DO CURSO DE ARTES EM PASSO FUNDO
“[...] a arte que abracei, não só me ensinou a pintar e desenhar – ensinou-me, isso sim, mais do que tudo – a viver [...]. Permitam-me, fundadores desta Escola, que eu lhes revele alguns segredos que cooperaram para a minha felicidade, vivendo uma vida toda de privações e de dificuldades sem fim, porém, criando com o lápis e o pincel, o meu fardo abençoado, a minha família.
Primeiro de tudo direi que a arte bem orientada, eleva, dignifica, e aproxima a criatura do seu criador, que nunca a deixa desesperar diante das dificuldades. Depois direi, porque aprendi muito bem com a minha arte: quem quer realizar alguma coisa, não cede ante os contratempos – quem quer desenhar e não tem crayon estrangeiro, desenha também com carvão do fogão ou com carvão que ele mesmo prepara queimando ramada de parreira; quem quer pintar e não tem pincel, faz pincel de pelo de gato e pinta como eu pintei quando cheguei aqui, onde não havia pincel em parte alguma [...] Esculpe-se tão bem com estecos singelos como com os de marfim ou madeira francesa e, quem tem talento, às vezes, só precisa dos seus próprios dedos; um estojo fino ou uma palheta de prata não são nada maus, mas não criam gênios!
O cultivador da arte verdadeira sempre será otimista – verá rosas nos espinhos e não espinhos nas rosas, salvo que queira abandonar cada trabalho diante de cada dificuldade – é por isto que, ao par da arte vemos desenvolverem-se em nós hábitos mais desejáveis – de persistência, de paciência – não adianta amassar, rasgar, borrar ou quebrar o que se começou e errou. Coragem e força outra vez e ir progredindo, melhorando, caminhando para o aperfeiçoamento. Economia, e muito grande, ensina a arte também, desenvolvendo até a imaginação, até o gênio incentivo e espírito prático – mostra como utilizar o que os outros inutilizaram ou acharam, simplesmente inútil.
A arte aprimora também algumas virtudes muito lindas – a modéstia, por exemplo, pois quanto mais adiantado o aluno, melhor juízo crítico e mais acanhamento em projetar-se. É a modéstia que faz também com que recomece as coisas pelo começo singelamente se não dá para mais, como estais começando aqui, tudo muito bem assentado – isso é uma esperança, pois este coletivo há de crescer no seu verdadeiro valor artístico, mas jamais se transforme a arte nesta Escola em um negócio simplesmente, porque isso não é arte.
Ainda há outro assunto importante: o verdadeiro espírito de arte não inveja, não cobiça, não gosta de dissensões – coopera antes, reconhece os justos valores. Que os professores desta casa reconheçam os valores devidos de seus alunos, orientem-os para rumos elevados da arte e não esqueçam que não se criam valores – essa é obra de Deus - e sim, só se desenvolvem valores que podem estar latentes, só se orientam valores – essa é a obra dos professores. Que para esses, ainda que eles precisem da nossa orientação, nós possamos dizer, reconhecendo o que outros já disseram – ele começa por onde eu acabei”.
Estas palavras ainda tão contemporâneas fizeram parte da fala da professora Guilhermina Borges no dia 8 de setembro de 1952, por ocasião da solenidade inaugural da Escola Municipal de Belas Artes de Passo Fundo, origem do atual Curso de Ar-
tes Visuais. Oriunda de uma família de artistas alemães e casada com o escultor português José Maia Borges, ela mudou-se para Passo Fundo em 1915 quando montou um ateliê de pintura que contemplava aulas particulares. A partir de 1925, passou a lecionar desenho
e pintura também no Instituto Estadual de Educação (IEE) onde permaneceu por mais de 20 anos. Pelo seu pioneirismo e por toda uma trajetória dedicada às artes, Guilhermina Borges foi então escolhida para ser a patrona da nova escola que era fundada.
O acontecimento resultou da iniciativa de um grupo maior de educadores que incluía a própria patrona e as suas três filhas (Laura, Cecília e Adelaide) e teve grande significação para Passo Fundo e região, sendo noticiado pelos jornais da época.
No evento oficial da nova instituição foram expostas telas pintadas e obras esculpidas para um público constituído por autoridades civis, militares e eclesiásticas, bem como, personalidades do meio social e artístico passo-fundense, além de um grande número de educadores.
Buscando resgatar memórias como estas, afinal 70 anos trazem consigo muitas delas, formou-se neste ano um grupo de pesquisa cujo projeto tem por objetivo trazer a público a história do Curso de Artes Visuais. Esta é a primeira publicação de outras tantas que se pretende realizar, enaltecendo assim, o trabalho de inúmeras pessoas que dedicaram as suas vidas à arte e sedimentaram o caminho que até hoje se percorre aqui na Faculdade de Artes e Comunicação da UPF.
ENTRE, PARA TRANSBORDAR
No tempo em que a Faculdade de Artes e Comunicação completa 70 anos, ganhamos essa revista de presente. Ela materializa a soma de esforços dos muitos professores, alunos e funcionários da FAC que diariamente se comprometem a pensar o lugar e a inscrição da cultura na contemporaneidade.
Aliás, olhando para essas páginas, eu diria que esta revista é muito mais do que isso: é a evidência de que somos também mobilizadores de práticas culturais, e assumimos que há um lugar indispensável para a Arte e para a Comunicação na configuração do social.
Intuitivamente, sempre nos apareceu que havia um atravessamento essencial entre elas.
Não é à toa que numa instituição com tantas possibilidades, como a Universidade de Passo Fundo, acabamos arranjados uns com os outros: Jornalismo, Publicidade, Design, Música e Artes Visuais gradualmente imantados ao longo das últimas sete décadas.
Tudo começou com a fundação do Conservatório de Música e do Instituto de Belas Artes, em 1952, e se redesenhou com a chegada dos cursos de Comunicação na década de 90 e Design, no século XXI. Fomos constituídos numa ambiência de florescimento de exposições, oficinas, produções cinematográficas, publicação de livros e CDs, recitais, jornais murais, espetáculos de teatro, formação de professores de arte, intercâmbios internacionais, e aprendizado.
Mas, para além da experiência empírica, nos últimos anos, a partir do compartilhamento de disciplinas entre esses curso, dos projetos de extensão e, sobretudo, dos encontros e estudos para conceber um programa de mestrado interdisciplinar (ainda em construção), também passamos a compreender teórica e sistematica-
Diretora da Faculdade de Artes e Comunicação entre 2018 e 2022
mente que na sociedade midiatizada, arte e comunicação são as interseções a partir das quais construímos o tecido da cultura na atualidade.
Ambas se ocupam de narrar, por meio das linguagens e da experiência estética, o mundo em que vivemos. Através delas conhecemos a história de um povo, suas idiossincrasias, seus conflitos, sua identidade. Tomamos conhecimento da sua evolução, das suas crenças, de suas perspectivas, seu modo político de viver. Através das obras de arte e das narrativas do jornalismo, por exemplo, deixamos algo para as gerações futuras, um registro, um questionamento, um legado.
Sua preservação e mobilização constante oferecem a possibilidade de pensar o presente, quase no tempo em que se constitui, e portanto, a possibilidade de organizar a nossa experiência imediata no mundo. Sem a arte e essa narrativa, que logo se convertem em memória, perdemos parte da nossa identidade coletiva (se é que conseguiríamos construí-la sem elas), nossa capacidade crítica de pensar o passado e prospectar o futuro. Com a arte, fazemos isso no terreno do sensível, da emoção, da fruição. Com o jornalismo, da racionalidade, da investigação, da sistematização e das multi perspectivas dos acontecimentos.
Mas na sociedade midiática, comunicação é também experiência estética e arte, narrativa. Por isso, de onde enxergo, não podemos abrir mão da arte e nem da comunicação.
Entre é uma proposta que parece também apostar suas fichas nisso. Apesar de ter sido criada dentro deste espaço físico que foi a FAC, ao contar a nossa história, explicitar as relações entre artes e jornalismo e apresentar jovens jornalistas e artistas locais, os coloca em diálogo com o universal, e assim transborda, nos permite pensar no mundo, nos mundos, reais e imaginados.
Boa leitura, boa fruição! n
“A MINHA SORTE É QUE EU FUJO PARA OUTROS UNIVERSOS ”
Dono de bichos equivocados, Walmor Corrêa apresenta seu processo artístico e sua trajetória no mundo da arte
Por Andressa Wentz, Luciane Campana Tomasini e João Vicente Ribas
almor Corrêa nasceu em Florianópolis, e as aulas de anatomia na escola lhe despertaram uma paixão, principalmente as dissecações e desenhos de Leonardo Da Vinci. Hoje artista plástico, Walmor Corrêa é um dos nomes mais conhecidos nacional e internacionalmente da arte contemporânea brasileira. Walmor procura por “vírgulas” que dêem sentido àquilo para que vive: a arte.
Em 2004, recebeu uma sala especial na 26ª Bienal Internacional de São Paulo, participando nos anos seguintes do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP. Sua obra também foi apresentada no Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pará, Distrito Federal e fez parte de importantes exposições coletivas internacionais, expondo em países como Espanha, Estados Unidos, África do Sul, Alemanha, Argentina, Chile, Áustria, Equador, Uruguai e Bélgica.
Walmor já ministrou diversas palestras em universidades brasileiras, e também na University of Edinburgh, na Inglaterra, assim como esteve presente na Semana Acadêmica do Curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo (UPF) no ano de 2020.
Em sua obra Biblioteca dos Enganos, o artista une arte, método e rigor científico para construir uma outra forma de enxergar a fauna brasileira. É por meio do que chama de “vírgulas” encontradas no trabalho do zoólogo Hermann von Ihering que ele caça os erros que vêm a compor seus bichos equivocados. Confira esta relação entre natureza e arte na entrevista realizada pela revista ENTRE.
ENTRE Jornalismo e Artes - Gostaríamos de saber mais sobre o seu processo criativo. O trabalho Biblioteca dos Enganos ficou em exposição na Bienal do Mercosul em 2009, em Porto Alegre. Então, como foi o seu processo de produção, dessa passagem do bidimensional para o tridimensional?
Walmor Corrêa - A Biblioteca dos Enganos é uma obra bastante importante pra mim, e não só pelo seu conceito, mas pelo valor estético também é impossível você falar de arte, na minha opinião, sem se importar com isso. Seja ele do seu gosto, ou não, porque o gosto ele
Wrealmente não se discute. Eu tenho um amigo aqui que diz que só gosta de obra feia. Entendeu? (risos). E eu acho justíssimo. Agora, o que é obra feia? Aí que tá a questão. É a obra que ele não considera bonita, aí isso não quer dizer que a obra não seja bonita… A Biblioteca dos Enganos é uma obra esteticamente bonita, e eu não tenho o menor problema em dizer essa palavra sendo um artista contemporâneo, até porque a minha carreira já me permite. Não tem mais preocupação com o que vão dizer, ou pensar, ou escrever sobre o meu processo criativo, né? Ele tá aí realmente pro mundo, não é pra agradar dez pessoas que se sentem importantes julgadoras do universo artístico. Mas sim pra ele caminhar e fazer a sua história.
ENTRE - Como foi o processo de criação da Biblioteca dos Enganos?
Walmor - A Biblioteca dos Enganos aconteceu da seguinte maneira: foi na Bienal do Mercosul em que a curadoria da Victoria Noorthoorn, uma argentina e profissional brilhante… Acho que essa foi uma das poucas Bienais que trabalhou com uma curadoria ganha por concurso, e a Victoria ganhou junto com o chileno Camilo Yáñez. Então, a Victoria foi para esse encontro, e ela já tinha visto meu trabalho em São Paulo, e já estava meio que de olho em mim. Ela disse que quando ganhou para ser curadora do Mercosul, ela tinha certeza de uma coisa: ela queria começar com uma obra do Iran do Espírito Santo, e queria terminar com uma obra minha, no processo de organização da exposição que ela iria curar, e que aconteceu no MARGS. Então, eu tive um tempo longo e ao mesmo tempo com um intuito de responsabilidade, que eu sempre tenho independente de ser a Victoria, ou uma professora de colégio primário, quando me convidam para intervir com as crianças… Para mim, a responsabilidade é muito semelhante. Não vou dizer que é igual, mas é muito semelhante. E aí, a Victoria me convidou para fazer e disse: “Eu quero que você faça parte, e o briefing é só esse. Você vai terminar o passeio da Bienal”.
Eu topei, e aí começava o processo que eu sempre repito quando se trata de explicar o meu trabalho, quando eu digo que sou um caçador de vírgulas, né? Eu comecei a ler tudo para, justamente, encontrar em alguma vírgula, um espaço respirado para poder airar o meu pensamento, e com isso criar uma obra, que é o que nos difere
de um sonho, de uma intuição ou feeling, como quiser. Mas, para a arte, seja ela qual for o meio de expor, ela necessita, realmente, um espaço de vírgula que te dê um sentido para aquilo que você ‘tá’ fazendo, que é o mesmo sentido para aquilo que você vive. E eu, na ocasião, tinha terminado uma pesquisa sobre os viajantes alemães no Rio Grande do Sul, e aí, através do Glaison, da Fundação Zoobotânica, que é um ornitólogo e um mega parceiro para mim, como artista, me apresentou um viajante alemão chamado Hermann Von Ihering que tinha morado no Rio Grande do Sul há cerca de dez anos, e o Glaison casualmente estava traduzindo todas as cartas do Ihering para o português e para a internet, que é um trabalho por si só brilhante.
Muito gentilmente, ele me deu cópias desses manuscritos, dessas transcrições onde havia várias cartas do Ihering e todas as catalogações de uma micro-viagem que ele fez no Rio Grande do Sul. Ele foi uma pessoa muito, muito impor-
tante na história geral do RS. Além de ser um estudioso, ele também ocupou seu tempo como jornalista para jornais da cidade de Porto Alegre, era muito atuante, e como todo alemão, muito firme em suas colocações. E como toda pessoa muito firme, arranjou muitos inimigos pelo Brasil afora…
Um dia, eu não me recordo para onde eu estava indo, era uma viagem longa, eu levei esses escritos para ler durante o vôo, e eu me lembro que eu estava indo para uma exposição nos Estados Unidos, e nessa primeira ida, eu vi uma carta do Ihering em que ele falava sobre várias questões do Brasil e do RS. Em uma delas, ele escrevia especificamente sobre uma andorinha dessas caseiras, na região de Camargo, onde ele
EU COMECEI A LER TUDO PARA, JUSTAMENTE, ENCONTRAR EM ALGUMA VÍRGULA, UM ESPAÇO
não tinha certeza se ela hibernava ou se deslocava… Quando eu li aquilo, eu - em cima do meu salto, do meu ego (entre aspas), porque não sou uma pessoa tão ególatra assim - fiquei pensando “como assim questionar se essa andorinha hiberna? Isso é ridículo!”. Assim que o avião parou eu fui direto pegar o telefone para ligar pro Glaison, e liguei e disse: “Glaison, acabei de ler aqui o Ihering questionando se a andorinha hiberna, no Rio Grande do Sul!”, ele deu uma gargalhada e disse “É… é isso, você não tá errado não. E assim é a ciência. Vem um e escreve, o outro vem e
EU NUNCA PARTO DO SONHO, EU PARTO DO PROCESSO ANALÍTICO
CIENTÍFICO, E DEPOIS DISSO EU VOU CONSTRUINDO A MINHA NARRATIVA
arruma, o outro vem e retira… assim vai se construindo a ciência e a pesquisa científica”. E eu “Pô… maravilhoso,adorei o meu erro”. E pensei: “bom, já achei uma vírgula para fazer meu trabalho para a Bienal do Mercosul”.
Depois disso eu li todas as catalogações do Ihering. Muitas. A partir daí eu apontei, fui riscando com a minha possibilidade de acertos e erros, e com a minha intuição pois não havia tanta certeza daquilo que estava sendo observado. Fui riscando o que eu achava estranho. O que poderia ter ali que correspondia à andorinha que hibernava… Eu risquei todos os escritos e voltei para Porto Alegre, fui até o Glaison e o professor Márcio, que também é ornitólogo da Pontifícia Universidade Católica (PUC), e um baita parceiro meu, um mestre. A pessoa com quem eu tiro dúvidas para desenvolver o trabalho de arte. Como meu processo criativo ‘tá’ quase todo calcado na ciência, eu preciso partir de um ponto da veracidade… Eu nunca parto do sonho, eu parto do processo analítico científico, e depois dis-
so eu vou construindo a minha narrativa, que é uma narrativa inteiramente ilusionada, sonhada… é arte. A gente conseguiu juntos, eu e esses professores comigo, apontar esses equívocos todos que eu achei que poderiam ser vírgulas. O Márcio apontou 25 ‘erros’, então foram 25 equívocos nas inscrições do Ihering. O que eu fiz? Eu peguei todos esses equívocos e os escrevi em uma folha de papel grande. De um lado, eu desenhei esse bicho equivocado, nos moldes de um desenho científico… Do outro, eu transcrevi esse equívoco. Assim, depois de ter realizado essa parte da produção, eu mandei fazer livros com todo o cuidado para que eles parecessem livros de lá do início do século XX.
ENTRE - Por ter esse conteúdo científico, que é muito da Zoologia e da Botânica, você também tem séries que são do corpo humano, um conceito de anatomia super aplicado… Levando isso em conta, você consegue ter um retorno de um público diferente? É gente que é da área e entende mais esses detalhes? Como é isso?
Walmor - O retorno é maravilhoso. Esses dias eu falava para um amigo: “Paulo, eu não sei mais onde eu me encaixo”. Porque hoje o universo da arte contemporânea ‘tá’ muito chato para
mim, ‘tá’ muito desencontrado para mim, né… Mas esse é um momento também, não quer dizer que eu não aceite ou não goste. Eu acho maravilhoso que as coisas fiquem borbulhando… Eu acho importante… É como fazer greve (risos). Eu acho que tem que ter sim para a gente questionar processos que já estão muito arraigados e tal. Mas eu, Walmor, em um processo muito egoísta de ateliê, me dá um cansaço às vezes… De tantas coisas que eu já fiz na minha adolescência, e de perceber, muitas vezes, que esses processos em algumas pessoas - com todo respeito da minha parte - permanecem até hoje.
A minha sorte é que eu fujo para outros universos. Eu me acho um arqueólogo, um estudioso de ciências, um cientista pretensioso, um desenhista excelente, um pintor excelente, um artista visual verdadeiramente contemporâneo, se nós falarmos em conceito da obra, porque definitivamente a minha obra é muito mais do que uma bela pintura ou um belo desenho. Ela é, definitivamente, muito maior do que isso, né? E pode ser uma analogia muito particular, mas eu defendo esse direito de poder expressar a verdade mais profunda que é a maneira como eu produzo o caminhar da vida, e consequentemente ele ‘tá’ muito espelhado no meu trabalho.
Então, assim, a quantidade de contatos que eu recebo - isso é muito feliz da minha parte - das pessoas mais diversas que você pode imaginar, e a quantidade de cientistas do mundo, que chegam sobretudo depois da internet, nessa euforia e nessa festa toda, é muito lindo… De uma senhorinha que cria uma espécie de árvore que ela viu em um quadro meu e achou que era do interior da França, ao mesmo tempo do cientista da Alemanha que diz “você já ouviu falar da enzima tal? Acho que você poderia pesquisar porque pode rolar um trabalho bacana produzido por você”. A quantidade de tatuadores que me têm como um desenhista exímio. Então eles se baseiam e me seguem… A quantidade de pedidos de imagens para livros de escola que eu recebo… Livros di-
ENTRE - É possível notar que existem vários elementos da cultura brasileira nas tuas obras, por exemplo, na chamada “Flora Mágica Brasileira”. Você acredita que usar esses elementos da cultura do Brasil contribuam para a formação e aproximação da brasilidade?
Walmor - Eu acho que eu sou um dos artistas brasileiros que focam muito na brasilidade, sempre fui. Sempre fui assim e todos os meus trabalhos tem um pé bem forte no meu país, não é a toa que as minhas pesquisas de vida iniciam no final de 1999, início dos anos 2000, na Amazônia brasileira… de onde vieram as ideias de anatomia da sereia, do curupira, que são mitos brasileiros. Um projeto que também
MEU TRABALHO
dáticos… Um pra faculdade, outro pra educação infantil… Então, assim, é um público muito amplo. Isso é um privilégio. Eu tô muito bem conceitualmente dentro da área que pensa, que estuda, e isso me deixa muito feliz. O meu trabalho interessa muito às pessoas que têm foco, né?
Eu fiz outro dia uma pintura, que era de uma saudade do Rio Grande do Sul que eu tenho. Eu sou indiscutivelmente um gaúcho apaixonado de alma mesmo, não nascido, mas totalmente criado. E me deu uma saudade dos pampas, aquele cheiro de mato, o cheiro da bosta da capivara, o quero-quero berrando… Me dá uma saudade, e eu fiz um trabalho só com bichos da fronteira do Rio Grande do Sul, e a quantidade de pessoas que moram na fronteira se identificando, outras que moram fora do Brasil, é muito gratificante.
foi desenvolvido lá na Amazônia. O que eu quero dizer com isso é que todo esse trabalho e essa narrativa de pensamento é de acordo com a minha maneira de viver. Eu sou isso aí, entendeu? Não é que eu ande de verde-amarelo, não é isso. Mesmo quando eu trabalho com o estrangeiro, se trata do olhar do estrangeiro sobre o Brasil. Quando eu pesquiso profundamente o Padre de Anchieta, eu não tô interessado na história dele antes de chegar no Brasil, essa é uma coisa que a mim não interessa… interessa mais aos religiosos. A mim interessa o que ele descreveu do meu país, entendeu? As coisas que são realmente um maravilhamento. Por exemplo, ele descreve o curupira no Brasil em 1560. Há que se prestar atenção nisso, então, a vírgula nas cartas do Padre de Anchieta, foi o brasileiro, o curupira.
EU DEFENDO ESSE DIREITO DE PODER EXPRESSAR A VERDADE MAIS PROFUNDA QUE É A MANEIRA COMO EU PRODUZO O CAMINHAR DA VIDA, E CONSEQUENTEMENTE ELE ‘TÁ’ MUITO ESPELHADO NO
ENTRE - Essa influência da cultura popular no seu trabalho parece muito frequente no seu processo criativo. Seguindo nessa linha, você poderia falar um pouco sobre isso?
Walmor - Viajar para mim é o start do meu trabalho. Não consigo fazer de outra maneira, eu preciso ir, olhar, sentir, perceber, pesquisar, perguntar… perguntar muito. O que acontece é que meu trabalho começa assim: eu tenho uma pista, de alguma leitura, história, qualquer coisa que eu tenha visto ou que alguém me contou. Aí com essa pista eu vou a fundo para ver o que é aquilo. Isso é meu pensando que faz, não é minha mão querendo desenhar, é o meu emaranhado interior que faz isso comigo. Outro dia, por exemplo, um poeta me falou sobre uma história que existe lá em Joinville, sobre um grande rio, e uma lenda de uma grande cobra que teria aberto aquele rio… Eu sou uma criança de 50 anos, entendeu? Porque quando ele me fala aquilo, eu vejo a cobra abrindo o rio. Eu vejo, eu percebo aquilo e eu quero saber por um olhar mais profundo, então eu preciso ir até lá um dia, caso essa história continue me interessando. Muitas vezes passa um tempo e eu me desinteresso, porque não tinha muito a ver.
EU ACHO QUE EU SOU UM DOS
ARTISTAS BRASILEIROS QUE FOCAM MUITO NA BRASILIDADE, SEMPRE FUI
Com seis, cinco anos de idade, um professor de um colégio em que eu estudava em Florianópolis estava contando sobre o Moisés abrindo o mar, e eu nasci em Florianópolis e ia à praia desde pequeno. Eu lembro de esperar a maré baixar pra gente pegar ostras e coisas assim, e na minha cabeça, isso era muito forte. Então eu questionei para o professor se essa não era só uma questão da maré cheia. O professor me botou para fora da aula. E, provavelmente, eu era a única criança prestando atenção na aula. E eu continuo sendo essa pessoa que fica querendo ver se não é uma questão de maré cheia. Essa é a maneira que eu produzo… viajar, pesquisar, é o começo de tudo. Muitas vezes as pessoas me perguntam: “Ah, mas que sorte a sua, cada projeto dá uma obra”. Não. De cada dez projetos, vinte projetos… que eu pesquiso e penso, às vezes, quando eu vou quase a fundo, eu penso: “não vai rolar”. Os que emergem são os que aparecem e os que eu posto, mas agora, a quantidade de tentativas e acertos, quase ninguém sabe.
A DIMENSÃO POLÍTICA DA FANTASIA
Crescemos escutando e assistindo histór ias de seres fantásticos e monstruosos. Eles habitam-nos há milhares de anos, sejam as ninfas, os gigantes, os ciclopes, as sereias, os dragões, os deuses gregos, egípcios, os orixás, seja o Saci Pererê, um herói da Marvel, ou, quem sabe, o Chupa-cabra. Os clássicos, como Ilíada e Odisseia, de Homero, a Teogonia, de Hesíodo, estão cheios de seres fantásticos, a saga do Senhor dos Anéis, ou, quem, sabe Harry Potter, ou os mitos locais, como a Salamanca do Jarau, e assim por diante, embalam nossa imaginação. Crescemos e, ainda na vida adulta, esses seres antropomórficos e zoomórficos acompanham-nos e, muitas vezes, carregam nossos desejos e sonhos. Suas histórias expõem dilemas morais e éticos, que são, continuamente, reformulados com a passagem do tempo. Esses seres capazes de realizações impossíveis para um ser humano respiram em baixo da água, voam, correm, possuem força descomunal, em diversas culturas são meios de compreensão da vida, de si próprio e da comunidade que habitam.
Aprendemos, equivocadamente, em nossa cultura, que o contrário da fantasia, da imaginação, do mito seria a ciência e seus métodos, embasados na lei da causalidade, ou seja, causa e efeito. O pensamento racional, lógico, e seus métodos de averiguação e de construção, carregados da ideia de verdade, parecem caminhar em direção oposta à fantasia. E se não o forem? Se lógica e fantasia fossem duas faces de uma mesma moeda? Se a imaginação fosse o elemento essencial da ciência
Felipe Caldas
e não, necessariamente, o pensamento lógico? Não seria, justamente, a imaginação/fantasia o motor de toda descoberta científica e política?
O Trabalho de Walmor Corrêa está centrado na construção do imaginário, com uma visualidade de caráter científico. Por meio do rigor representacional da própria ciência, como ilustrações científicas e com acuidade anatômica, o artista instaura um processo de suspensão entre fantasia e lógica, fantasia e realidade, existência e inexistência. Olhamos para os trabalhos e perguntamo-nos, mas isto existe? Hibridismo, mestiçagem, ciência e arte, ilustração científica, anatomia são conceitos e temas muito abordados por diversos autores que se debruçaram a pensar o trabalho do artista. Eu gostaria de refletir a produção de Walmor Corrêa de outro ponto de vista, sobre sua dimensão política, aspecto pouco abordado ao tratar da obra.
Aqui não falo de política partidária, mas de política como os modos de reconfiguração do sensível. Política como meio e lugar de interlocução dos seres humanos, meio de partilha e de compartilhamento de visões e compreensões de mundo. Política, não como ciência, mas como capacidade de imaginar outros mundos possíveis, outras configurações econômicas, sociais, arquitetônicas, ou não é isso que Thomas More, Adam Smith, Marx, entre tantos outros, propõem-nos? Não é isso que os mitos nos convidam a pensar? Não é isso que os políticos, os empresários, os cientistas, os ambientalistas, os filósofos e os professores provocam-nos? Não é isso que os artistas e a arte em suas diversas
O TRABALHO DE WALMOR CORRÊA É POLÍTICO, POIS ELE CONDUZ-NOS A OUTRO MUNDO, A OUTRAS
POSSIBILIDADES DE SER E DE EXISTIR, POR MEIO DE UM TRABALHO QUE MESCLA REPRESENTAÇÕES DE CARÁTER CIENTÍFICO, RIGOR REPRESENTACIONAL NATURALISTA, FRUTO DE GRANDE CONHECIMENTO
TÉCNICO, MAS QUE TEM COMO BASE OS MITOS E A IMAGINAÇÃO POPULAR
modalidades realizam? E, não foi, justamente, por isso que Platão no livro X de A República expulsou os artistas da cidade ideal?
O trabalho de Walmor Corrêa é político, pois ele conduz-nos a outro mundo, a outras possibilidades de ser e de existir, por meio de um trabalho que mescla representações de caráter científico, rigor representacional naturalista, fruto de grande conhecimento técnico, mas que tem como base os mitos e a imaginação popular. A Ficção como diz Jacques Rancière, não é a construção de um mundo imaginário oposto ao mundo real e pragmático, é o trabalho que realiza dissensos, que instaura a possibilidade de outros modos de apresentação e de vivências, muda escalas, ritmos, é capaz de mudar a nós mesmos e, assim, talvez o próprio mundo.
Certamente, o trabalho não pode ser compreendido como manifestação de arte politicamente engajada, no entanto, dentro do âmbito do dissenso, como espaço e modo em que não há uma realidade oculta, diferente de uma realidade aparente, em que a reconfiguração do sensível e do pensável geram outras possibilidades de imaginação, e essas outras possibilidades de imaginação são potências transformadoras do mundo, a obra de Walmor Corrêa é política. A fantasia é política, pois ela fomenta a possibilidade de vislumbrar mundos possíveis e instaurar, gradativamente, outros modos de consciência.
A dimensão ambiental, a preocupação com a fauna e com a flora são prementes. Um mundo de respeito à diversidade da fauna, um mundo em que somos conscientes que fazemos parte de um todo e que o animal ou o vegetal são extensão de nós são possibilidades despertadas ao confrontarmo-nos com as imagens, instalações e trabalhos tridimensionais. Ou seja, o trabalho da ficção, o trabalho poético, provoca outro tipo de consciência que vai além de uma individualidade autônoma do ser humano, remete-nos a um passado em que nós estávamos plenamente integrados ao habitat, chama-nos à responsabilidade da
destruição contínua do meio ambiente, em que a extinção de espécies, da fauna e da flora, significará nossa própria extinção. Esse chamado à fantasia convoca-nos a outro tipo de consciência, em que somos parte de um todo, somos parte daquelas imagens e seres, somos compostos de fantasia e de lógica, tal aspecto é evocado por meio dos hibridismos, das metamorfoses, na relação entre imaginação e ilustração científica que nos propõem Walmor Corrêa.
Mais de uma vez, escutei de diferentes interlocutores que o trabalho do artista estava mais para o campo da ilustração do que da arte. Mais para o domínio técnico e da forma, do que para a direção da expressão e do pensamento. Discordo! Forma e conteúdo não podem ser compreendidos em trabalhos artísticos separadamente. A decisão técnica é uma decisão intelectual, conceitual e essencial para o próprio conteúdo. Sem o rigor formal, representacional, não provocaria a suspeita e a possibilidade de cogitarmos sobre a realidade daqueles se-
ESSE CHAMADO À FANTASIA CONVOCANOS A OUTRO TIPO DE CONSCIÊNCIA, EM QUE SOMOS PARTE DE UM TODO, SOMOS PARTE DAQUELAS IMAGENS E SERES, SOMOS COMPOSTOS DE FANTASIA E DE LÓGICA
res. Sem o domínio do desenho, da pintura, da taxidermia e da taxionomia, não seria possível instaurar os mundos propostos pelo artista, colocar em xeque ciência e fantasia. Fazer-nos pensar a respeito de método, representação científica, organização, conhecimento, história, verdade, realidade e assim por diante. Cláudio Tarouco Azevedo, amigo e colega, disse-me, em mais de uma ocasião, algo mais ou menos assim: “a arte existe para que possamos pensar em mundos possíveis”. Em minha perspectiva, esta é a potência política do trabalho de Walmor Corrêa. A ciência é um mito, o pensamento lógico é uma invenção e a fantasia, a imaginação, são perspectivas de uma realidade possível. n
A PEDRA QUE
VOLTA AO LUGAR
Entenda como os estudos arqueológicos do LACUMA desvendaram a trajetória de uma estela missioneira pelo Rio Grande do Sul
por João Pedro Varal Tartari aluno do curso de JornalismoQuem diria que uma pedra usada por anos como amarradouro de cavalos no Parque de Exposições e Rodeio
de Fontoura Xavier-RS teria uma história tão longa e complexa. Gertrudes, como passou a ser chamada pela equipe do Laboratório de
Cultura Material e Arqueologia (LACUMA) da Universidade de Passo Fundo (UPF), já foi até quebrada antes de se tornar objeto de estudo.
A gigante tem história: ela possui duas formas diferentes de desenho ao longo de seu corpo, além de dois cortes horizontais que vão de
“Gertrudes”
um lado ao outro da pedra, um deles consertado com concreto. A estrutura parece atrair tanto a nossa curiosidade que já chegou até a aparecer em uma matéria da jornalista e escritora de Ijuí, Eliane Brum, em uma de suas visitas à cidade localizada na região do Alto da Serra do Botucaraí.
Quem narra as origens da estela (termo científico que designa artefatos como Gertrudes) é a professora do Núcleo de Pré-História e Arqueologia (NuPHA) do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), Jacqueline Ahlert. Ela conta que, antes de ser levada para o Parque de Rodeios, a pedra fazia divisa entre dois ervais de dois povos Guarani residentes da região das Missões, que comercializavam a erva-mate produzida com comunidades Kaingang.
Exposta no alto de um morro, hoje preenchido por pinheiros, o artefato de 580 kg ainda contava com uma estrutura de mais de um metro e meio sob a terra. Ela também é toda ornamentada: em uma de suas faces, está a gravura do que foi definido pelos pesquisadores como o rosto de um cacique Jê. Do outro lado, grafias similares às do grupo Jê.
Há cerca de quatro anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) solicitou que a pedra fosse retirada do Parque e ela passou à salvaguarda do laboratório. Dessa forma ela fez mais uma viagem, de mais de 100 km, até o município de Passo Fundo, que fica na região da Produção do Rio Grande do Sul.
“Ela estava bastante coberta de pedacinhos de concreto, que se espalharam, e de muito, muito musgo, que foi grudando no decorrer dos anos”, explica Jacqueline. No LACUMA, ela recebeu uma higienização e passou pelo processo de pesquisa que agora conta sua história.
E foi durante a análise dos pesquisadores do Laboratório de Cultura Material que outro detalhe chamou atenção: não eram só grafismos indígenas que preenchiam a superfície da pedra. Se impondo sobre as linhas meticulosamente esculpidas do rosto, uma série de traços irregulares, como que insistentemente riscados sobre Gertrudes, mostraram a existência de traçados feitos por pessoas diferentes em períodos diferentes.
Pesquisadora Jacqueline Ahlert,
A investigação que levou a essas descobertas ocorreu por conta da História Oral. Essa é uma forma de pesquisa na área da História que faz uso de pessoas como fonte das informações.
A coleta dos dados que são usados na pesquisa acontece de uma forma muito parecida com a que é usada nas notícias do dia a dia – através de uma entrevista, gravada pelos profissionais e documentada para futuros interessados.
passou uma temporada na UPF para pesquisa.
do Lacuma.
Segundo a professora Jacqueline, uma das fontes que entregou o possível motivo dos riscos foi o prefeito da cidade. Ela explica que o líder do executivo contou a história de um homem chamado pela população de ‘alemão doido’.
“É um alemão do início de 1900, até aí por 1940”, conta a cientista. E brinca que “ele saía riscando as pedras, riscando, fazendo desenho, pirando a cabeça dos arqueólogos e historiadores que vão estudar isso depois”. Ainda segundo ela, a hipótese se comprovou depois da da comparação dos traços sobre Gertrudes àqueles deixados pelo homem em outras rochas que teriam servido de tela .
Outra revelação que surgiu a partir do método da História Oral foram os motivos do porquê a rocha teria sido quebrada – inclusive, não uma, mas duas vezes. De acordo com Jacqueline, as rachaduras foram feitas no início do século XX, quando a pedra ainda estava posicionada sobre o monte. A história está relacionada à busca de um suposto ouro que teria sido escondido pelos jesuítas e também foi contada por um dos prefeitos.
O preço da volta (e da pesquisa)
Na última sexta-feira, 18/03, a Exposição Ervais chegou ao município de Ilópolis. Inspirada no espaço de origem da estela, a exibição aborda a história da erva-mate no Rio Grande do Sul, incluindo o percurso que a planta teve em outros países da América Latina nos quais essa tradição também é parte importante da cultura, como Argentina e Paraguai.
A ideia é que Gertrudes também faça uma última viagem com a exposição, dessa vez, voltando ao seu espaço de origem. Os trâmites dessa viagem, porém, parecem um pouco mais complicados.
Gertrudes deve seguir no LACUMA enquanto ainda seguirem as negociações de um local adequado para mantê-la segura no município de Fontoura Xavier. “É isso que a gente está em negociação com o prefeito de Fontoura, para que ele construa um espaço de abrigo para essa pedra, uma estrutura que ela possa ficar de pé”, explica a professora Jacqueline.
Ainda sobre os investimentos sobre a ciência, especialmente nas áreas da cultura e das humanidades, a cientista desabafa: “é muito difícil”. “Se não tiver uma pirâmide que vai chamar a pesquisa, ninguém banca a pesquisa”, finaliza.
MAIS DE
400 OBRAS DO
MUSEU DE ARTES VISUAIS RUTH SCHNEIDER SERÃO DIGITALIZADAS
Apesquisa envolveu na primeira etapa a catalogação e digitalização das obras, que integram o acervo do Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, da Universidade de Passo Fundo, pelos bolsistas voluntárias do curso de Artes Visuais (L e B), Giúlia Cittolin e Stefani Valente (2021), Juliana Fernandes da Silva, Clícia Cardoso Quevedo, Micaella Freires Scaeffer, Murilo Brustolin Barancelli (2022).
O processo realizou a catalogação e digitalização de 442 obras de 17 artistas passo-fundenses e da região, com o objetivo de salvaguardar o acervo, bem como disponibilizar as obras e o material de pesquisa dos artistas no site do MAVRS. A continuidade do processo de digitalização das obras
Projeto de pesquisa, O MAVRS como fonte de conhecimento: catalogação e digitalização das obras dos artistas rio-grandenses do acervo, coordenado pela professora Marilei Teresinha Dal’Vesco, vinculado ao curso de Artes Visuais, da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo
Fundo – UPF
Redação Entre com informações da Assessoria de Imprensa UPF
envolverá a digitalização das obras e dos artistas rio-grandenses.
Por meio do projeto, pretende-se suscitar novos olhares para a pesquisa em artes e educação, por meio da disponibilização do acervo no site do MAVRS, bem como a criação de um QR code, para uso nas escolas que integram a rede municipal, estadual e privada de ensino, do município de Passo Fundo. Assim, será possível ter acesso a materiais educativos, que apresentam a biografia dos artistas, as obras, as temáticas, os processos, as técnicas e materiais utilizados nas produções. O estudo nos permitirá refletir sobre a materialização da obra de arte como conhecimento, sobretudo no âmbito universitário, como forma de impulsionar o desenvolvimento de novos saberes em arte e educação.
FAC
70 ANOS PULSANDO VIDA E RESPIRANDO ARTE
Sete décadas celebram a Faculdade de Artes e Comunicação, uma unidade que formou histórias e pessoas únicas
Sabrina Tagliari Aluna do curso de JornalismoSão mais de 25 mil dias em 70 anos, milhares de dias vividos intensamente e esses tantos anos contam muita história de um espaço cheio de diversidade. Em 2022, a Faculdade de Artes e Comunicação (FAC) da UPF completou 70 anos. Já parou para pensar o quanto de histórias foram vividas na FAC?
Essa história começou em 1952, quando ela sequer era FAC, com o Conservatório Municipal de Música e a Escola de Belas Artes, bem antes da fundação da Universidade de Passo Fundo. Em 1996, o nome “Faculdade de Artes e Comunicação” foi instaurado. A história da FAC, portanto, é ainda mais antiga que a própria história da UPF, que hoje tem 54 anos de criação.
Os cursos de Artes Visuais, Design Gráfico, Jornalismo, Música e Publicidade e Propaganda fizeram parte da unidade. Em 2022, homenagens vem sendo feitas para o lugar onde passaram tantos jovens, e que, hoje, se torna uma senhora idosa. Uma velhinha com aquele alto astral que só quem é faquiano tem. Quem é de fora ou de outras unidades e passa pelo prédio consegue sentir imediatamente a energia, nossas cores, nossos sons, nossa singularidade, nossa energia exala vida, exala arte. Um sentimento tão bom que nos faz querer ser mais, ousar e instigar.
“Se existe uma coisa que nós podemos fazer, se existe uma coisa que a arte, comunicação, que a informação de qualidade pode fazer e que nós ao escolher esses cursos assumimos o compromisso de fazer e de transformar o mundo… mexer com as pessoas e de inquietar”, comenta a exdiretora da Faculdade de Artes e Comunicação (FAC) Bibiana de Paula Friderichs.
Bibiana, ao falar sobre a FAC, explica que a sociedade nunca precisou tanto de arte e de informação de qualidade como precisamos hoje para fazer um mundo melhor, um mundo justo, um mundo para todos. “A FAC de alguma maneira ao longo desses 70 anos é a tradução desse mundo
porque existe entre nós espaço e respeito para o diferente, espaço e respeito por todos do jeito que são e como são.”
Acolhimento de família
A ex-diretora, ao falar da unidade, extrapola o físico. A FAC, para ela, não existe, ela não é um prédio, ela é um espírito e esse espírito foi construído por essas pessoas. Mas se torna uma casa, uma segunda família que não é feita apenas pelos rostinhos jovens dos alunos, mas também por professores, pessoas que colocam sua alma à disposição dos estudantes. “Se tem uma coisa que efetivamente faremos nesses 70 anos, é reconhecer as contribuições das diferentes pessoas, alunos, professores, funcionários, na construção desse espírito faquiano, na formação de tantos profissionais e mobilização de tantos agentes culturais como a FAC foi durante esse tempo” explica Bibiana.
A lembrança de Bibiana é oportuna, já que muita gente foi importante para a unidade nesses últimos 70 anos. A ex-professora e coordenadora dos cursos de Artes Visuais Mariane Loch Sbeghen foi acadêmica do primeiro curso de bacharelado de desenho e plástica da FAC “Nunca
Fachada e escadaria do prédio D2 do campus I.
mais deixei a FAC, foi apaixonante o ambiente, meus professores na época fizeram a diferença porque se não fossem eles me seduzir com a disciplina e a metodologia que a gente tinha aqui, não tinha como não ficar.”
Após sua formação, Mariane ficou um tempo fora da FAC e voltou para atuar como professora. “Fiz licenciatura e depois voos mais altos para minha formação. Retornei para a universidade que me acolheu e aí eu virei professora, muito feliz, foi uma das coisas que mais me realizou, ser professora.”
Cilene Potrich
Já Cilene Potrich entrou na Faculdade de Artes e Comunicação quando tinha cerca de 18 anos, e acabou ficando 40 anos entre a formação no curso de graduação e sua época como professora. “A gente tinha a oportunidade de ser espontâneo, de fazer de forma diferente as coisas, que não era preciso ser tão formatado.”
Cilene ainda era estudante quando precisou substituir uma professora, fez curso, especialização, mestrado e acabou ficando.
“Além da graduação eu também trabalhei nas pós-graduações e extensão e acabei por
uma situação sendo também diretora da FAC e foi uma época muito incrível, que a gente criou muitos projetos.” explica Cilene, comentando que foram criadas a Agência de Publicidade, de Jornalismo e o Viramundos que era um projeto de teatro da época.
Ela se recorda que em uma das primeiras disciplinas que teve, uma de suas professoras entrou na sala de aula e sentou em cima da mesa e isso foi um ato transgressor na época “Foi uma coisa incrível porque balizou a minha trajetória como professora. Não é que eu sempre sentasse em cima da mesa” comenta Cilene.
Um momento que marcou Cilene durante todos esses anos na FAC não aconteceu apenas em um dia, mas sim em todo início de semestre. “O primeiro dia de aula do semestre, quando os alunos estão chegando, aquele olhar curioso e ao mesmo tempo atento. Uma semana depois está todo mundo integrado, interagindo. A melhor lembrança que eu tenho é o estudante, olhar para o estudante, ver a alegria no olho e poder dizer “esse é um espaço em que posso ser eu, posso crescer e realmente fazer aquilo que está dentro de mim e aquilo que eu penso” comenta. A FAC, segundo ela, permitia uma flexibilidade tanto para as emoções quanto para as ações.
Dando voz a quem fez parte Como uma forma de marcar o aniversário da unidade, os alunos do curso de jornalismo Thalis Rota e Raquel Tartas gravaram uma reportagem sobre a FAC nos anos 80 com as egressas Jaqueline Rota Laner e Maura Helena De Carli, bacharéis do Curso de Desenho e Plástica e integrantes da turma do “Oba Oba” da década de 1980. Elas contaram histórias que ocorreram durante os anos que ficaram na FAC.
No mesmo formato, os alunos Luiz Calderan e Felipe Borges gravaram uma reportagem para dar voz a quem faz parte da FAC diariamente, seja trabalhando no bar ou nos laboratórios, o trabalho intitulado de “As vozes da FAC” resgata o sentimento de pertencimento faquiano.
Passam gerações, e o sentimento segue o mesmo: A FAC é a casa de muitos, e diferentes. A egressa do curso de jornalismo, Lauriane Agnolin comenta que “a FAC durante quatro anos e meio de curso foi a minha casa, literalmente porque eu ficava mais tempo dentro da unidade do que na minha própria casa e convivendo mais com as pessoas de dentro da universidade do que com a minha família.”
Para a recém formada, a FAC se tornou uma guardiã das artes e da comunicação. Segundo ela, mais do que formar e estar preocupada
“EU APRENDI NA FAC QUE É PRECISO DESAPRENDER COISAS APRENDIDAS PARA REAPRENDER NOVAS COISAS”
com a qualidade de ensino que os alunos recebem todos os dias durante as aulas, a FAC também se preocupava com os valores humanos e os valores éticos de um profissional que sai formado da unidade. “Nesse momento que a gente passa por uma crise de identidade no jornalismo principalmente, ter esses valores muito sólidos junto conosco que a gente adquiriu durante a graduação, é o que nos mantém navegando no barquinho”, comentou a jornalista.
Mariane explica que existe um grande desafio em ensinar ”Tu quer dar qualidade ao curso, a questão humana das relações mas antes de mais nada você quer dar o máximo pros teus alunos, eles depositaram a confiança no curso, nesse caso na nossa universidade, na nossa instituição e na nossa FAC.” Ela também complementa que a diferença está não no ato de completar 70, mas no percurso dos 70 anos inteiros, e conclui: “Uma sociedade sem a intervenção das artes cênicas, visuais, musicais, e da cultura, não constrói um povo sensível, e um povo não sendo sensível não tem como viver, eu não consigo me ver sem ter essa pitada de arte nas pessoas.”
UMA SOCIEDADE SEM A INTERVENÇÃO DAS ARTES CÊNICAS, VISUAIS, MUSICAIS, E DA CULTURA, NÃO CONSTRÓI UM POVO SENSÍVEL
Mariane Loch Sbeghen
Bibiana acredita que esse espírito faquiano é a energia de todos nós. “Esse espírito que inunda todos esses faquianos, todas as pessoas que passaram por aqui que ajudaram a construir essa energia transformadora que a arte e a cultura podem representar em uma sociedade.” Que continuemos comemorando a vida da FAC, que pulsa em nossos corações desde a primeira vez em que subimos a escadaria da unidade. Voltar ao tempo desperta saudade e a galeria de fotos e a linha do tempo (QR code ao lado) resgatam alguns dos principais momentos que aconteceram na unidade. Aulas, gravações, eventos e muita arte!
CASA MODERNA
A ideia desse trabalho surgiu após uma visita ao novo bairro passofundense Cidade Nova. Construído por uma incorporadora do mercado imobiliário de Passo Fundo, é o “primeiro e mais moderno bairro planejado da cidade” segundo o site cidadenovapf.com.br
Elementos “Modernos”
Durante essa visita ao bairro, pude observar padrões nas concepções dessas casas “modernas”. Platibandas, vidros espelhados, paletas cromáticas neutras, uma sacadinha vazia, algum volume sobressalente em um material diferenciado de madeira, pedra e imitações desses materiais por ex, e por aí vai.
Buscando “Casa Moderna” no Google, podemos ver diversas casas com esses mesmos elementos, que tal qual na Cidade Nova, temos um grande evento de “CTRL+C CTRL+V” desenfreado. Essa forma de construir tem origens nas propostas modernistas de Le Corbusier, que defendia a ideia de uma casa como uma máquina de morar, de caráter essencialmente funcional.
Tal qual Passo Fundo, as casas da Cidade Nova deixam transparecer uma grande crise de identidade. Se as tirarmos do contexto (como os resultados do Google), não podemos dizer se são do Rio Grande do Sul, São Paulo ou Paraná, pois são genéricas.
Módulos de morar
A partir dessas observações, resolvi então fazer blocos com fotos que tirei das fachadas dessas casas. Criando assim, módulos, que nos possibilitam montar nossas “casas modernas”. Lembrando aquele brinquedo antigo; “Brincando de engenheiro”.
Segunda parte
Como um resultado da insuficiência de subjetividade e identidade dessas casas, surge o Kitsch. E nas casas da Cidade Nova, podemos observar sua presença.
Unindo o kitsch às procuras por “Casa Moderna” no Google (que direcionam a diversos sites de venda de projetos arquitetônicos), a segunda parte do projeto seria uma escultura do Pica-pau (encontrei dois pela Cidade Nova) a admirar o projeto de sua futura casa.
COMO IREMOS COMER?, 2020
Como iremos comer? Foi construído a partir do estudo sobre módulos, e de reflexões sobre a pandemia da Covid-19. A alimentação é energia vital, como inúmeras outras coisas e diante de tantas mudanças a nossa forma de consumir energia vital também passa por transformações. Assim, deixo um questionamento que pode levar o espectador a estar mais presente nas relações com o que está a consumir.
Ana Júlia Saqueti. Acadêmica do Curso de Artes Visuais da Universidade de Passo Fundo. É natural de Santo Augusto, RS, mas vive e estuda em Passo Fundo.
PRÉ-RUPTURA, 2020.
O objeto tridimensional “Pré-ruptura” foi baseado na relação da sociedade com o vírus covid-19, aquele que amarrou as pessoas, prendeu-as em suas próprias casas, com máscaras na boca e sem contato com o outro entrar em relação com o sufoco, foi o caos necessário que a humanidade precisava. Foi criação de um espaço para ruptura daquilo tudo que não estávamos percebendo. Através das linhas, do aperto e dos materiais usados, trago nele a sensação dos primeiros momentos. A proposta das aulas de Escultura II do Curso de Artes Visuais foi escolher um objeto do cotidiano a partir da experiência vivida de isolamento social, considerando as leituras sobre as mudanças de materiais empregadas nas esculturas e objetos de arte ao longo da história.
AFROFUTURISMO E A OBRA DE EDUARDO ARCE
Jessica Colet Graduada em Artes Visuais. Trabalho desenvolvido
na disciplina de Meios de Comunicação e Artes.
Otermo afrofuturismo foi cunhado por Mark Dery em 1993, e desenvolvido com a contribuição de diversos pensadores e artistas, tais como Alondra Nelson, Sun Ra, Octavia Butler, entre outros. Refere-se a uma corrente cultural e artística que se utiliza de ficção, ficção científica, arte negra e fantasia para questionar o espaço ocupado pelas pessoas negras na sociedade atual, assim como nos eventos históricos.
Segundo o escritor afrofuturista Ale Santos, para a Folha de São Paulo, o afrofuturismo é um movimento social que traz as perspectivas negras sobre os aspectos políticos, estéticos e culturais da ciência, da ficção científica e da tecnologia. O movimento traz características de conexão com as culturas e a experiência de vida negra, de forma que a criação emerge da vida das pessoas negras e das suas tradições ancestrais. É preciso compreender que, além de movimento artístico-cultural, o afrofuturismo é uma importante afirmação da existência do corpo negro no futuro, configurando um movimento de resistência.
Nesse contexto, podemos observar a obra de Eduardo Arce, artista e designer paulista, sob esta perspectiva do afrofuturismo. Em entrevis-
ta à Glamour Eduardo conta sobre seu processo criativo: “Exalto pretos com todos os seus humores de amor, tristeza, raiva, medo, alegria… Eu me inspiro em pessoas negras que, assim como eu, buscam compartilhar seus sentimentos pelo que passam e suas diversidades no dia a dia”.
Os trabalhos do artista são compostos por colagens digitais que englobam fotografias de pessoas juntamente com elementos gráficos de cores vibrantes representando o espaço e temáticas fantasiosas bem características do traço afrofuturista, colocando o elemento humano no centro da composição, com ênfase na materialidade e gestualidade do corpo. Mesmo com o quê de ficção, representa também cenas cotidianas, a relação das pessoas umas com as outras, com afeto e alegria. Pode-se perceber no trabalho a exaltação do corpo negro e a criação de uma poética visual que costura caminhos entre a estética urbana contemporânea e o design, utilizando também ícones pop em sua construção de sentidos diversos.
O elemento do design é, essencialmente, da esfera da comunicação. Criado como facilitador e condutor de uma mensagem ao público, o design na obra de Eduardo Arce ganha status de técnica
artística, na medida em que o artista utiliza o elemento, de sua área de formação, para fins de conduzir uma poética visual. A facilidade de o agente migrar de um campo a outro evidencia a convergência entre arte e comunicação. Isso se dá não só através da utilização de técnicas de trabalho afins, como o design e a fotografia das quais Eduardo se apropria, mas também na medida em que a arte contemporânea procura cada vez mais uma ideia de narrativa que se aproxime da realidade da vida cotidiana, ocupando-se de temas do interesse do público.
Além da ideia de exaltação do negro em todos os contextos da vida social, pode-se observar que o trabalho de Eduardo articula-se fortemente no caráter da resistência, trazendo importantes pautas da militância e apresentando-as através de sua obra. Em uma série de colagens, o artista aborda de forma enfática e tocante a questão da dificuldade enfrentada pelas pessoas negras no Brasil.
Em entrevista à Revista Trip sobre a série, Eduardo afirma que: “Os pretos não são apenas uma moda que está acontecendo no momento. É real, é um medo trancado a sete chaves que a gente tem que fingir que não tem. E que se a gente expõe a gente pode perder o emprego, ficar sem casa ou ser taxado de vitimista. Precisamos colocar a raiva que a gente sempre guardou pra fora e sermos ouvidos não só agora, mas todos os dias.”
Torna-se evidente a importância do movimento afrofuturista no sentido de revisitar e reformular noções historicamente construídas acerca do espaço ocupado pelas pessoas negras na sociedade, assim como a importância de reconhecer as narrativas dos artistas negros que reivindicam locais que lhes forma negados por tantos séculos, reafirmando a existência e a resistência do negro no presente e no futuro.
EXPOSIÇÃO “PREVENÇÃO AO ASSÉDIO MORAL E SEXUAL”
Promoção: Divisão de Gestão de Pessoas, Balcão do Trabalhador, projeto de extensão Agência de Artes - Curso de Artes Visuais e Curso de Publicidade e Propaganda, disciplinas de Fotografia Publicitária I e II e Fotografia Artística I.
Coordenação: professor Cassiano Del Ré.
A mostra objetiva sensibilizar a comunidade acadêmica e o público em geral em relação à importância de espaços de trabalho que favoreçam o diálogo, a transparência, a ética, a valorização e o respeito à diversidade e à subjetividade do ser humano. Local: Centro de Convivência da UPF.