comunicação
saúde
educação
v.15, n.39, out./dez. 2011 ISSN 1414-3283
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apresentação artigos
973 Educação superior no Brasil e a formação dos profissionais de saúde com ênfase no envelhecimento Alex da Silva Xavier; Lilian Koifman
985 Discursos que formam saberes: uma análise das concepções teóricas e metodológicas que orientam o material educativo de formação de facilitadores de Educação Permanente em Saúde Grasiele Nespoli; Victoria Maria Brant Ribeiro
997 La praxis como fundamento de una educación para la salud alternativa: estudio de investigación-acción en el Programa de Crecimiento y Desarrollo en Medellín, Colombia Fernando Peñaranda-Correa; Julio Nicolas Torres-Ospina; Miriam Bastidas-Acevedo; Gloria Escobar-Paucar; Adriana Arango-Córdoba; Fráncy Nélly Pérez-Becerra
1011 A formação pedagógica institucional para a docência na Educação Superior
Cláudia Chueire Oliveira; Maura Maria Morita Vasconcellos
1025 Abordagens de ensino e pesquisa na pós-graduação em saúde: da realidade da disciplina à ‘utopia’ transdisciplinar
1111 A formação ético-humanista do enfermeiro: um olhar para os projetos pedagógicos dos cursos de graduação em enfermagem de Goiânia, Brasil Juliana de Oliveira Roque e Lima; Elizabeth Esperidião; Denize Bouttelet Munari; Virginia Visconde Brasil
1127 Assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde (SUS): percepções de graduandos em Farmácia Claudia Benacchio Nicoline; Rita de Cássia Padula Alves Vieira
1145 Formação do psicólogo para a saúde mental: a psicologia piauiense em análise João Paulo Macedo; Magda Dimenstein
1159 Sistematização de estratégias de ensinar-aprender pesquisa na graduação
Zuleica Maria Patrício; Maria Regina Silvério; Ivete Maria Ribeiro; Janete Elza Felisbino; Ingrid May Brodbeck; Greice Wessler Medeiros Martins; Gilmara Medeiros Vieira da Silva; Adriana Elias dos Reis
1173 Simulação como estratégia de ensino em enfermagem: revisão de literatura
Ilka Nicéia D’Aquino Oliveira Teixeira; Jorge Vinícius Cestari Felix
1185 Responsabilidade social da Educação Superior: a metamorfose do discurso da UNESCO em foco
Adolfo Ignacio Calderón; Rodrigo Fornalski Pedro; Maria Caroline Vargas
1199 Educação a Distância (EaD) em Física Médica
Wellington Furtado Pimenta Neves-Junior; Cecília Maria Kalil Haddad; Fernando Sequeira Sousa; Ivan Torres Pisa
José Renato Gomes Castro; Bruno José Barcellos Fontanella; Egberto Ribeiro Turato
1039 O ensino de pediatria na atenção básica em saúde entre as fronteiras do modelo biomédico e a perspectiva da integralidade do cuidado: a visão dos médicos supervisores Alice Yamashita Prearo; Agueda Beatriz Pires Rizzato; Sueli Terezinha Ferreira Martins
1053 Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia
espaço aberto 1207 Role-playing: estratégia inovadora na capacitação docente para o processo tutorial
Ieda Francischetti; Ana Carolina Lemos Corrêa; Camila Mugnai Vieira; Carlos Alberto Lazarini; Lilian Maria Giubbina Rolin; Márcia Oliveira Mayo Soares
Mirelle Finkler; João Carlos Caetano; Flávia Regina Souza Ramos
1071 Estudo qualitativo da integração ensino-serviço em um curso de graduação em Odontologia Ana Luiza de Souza; Daniela Lemos Carcereri
1085 Sociologia das profissões e percepção de acadêmicos de Odontologia sobre o Agente Comunitário de Saúde em Saúde Bucal
Rodrigo Otávio Moretti-Pires; Levi Abraão Marinho Lima; Maria Helena Machado
1097 Solicitações profissionais e sociais de professores de cursos de enfermagem no Brasil Paulo Gomes Lima; Patrícia Leal de Freitas Santos
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notas breves criação
1225 De que forma
Renan do Espírito Santo Tobias Duarte; Erika Alvarez Inforsato
vídeo: Mas de que Forma/Fôrma?, 2007 Renan do Espírito Santo Tobias Duarte
apresentação
Com alegria registramos a escolha do tema da formação para este número da Revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação que, desde seus primeiros fascículos, vem manifestando um compromisso com seu tempo e com uma “política estética”, tão expressa nas páginas de suas diferentes edições. Com a postura de contribuir para uma “textualidade heterogênea”, vem assumindo o papel de se constituir num laboratório de ideias, de culturas e de saberes. Por si só, a própria Revista se constitui como um espaço de formação. Este termo, porém, exige uma reflexão conceitual para alcançar suas reais possibilidades de comunicar um significado. Pode estar ligado preponderantemente, ao mundo do trabalho e à força produtiva, atribuindo à expressão formação um caráter pragmático e utilitário. Mas pode assumir uma visão mais ampla de cunho humanista, que atribui à formação uma condição axiológica, alargando a perspectiva anteriormente mencionada. A compreensão do significado de formação tem profunda relação com o lugar e o tempo em que se realiza. Se entendermos a formação como processo vital, que acompanha o homem enquanto ele vive, os lugares da formação serão múltiplos, assim como o tempo dedicado para tal. A virada epistemológica, que favoreceu a ruptura com os princípios da ciência moderna, favoreceu a compreensão de que os processos de formação são intencionais, incluem a subjetividade dos envolvidos e se instituem em contextos históricos e geográficos definidos. Nesse sentido, formação é sempre autoformação, mesmo contando com estímulos externos. Coerente com esses princípios, instalou-se a busca de uma genealogia para fazer avançar o conhecimento e construir teorias que pudessem ajudar a explicação dos fenômenos. Tal perspectiva distanciou-se das grandes generalizações porque procurou valorizar tanto as regularidades quanto as especificidades das construções cotidianas. Esse pode ser o estruturante que alinha os diferentes estudos apresentados neste número da Revista que tem a formação como principal eixo articulador. Sem distanciar-se do campo que dá especificidade ao tema, amplia a compreensão dos processos de formação, assumindo a sua complexidade e a importância do protagonismo na sua produção. Inova, ainda, a Revista, ao publicar pela primeira vez, nesses 15 anos de sua trajetória, uma reflexão em linguagem de vídeo intitulada “Mas de que forma/ fôrma?” uma expressão absolutamente pertinente para explicitar a ambígua possibilidade que o vocábulo formação contém. A linguagem de imagens se constitui na materialização de uma experiência de formação que assume a subjetividade como valor em que “as sensações serão o ponto de partida, com o objetivo de construção de um território com várias teias, suficiente para dar consistência às experiências vividas”. Esta é a trilha para a humana formação, na feliz expressão de Miguel Arroyo. Completa ela a perspectiva de formação como caminho, trajetória, investigação, reflexão, companheira inseparável da experiência. Esta inspiração permeia os textos apresentados neste número de Interface, que deseja ter nos leitores parceiros de apreensão dos seus significados. Maria Isabel da Cunha Conselho Editorial Científico Interface – Comunicação, Saúde, Educação
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We are pleased to inform the choice of the theme of education for this issue of Revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação. Since the beginning, the Journal has been committed to its time and to an “esthetic policy”, expressed in the pages of its different editions. With the aim of contributing to a “heterogeneous textuality”, it has been playing the role of being a laboratory of ideas, cultures and knowledge. In itself, the Journal is a space of education. However, the term education requires a conceptual reflection to achieve its real possibilities of communicating a meaning. It can be preponderantly linked with the world of labor and productive force, having a pragmatic and utilitarian character. But it can assume a broader humanistic view, in which case it acquires an axiological condition, enlarging the above-mentioned perspective. The understanding of the meaning of education has a profound relation to the place and time in which it takes place. If we understand education as a vital process, which accompanies man while he lives, the places of education will be multiple, as well as the time dedicated to it. The epistemological turn, which has favored disruption with the principles of modern science, has supported the understanding that the education processes are intentional, include the subjectivity of the involved individuals and are instituted in defined historical and geographical contexts. In this sense, education is always self-education, even with external stimuli. Coherent with these principles, the search for a genealogy to make knowledge advance has been installed, so as to build theories that might help explain phenomena. Such perspective is distant from the great generalizations because it has attempted to value both regularities and specificities of daily constructions. This may be the structuring element that aligns the different studies presented in this issue of the Journal, which has education as the main articulating axis. Without ignoring the field that gives specificity to the theme, it broadens the understanding of the education processes, assuming their complexity and the importance of protagonism in their production. The Journal also innovates by publishing, for the first time, in 15 years of trajectory, a reflection in video language entitled “Mas de que forma/fôrma?” (But in what form?), an absolutely pertinent expression to manifest the ambiguous possibility that the word formação (education) has. The image language is the materialization of an education experience that assumes subjectivity as a value, in which “the sensations will be the point of departure, with the objective of constructing a territory with many webs, sufficient to give consistence to the lived experiences”. This is the trail to humana formação (human education), as proposed by Miguel Arroyo. It completes the perspective of education as path, trajectory, investigation, reflection, an inseparable companion of experience. This inspiration pervades the texts presented in this issue of Interface, which wishes that its readers become partners in the apprehension of its meanings. Maria Isabel da Cunha Scientific Editorial Board Interface – Comunicação, Saúde, Educação
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artigos
Educação superior no Brasil e a formação dos profissionais de saúde com ênfase no envelhecimento Alex da Silva Xavier1 Lilian Koifman2
XAVIER, A.S.; KOIFMAN, L. Higher education in Brazil and the education of health care professionals with emphasis on aging. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.973-84, out./dez. 2011. In this article we discuss professional health education with focus on aging, based on the higher education public policy in Brazil. We used the case study of Universidade Federal Fluminense (UFF). The central issue was considered the aging of the country’s population, which strengthens the need to educate health professionals so that they are able to assist this specific group with quality. Based on the bibliographic survey of the area, we indicate that changes in the health professional’s characteristics happen as a consequence of transformations in the social-political context, mainly the expansion of capitalism and the globalization process, which produce changes in the higher education public policies. We conclude that educating health professionals who are suitable to the social demands has been a challenging task; however, in the case of UFF, we have found an education directed to the care of the aged population, with curricula changes aiming to make the best of such characteristic.
Keywords: Public policies. Higher Education. Aging.
Neste artigo discutimos a formação profissional em saúde com foco no envelhecimento, a partir da política pública de Educação Superior no Brasil. Utilizamos o estudo de caso da Universidade Federal Fluminense (UFF). Consideramos, como questão central, o envelhecimento populacional no país, que reforça a necessidade de formação de profissionais de saúde que atendam, com qualidade, as especificidades desse grupo. Apoiados no levantamento bibliográfico da área, apontamos que as mudanças de característica do profissional de saúde se dão em consequência das transformações do contexto sociopolítico, sobretudo a expansão do capitalismo e o processo de mundialização, que imprimem mudanças nas políticas públicas de Educação Superior. Concluímos que formar profissionais de saúde adequados às demandas sociais tem sido desafiador, entretanto, no caso mais profundamente estudado, o da UFF, encontramos uma formação voltada para o atendimento à população idosa, com mudanças de currículos aprimorando tal característica.
Palavras-chave: Políticas públicas. Educação Superior. Envelhecimento.
Centro Universitário Plínio Leito. Av. Visconde do Rio Branco, 123, Centro. Niterói, RJ, Brasil. 24.020-000. xavier_fisio@yahoo.com.br 2 Departamento de Planejamento em Saúde, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense. 1
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Introdução Na atualidade, torna-se cada vez mais comum a percepção da necessidade de se formarem profissionais de saúde para o Sistema Único de Saúde (SUS). O Ministério da Saúde, nessa perspectiva, tem investido esforços no sentido de manter, na agenda, as políticas públicas de formação direcionadas aos serviços, buscando aproximar as escolas de Formação em Saúde dos serviços de saúde, com objetivo final de melhorar a qualidade da assistência prestada (Ceccim, Armani, Rocha, 2002). De igual modo, políticas voltadas para grupos específicos também buscam corresponder a tal expectativa. Assim, tomaremos como exemplo a ser discutido as políticas cujo objeto principal é o indivíduo idoso. Para tanto, consideramos que as medidas tomadas no âmbito da educação influenciarão constantemente o sistema de saúde. É consenso, entre os autores (Sguissardi, 2006; Macedo et al., 2005; Catani, Oliveira, Dourado, 2001; Albuquerque, 1995), que mudanças são tensionadas mundialmente, para que o sistema de educação corresponda às demandas do sistema capitalista vigente, onde a formação deve corresponder à produção de um profissional polivalente e flexível no menor espaço de tempo possível. Segundo Catani, Oliveira, Dourado (2001, p.68-9), As necessidades decorrentes do processo de mundialização implicam novos cenários competitivos, ocasionando a absorção de novos formatos organizacionais. Tais alterações são perceptíveis pela absorção da microeletrônica, em larga escala, desde as relações da indústria com os bancos e com o sistema financeiro até as infra-estruturas e serviços públicos, nível de qualificação de mão-de-obra, qualidade do serviço de pesquisa, dentre outros. A tecnologia tornou-se fator fundamental no contexto em que a competitividade e a produtividade se tornaram dogmas absolutos e sinônimo de luta pela sobrevivência no mundo dos negócios. Portanto, nesta ótica empresarial, verifica-se que grande parte das vantagens está associada à qualificação dos recursos humanos e à qualidade dos conhecimentos produzidos. Por isso, a questão da formação e da produção do conhecimento passou a ser de fundamental interesse das empresas, especialmente das transnacionais.
No cenário brasileiro, observa-se, a partir de pressões externas - sobretudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros - a cessão das obrigações do Estado e o ajuste estrutural aumentados no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (entre 1995 e 1998). Nesse período, foram aprovadas grandes modificações na Educação Superior, resultando no desencadear do atual panorama de ensino universitário (Catani, Oliveira, Dourado, 2001; Silva Jr., Sguissardi, 1999). O artigo tem por objetivo discutir a formação profissional em saúde com o foco no envelhecimento a partir da política pública de Educação Superior no Brasil. Nessa perspectiva, utilizamos o estudo de caso da Universidade Federal Fluminense (UFF) como suporte para a discussão. Entendemos que o envelhecimento populacional em curso no país assume características específicas, e a busca dessa parcela da população por serviços de saúde aponta para a necessidade de formação profissional em saúde que atenda com qualidade o indivíduo idoso, em conformidade com os princípios norteadores do SUS.
Metodologia O artigo é parte integrante do projeto de pesquisa “Implementação da Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa nos Cursos de Graduação em Saúde da Universidade Federal Fluminense”, submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Antônio Pedro. O objetivo é discutir a formação profissional em saúde com o foco no envelhecimento, a partir da política pública de Educação Superior no Brasil. Para desenvolver a pesquisa, utilizamos metodologia qualitativa do tipo estudo de caso da UFF. Primeiro foi realizada análise documental, onde se verificaram os documentos. Inicialmente, as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de graduação em Saúde, seguidas das portarias da Câmara 974
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artigos
de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (que tratam da carga horária mínima dos cursos de graduação em saúde), e grades curriculares dos cursos de graduação em saúde da UFF. Em segundo lugar, foram realizadas 23 entrevistas semiabertas, distribuídas entre os seguintes atores sociais: sete coordenadores, 12 professores e quatro alunos de graduação dos cursos de Enfermagem, Educação Física, Farmácia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Serviço Social da UFF, e observação das escolas onde se localizavam os cursos estudados. Foram selecionados como agentes da pesquisa: os coordenadores de curso das graduações supracitadas; professores que lecionavam disciplinas voltadas para o envelhecimento (ou que reconhecidamente eram referência para esse assunto na universidade em questão) e alunos que já tivessem cursado disciplinas sobre os temas de geronto/geriatria. Quanto à escolha do número de participantes, destacamos que, dos oito coordenadores, um não apresentou disponibilidade de tempo, impossibilitando a entrevista. Em relação aos professores, a quantidade de entrevistados reflete a totalidade de docentes de referência nas escolas. Já o número de alunos foi intencional e não de amostra probabilística. Em relação à técnica de análise utilizada para as entrevistas, realizamos uma aproximação da Análise Temática (Minayo, 2008), com o processo de categorização dedutiva, buscando compreender em que medida os cursos de graduação em Saúde da UFF implementam a inclusão da geronto/geriatria em suas grades curriculares (Moraes, 2003). Todas as entrevistas foram gravadas, o que possibilitou que os dados fossem submetidos à pré-análise por intermédio de sucessivas escutas das falas, seguidas de organização das categorias buscadas (disciplina, formação dos professores, atividades complementares e interação entre os cursos e ensino como possibilidade de mudança), e, na sequência, análise dos dados.
Políticas públicas e formação em saúde Historicamente, pode-se observar que, a partir de 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), incluiu-se a educação na agenda política do governo. Em 1934, então, como parte da 2ª carta constitucional promulgada, destacou-se um capítulo específico descrevendo a educação brasileira, onde é encontrada também, pela primeira vez (nas constituições existentes até então), citação direta sobre a Educação Superior no país. Desde então, o processo de formulação de políticas de Educação Superior sofre reorientações, até assumir a atual configuração estrutural com a promulgação da 5ª carta magna em 1988. A Constituição, que foi chamada de Cidadã, apresenta, além do conjunto de legislação complementar, o destaque para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sancionada em 1996 (Lima, Fonseca, Hochman, 2005; Silva Jr., Sguissardi, 1999). Para Collares, Moysés e Geraldi (1999), a educação possui dois objetos: a formação intelectual e a formação social do homem. Em tal contexto, a formação sempre possui uma intenção, seja mais determinística ou dinâmica. No caso da determinística, demonstra, geralmente, grande rigidez no processo, com interesse em determinar a ação futura do indivíduo a partir do passado. No caso da formação dinâmica, considera a constituição do sujeito no próprio processo, que interage com a construção do conhecimento. A nosso juízo, a segunda abordagem possibilita a formação de sujeitos mais criativos e reflexivos, capazes de articular saberes e construir novas práticas. A esse respeito, o texto constitucional de 1988 descreve em seu artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 2000, p.118 - grifo nosso). A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases - LDB), que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, descreve, em seu parágrafo 2º, do artigo 1º, que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho [grifo nosso] e à prática social” (Brasil, 2002, p.27). Assim, dentre os princípios em que o ensino deverá ser ministrado (art. 3º, item XI), encontramos o de “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” (p.28). Ambos os documentos (Constituição Federal de 1988 e LDB) citam a qualificação para o trabalho como objetivo da educação. Neste momento, concordando com Leite, defendemos o conceito de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.973-84, out./dez. 2011
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qualificação entendido como “capacidade de mobilizar saberes para dominar situações concretas de trabalho e transpor experiências adquiridas de uma situação concreta a outra” (Leite apud Freitas, Saul, 2007, p.19). Segundo Motta e Aguiar (2007), as modificações no mundo do trabalho exigem valorização da subjetividade, e, baseados nessa ideia, propõem a utilização do conceito de competência para considerar a formação profissional em saúde. Para esses autores, formação por competência remeteria, necessariamente, a um caráter polissêmico – condição de articular saberes em dada situação real e prática –, potencializando a subjetividade do indivíduo presente no conceito de qualificação. Considerando a graduação em Saúde e a formação em Geriatria e Gerontologia, especificamente, as políticas públicas que tratam do idoso relatam a necessidade de realização de ações articuladas entre diversos setores (Brasil, 2006a). Entretanto, o setor de saúde acaba sendo o local onde se percebe ou não o atendimento às necessidades de formação profissional. Conforme aponta a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, não temos, hoje, profissionais em número suficiente para atendimento das necessidades dessa população. Surge, como desafio, a conformação de uma estrutura de cuidado e suporte qualificados, além da necessidade de formação de equipes multiprofissionais e interdisciplinares com conhecimento em envelhecimento e saúde da pessoa idosa. Assim, o Ministério da Saúde formulou a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, instituída em 2004 e alterada em 2007, com intuito de transformar e qualificar a Formação em Saúde. É verdade que a implementação da mesma tem sofrido alterações. Todavia, se de um lado ocorrem mudanças dos atores políticos envolvidos com a implementação dessa política pelo Estado, o que provoca momentos de fragilização intercalados por momentos de potencialização, de outro, esse processo - conforme sugerem Arretche (2005) e Menicucci (2007) - permite momentos de reformulação constante, impondo um caráter dinâmico à implementação da política. A proposta da Educação Permanente em Saúde foi propagada com o objetivo de intervir na carência estrutural encontrada na formação dos profissionais de saúde (Lopes et al., 2007). A mesma está voltada, essencialmente, para a aprendizagem em serviço, a partir dos desconfortos vivenciados no próprio cotidiano do trabalho, com o que pretende dialogar com as práticas e concepções vigentes, buscando problematizá-los (Lopes et al., 2007; Ceccim, 2005a). É um modelo em que o profissional é colocado no núcleo do processo ensino e aprendizagem, onde são considerados todos os processos de subjetivação, valorizando-se sua capacidade criativa e o conhecimento produzido na práxis. Assim, a educação permanente apresenta-se como duplamente produtora, haja vista a produção do cuidado (no caso da saúde) assim como a produção do trabalhador (Franco, 2007; Ceccim, 2005b; Ceccim, Feuerwerker, 2004), destacando que a formação se dá no próprio cotidiano do serviço (Brasil, 2009). No caso da educação para a saúde, Franco (2007, p.436) afirma: A atividade de trabalho na saúde produz enunciado durante todo o seu processo. Pela sua natureza relacional, a dinâmica do trabalho vivo em ato traz a possibilidade de ter o mundo da saúde em transformação e, sobretudo, a implicação dos sujeitos com a atividade produtiva. Tudo isso traz, em si, a potência da mudança dos trabalhadores e dos usuários. A produção pedagógica ocorre pari passu à produção do cuidado, sendo constitutivos da mesma os processos de cognição e formação de novas subjetividades.
No que diz respeito à formação profissional em Gerontologia, Motta e Aguiar (2007) afirmam que as mudanças no mundo do trabalho trazem a valorização da subjetividade e a ideia de formação por competência, entendida como a condição de articular saberes em dada situação real e prática. Dessa maneira, a educação permanente vem responder a tal perspectiva, levando em consideração os processos de constituição do sujeito.
Mudanças na graduação A LDB, reafirmando parte do artigo 207 da Constituição Federal, traz ao processo de graduação, a partir de 1996, importantes mudanças que proporcionam um novo desenho da Educação Superior brasileira. Seu artigo 53 concede ampla autonomia às universidades, contribuindo para o aumento do 976
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artigos
número de vagas, o aumento do número de cursos e a ampliação do setor privado de ensino (Brasil, 2002). Para aqueles cursos de graduação denominados, segundo o Conselho Nacional de Saúde, de grande área da saúde (Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional), os dados até 2003 descrevem o quadro que comentamos a seguir. Quanto à localização podemos observar que o número de vagas e egressos dos cursos de graduação em Saúde não acontece de maneira uniforme no território nacional. A Região Norte e a Centro-Oeste, a seguir, são as que possuem menor registro, enquanto a Região Sudeste concentra grande quantidade de cursos. Ao somarmos os números relativos às ofertas das regiões Norte, Centro-Oeste, Nordeste e Sul, as mesmas não correspondem a 50%, ou seja, o Sudeste possui oferta majoritária em cursos de saúde (Brasil, 2006b). Quanto à ampliação do setor privado de ensino de graduação, verifica-se que 70% dos cursos de Saúde, 85,3% das vagas e 67% dos egressos são oriundos de instituições privadas. Soma-se a isso o fato da multiplicidade de currículos para cada curso, conforme determinação de cada instituição de ensino, dado que, a partir da Lei 9.394/96, o processo de autonomia das universidades também permite a elas estabelecerem os currículos de seus cursos e programas (Brasil, 2006b, 2002). Com esses dados, propomos uma reflexão sobre as intencionalidades do processo de autonomia, gerado a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), nas instituições de Ensino Superior (IES) e em seus cursos de graduação. É evidente o vertiginoso crescimento do número de instituições de Educação Superior privadas verificado a partir dos anos 90 do século passado. Essa tendência só foi interrompida em 2008, conforme demonstrado no último censo da Educação Superior realizado. Especialistas responsabilizam a integração – seja por fusão ou por compra das instituições – por esse decréscimo. Todavia, garantem que este acontecimento não interfere significativamente no crescimento do número de vagas ofertadas. No período de 2001 a 2004, a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação em Saúde, com intuito de orientar a elaboração dos currículos e, ao mesmo tempo, assegurar a flexibilidade conquistada. Procurando estabelecer uma relação entre as diretrizes, a transição demográfica, a transição epidemiológica e a atenção à saúde do idoso, avaliamos as DCNs de cada um dos cursos (considerados pelo Conselho Nacional de Saúde como profissões de saúde). Constatamos que, em relação aos conhecimentos exigidos para se alcançarem as competências e habilidades específicas por curso (conteúdos essenciais à formação de cada um desses profissionais), apenas os cursos de Educação Física, Enfermagem, Medicina e Nutrição referem-se diretamente ao envelhecimento ou ao idoso em suas respectivas DCNs. Assim, ao relacionarmos a demanda da população idosa por serviços de saúde e a responsabilidade das IES com a formação voltada para a realidade dos serviços de saúde, percebemos que, a despeito da ideia de oxigenação dos componentes curriculares e a possibilidade de aproximação dos cursos de graduação a uma realidade profissional (anteriormente limitada nos “Currículos mínimos”), encontra-se uma flexibilização excessiva dos currículos e ‘aligeiramento’ da formação acadêmica. Tal processo, ao menos no caso das graduações em Saúde, além de não garantir a aproximação da academia com a realidade dos serviços, tem contribuído para a falta de conteúdo de Geriatria e/ou Gerontologia nos currículos. Entre outros motivos, vemos que a diminuição da carga horária mínima para os cursos de graduação aumenta a disputa entre os conteúdos necessários à integralização dos cursos e parece acirrar o corporativismo nas profissões de saúde, à medida que sustenta cargas horárias extremamente distintas (entre 3200 e 7200). Conforme a literatura (Motta, Aguiar, 2007; Diogo, 2004), observa-se que, apesar do rápido aumento do número de idosos no Brasil (senescentes e senis) e consequente aumento da utilização dos serviços de saúde por essa faixa etária, o número de Instituições de Ensino Superior que têm disponibilizado disciplinas direcionadas ao envelhecimento, em seus cursos de graduação em saúde, tem sido pequeno. Para Catani, Oliveira, Dourado (2001, p.11),
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A questão central nesse cenário de diversificação e diferenciação da educação superior no Brasil, no tocante à reformulação curricular dos cursos de graduação, não parece ser o da flexibilização curricular em si, uma vez que esta é expressão de diferentes concepções e desdobramentos acadêmicos. Por essa razão, é preciso ter claro que a política oficial, ao se apropriar e redirecionar essa temática, em uma perspectiva pragmática e utilitarista de ajuste ao mercado, reduz a função social da educação superior ao ideário da preparação para o trabalho, a partir da redefinição de perfis profissionais baseados em habilidades e competências hipoteticamente requeridas pelo mercado de trabalho em mutação [grifo nosso].
As IES, em um contexto geral, muitas vezes apontam para a preocupação em formar acadêmicos com habilidades e competências por demais específicas, reforçando uma formação menos generalista e priorizando certa inclinação a especialização já na graduação. Nesse contexto, deixa a desejar em questões que realmente dizem respeito ao trabalho, como, por exemplo, a abordagem do envelhecimento na graduação, que é encontrada de forma incipiente. É evidente o fato de as IES não formarem seus profissionais de saúde com habilidades e competências para abordarem o idoso e o processo de envelhecimento na mesma velocidade em que se dá o envelhecimento populacional brasileiro e o aumento do número de idosos nos serviços de saúde. O que se observa, de forma geral, quando olhamos para as graduações pensando o envelhecimento, é um descompasso entre a formação e a transição demográfica. Vale aqui registrar que compreender a realidade dos serviços de saúde significa, também, questionar quem são os sujeitos que buscam este serviço. Não para corresponder a uma atuação em saúde reducionista baseada em uma formação tradicional e biologicista, mas sim a uma atenção integral e centrada no sujeito. O envelhecimento populacional brasileiro é um fato. Aproximadamente 14% da população do nosso país são compostos por idosos, e estima-se, para o ano de 2025, o sexto lugar no ranking mundial. É verdade que novas imagens e representações a respeito da velhice brasileira têm surgido, desenhando um perfil mais positivo dessa fase vivida com heterogeneidade – sobretudo quando nos referimos às condições físicas e mentais. Entretanto, não é possível desconsiderar as pesquisas, quando apontam para a maior utilização dos serviços públicos de saúde por idosos, enfatizando a maior frequência nas internações, bem como maior tempo de ocupação comparativamente às demais faixas etárias (Veras, 2009; Nunes, 2004). O relato de uma professora de um dos cursos de saúde da UFF é um exemplo: “A demanda maior de pacientes tratados é de idosos, 70% de idosos. Se entrar na Cardiologia do Hospital Antônio Pedro, no 7º andar, dos quatro leitos, três, quiçá quatro, são idosos, idosos mesmo, 80, 90 anos”. Em um contexto de utilização do serviço de saúde por uma faixa etária específica, entendemos que cabe à formação superior a função social de preparar seus profissionais de saúde para assistirem tais sujeitos com um olhar biopsicossocial do processo saúde-doença. Entretanto, alguns autores (Motta, Aguiar, 2007; Diogo, 2004) afirmam que a academia não tem formado nessa perspectiva, ao menos, não de forma direta, objetiva, assumindo isso como uma necessidade social. Apostamos que, para além das questões de transições demográficas e epidemiológicas, aproximar o aluno das limitações de compreender o envelhecimento a partir da idade cronológica, relativizar a ideia de que a discriminação de idosos parte do fato de os mesmos se encontrarem excluídos da cadeia de produção, e criticar os mecanismos disciplinadores da gerontologia sobre a vida humana, são dispositivos que poderão interferir beneficamente na atuação profissional em saúde. Acreditamos que a divisão de disciplinas por faixa etária, o oferecimento de disciplina no campo da Gerontologia e a valorização da necessidade da interdisciplinaridade, são estratégias que podem beneficiar a abordagem biopsicossocial do idoso. Nesse sentido, compactuamos com a ideia de que a Geriatria está contemplada nesse campo, com a responsabilidade de identificar, prevenir e/ou tratar as doenças comuns na velhice. Por Gerontologia entendemos: o campo que se propõe estudar/compreender os fenômenos multifacetados e multifatoriais, com intuito de responder aos aspectos biológicos, sociais, psíquicos, legais e outros que envolvem o envelhecimento. O campo gerontologia diferencia-se da disciplina dado que o primeiro atua dentro e fora dos limites da universidade, quando a segunda limita-se ao interior da mesma (Prado, Sayd, 2006; Papaléo Netto, 2002). 978
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No mais, destacamos a necessidade de maior aproximação entre o ensino e os serviços de saúde. A indissociabilidade entre os dois possibilita que, consequentemente, o aluno tenha contato, durante a formação, com o cotidiano do trabalho em saúde, correspondendo ao desafio de produção de saúde em ato, o que proporciona o aprendizado do cuidado em conjunto com a população assistida. Para além de aprender uma abordagem gerontológica, tal aproximação é um investimento na compreensão da realidade complexa dos serviços de saúde, incluído o cuidar da população que envelhece com características especificas desse serviço. Em estudo anterior realizado na UFF, com intuito de verificar a construção do modelo a partir do qual os currículos dos cursos de Medicina têm se apoiado, Koifman (2001) considera que a abordagem de disciplinas por faixa etária propicia uma formação mais humanista. Possivelmente, essa abordagem, que permite uma ação educativa problematizadora presente no curso de Medicina dessa instituição, contribui para a diferença quando se compara essa universidade com as demais presentes no cenário da educação brasileira. Motta e Aguiar (2007) alertam que o modelo biomédico hegemônico, da forma como está implantado, torna secundários os aspectos sociais, econômicos e subjetivos na determinação do processo saúde-doença, sugerindo que modelos mais ampliados para uma abordagem ao idoso deverão utilizar-se da Gerontologia. Em relação às tendências e perspectivas do desenho do campo de pesquisas com idosos no Brasil, em 2002 era possível observar que as mesmas possuíam maior enfoque na disciplina Geriatria – aproximadamente 58% da produção (Freitas et al., 2002). Porém, nessa mesma pesquisa, quando foi estratificada a produção por níveis - graduação, mestrado, doutorado e livre-docência -, ficou claro que, nos dois níveis mais altos, a produção no campo da Gerontologia era o dobro daquela localizada na Geriatria. Segundo os autores do trabalho, tal fato se devia à necessidade de as pesquisas sobre envelhecimento nesses níveis não ficarem limitadas aos fatores físicos e biológicos, mas alcançarem uma visão psicossocial e cultural. Compreender que o processo saúde-doença é construído por intermédio das interações psicossociais e culturais, para além daquelas físicas e mentais, é admitir que os profissionais precisam aproximar-se dessa dimensão já na graduação. Mesmo porque a grande parcela dos profissionais de assistência nos serviços de saúde, geralmente, não busca os cursos stricto sensu. Acreditamos, concordando com os demais autores (Motta, Aguiar, 2007; Papaléo, 2002), que a interdisciplinaridade é essencial na abordagem do indivíduo idoso, uma vez que o processo de envelhecimento é construído por intermédio de fatores diversos, tais como: biológicos, psicológicos, sociais, religiosos e culturais. E intervir positivamente nesta faixa etária significa propor estratégias criativas de práticas interdisciplinares que valorizem o indivíduo dentro de seu contexto social. Considerada a escassez de recursos de saúde para atendimento à saúde do idoso, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa expõe a necessidade de formação de profissionais para atuarem com envelhecimento, estando tal necessidade contemplada enquanto diretriz da própria política. A intersetorialidade é apresentada como estratégia para o alcance da diretriz em questão. Como exemplo, temos: a necessidade de ações do setor educação que possam dar suporte ao setor saúde, como inclusão de disciplinas específicas que abordem o envelhecimento nos currículos de graduação; utilização de metodologias, material didático e currículos que atendam a PNSPI; além de incentivo à criação de Centros Colaboradores de Geriatria e Gerontologia. Trata-se de apostar em ações interligadas que beneficiem a formação profissional em saúde, uma postura que pode ser verificada em documentos que antecedem a PNSPI, dentre eles a Lei Orgânica da Saúde, a Política Nacional do Idoso e o Pacto Pela Saúde. Além da Educação, mantendo-se a ótica da intersetorialidade, em 8 de agosto de 2007, o governo federal publica a portaria nº 1.873/07, que institui o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para elaboração do Plano Nacional Integrado de Ações de Proteção à Pessoa Idosa – Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e Sistema Único de Saúde. Configura-se, assim, uma conduta direcionada ao acompanhamento e abordagem integral e integrada da pessoa idosa. A despeito do número incipiente de IES que organizam a temática idoso em seus currículos, constatamos que existe uma formulação crescente de políticas posicionadas no campo da proteção social que tensionam a existência do tema nos cursos de graduação em saúde. Isso sugere uma expectativa para implementação desses documentos nos próximos anos. Acreditamos que as IES caminham para um período de adequação de seus currículos e campos de prática educacional. 979
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Alertamos, aqui, que os movimentos e órgãos sociais ligados aos idosos possuem importância ímpar, dado que reivindicações desse campo geralmente são acolhidas pela academia - a exemplo, observamos como a PNSPI tem sido implementada nos cursos de graduação em saúde da UFF, apostando que experiências exitosas são passíveis de reprodução.
Os cursos de graduação em saúde da UFF O estudo abrangente de Paula (2008), realizado no município de Niterói, com o objetivo de traçar um perfil das instituições de Educação Superior desse município, aponta a UFF como a única universidade pública existente na localidade. Das 14 profissões consideradas pelo Conselho Nacional de Saúde como categorias de saúde, a Universidade Federal Fluminense possui 11 cursos em funcionamento. Enquanto os cursos de Fisioterapia e Terapia Ocupacional têm seus projetos pedagógicos e currículos já formulados aguardando implementação, o curso de Fonoaudiologia iniciou sua primeira turma no primeiro semestre letivo de 2010 em Nova Friburgo, e os cursos de Biomedicina e Educação Física estão com as suas respectivas primeiras turmas em curso em Niterói. Os demais cursos encontram-se estabelecidos e passam ou passaram recentemente por processos de reformulação. Alguns, como é o caso da Nutrição e da Farmácia, mantêm dois currículos simultâneos em andamento (o antigo e o reformulado) (Universidade Federal Fluminense, 2008; Brasil, 1998). Segundo Paula (2008), a UFF é a instituição de Educação Superior de maior importância na cidade onde está localizada, que, em 2004, registrava 16 instituições de Educação Superior, 15 delas privadas. Apesar de estar presente em 15 municípios do estado do Rio de Janeiro, a UFF tem, em Niterói, seu município sede, onde as faculdades, escolas e institutos encontram-se distribuídos ao longo de vários bairros. Concordamos com a autora quanto à relevância das atividades de pesquisa e extensão desenvolvidas pela UFF para o desenvolvimento do município e do estado do Rio de Janeiro. Dentre essas, destacamos os projetos de pesquisa e extensão voltados ao envelhecimento, como os desenvolvidos pela Escola de Serviço Social e pelo Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia. Ao estudarmos o caso da UFF, como nosso campo de pesquisa, pudemos observar que, na graduação em Farmácia, as mudanças acontecem de forma vertical e destinam-se a cumprir exigências do Ministério da Educação relacionadas à formação do farmacêutico, que, atualmente, tem obrigatoriedade de formar-se generalista. Já no Curso de Nutrição, o processo de reformulação ocorreu de forma participativa e a partir da compreensão da necessidade de mudanças pelo conjunto de atores envolvidos no curso, para maior aproximação do Sistema Único de Saúde. Na UFF, o curso oferecido pela Faculdade de Farmácia era industrial, com a possibilidade de habilitação em Bioquímica (ênfase em Alimentos ou Análises Clínicas). Para cumprir tais exigências, o curso aumentou o tempo de integralização, passando de quatro anos e meio para cinco anos de formação. No caso de Nutrição, a alteração curricular não significou aumento no tempo de integralização do curso. Avaliando a grade curricular dos citados cursos da UFF em funcionamento, verificamos que os mesmos apresentam cargas horárias extremamente heterogêneas, variando aproximadamente entre três mil e nove mil horas. Nesse ponto, temos nosso primeiro questionamento quanto às considerações preliminares: flexibilizar a formação a ponto de possibilitar tamanha diferença entre cursos permite categorizá-los, muitas vezes, especulando-se o lugar que cada um deles deve assumir no desempenho das profissões. Institucionalmente, falamos de cursos que, apesar de classificados como categorias de saúde pelo Conselho Nacional de Saúde, encontram-se trancados em seus institutos e/ou departamentos com lógicas organizacionais distintas. Se as políticas de saúde3 têm buscado a criação de equipes multiprofissionais e de um saber que é construído por meio do biopsicossocial, as universidades ainda reproduzem seus nichos corporativos. Durante o nosso trabalho de campo para produção destes dados, foi comum que os entrevistados se referissem a estruturas de organização não mais existentes na UFF, teoricamente, como é o caso do Centro de Ciências Médicas ou Centro de Estudos Gerais. Pelo que parece, tais estruturas permanecem no modo com que os indivíduos operam suas ações profissionais. 980
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Para Motta e Aguiar (2007), a verticalização e a departamentalização das estruturas universitárias e o viés corporativista, que disputam saberes e competências específicas, proporcionam aos alunos vivências contrárias à ideia de interdisciplinaridade. Continuando a avaliação das grades curriculares, excluindo a Medicina Veterinária, foi possível, a princípio, identificar o conteúdo envelhecimento apenas nos cursos de Enfermagem e Medicina, já que apenas esses cursos possuem esta disciplina na modalidade obrigatória, e as disciplinas optativas e eletivas não são discriminadas na grade curricular. Todavia, em entrevistas com os coordenadores e professores dos cursos, constatamos que os cursos de Educação Física, Odontologia, Serviço Social também apresentavam disciplinas específicas voltadas para a atenção ao idoso, entretanto apenas na modalidade optativa. Consideramos que o oferecimento de disciplinas apenas na modalidade optativa coloca o conteúdo em uma posição frágil, já que, em alguns cursos, podem deixar de ser oferecidas em um determinado momento em que se julgue outra disciplina mais importante. Em entrevista, uma professora, ao ser questionada quanto à importância dessa disciplina ser oferecida na modalidade obrigatória, responde: “Na verdade, não só essa disciplina como várias outras deveriam ser obrigatórias, só que o currículo tem dar conta de uma série de conteúdos”. O fato sugere que as disciplinas em modalidade optativas disputam entre si para se manterem. Em todos os cursos que oferecem disciplinas optativas voltadas para a atenção ao idoso, foi possível localizar a abordagem no campo da gerontologia, inclusive na graduação em Enfermagem e Medicina. Por outro lado, as disciplinas obrigatórias, além de se localizarem no campo específico da Geriatria, concorrem com conteúdos de adultos jovens, conforme relato de um dos entrevistados:
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Referimos-nos às Diretrizes Curriculares Nacionais – que, em sua maioria, citam o trabalho em equipe, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde – uma vez que propõem a gestão colegiada, a Política Nacional de Saúde da pessoa Idosa – logo que, dentre suas diretrizes, temos o estímulo às ações intersetoriais, com objetivo de alcançar a atenção integral, além da própria legislação que regulamenta o Sistema Único de Saúde – cuja integralidade de assistência é um princípio. Entendemos que a atenção integral só é possível de ser alcançada à medida que caminhamos em direção oposta à fragmentação das práticas e saberes, possibilitando diálogo e trabalho em equipe, e apostamos que, quando as políticas investem em uma perspectiva de integralidade, essencialmente apontam para este entendimento.
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“Estas duas disciplinas [obrigatórias] não trabalham especificamente com idosos, elas trabalhão com adultos e idosos em situações clínicas. Todas as patologias clínicas de adultos e idosos. A disciplina que discute hoje a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa e as suas implicações sociais, as questões sociais que envolvem o envelhecimento e os aspectos biológicos do envelhecimento humano é a optativa”.
Considerações finais É premente a necessidade de formação profissional em Saúde para o SUS. Nesse contexto, o Ministério da Saúde tem investido esforços no sentido de manter, na agenda, políticas públicas de formação direcionada aos serviços, buscando aproximar escolas e serviços de saúde, com fins de qualificar a assistência prestada. Em contrapartida, mudanças são tensionadas mundialmente para que o sistema de educação corresponda à economia capitalista vigente, exigindo formação profissional polivalente e flexível. Defendemos que a implementação da PNSPI, especificamente no que diz respeito à formação de profissionais de nível superior em Saúde, encontra-se neste campo de discussão e, como tal, pode contribuir para exemplificar alguns avanços e retrocessos na perspectiva da formação para atendimento das necessidades da população. O que leva-nos a afirmar que, de um modo geral, a formação não tem atendido à necessidade do Sistema Único de Saúde. E isso tem ocorrido a despeito das orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de graduação em Saúde, para a necessidade de formar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.973-84, out./dez. 2011
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profissionais capazes de intervirem no processo saúde-doença prevalente. Tal flexibilidade, somada à tensão por formação em período/cargas horárias totais de curso cada vez menores, ameaça a garantia de uma formação que corresponda efetivamente ao perfil demográfico e epidemiológico, ditado pelo envelhecimento populacional. As mudanças relativas à necessidade de formar profissionais de nível superior em saúde com habilidades e competências específicas para lidarem com o idoso, de maneira geral, não correspondem ao rápido envelhecimento populacional vivenciado no Brasil. Existem avanços quando nos referimos à formulação e implementação de políticas públicas de formação específicas no campo da gerontologia, mas destacamos a urgência de se aumentar a velocidade de implementação das mesmas e divulgação de experiências exitosas nesse campo. No caso da UFF, percebemos uma tendência à implantação de disciplinas específicas que abordam o envelhecimento em seus cursos de graduação em Saúde e uma aproximação da necessidade dos serviços saúde. Acreditamos que a Universidade encontra-se na construção de um modelo de Formação em Saúde que considera o idoso em suas especificidades. Todavia, entendendo ser a função do profissional de saúde atender ao doente e à doença, alertamos para o risco de que os currículos privilegiem a ideia de Geriatria que desconsidere os determinantes sociais da saúde. Problematizamos, ainda, a noção de Geriatria especificamente como especialidade médica. Ora, se entendemos que cabe à Geriatria identificar, prevenir e/ou tratar aquelas doenças comuns no envelhecimento, reduzi-la a uma profissão – neste caso a Medicina – seria desconsiderar a atuação dos demais profissionais de saúde na intervenção do processo saúde-doença. A nosso ver, a geriatria presta-se à clínica, seja na medicina, na enfermagem, na fisioterapia ou em qualquer outra profissão de saúde. Reforçamos a postura de apoio à implementação da disciplina de Gerontologia, pois, afinal, acreditamos que, nela, a Geriatria está contemplada. Do contrário, estaríamos negando a função precípua da atuação dos profissionais de saúde. Em relação às disciplinas obrigatórias, Enfermagem na Saúde do Adulto e do Idoso I e II, Medicina Integral do Adulto e do Idoso I, II, III e IV, conforme nome e conteúdo das mesmas, observamos que suas ementas não tratam especificamente do velho, o que possibilita concorrência entre as faixas etárias a serem abordadas. No mais, a maior parcela dos conteúdos trabalhados parece estar voltada à Geriatria, enquanto aquelas que privilegiam a Gerontologia encontram-se na modalidade optativa, e assim apresentam possibilidade de não serem oferecidas em um determinado momento da história do curso. Para além da existência das disciplinas especificamente voltadas ao desenvolvimento de capacidade e habilidade com idosos, registramos a existência de disciplinas outras que abordam tal relação, demonstrando a abordagem do tema de maneira transversal no curso. Nesse sentido, destacamos as seguintes disciplinas: Trabalho de Campo Supervisionado I, Internato em Clínica Médica (Curso de Medicina), Metodologia da Pesquisa, Enfermagem em Saúde Coletiva I e Fundamentos de Enfermagem I e II (curso de Enfermagem), que, a partir da Gerontologia, trabalham seus objetos específicos. Nestes casos, salientamos que a manutenção de tal aproximação acontece devido à iniciativa particular dos professores responsáveis por tais disciplinas no momento, o que sugere certa instabilidade na perpetuação da abordagem do tema desta maneira.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALBUQUERQUE NETO, A.S. Legislação e política educacional brasileira. Rev. Bras. Est. Pedag., v.76, n.184, p.725-34, 1995. ARRETCHE, M. A política da política de saúde no Brasil. In: LIMA, N.T. et al. (Orgs.). Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p.285-306. 982
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Palabras clave: Políticas públicas. Educación Superior. Envejecimiento.
Recebido em 09/04/10. Aprovado em 11/01/11.
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Discursos que formam saberes: uma análise das concepções teóricas e metodológicas que orientam o material educativo de formação de facilitadores de Educação Permanente em Saúde Grasiele Nespoli1 Victoria Maria Brant Ribeiro2
NESPOLI, G.; RIBEIRO, V.M.B. Discourses that form knowledge: an analysis of the theoretical and methodological conceptions that guide the educational material for the training of facilitators of Continuing Education in Health. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.985-96, out./dez. 2011. This study analyzes the main theoretical and methodological conceptions that guide the educational material of Curso de Formação de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde (Education Course for Facilitators of Continuing Education in Health). The educational material, understood as an important pedagogical tool, articulates fundamental themes for the development of Sistema Único de Saúde (Brazil’s National Health System). We have identified eight central axes of thought (propositions) that point to guidelines for the management of new practices in the health field. Continuing Education in Health is seen as a comanagement strategy that considers work as a space of educational practices and of production of subjectivities.
Keywords: Continuing education. Health. Policy. Health knowledge, attitudes, practices.
O presente estudo faz uma análise das principais concepções teóricas e metodológicas que norteiam o material educativo do Curso de Formação de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde. O material educativo, entendido como uma importante ferramenta pedagógica, articula temas fundamentais para a construção do Sistema Único de Saúde. Foi possível identificar oito eixos centrais de pensamento (proposições) que apontam diretrizes para o agenciamento de novas práticas no campo da saúde. A Educação Permanente em Saúde é concebida como uma estratégia de cogestão que tem o trabalho como espaço de práticas educativas e de produção de subjetividades.
Palavras-chave: Educação continuada. Saúde. Política. Conhecimentos, atitudes e prática em saúde.
Elaborado com base em resultado de investigação da linha de pesquisa Educação Permanente em Saúde do Laboratório de Currículo e Ensino do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 Laboratório de Educação Profissional em Gestão em Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.040-900. grasielenespoli@fiocruz.br 2 Laboratório de Currículo e Ensino, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. *
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Apresentação [...] porque organizar a gestão e a atenção em saúde é uma pedagogia [...]. (Brasil, 2005d, p.50)
Os atuais desafios de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) refletem diretamente na necessidade de revisão dos processos de formação profissional e de organização do trabalho em saúde para se promover uma reorientação dos modelos de atenção e das práticas de gestão e cuidado. Neste sentido, nas últimas décadas, muitas iniciativas têm buscado instituir uma política de formação profissional orientada para a integração das práticas de educação, saúde e trabalho, com base na adoção de mecanismos coletivos e interdisciplinares de organização dos serviços e instituições formadoras. Hegemonicamente, os processos de educação continuam centrados em modelos verticais de repasse de informações, e as mudanças no processo de gestão do trabalho são operadas, muitas vezes, numa dimensão políticoadministrativa - e, consequentemente, pouca atenção é dada aos mecanismos e tecnologias cotidianos e à dimensão do trabalho vivo em ato, como considera Merhy (2002) quando destaca que o trabalho em saúde acontece no encontro entre sujeitos, nas relações sociais, isto é, ele é produzido em ato, portanto, é um trabalho vivo. O trabalho na saúde opera por núcleos tecnológicos não dependentes somente dos equipamentos, mas, também, das tecnologias-nãoequipamentos. Nesse caso, a reestruturação produtiva é algo mais intenso do que um rearranjo econômico e está estrategicamente articulada a novos territórios tecnológicos não materiais, isto é, subjetivos. No entanto, no campo da saúde, os mecanismos de gestão continuam presos às tecnologias duras, que versam sobre equipamentos e instrumentais burocráticos, e às tecnologias leve-duras, que reproduzem um modelo normativo, baseado na divisão técnica e social do trabalho e na fragmentação dos processos de cuidado3. Para Ceccim (2004), inovar os processos de formação dos trabalhadores da saúde significa romper os tradicionais modelos de formação caracterizados por linhas de capacitações que respondem à fragmentação do processo de trabalho, dificultando a apreensão da complexidade que envolve o processo saúde-doença por trabalhar de forma descontextualizada e baseada na transmissão de informações e conhecimentos. Motta, Buss e Nunes (2005), analisando as dificuldades no processo de formação profissional, apontam três níveis diferenciados de análise: conceitual, metodológico e contextual - ou seja, é preciso compreender os conceitos que permeiam as práticas e abordagens pedagógicas; estabelecer diálogos com o processo de trabalho em saúde, “de forma que este possa de fato informar sobre os problemas do trabalho e suas possíveis estratégias educacionais de enfrentamento”; e “aprofundar a compreensão dos novos contextos em que se dão à organização do trabalho” (Motta, Buss, Nunes, 2005, p.4). Muitos são os questionamentos no campo da educação em saúde e muitas são as tentativas de transformação dos modelos de gestão e de atenção à saúde, algumas perseverantes, outras mais efêmeras, de acordo com a intensidade dos investimentos políticos, governamentais, financeiros, tecnológicos e micropolíticos. Neste sentido, um movimento de busca por novas estratégias político-pedagógicas para o SUS culminou na publicação, em fevereiro de 2004, da Portaria 198, que instituiu a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) no Brasil, que define a Educação Permanente em Saúde (EPS) como:
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Segundo Mehry (2002, p.49), “as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde podem ser classificadas como: leves (como no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo, autonomização, acolhimento, gestão como forma de governar processos de trabalho), leve-duras (como no caso dos saberes bem estruturados que operam no processo de trabalho em saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica, a epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras (como no caso dos equipamentos tecnológicos do tipo máquina, normas, estruturas organizacionais)”.
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[...] um conceito pedagógico, no setor da saúde, para efetuar relações orgânicas entre ensino e as ações e serviços e entre docência e atenção à saúde, sendo ampliado, na Reforma Sanitária Brasileira, para as relações entre formação e gestão setorial, desenvolvimento institucional e controle social em saúde. (Brasil, 2004, p.1)
A Portaria também definiu que a condução da PNEPS deve ser efetivada mediante um Colegiado de Gestão Locorregional configurado como Polo de Educação Permanente em Saúde (PEP), que deve atuar como instância interinstitucional. Em 2007, a Portaria nº 1.996, sem alterar o conceito de Educação Permanente definido pela Portaria 198 de 2003, instituiu novas diretrizes e estratégias para a implementação da PNEPS, ajustando-a às diretrizes operacionais e ao regulamento do Pacto pela Saúde: A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde deve considerar as especificidades regionais, a superação das desigualdades regionais, as necessidades de formação e desenvolvimento para o trabalho em saúde e a capacidade já instalada de oferta institucional de ações formais de educação na saúde. (Brasil, 2007, p.2)
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Disponível em: <http:/ /www.ead.fiocruz.br/ curso/index.cfm? cursoid=612>. Acesso em: 18 jan. 2011.
Desta forma, a Portaria 1.996 definiu que a condução regional da PNEPS será feita por meio dos Colegiados de Gestão Regional (CGR), com participação das Comissões Permanentes de Integração Ensino-Serviço (CIES). Desta forma, os CGR devem considerar as especificidades locais e elaborar um Plano de Ação Regional de Educação Permanente em Saúde, enquanto as CIES participam da formulação, condução e desenvolvimento da PNEPS. Mesmo com as alterações no âmbito da Política Nacional, a principal estratégia de formação da EPS é o curso semipresencial de Formação de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde, executado pela Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (EaD/Ensp/Fiocruz). No contexto da Portaria 198, o curso foi financiado pelo Ministério da Saúde e oferecido para os profissionais indicados pelos PEP e, no contexto da Portaria 1.996, passou a ser oferecido de acordo com as demandas institucionais. O objetivo do curso, tal como consta no portal4 da EaD/Ensp/Fiocruz, é formar diversos atores vinculados às diferentes práticas e processos de trabalho em saúde, visando à ampliação da capacidade de implementação de processos de Educação Permanente no SUS, como Política de Formação dos Profissionais de Saúde. A modalidade semipresencial possibilita que o curso estabeleça uma dinâmica de formação descentralizada e regional, flexível às diferentes realidades sociais e necessidades de saúde. Para tanto, conta com um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), com outras ferramentas de comunicação (fax, telefone e correio) e um material educativo impresso composto por cinco livros que orientam o processo de ensino-aprendizagem. Ocorrem dois encontros presenciais, um no início do curso, outro ao final. Durante a modalidade a distância, a interação entre os facilitadores e tutores ocorre por meio dos fóruns e demais ferramentas de comunicação do AVA ou por telefone, e o material educativo que dirige o autoestudo é a base de leitura para orientar o processo de aprendizagem com diferentes atividades e textos. O debate travado em torno da EPS amplia o olhar sobre a educação quando propõe mudanças que versam sobre: interdisciplinaridade, integração de saberes e práticas, produção de subjetividades criativas e novas formas de operar o trabalho COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.985-96, out./dez. 2011
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que prioriza o diálogo entre diferentes atores (gestores, profissionais, usuários, estudantes, conselheiros etc.), em um outro formato (circular, horizontal, participativo e democrático). A EPS responde a uma necessidade de reconstruir os processos de formação no âmbito do SUS, estendendo-os a todos os atores envolvidos com a gestão e produção de cuidado. A abertura teórica e prática incentivada pela EPS e a complexidade dos processos de gestão de mudanças no âmbito do SUS indicam muitas possibilidades de investigação no campo da educação em saúde. Por isto, na tentativa de compreender a construção teórica e metodológica da EPS, no processo de formação dos facilitadores, apresenta-se, neste trabalho, uma análise das principais concepções que norteiam o material educativo do Curso de Facilitadores de EPS. Tomar o material educativo do curso como objeto de investigação permite enfocar um dispositivo pedagógico de grande importância, uma vez que, no contexto de formação dos facilitadores, é o “guia do aluno” para participação e organização do processo de ensino e aprendizagem. No material educativo estão inscritas as concepções e ideias que norteiam a construção da EPS, sobretudo aquelas traçadas pela Portaria 198, que institui novos sentidos para a gestão da educação e do trabalho na saúde. Para análise do material educativo, este trabalho apoia-se no entendimento da linguagem como prática discursiva, como define Foucault no livro “Arqueologia do Saber” ao referir que os “discursos são práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (Foucault, 2009, p.55). A articulação entre saber e poder feita por Foucault amplia as concepções acerca da linguagem, que deve ser apreendida pelo seu potencial de produzir sentidos sociais e subjetividades, pois os sujeitos são, também, efeitos dos discursos. A concepção da linguagem como prática discursiva nos remete a pensar a dimensão política dos textos e dos materiais educativos, em particular, no que tange à produção de regimes de verdades. Para Foucault (1996, p.9), “[...] a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. Foucault (1996) afirma que o discurso não apenas traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é também aquilo por que, pelo que se luta [...] (p.10). Como prática discursiva, o texto não é um elemento “transparente ou neutro”, e sim uma forma de exercício de poder, do mesmo modo, “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (p.44). Desta forma, analisar o material educativo do Curso de Formação de Facilitadores de EPS significa apreendê-lo como prática discursiva, como um texto comprometido com a produção de sentidos para a educação e a saúde. O material educativo é um dispositivo de intervenção na realidade, em que ideias circulam, conformam concepções e produzem formas de ver o mundo. Portanto, a análise do material educativo do curso buscou compreender quais concepções estão presentes na construção metodológica da EPS no sentido de perceber o que estão inventando no campo da educação em saúde, visto que o discurso é acontecimento e é sempre no âmbito da materialidade que se efetiva, que é efeito (Foucault, 1996, p.57). Como orientação para a análise do material educativo, foram consideradas as seguintes questões: . O que se entende por EPS? Quais concepções orientam a abordagem da EPS? . Quem é o facilitador de EPS? Quais suas responsabilidades? . Quais são os métodos para o desenvolvimento da EPS?
O desenho organizativo e a proposta pedagógica do curso O material educativo é composto por cinco livros5, sendo um de Orientações e quatro Unidades de Aprendizagem. Uma das unidades de aprendizagem (Integradora) é desenvolvida nos dois encontros presenciais, enquanto as demais são desenvolvidas a distância. O livro de Orientações para o curso apresenta a Educação a Distância como uma modalidade educacional sustentada pela indissociabilidade entre teoria e prática, pela concepção do saber como construção coletiva e pelo professor como um facilitador do processo participativo de ensinoaprendizagem. Este livro apresenta, também, a estrutura do curso e sua dinâmica modular que permite 988
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ao aluno construir seu próprio percurso com base em um plano de estudo estruturado pelas suas “motivações, vivências, necessidades e contexto profissional” (Brasil, 2005a). A Unidade Integradora tem o objetivo de potencializar a construção da EPS a partir dos problemas identificados nas locorregiões, fomentando, nos encontros presenciais, a troca de experiências e a integração entre os facilitadores e destes com os PEP. A Unidade de Análise do Contexto da Gestão e Práticas de Saúde centra-se na elaboração de conceitos e contextos que sustentam as práticas de saúde, apresentando a integralidade como eixo de construção de novos desenhos organizativos de atenção à saúde e a educação permanente como estratégia de gestão de coletivos, ressaltando a importância da informação e do planejamento neste processo. A Unidade Práticas Educativas no Cotidiano do Trabalho em Saúde apoia o desenvolvimento de práticas de EPS trazendo, como cenário de educação, o trabalho e as vivências dos facilitadores, tornando a aprendizagem significativa. Por fim, a Unidade Trabalho e Relações na Produção do Cuidado em Saúde parte de situações reais (casos), situando, no cotidiano, o potencial de mudança das práticas de cuidado (Brasil, 2005a). A proposta pedagógica do curso fundamenta-se no construtivismo:
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Os livros do Curso estão disponíveis em <http://portal.saude. gov.br/portal/sgtes/ visualizar_texto.cfm? idtxt=22760>. Acesso em: 18 jan. 2011.
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que reconhece o indivíduo como agente ativo de seu próprio conhecimento, que constrói significados e define sentidos e representações da realidade de acordo com suas experiências e vivências. Esse enfoque assume, como eixo principal, o pensamento critico e produtivo e a atividade consciente e intencional do aluno na resolução dos problemas encontrados na realidade. (Brasil, 2005a, p.17)
Inscrições da Educação Permanente em Saúde O material educativo de formação dos facilitadores aborda diversos desafios para a construção do SUS, que demandam conhecimentos diversificados e específicos que atendam à complexidade do fenômeno saúde-doença. Por isso, os processos de educação precisam ser flexíveis e abertos para acolher as diferentes demandas de formação permanente. Neste sentido, a EPS aponta a necessidade de se superar a formação profissional orientada pelo modelo biomédico-positivista, centrado na fragmentação do processo de trabalho e na produção de especialismos técnicocientíficos, visto que esse modelo se mostra insuficiente diante da complexidade do processo saúde-doença, por não considerar o sujeito em sua integralidade. Para compor novos arranjos organizativos para o SUS, é preciso produzir uma nova racionalidade por meio de práticas educativas que levem em conta a realidade, os contextos de organização do trabalho e de enfrentamento dos problemas de saúde (Brasil, 2005e). Por isto, a EPS é uma abordagem que prioriza o diálogo, a cooperação e a integralidade entre os espaços de gestão, atenção, formação e controle social, de forma a ampliar “a potência do sistema para enfrentar e resolver problemas com qualidade” (Brasil, 2005d, p.133). Diferencia-se por ser uma abordagem que foca os processos educativos para a gestão do trabalho da saúde, a partir da construção de sujeitos ativos, autônomos e éticos. Entende a educação como inerente às práticas sociais e como um processo de mediação que pode produzir novas racionalidades para a saúde, especialmente, pela horizontalização e pela democratização das relações de poder e dos mecanismos decisórios no âmbito das organizações, instituições e serviços de saúde.
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As práticas educativas devem ser operadas na perspectiva da aprendizagem significativa - que ocorre quando o objeto de aprendizagem se relaciona de forma substantiva com aquilo que a pessoa já sabe (Brasil, 2005c, p.13). Quer dizer, a aprendizagem se processa na reflexão sobre a ação, sendo o espaço de trabalho o principal cenário de aprendizagem. Trata-se de se compreender que o conhecimento é uma construção social e de se ampliarem as possibilidades de produção de práticas alternativas àquelas centradas no saber especializado que, geralmente, não levam em conta a singularidade e os contextos de aprendizagem. Essa proposta político-pedagógica quer construir novos saberes, o que: implica identificar interesses, confrontar os saberes anteriores (pré-existentes) com as realidades; desequilibrar certezas ou desestabilizar convicções (rupturas epistemológicas); garantir condições para o diálogo; construir uma nova forma de aproximação, formulação e comunicação com os saberes produzidos. (Brasil, 2005d, p.131)
A proposta político-pedagógica da EPS está intrinsecamente ligada à gestão do trabalho e se orienta pelas possibilidades micropolíticas de romper a lógica predominante de organização da atenção e do cuidado na saúde. Toma o trabalho como território de inscrição das práticas de educação e como ponto de problematização, análise e intervenção. Trata-se de um trabalho para atuar a favor da defesa da vida e da produção de redes solidárias e cuidadoras, o que requer a reversão do modelo hegemônico centrado no consumo de consultas médicas, procedimentos, medicamentos e exames sofisticados. Analisando o conteúdo do material educativo, podemos perceber a articulação de temas fundamentais para a construção do SUS: conceito de saúde e doença, desenhos organizativos de atenção à saúde, gestão de coletivos, estratégias de educação permanente em saúde, cotidiano do trabalho e produção do cuidado, integralidade, informação e planejamento. O material educativo situa o facilitador no seu campo de ação e competências, o qual abrange os processos de ensino, gestão, atenção e controle social (Brasil, 2005b, p.29), e apresenta alguns eixos centrais de pensamento, que organizamos em oito proposições. Essas proposições, apresentadas a seguir, constituem o resultado da análise desse material e apontam diretrizes para o agenciamento de novas práticas de saúde. 1) Saúde significa nossa capacidade de enfrentar os problemas da vida O material educativo aborda o fenômeno saúde-doença em sua historicidade, como uma produção que responde às condições sociais, políticas e econômicas de determinadas épocas e contextos. Traz uma concepção ampliada na qual “promover saúde é atuar para mudar positivamente os elementos considerados determinantes da situação saúde/doença” (Brasil, 2005d, p.34). Enfoca que a promoção e o cuidado dependem do acesso à informação, de direitos sociais, da organização da vida em coletivos e da decisão política de praticar os princípios que caracterizam uma sociedade democrática, como a equidade, a solidariedade, o respeito aos direitos sociais e a justiça social, definindo as ações que objetivem a modificação dos determinantes e dos condicionantes da saúde nos ambientes de moradia, vida e trabalho. (Brasil, 2005d, p.34-5)
Assume o risco como categoria central para pensar a prevenção de doenças e promoção da saúde; e a doença como experiência integrante da vida, da busca incessante pela saúde. Assim, as práticas de cuidado devem estar comprometidas com o fortalecimento da autonomia dos sujeitos no processo de luta e defesa da vida. 2) O trabalho na saúde é vivo em ato por agenciar sentidos para a saúde A EPS parte do pressuposto de que o trabalho em saúde ocorre no encontro entre as pessoas, é relacional, acontece no momento de sua atividade produtiva, portanto é um trabalho vivo em ato. O espaço do trabalho é o espaço da micropolítica, em que as mudanças e os rearranjos organizacionais ocorrem, por meio de pactos a favor do interesse coletivo. A EPS quer ativar processos vivos de trabalho que possam desnaturalizar a realidade, desterritorializar práticas e erguer novos valores para a saúde, isto é, travar uma luta entre atos instituídos e movimentos instituintes, de criação (Brasil, 2005d, 2005e). 990
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No SUS, as informações são produzidas com diversas finalidades e servem para produção de conhecimentos e operações. Oferecem elementos para análise de uma determinada situação (ou problema) e servem para o planejamento e para avaliação das ações, ampliando o conhecimento sobre o próprio sistema e suas unidades de produção. 6
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3) A EPS deve possibilitar novas combinações do desenho tecnoassistencial do SUS A EPS objetiva atingir outro núcleo duro do trabalho da saúde, compreendido como a organização da atenção ou seu desenho tecnoassistencial, que diz respeito à maneira como são organizados e combinados os diversos saberes, práticas e tecnologias de intervenção no processo saúde-doença-rede de atenção. Prefere-se falar em “desenho” do que em “modelo” - pois o que define um modelo é a possibilidade de difusão de um determinado desenho; e em “tecnoassistencial” ao invés de “técnicoassistencial”, pois se trata de uma combinação de recursos tecnológicos e modalidades assistenciais, “ordenados como estratégia institucional para a atenção à saúde das pessoas e das populações e para a gestão das ações, serviços e sistemas de saúde” (Brasil, 2005d, p.81). A ideia predominante do desenho tecnoassistencial é o formato de uma pirâmide, com complexidade crescente, estando, na base, a atenção básica e, no topo, o hospital (considerado de alta complexidade). Entretanto, nessa concepção, os hospitais são mais valorizados e percebidos como mais resolutivos e complexos, já que concentram equipamentos e procedimentos especializados, deixando a atenção básica no lugar do simples e do comum. Assim, não se reconhece a complexidade e a especificidade de trabalhar na atenção básica que requer a habilidade de conhecer contextos, comunicar, produzir subjetividades, transformar hábitos e comportamentos, trabalhar em equipe interdisciplinar etc. 4) A EPS prevê a integralidade e a construção de uma rede ininterrupta de cuidados O desenho tecnoassistencial do SUS deve responder às necessidades de saúde e atender os princípios do SUS. Um dos princípios destacados pela EPS é a integralidade, entendida como um princípio de “ampliação da leitura e intervenção sobre os problemas enfrentados pelos usuários” (Brasil, 2005d, p.100), um princípio que direciona os serviços a uma prática ampliada de atenção à saúde, que acolhe os usuários como sujeitos integrais que possuem contextos singulares de vida. Portanto, a integralidade visa tecer uma rede de cuidados que atenda às necessidades dos indivíduos e da população, de forma a garantir um cuidado integral e, ao mesmo tempo, a democratização dos processos de participação social e de decisão política. A integralidade é valorizada como um princípio que implica mudanças nas relações de poder para que, efetivamente, o trabalho seja construído de forma interdisciplinar e rizomática, isto é, ramificado e organizado por conexões que não obedecem a uma ordem hierárquica vertical ou burocrática, mas a uma dinâmica de reciprocidade. No contexto de construção do desenho tecnoassistencial centrado nos interesses dos usuários e da população, é preciso redefinir a clínica, transformando-a em espaço de inclusão dos sujeitos e de seus contextos de vida, ampliando-a para dar conta da produção de saúde no cotidiano das práticas de cuidado. 5) O trabalho deve estar organizado para resolver os problemas de saúde, dos indivíduos e das coletividades No que tange à organização do trabalho, a EPS prioriza o trabalho interdisciplinar, em equipe (Brasil, 2005e), e define como eixos de organização: a identificação e análise de problemas, o planejamento e a avaliação. Prioriza as informações como ferramentas fundamentais para os processos políticos e foca o desenvolvimento de habilidades para planejar, negociar, mediar conflitos, articular, dialogar e avaliar6. Para a EPS, um problema não pode ser compreendido fora de seu contexto (que inclui os atores que o interpretam), pois não existe como algo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.985-96, out./dez. 2011
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natural. Ao contrário, é resultante das relações sociais. Para uma melhor compreensão de um problema, é importante: processá-lo minuciosamente, partindo da descrição de suas características, explicação de seus determinantes e condicionantes, passando pela elaboração de um plano de ação para solucioná-lo, e culminando na análise e avaliação do processo de implementação do plano e de organização do trabalho. Ou seja, o planejamento é fundamental para o desenvolvimento da EPS, pois ajuda a entender os problemas e a reconhecer as facilidades, as dificuldades, os responsáveis, os recursos e o tempo necessário para os enfrentamentos. Já a avaliação deve acontecer de forma gradual e acompanhar todos os momentos de construção do trabalho para, assim, poder corrigir possíveis rumos no decorrer do processo (Brasil, 2005d, p.157). 6) A EPS é uma estratégia de gestão de coletivos A importância de fortalecer a participação social no âmbito da gestão do SUS abre um caminho para a democratização e a inclusão de diferentes saberes, pessoas e grupos sociais na luta política em defesa da vida. A EPS aposta no fortalecimento de redes sociais como experiências de gestão de coletivos que se tornam possíveis com a efetiva participação social que, para além das formas instituídas de governo, é também “inesperada, criativa, aberta, misturada”. (Brasil, 2005d, p.62). Desta forma, a EPS tem como objetivo a gestão de coletivos ou a cogestão, quer dizer, a gestão compartilhada, na qual o poder fica disperso e os arranjos formam redes. Estamos nos referindo a uma abordagem para a aprendizagem coletiva e para democracia participativa (Brasil, 2005d). 7) O facilitador é um sujeito implicado nos movimentos de mudança e na produção de subjetividades O facilitador de EPS é um sujeito em construção, com habilidades para mediar os processos de gestão do trabalho e articular diferentes componentes, como a participação social, a formação dos trabalhadores e a organização do cuidado. Sua atribuição principal é o olhar crítico sobre as práticas de atenção, gestão, ensino e controle social, que deve orientar o desenvolvimento de processos educativos centrados nas necessidades dos diversos sujeitos, outros facilitadores, envolvidos com o trabalho da saúde: profissionais, gestores, usuários, conselheiros, professores etc. O facilitador deve estar aberto para o encontro entre diferentes saberes, permitindo a troca e a construção coletiva de respostas aos problemas de saúde. Deve estar sempre atento às necessidades político-pedagógicas das equipes e promover projetos capazes de mediar a construção de conhecimentos e estratégias para gestão do SUS. Neste sentido, deve atuar na produção de subjetividades autônomas, participativas e solidárias. 8) Os métodos de EPS devem levar à reflexão das práticas cotidianas As atividades pedagógicas das Unidades de Aprendizagem levam à reflexão sobre as formas como operamos o trabalho na saúde (na gestão, no cuidado, no controle social e no ensino) e apresentam métodos de análise como: o “Fluxograma Analisador” (Brasil, 2005e), a Rede Analisadora do Processo de Trabalho (Brasil, 2005c), a Técnica de Estimativa Rápida e o Planejamento (Brasil, 2005d). Além disso, o curso propõe a Roda7como principal método de produção de coletivos e como possibilidade de reversão do atual desenho tecnológico e assistencial do SUS, permitindo a construção de novas práticas de gestão, em que as decisões são horizontalizadas, os arranjos engendrados coletivamente e as responsabilidades divididas e compartilhadas. A roda é uma referência central para a produção de redes/malhas de cuidado, contrapondo-se às formas tradicionais de 992
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O método da roda também foi discutido por Campos (2000) como uma nova estética de gestão do trabalho em saúde.
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gestão, caracterizadas por organogramas piramidais e verticais de organização do trabalho. O desenho da roda sugere novas formas de andar a vida e de fazer gestão, pautadas no diálogo, na conversa, na construção conjunta.
Algumas considerações sobre a construção da Educação Permanente em Saúde
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 19.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; FREIRE, P. Pedagogy of the city. New York: Continuum, 1995. 8
9 LOURAU, R. Análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1975.
10 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998; GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2000.
O material educativo do curso fundamenta-se na necessidade de se reorientarem os projetos e ações educativas, dando maior autonomia aos trabalhadores para gerirem suas próprias práticas, desafiando os serviços de saúde a promoverem processos educativos com base no mundo do trabalho e a comporem redes no campo da saúde que fortaleçam a participação social. A formação profissional deve ser reinventada e reconstruída na interdisciplinaridade e na alteridade, quer dizer, em colaboração entre saberes e na interação entre os sujeitos. Isto ressalta a importância de se inovarem e inventarem práticas, criarem espaços democráticos de negociação e de construção de um trabalho agenciador de saberes e fazeres comprometidos com a defesa da vida (Merhy, 2002; Campos, 2000). A EPS enuncia uma prática discursiva que reforça a necessidade de se superar a formação profissional orientada pelo modelo biomédico-positivista, e faz uma crítica às abordagens pedagógicas nas quais predominam processos educativos verticalizados, pautados na transmissão de informações e na reprodução do tecnicismo, enfatizando o desenvolvimento de tecnologias que levem em conta a produção de subjetividades participativas, nômades, implicadas ética e politicamente na construção de nossa história. Ceccim, em 2004, apontou que a EPS faz inflexões com diferentes abordagens teóricas e pode ser compreendida de diversos modos. No campo da educação, transita pelo pensamento de Paulo Freire8, quando aponta as perspectivas da Aprendizagem Significativa e considera que o sujeito aprende desde seus conhecimentos prévios e suas motivações; da Educação Popular, quando enfatiza a educação como uma prática de transformação social; e da Problematização que prioriza a experiência vivida no processo de aprendizagem. Além disso, resulta do movimento da educação continuada e outros de mudança da formação profissional, e faz interface com saberes da Análise Institucional9 e da Socioanálise10. A EPS prioriza a produção de uma abordagem capaz de ressignificar o trabalho pela sua dimensão micropolítica e subjetiva, rompendo com formas cristalizadas e instituídas de agir. Partindo da realidade, quer ampliar a capacidade de se detectarem problemas reais, buscando soluções adequadas e colaborando com a produção de respostas originais e criativas, bem como apropriadas aos contextos sociais. A EPS também se alimenta de muitas ideias que estão em debate no campo da saúde e na luta pela produção de novos paradigmas para a gestão, educação e cuidado. Pauta-se nos referenciais: 1) da Saúde Coletiva, quando faz uma crítica ao paradigma científico moderno e à produção da divisão social do trabalho (Campos, 2003; Almeida Filho, Paim, 2000); 2) da Promoção da Saúde, quando incorpora o conceito de “empowerment” (empoderamento) para destacar diretrizes de fortalecimento da participação social (Brasil, 2005d); 3) do movimento em Defesa da Vida (Carvalho, 2005; Campos, 1997), quando ressalta que as práticas de saúde devem estar comprometidas, ética e prioritariamente, com a proteção da saúde e com a defesa da vida; 4) e da micropolítica do trabalho vivo (Merhy, 2002), quando enfatiza que a transformação deve acontecer no cotidiano das práticas de saúde e nas relações entre os sujeitos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.985-96, out./dez. 2011
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Fazendo uma articulação de conceitos e ideias, oriundos de diferentes campos, a EPS não estabelece modelos nem fórmulas, ao contrário, indica a plasticidade das práticas e a centralidade dos sujeitos na construção do trabalho e de redes solidárias de inclusão e proteção social. Apresenta-se como uma abordagem político-pedagógica, um discurso, que busca superar as concepções dicotômicas e estabelecer relações sistêmicas, organizadas em rede e a favor da vida. Trata-se, como considera Merhy, de uma pedagogia que: usufrui de todas as que têm implicado com a construção de sujeitos auto-determinados e comprometidos sócio-historicamente com a construção da vida e sua defesa, individual e coletiva – que se veja como amarrada à intervenção que coloca no centro do processo pedagógico a implicação ético-política do trabalhador no seu agir em ato, produzindo o cuidado em saúde, no plano individual e coletivo, em si e em equipe. (Merhy, 2005, p.174)
Concluímos que o material educativo mantém vivo o discurso difundido no processo de formulação da Política Nacional de Educação Permanente. Desta forma, recuperar os pressupostos da EPS é uma forma de reforçar: i) a tríade saúde-educação-trabalho; ii) a importância de uma formação voltada para a produção de subjetividades, habilidades, técnicas e saberes adequados à construção do SUS; iii) a necessidade de investimento em tecnologias, meios e métodos de cogestão que possam dar autonomia aos sujeitos envolvidos com a construção do trabalho, dos processos formativos, da atenção e das práticas de cuidado.
Colaboradores As autoras trabalharam juntas na análise do material investigado. Grasiele Nespoli foi responsável pela redação do artigo e Victoria Maria Brant Ribeiro pela sua orientação e revisão. Referências ALMEIDA FILHO, N.; PAIM, J. A crise da Saúde Pública e a utopia da Saúde Coletiva. Salvador: Casa da Qualidade Editora, 2000. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 198. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Brasília: MS, 2004. ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.996. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: MS, 2007. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Curso de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde: orientações para o curso. Brasília: Ministério da Saúde, 2005a. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Curso de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde: unidade de aprendizagem – Integradora. Brasília: Ministério da Saúde, 2005b.
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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Curso de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde: unidade de aprendizagem – Práticas Educativas no Cotidiano do Trabalho em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005c. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Curso de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde: unidade de aprendizagem – análise do contexto da gestão e das praticas de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005d. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Curso de Facilitadores de Educação Permanente em Saúde: unidade de aprendizagem – trabalho e relações na produção do cuidado. Brasília: Ministério da Saúde, 2005e. CAMPOS, G. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. ______. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. ______. A Saúde Pública e a defesa da vida. São Paulo: Hucitec, 1997. CARVALHO, S. Saúde Coletiva e promoção da saúde. São Paulo: Hucitec, 2005. CECCIM, R. Educação Permanente em Saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.161-71, 2004. FOUCAULT, M. A aqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ______. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. MERHY, E. Saúde: a cartografias do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. ______. O desafio que a Educação Permanente tem em si: a pedagogia da implicação. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.172-7, 2005. MOTTA, J.I.; BUSS, P.; NUNES, T.C.M. Novos desafios educacionais para a formação de recursos humanos em saúde. Natal: Observatório de Recursos Humanos, NESC/UFRN, 2005. Disponível em <http:// www.observatorio.nesc.ufrn.br/formac_t09.htm> Acesso em: 18 jan. 2011.
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DISCURSOS QUE FORMAM SABERES: ...
NESPOLI, G.; RIBEIRO, V.M.B. Discursos que forman saberes: un análisis de las concepciones teóricas y metodológicas que guían el material educativo para la formación de facilitadores de Educación Permanente en Salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.985-96, out./dez. 2011. El presente estudio es un análisis de las principales concepciones teóricas y metodológicas que guían el material educativo del Curso de Formación de Facilitadores de Educación Permanente en Salud. El material educativo, visto como un importante instrumento educativo, articula los temas clave para la construcción del Sistema Único de Saúde. Fue posible identificar ocho pilares centrales del pensamiento (proposiciones) que señalan las directrices para nuevas prácticas en el campo de la salud. La Educación Permanente en Salud se concibe como una estrategia de cogestión que tiene el trabajo como un espacio de prácticas educativas y de producción de subjetividades.
Palabras clave: Educación contínua. Salud. Política. Conocimientos, actitudes y prática en salud. Recebido em 20/09/10. Aprovado em 09/01/11.
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La praxis como fundamento de una educación para la salud alternativa: estudio de investigación-acción en el Programa de Crecimiento y Desarrollo en Medellín, Colombia Fernando Peñaranda-Correa1 Julio Nicolas Torres-Ospina2 Miriam Bastidas-Acevedo3 Gloria Escobar-Paucar4 Adriana Arango-Córdoba5 Fráncy Nélly Pérez-Becerra6
PEÑARANDA-CORREA, F. et al. Praxis as a foundation for an alternative health education: an action research study in the Growth and Development Monitoring Program in Medellin, Colombia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.997-1008, out./dez. 2011. The aim of this study was to reflect on Freire’s Education Model in a health education environment in order to promote its theoretical development. An action research was developed, whose object was the Growth and Development Monitoring Program of children in Medellin, Colombia. The study involved the use of participant observation in the meetings of this program, and analysis of the information focusing on a continuous reflective process. Educators-researchers analyzed their own pedagogical practices, aiming to transform health education into a more dialogic and productive practice. Findings showed difficulties to change traditional educational practices in the scope of health services, but from a praxis perspective, reflection was found to be an important process in transforming practice. The emergence of the student as a subject with specific experiences and conditions helped the educatorsresearches to understand the meaning of a human-based education. The need to consider caregivers as central subjects and child rearing as a central topic in health programs was highlighted.
Keywords: Health education. Child rearing. Growth and development.
La propuesta fue reflexionar sobre la educación problematizadora en un ambiente de educación para la salud y contribuir a su desarrollo teórico, en un proceso de investigación-acción, teniendo como objeto el programa de crecimiento y desarrollo en Medellín. El estudio incluyó el uso de la observación participante del programa de desarrollo de los niños y análisis de la información centrada en un proceso reflexivo permanente. Los educadores-investigadores analizaron sus prácticas pedagógicas, intentando transformar la educación en salud en una práctica más dialógica y productiva. Se encontraron dificultades para cambiar la educación tradicional en el ámbito de los servicios de salud. Se evidenció la importancia de la reflexión en la transformación de la práctica. El educando como sujeto, con experiencias y condiciones particulares contribuyó a la comprensión de una educación centrada en el ser humano. Se resaltó la necesidad de considerar los adultos como agentes centrales y la educación infantil como eje del programa.
Palabras clave: Educación en salud. Educación del niño. Crecimiento y desarrollo.
Facultad Nacional de Salud Pública, Universidad de Antioquia. Calle 62, n.52-59, Medellín, Colombia. fernandopenaranda@ gmail.com 2,3,5 Facultad de Medicina, Universidad de Antioquia. 4 Facultad de Odontología, Universidad de Antioquia. 6 Enfermera. 1
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Introducción La educación para la salud ha cumplido un papel importante en la salud pública, reconocido en escenarios como las conferencias de Alma Ata (OPS, 1978) y Ottawa (OMS, 1986). Aun así, existe controversia sobre sus orientaciones pedagógicas y sus logros (OMS/OPS, 2006; Nutbeam, 2006; Gazinelli, 2005; Morrel et al., 2000). La pedagogía tradicional y la pedagogía conductista, que algunos agrupan como pedagogía “instruccional” (González, 1999), configuran la base pedagógica predominante de la educación para la salud, situación que puede explicarse, al menos, por dos razones. La primera la constituye el conservadurismo del modelo educativo tradicional, bajo el cual los profesionales de la salud enseñan al mínimo coste, esto es, con base en su experiencia en el sistema formal de educación (Bourdieu, Passeron, 1998). La segunda se refiere a la estrecha relación de la pedagogía conductista con el modelo biomédico, en sus tres características básicas: una orientación normalizadora, su fundamento en la ciencia positivista, (Robinson, Hill, 1999; Achard, 1980; Foucault, 1977) y finalmente su carácter medicalizador (Foucault, 1977). Implementar perspectivas alternativas de educación para la salud que confronten el modelo biomédico y la forma convencional de entender la salud, centrada en la enfermedad, ha sido un asunto muy complejo, y generalmente los intentos se quedan en el discurso o en asuntos formales (PeñarandaCorrea et al., 2006; Gazinelli, 2005; Greene, Simons-Morton, 1988). En relación con los logros de la educación para la salud, su controversia no es menos aguda. A propósito, la OMS/OPS expresan: A pesar del desarrollo de nuevas estrategias de educación en salud el avance en este tema no es evidente […] El modelo medicalista continúa influenciando en forma desmedida un enfoque por enfermedad y riesgo, menospreciando la influencia de las condiciones y los determinantes sociales. (OMS/OPS, 2006, p.8)
En Colombia surgió desde la década del setenta el Programa de Crecimiento y Desarrollo como un componente de la atención materno-infantil. En el marco de la reestructuración del Sistema de Salud, se denominó desde el año 2000 como “Norma técnica para la detección temprana de las alteraciones del crecimiento y desarrollo en el menor de diez años” (Colombia, 2000), incluido en el Plan Obligatorio de Salud. La historia del programa en la ciudad de Medellín provee una interesante experiencia con respecto al intento por promover una perspectiva alternativa al modelo preventivista. Se fomentó un modelo de atención grupal con el propósito de fortalecer la dimensión educativa del programa y socializar las experiencias de las madres respecto a la crianza de sus hijos. Como fruto de esta experiencia y bajo la influencia de la Carta de Ottawa, a principios de los noventa se realizó una propuesta desde la concepción de promoción de la salud, con la cual se buscó trascender la orientación morbicéntrica que prevalecía hasta el momento. Se cambió entonces el nombre de “Crecimiento y Desarrollo” por el de “Salud Integral para la Infancia” (SIPI), en un intento por desarrollar un programa desde la salud y no desde la enfermedad, y cuya dimensión educativa estaba fundada en el diálogo de saberes. Desde finales de la década pasada, nuestro equipo de investigación ha realizado varios estudios para comprender la dimensión educativa del programa. Se encontró que la propuesta SIPI había logrado cambios importantes, relacionados, en particular, con la incorporación de profesionales de diferentes áreas de la salud y de las ciencias sociales al programa, lo cual mejoró el diagnóstico y la atención de las alternaciones del crecimiento y desarrollo de los niños, así como la información suministrada. Sin embargo, se evidenció que aun educadores conocedores y comprometidos con la propuesta de diálogo de saberes terminaban realizando prácticas pedagógicas centradas en modelos informativos y persuasivo-motivacionales que correspondían al modelo que se pretendía transformar (Peñaranda-Correa et al., 2006). Los hallazgos revelaron que se produce una resignificación de las propuestas alternativas, dentro de las concepciones hegemónicas, que termina por neutralizar su poder transformador y que mantiene el statu quo (Peñaranda-Correa et al., 2006). De acuerdo con Tones (2002), persisten en la educación para 998
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la salud la imposición unilateral de contenidos y significados por parte de los profesionales de la salud y la adopción de posiciones poco dialógicas y poco democráticas. Lo anterior, contrapuesto a las expectativas de los adultos significativos para el logro de una crianza más segura, satisfactoria y productiva en aras de su propio bienestar y el del niño, evidenció que en el programa opera un encuentro entre racionalidades diferentes: los cuidadores, desde el saber cotidiano, y los profesionales de la salud, desde la perspectiva biomédica (Bastidas-Acevedo et al., 2007). Pero la transformación del modelo pedagógico implica además otro reto: llevar a la práctica la comprensión teórica desarrollada. Como lo sostienen varios autores, no se da una directa aplicación de la teoría a la práctica (Gazzineli, 2005; Greene, Simons-Morton, 1988) y es necesario transitar por el camino de una investigación más ligada a la acción, en el marco de la espiral de la praxis: conceptualización-práctica-reflexión (Cendales, 2001; Fals Borda, 2001; Bosco Pinto, 1987). Con el propósito de avanzar en la construcción de una perspectiva educativa para el Programa de Crecimiento y Desarrollo, basada en el diálogo de saberes, y de aportar al desarrollo teórico en educación para la salud que promueva alternativas al modelo instruccional fundado en el modelo biomédico, el equipo de investigación se embarcó en un proyecto de investigación-acción, cuyos resultados se presenta a continuación.
Metodología En tanto la intención era profundizar en un proceso reflexivo sobre la práctica educativa en el ámbito de la salud, se retomó a Stenhouse (2004) y su propuesta de una educación basada en la investigación, en la cual el educador se convierte en un investigador de su propia práctica educativa. Para este autor, la investigación en el campo de la educación debe centrarse en la praxis, de tal forma que, partiendo de la práctica educativa y por medio de la reflexión, el educador pueda acceder a una perspectiva teórica enriquecida para regresar a la práctica y resolver problemas concretos. Stenhouse entendía la investigación como un instrumento para desarrollar conciencia crítica sobre la educación desde una perspectiva emancipadora. En el mismo sentido, Freire (2004, 1975) se pronuncia sobre la importancia de sustentar la educación en la praxis, y Hatton y Smith (1995) destacan la trascendencia de los procesos reflexivos para la formación de los maestros. En concordancia con estos planteamientos, se llevó a cabo una investigación-acción cuyas características centrales, según Reason y Bradbury (2001), son: la producción de conocimiento útil para los involucrados, el logro de nuevas formas de comprender la realidad, la participación de todos los implicados y el desarrollo de un proceso emergente y evolutivo tan importante como los resultados mismos. Desde este referente metodológico y epistemológico, se decidió realizar la investigación en el marco del Programa de Crecimiento y Desarrollo de la institución de salud adscrita a la Universidad de Antioquia, en Medellín, Colombia. Al Programa asisten, con sus hijos, estudiantes, profesores y empleados no docentes de la institución, y en él participan regularmente tres de los investigadores, en calidad de profesores de pediatría. El equipo investigador tendría entonces un doble papel: el de educadores como integrantes del equipo de salud y el de investigadores de su propia práctica educativa. Entre febrero y agosto del 2007, se avanzó en la etapa de preparación interna del equipo a través de la reflexión teórica sobre diálogo de saberes. Se partió de una revisión de los principales postulados teóricos de Paulo Freire, complementada con otros autores de la corriente de educación popular. Para Bosco Pinto (1987, p.55-6): “la teorización no debe quedarse simplemente como un trabajo verbal o mental del equipo. Es indispensable hacer un esfuerzo para escribirla con el propósito de que objetivándose, se transforme en un instrumento de trabajo a ser utilizado en las fases ulteriores de la metodología”. En este sentido, la preparación teórica originó un artículo que presentó las reflexiones de una educación para la salud pensada desde el diálogo de saberes (Bastidas et al., 2009), paso previo a los demás momentos de la investigación. El proyecto fue aprobado por el Comité de Ética de Investigación de la Facultad Nacional de Salud Pública. Los adultos significativos participaron de manera voluntaria, después de explicarles los objetivos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.997-1008, out./dez. 2011
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de la investigación, de garantizarles la confidencialidad y de plantearles la posibilidad de retirarse en cualquier momento, además de que podían continuar en el Programa regular de la institución. Entre agosto del 2007 y octubre del 2008, se llevó a cabo el desarrollo de la propuesta educativa, con un grupo de 11 niños y sus cuidadores adultos significativos (11 madres, 8 padres, 5 abuelas y un abuelo) asistentes al programa, quienes participaron como educandos. Se desarrollaron diez sesiones, desde el ingreso de los niños al programa cuando tenían un mes de vida hasta que cumplieron los catorce meses. Algunas sesiones se desarrollaron con los adultos significativos y sus hijos, bajo el formato regular del programa, que incluye actividades educativas y el monitoreo del crecimiento y desarrollo. Otras, intercaladas con las anteriores, se realizaron únicamente con la presencia de los adultos significativos para reflexionar sobre la crianza y el proceso educativo vivido. La asistencia a las sesiones fue, en general buena. Hacia el final de la investigación dejaron de asistir tres niños con sus respectivos acompañantes. Las actividades educativas de las sesiones con niños y adultos significativos se iniciaban con un saludo general de los asistentes. Posteriormente cada uno de los adultos significativos compartía su experiencia en la crianza y sus inquietudes respecto a ésta. Seguidamente se generaba una discusión donde participaban tanto los adultos significativos como los educadores – investigadores para problematizar y analizar los asuntos expuestos. Al finalizar la sesión se hacía un cierre para evaluar los principales logros, avances, inquietudes y dificultades en torno a la crianza. En las sesiones con adultos significativos solos, una vez hecho el saludo de costumbre y haber compartido las experiencias vividas e inquietudes respecto a la crianza, se pasaba a un momento de reflexión y análisis sobre la crianza misma y el proceso educativo vivido en el programa. A medida que avanzaron las sesiones los adultos significativos fueron adquiriendo más confianza y se hicieron más expresivos para compartir sus experiencias y el contexto en el que estaban viviendo la crianza. Cada vez profundizaron más en sus reflexiones sobre asuntos íntimos y de gran impacto emocional. La recolección y análisis de la información se realizaron de manera simultánea y su desarrollo se dio en dos ámbitos: las sesiones con los adultos significativos, registradas en diarios de campo, y las reuniones del equipo investigador, plasmadas en actas. El análisis se centró en un proceso de reflexión sistemática del equipo investigador, dado que la particularidad del proyecto requería cambios inmediatos y continuos en el proceso educativo. La investigación se fundamentó en la praxis como un asunto dialéctico de acción-reflexión y teorización, que permitió reorientar permanentemente el desarrollo investigativo hacia los aspectos más significativos (Lincoln, Guba, 2000).
Resultados Como producto de la praxis, se generó un proceso gradual de transformación de las prácticas educativas en el marco del programa, a partir de la propia transformación de los investigadoreseducadores, de la transformación de los educandos y de la transformación, tanto de los ambientes de aprendizaje como de las relaciones construidas en el seno de estos. Si bien corresponden a un proceso integrado, para fines expositivos los resultados se presentarán a manera de tres grandes categorías: el surgimiento del sujeto, las prácticas pedagógicas y, finalmente, la construcción de una identidad grupal y la transformación de los educandos. Asimismo, el texto toma la forma de relato, en tanto los hallazgos se fundamentaron en la praxis de los investigadores en el marco de un proceso de sistematización.
El surgimiento del sujeto Durante el transcurso de las sesiones, pasamos de un conocimiento superficial de los educandos hacia una comprensión más profunda de cada uno de ellos y sus situaciones particulares. Así, los adultos significativos-educandos surgieron como sujetos: ya no era un grupo homogéneo, sino un grupo de personas, cada una con una historia y unas condiciones singulares, vividas por individuos concretos en un contexto particular. Con ello, fuimos comprendiendo de una manera más amplia las condiciones 1000
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sociales, culturales y humanas en las cuales estos adultos llevaban a cabo la crianza de sus hijos. Paulatinamente, hicimos un tránsito hacia el reconocimiento de sus expectativas, alegrías, tristezas, sueños y frustraciones en relación con la crianza, con su rol en ella y con las transformaciones que operaban en los ámbitos personal, familiar, laboral o escolar, según el caso. En cada uno de aquellos adultos había un drama complejo, lleno de conflictos, para los cuales se generaban, de manera continua, equilibrios inestables y cambiantes. Este hallazgo mostró las limitaciones de una educación basada en recomendaciones generales, comunes para todos, que busca la homogenización. Se encontró que nuestros discursos como profesionales-educadores tenían distintos sentidos para los educandos, quienes los resignificaban de acuerdo con sus condiciones y características personales y socioeconómicas. Asimismo, reconocimos que cualquier indicación normativa podría tener efectos muy diversos, algunos positivos y otros negativos, debido a la complejidad de los equilibrios que los adultos significativos debían negociar de manera permanente en su cotidianidad. Con ello, el equipo empezó a mirar con prudencia la tendencia a reaccionar mediante una “intervención” (prescripión) en la vida de los demás.
Las prácticas pedagógicas Tres sucesos centrales fueron decisivos en la transformación de nuestras prácticas pedagógicas: una crisis respecto a nuestro papel como educadores, la consolidación progresiva de los propósitos que guiaron la experiencia educativa y la transformación de los contenidos en “temas generadores” (Freire, 1975, p.112). En las primeras sesiones, nos vimos abocados a una crisis sobre nuestro papel como educadores. Nos dimos cuenta de lo difícil que era para nosotros llevar a la práctica las concepciones de una educación alternativa. Nos costaba trabajo escuchar a los educandos: tendíamos a interpretar sus inquietudes desde las categorías biomédicas y la respuesta a las mismas se daba sin indagar por el sentido que éstas tenían para los educandos. Reconocer lo difícil que era superar el modelo “instruccional” tan cuestionado en trabajos anteriores produjo una crisis de identidad en el equipo y generó inseguridad sobre la relación con los conocimientos disciplinares y con el conocimiento de los educandos. Esta falta de coherencia entre los ideales y las acciones nos generó frustración. Sin embargo, la crisis se empezó a resolver en la medida en que, sin desechar nuestros conocimientos disciplinares, estos se fueron relativizando para acceder a posiciones más plurales. De otro lado, la lectura de Freire (2004) nos mostró que la coherencia es una meta por alcanzar, y ello requiere un profundo y continuado esfuerzo de reflexión y autocrítica. Hacia el final de la octava sesión, se logró mayor claridad sobre los propósitos que debían guiar una educación basada en el diálogo de saberes para el programa, consignados así: . promover el desarrollo humano de los adultos significativos y su seguridad para realizar una crianza más productiva y satisfactoria para ellos y para los niños y niñas; . generar una experiencia educativa que facilite mayor comprensión de la crianza que los adultos significativos se encuentran realizando, de tal manera que se convierta en un espacio para que ellos puedan comprenderse mejor como personas y en su función de crianza, y apoyar así la construcción de su identidad; . generar un ambiente educativo propicio para apoyar a los adultos significativos en sus necesidades respecto de la crianza, cualificando nuestra capacidad para escucharlos y aprender de ellos. Estos propósitos buscaban consolidar una propuesta centrada en el sujeto, que facilitara a los educandos la construcción de principios generales sobre la crianza, orientados desde sus particularidades y en correspondencia con los significados que estos tenían para ellos. Habíamos logrado trascender la preocupación por verificar el cumplimiento de comportamientos preestablecidos por el conocimiento biomédico. La preocupación se centraba más bien en comprender como estos principios, construidos por cada uno de ellos, les eran útiles para sus vidas, para comprender mejor la crianza y comprenderse mejor ellos mismos. Siguiendo a Freire y su idea del diálogo como un acto de “fe en los hombres” (Freire, 1975, p.104), a medida que ganábamos más confianza en los adultos como educandos y en nosotros como COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.997-1008, out./dez. 2011
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educadores, se pasó gradualmente de sesiones fuertemente estructuradas, con un derrotero de contenidos preestablecidos, a sesiones más flexibles. De esta manera, las sesiones, más que como instancia para informar, se concibieron como escenario para tramitar las inquietudes, las necesidades y los intereses de los educandos. Sin embargo, este cambio estaba cruzado por un conflicto alrededor de los intereses dispares entre educandos y educadores. Un formato abierto y más libre siempre planteaba la inquietud de dejar por fuera de la discusión conocimientos importantes para los adultos significativos en su función de crianza y para la salud de los niños. Reconocimos la imposibilidad de desarrollar todos los temas que a nosotros se nos ocurrían como necesarios o, por lo menos, la imposibilidad de trabajarlos de forma productiva para ellos y nosotros. El proceso educativo no debería estar centrado entonces en la enseñanza, sino en el aprendizaje: los adultos aprenderían más sobre aquello que necesitaban, y el desarrollo de un conocimiento productivo estaría relacionado con una vinculación “vital-afectiva” por parte de los educandos. Surgió la idea de trabajar con base en temas generadores, como lo propuso Freire, orientados a facilitar en los educandos un análisis más amplio y profundo de su realidad, que propiciara su propia transformación y la de sus situaciones concretas. Esperábamos llevar a cabo una secuencia de codificación y decodificación que permitiera analizar de manera conjunta con los adultos significativos sus propias situaciones de crianza, y compartir con ellos la construcción teórica que como profesionales nos había permitido llegar a una comprensión más profunda de la crianza. Pero la experiencia nos mostró que no se avanzaba hacia una visión de conjunto, como lo esperábamos, construyendo una explicación teórica ordenada y articulada con categorías bien definidas. Se avanzaba más bien hacia procesos reflexivos que permitían a los educandos construir verdades secuenciales y cambiantes, referidas a contextos particulares, y articuladas desde referentes distintos a la lógica con la cual los profesionales de la salud estamos acostumbrados a trabajar. Otras lógicas operaban en estos análisis: afectivas y culturales. Con esta experiencia cambió la concepción de temas generadores y la forma de desarrollarlos en las sesiones. Se decidió entonces trabajar con base en las inquietudes y problemas propuestos por los educandos, en sus propios términos, al entender que la vinculación afectiva y la tramitación de las emociones eran centrales para generar un proceso reflexivo, que ahora se consideraba la base de nuestra práctica educativa. Ese proceso permitía a los educandos relacionar su acción con los conocimientos y, en este orden de ideas, tener en cuenta una teoría, pero no la teoría que nosotros habíamos construido, sino la que cada uno de ellos elaboraba para explicar su propia realidad y encontrar soluciones pertinentes a sus propias situaciones y características personales.
Construcción de una identidad grupal y transformación de los educandos La construcción paulatina de una identidad de grupo con la cual educandos y educadores se sintieron tranquilos fue fundamental para el logro de prácticas pedagógicas más dialógicas y la construcción de relaciones más productivas. Así, en la medida en que se fue generando un espacio más abierto y de mayor confianza entre los participantes, los educandos asumieron un papel más activo y constructivo. Los adultos significativos comenzaron a reconocer más ampliamente la importancia de sus propios conocimientos y a concebir el escenario educativo como una instancia de análisis y reflexión, donde cada uno compartía sus puntos de vista para construir conocimientos, ideas y referentes, con el fin de tomar sus propias decisiones. El haber compartido sus angustias, necesidades, problemas y situaciones particulares con otras personas que atravesaban por situaciones similares, en un ambiente comprensivo, permitió a los adultos significativos sentirse escuchados y no juzgados, con lo cual encontraron apoyo para construir sus identidades como madres o padres. Este sentimiento grupal se vio reforzado en el transcurso del programa entre educandos que se fueron compenetrando y solidarizando entre sí. Con ello, se observó cómo en las sesiones buscaban espacios para compartir sus experiencias de crianza, sus preocupaciones y sus alegrías; se mostraban interesados en los problemas de los demás y querían aportar en búsqueda de soluciones. Este proceso de integración no trascendió el espacio del programa —una de nuestras expectativas iniciales—, pero fue un elemento clave en la construcción de relaciones y ambientes de aprendizaje más productivos. 1002
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Los resultados Con el correr del tiempo, los educandos modificaron algunas situaciones conflictivas que implicaba la crianza, pero también se encontraron con problemas que no pudieron cambiar de manera sustancial. Sin embargo, aunque algunas situaciones no se hubieran modificado drásticamente, sintieron que el hecho de “desahogarse” y compartir sentimientos y experiencias que nunca habían expresado a otros, así como conocer otras vivencias igualmente difíciles, les había servido para mitigar su angustia y frustración, pero también para aprender a mirar de modo diferente su realidad, en la medida en que la comprendían desde un contexto más amplio. En las dos últimas sesiones se realizó una evaluación que buscaba promover la reflexión sobre la crianza que habían vivido durante los catorce meses transcurridos y el proceso educativo llevado a cabo en el programa. Los adultos manifestaron sentirse más competentes para la crianza, principalmente como producto de su interacción con los niños y con su entorno, pero también reconocieron el papel de apoyo del programa y el aprendizaje logrado en él. Como educandos, habían tomado sus propias determinaciones de manera tranquila, sin sentirse juzgados o intimidados en el programa: un logro relacionado con haber llevado a cabo un proceso de discusión y reflexión sobre sus vidas y sus prácticas de crianza que les permitió desarrollar una posición más crítica hacia estas. Este análisis final nos sirvió para reconocer el valor de comprender las necesidades del educando y respetar su autonomía, permitiendo que tome decisiones acordes con su contexto. En estas condiciones, el proceso educativo es útil para ayudarles a resolver asuntos complejos y a fortalecer su criterio y seguridad en su función de crianza, de allí que la evaluación de un programa como el de crecimiento y desarrollo debería trascender la verificación de “logros” impuestos desde la perspectiva biomédica y darle una mayor importancia al desarrollo de las personas.
Discusión La crisis respecto del papel del equipo como educadores mostró que la implementación de una propuesta de educación alternativa al modelo “instruccional” y al modelo biomédico implica ir más allá del planteamiento de Bourdieu, respecto a que el educador requiere conocer “los mecanismos más elementales de la transmisión cultural […] para combatir lo que yo llamo efecto de destino, y la tendencia de los profesores a creer que ellos juzgan a la persona, cuando en vedad juzgan a individuos sociales” (Bourdieu, 1998, p.174). Se requiere también de un profundo proceso de reflexión crítica sobre la práctica pedagógica, un proceso penoso y difícil, en tanto exige una “vigilancia constante que tenemos que ejercer sobre nosotros mismos para evitar los simplismos, las facilidades y las incoherencias burdas” (Freire, 2004, p.49). Adecuando los términos de Bourdieu, no es fácil transformar el habitus “pedagógico” del educador, lo cual sustenta la pertinencia de la investigación-acción para el campo de la educación, como lo sostiene Stenhouse (2004). De otro lado, la fuerza con la cual irrumpió el educando como sujeto en esta investigación hizo focalizar la mirada en el ser humano, no solo en relación con la dimensión pedagógica, sino también en cuanto a la concepción de salud. Se reconoció con ello una perspectiva autopoyética de la salud (Granda, 2008), con un ser humano que construye su salud en interacción con su medio ambiente; en este sentido, es posible afirmar que corresponde a una visión ontológica de la salud, en la cual el individuo “es” saludable, siéndolo a su manera. La salud tiene que ver con el desarrollo humano y el desarrollo de capacidades (Sen, 1996), lo que implica, a su vez, la construcción del mundo social con el que el sujeto interactúa (Freire, 2004) y, por ende, superar la dualidad individuo-ambiente (Granda, 2008; Carvalho, 2005). A partir de los resultados, también se comprendió que la salud constituye un “estado de equilibrio […]. Pero todo intento de compensar una perturbación mediante un contrapeso significa, a la vez, la amenaza de una nueva pérdida de equilibrio en el sentido contrario” (Gadamer, 1996, p.128-9). Reflexionar sobre los equilibrios inestables y continuados que los adultos significativos constantemente deben negociar en sus cotidianidades ponen de manifiesto la necesidad de rescatar la racionalidad prudente (phronesis) para el educador (Granda, 2008; Gadamer, 1996). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.997-1008, out./dez. 2011
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Desde este punto de vista, parecen insuficientes las clasificaciones respecto de los modelos de educación para la salud que proponen Salleras et al. (2008), Serrano (1990), Greene y Simons-Morton (1988), Sharma y Romas (2007), así como las salidas para superar la inconmensurabilidad paradigmática de los referentes pedagógicos, por un lado ecléctica o, por otro, integracionista. Más bien habría que reconocer un mundo plural respecto de los modelos pedagógicos en la educación para la salud y plantear opciones a los modelos convencionales desde sólidas fundamentaciones epistemológicas y pedagógicas. Para ello, los insumos teóricos que aportan Freire y la educación popular latinoamericana constituyen valiosas contribuciones para avanzar hacia la construcción de propuestas alternativas. Cuando se precisaron los propósitos de la educación que se estaba llevando a cabo se partió de un proceso centrado en el ser humano. Con ello se reconoció la pertinencia de considerar al ser humano como un ser consciente, crítico, autónomo y libre; un ser trascendente, transformador, que crea y recrea, que conoce y comprende y que está abierto a la realidad; un ser histórico, social y cultural, que no está solo y, por lo tanto, está en relación con el mundo y con otros (Freire, 2005, 2004, 1998, 1975). El diálogo es, en esencia, un proceso comunicativo que se da en el marco de un contexto cultural (Freire, 2005). Siguiendo a Habermas (1987), se puede afirmar que el diálogo de saberes requiere una posición “fenomenológica”, en la cual el mundo objetivo es una construcción intersubjetiva a través de la argumentación. Ello contrasta con la utilización no comunicativa de un saber proposicional, basado en un estado de cosas y en un mundo objetivo, ajeno al individuo, que constituye el ámbito de la ciencia. Esta perspectiva comunicativa implica reconocer la presencia del mundo de la vida como sustento de toda comprensión (Habermas, 1987) o, como lo plantea Bruner (1998), que la psicología popular o sentido común, aunque cambie, no se ve sustituida por paradigmas científicos. Lo anterior pone la educación para la salud en el terreno de la interpretación, es decir, de la subjetividad humana y, por tanto, en una perspectiva constructivista de la realidad. En este contexto, es posible avanzar más allá de una educación centrada en la información y el desarrollo de unos contenidos preestablecidos por los agentes de salud. A pesar de las fuerzas que ejercen el modelo biomédico y los mecanismos de la transmisión cultural, cabría la posibilidad de encontrar vías alternas desde la “educación problematizadora” (Freire, 1975, p.132). Siguiendo a este mismo autor (1996, 1975), problematizar quiere decir analizar los fenómenos —en este caso, la crianza como experiencia humana— desde una perspectiva más amplia, identificando fuerzas, influencias y condicionantes, de tal manera que pueda superarse lo particular para acceder a una perspectiva general y poder así resignificar la realidad y la acción personal como punto de partida para fortalecer la capacidad de transformarlas. En este orden de ideas, desde una dimensión problematizadora, se entendió que al narrar sus experiencias, en el marco de un proceso de escucha y de reflexión, los educandos ampliaron la comprensión de su situación como personas y “criadores” en un contexto histórico, social, cultural y económico particular. Las narrativas, el proceso reflexivo y la construcción de principios generales como teorías explicativas y morales ligadas a la racionalidad cotidiana permitieron la transformación de ellos como personas e, incluso, facilitaron algunos cambios de sus situaciones sociales. En este sentido, con Dewey (Hatton, Smith, 1995), se reconoció en el pensamiento reflexivo un pensamiento orientado a la solución de problemas y hacia el desarrollo de una conciencia crítica (Freire, 1975). Así, se promueve en los educandos (y también en los educadores) la capacidad de revisarse a sí mismos y su situación en medio de un ambiente de discusión sobre sus condiciones como individuos localizados en un contexto social, económico y cultural. De esta manera, aunque no hubieran logrado hacer grandes cambios en las condiciones materiales de manera inmediata, los educandos se localizaron de manera diferente hacia las “situaciones límites” (Freire, 1975), con lo cual se perfila la posibilidad de transformaciones en el horizonte. Pero en este caso, la educación problematizadora se planteó también en un ambiente de soporte y comprensión, dadas las situaciones conflictivas de los adultos significativos. Así, la identidad grupal y el desarrollo de la capacidad de escucha constituyen asuntos centrales, y como lo plantea Freire: “No puedo negar mi atención decidida y amorosa a la problemática más personal de este o aquel alumno o alumna. […]. No puedo negar mi condición de persona, de la que se deriva, a causa de mi apertura humana, cierta dimensión terapéutica“ (Freire, 2004, p.138).
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Ahora bien, la educación, como cualquier proceso de interacción humana, está mediada por relaciones de poder y por los conflictos que suscitan intereses y perspectivas culturales diferentes (Mejía, Awad, 1999; Bruner, 1998). Esta condición implica asumir una perspectiva plural ante la realidad, “respaldado por la voluntad de negociar nuestras diferencias en la manera de ver el mundo” (Bruner, 1998, p.43). Desde esta experiencia, las propuestas de Habermas respecto de la construcción de consensos basados en la argumentación y en el establecimientos de criterios aceptados por todos los actores (Habermas, 1987) y los planteamientos de negociación cultural (Mejía, Awad, 1999) son insuficientes para comprender un proceso de educación dialógica como el vivido en el programa. Precisamente porque se reconoce la existencia de conflictos y relaciones de poder en el escenario educativo, habría que tener en cuenta la dimensión hermenéutica del diálogo fundada en la comprensión: Cuando intentamos entender un texto no nos desplazamos hasta la constitución psíquica del autor, sino que, ya que hablamos de desplazarse, lo hacemos hacia la perspectiva bajo la cual el otro ha ganado su propia opinión. Y esto no quiere decir sino que intentamos que se haga valer el derecho de lo que el otro dice. Cuando intentamos comprenderle hacemos incluso lo posible por reforzar sus propios argumentos. (Gadamer, 2006, p.361) Este desplazarse no es ni empatía de una individualidad en la otra, ni sumisión del otro bajo los propios patrones; por el contrario, significa siempre un acenso hacia una generalidad superior, que rebasa tanto la particularidad propia como la del otro. El concepto de horizonte se hace aquí interesante porque expresa esa panorámica más amplia que debe alcanzar el que comprende. (Gadamer, 2007, p.375)
Consideraciones finales Es necesario tener en consideración que los resultados de la educación para la salud no constituyen un asunto neutral, pues dependerán de las concepciones pedagógicas y de las intenciones de los actores. En este orden de ideas, habrá que tener en cuenta también el sentido que los resultados tienen para los educandos y avanzar hacia la construcción de indicadores como acuerdos entre los educandos y educadores, en el marco de una perspectiva dialógica. Ahora bien, una condición dialógica precisa de una actitud de respeto hacia el otro, de sus conocimientos, sus sentimientos y de su contexto social, económico y cultural. Así mismo una disposición para aprender en el diálogo, para dejarse transformar y para extender su horizonte de sentido en la medida en que puede localizar sus propios puntos de vista dentro de un marco de significado más amplio e incluyente. Esto quiere decir que un horizonte de sentido enriquecido le permite relativizar sus propias concepciones y posiciones hacia la realidad y hacia el otro. De esta manera se podrá avanzar hacia el desarrollo de acciones educativas más productivas y satisfactorias para ambos actores.
Colaboradores Los autores Miriam Bastidas, Julio Nicolás Torres, Gloria Matilde Escobar y Fernando Peñaranda trabajaron juntos en todas las etapas de la producción del manuscrito. Las autoras Francy Nelly Pérez y Adriana Arango participaron en el diseño de la investigación, en el trabajo de campo y en el análisis de la información, además revisaron el manuscrito final.
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PEÑARANDA-CORREA, F. et al. A práxis como a base de uma educação em saúde alternativa: um estudo de pesquisa-ação no programa de crescimento e desenvolvimento em Medellín, Colômbia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.997-1008, out./dez. 2011. Propondo a reflexão sobre a educação problematizadora, em um ambiente de educação para a saúde, e contribuir para seu desenvolvimento teórico, foi desenvolvida pesquisaação tendo como objeto o programa de crescimento e desenvolvimento em Medellín, Colômbia. O estudo envolveu o uso da observação participante das reuniões do programa de monitorização do crescimento e desenvolvimento de crianças, e a análise da informação focada em um processo reflexivo. Durante o processo, os educadorespesquisadores analisaram suas próprias práticas pedagógicas, visando transformar a educação em saúde numa prática mais dialógica e produtiva. Encontraram-se dificuldades para mudar a educação tradicional no âmbito dos serviços de saúde, mas evidenciou-se a importância da reflexão na transformação da prática. O educando como sujeito, com experiências e condições particulares, contribuiu para a compreensão da educação centrada no ser humano. Ressalta-se a necessidade de se considerarem os adultos como atores centrais e a Educação Infantil como eixo do programa.
Palavras-chave: Educação em saúde. Educação infantil. Crescimento e desenvolvimento. Recebido em 05/08/10. Aprovado em 09/02/11.
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A formação pedagógica institucional para a docência na Educação Superior Cláudia Chueire Oliveira1 Maura Maria Morita Vasconcellos2
OLIVEIRA, C.C.; VASCONCELLOS, M.M.M. The institutional pedagogical development for Higher Education teaching. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1011-24, out./dez. 2011. The paper presents results of a research study related to higher education teaching and pedagogical development. Its objective is to contribute to the development process of teachers who act in higher education, by gathering subsidies for the elaboration of institutional programs. The methodological option was based on the qualitative approach, of an exploratory-descriptive nature; a questionnaire was the data collection instrument, administered to teachers and students from undergraduate courses. The results indicate that the construction of the higher education teaching and the good learning process require institutional, pedagogical and administrative investments, as well as material; the higher education teaching career demands institutional proposals and initiatives which can alter teaching and learning dimensions with a technicalpedagogical support; the quality of education must surpass the one-sidedness of research as instrumentalization for the teaching action; the institutional possibilities and limits reflect choices of professionalization and allow the mapping of epistemological teaching bases in the higher education field.
Keywords: Teacher education. Faculty. Higher education. Professional practice.
Apresentam-se resultados de uma pesquisa sobre docência e formação pedagógica na universidade, visando contribuir para o processo de formação dos docentes que atuam na Educação Superior, colhendo subsídios para a elaboração de programas institucionais. A opção metodológica pautou-se na abordagem de cunho qualitativo, de caráter exploratóriodescritivo. O questionário foi o instrumento para a coleta de dados junto aos docentes e estudantes de cursos de graduação. Os resultados indicam que a construção da docência superior e o ensino de boa qualidade precisam de investimentos institucionais pedagógicos, administrativos e materiais; a carreira docente universitária requer propostas e iniciativas institucionais que alterem dimensões do ensino e da aprendizagem e sua sustentação teóricopedagógica; a qualidade do ensino deve superar o equívoco da unilateralidade da pesquisa como instrumentalização para a ação docente; as possibilidades e limites institucionais refletem escolhas da profissionalização e permitem mapeamento das bases epistemológicas da docência no campo da Educação Superior.
Palavras-chave: Formação de professores. Docentes. Educação Superior. Prática profissional.
Relatório de Pesquisa financiada pelo CNPq (Processo 475845/2007), aprovado pelo Comitê de Ética da Área e Comitê de Ética Envolvendo Seres Humanos. 1,2 Departamento de Educação, Centro de Educação, Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid - PR 445, Km380. Campus Universitário Londrina, PR, Brasil. 86.051-980. cchueire@uel.br *
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Introdução Este texto, parte integrante de uma pesquisa referente à formação pedagógica de docentes da Educação Superior, pretende colaborar com a construção de um conjunto de conhecimentos peculiares à atuação e à formação pedagógica do docente universitário. A pesquisa realizou-se em dois momentos distintos. Na primeira fase, foram coletadas informações junto aos alunos formandos de vinte e quatro cursos de graduação de uma instituição de Ensino Superior pública estadual (IPES). Na segunda, foram ouvidos os docentes dos mesmos cursos e IPES. Atuando como professoras de didática na graduação, em disciplinas de formação pedagógica em cursos de especialização e no mestrado em educação, desde a década de 1990, nossas atividades profissionais estão ligadas à formação de professores. A oportunidade de trabalhar com docentes oriundos das mais diversas áreas do conhecimento nos fez perceber a existência de lacunas na formação do professor da Educação Superior. Martins e Romanowski (2010) são enfáticas ao declararem que a discussão relativa à didática e à formação de professores é urgente neste começo de século. Elas consideram que os “educadoressujeitos”, em estudos sobre as práticas de formação, “[...] desenvolvem-se num processo de pesquisaensino que problematiza a prática pedagógica, analisa-a criticamente e propõe novas práticas [...]” (p.61). Nosso ponto de partida pautou-se, portanto, na esteira do trabalho de Vasconcellos (2005), que, ao abordar a formação pedagógica de docentes de Educação Superior, apresentou indicadores da necessidade de essa formação acontecer de forma mais explicitada e efetiva no interior das instituições educativas. Com base nesta constatação, entendemos que seria importante conhecer as percepções dos docentes e dos estudantes de graduação a respeito do trabalho docente e da qualidade do ensino vivenciado. Acreditamos que as respostas dos sujeitos podem auxiliar na identificação de necessidades, críticas e sugestões para os processos de formação e atuação do docente de Educação Superior.
A docência na Educação Superior As crises do capitalismo que marcaram o século XX agravaram as novas formas de dependência econômica dos países em desenvolvimento para com os organismos internacionais. Entre os produtos oferecidos como tábuas de salvação, a educação das populações apresentou-se como fator importante no conjunto de medidas para a construção de uma nova ordem mundial, visto que, no enquadramento ao templo da globalização, da competitividade e da reestruturação produtiva, poderia ser o meio “[...] capaz de permitir a formação de um trabalhador [para] atender às exigências do mercado” (Maués, 2003, p.90). A relação social travada entre trabalho e constituição do capitalismo é elemento importante para se compreender a maneira como o homem vem organizando a produção de sua vida material e como tem se caracterizado, para os dias de hoje, o trabalho alienado, uma vez que grande parte dos trabalhadores não possui poder de decisão sobre os processos ou sobre o produto de seu trabalho. Dito de outra forma, a lógica da venda da força de trabalho para outro que detém os meios de produção (capital) estabelece subordinação e dominação nas relações e faz com que o produto do trabalho passe a ser estranho ao trabalhador (Freitas, 1996; 1995). Estas considerações são necessárias para se situar o papel da educação no mundo capitalista. Falar das relações entre trabalho e educação implica retomar aspectos da acumulação do capital e do desenvolvimento da ciência, da cultura e da formação dos trabalhadores. A exigência de permanente requalificação como condição de trabalho tem resultado na expansão da oferta de cursos superiores de graduação e de pós-graduação. Por sua vez, a influência do Estado mínimo, sobretudo por reduzir a empregabilidade, estimula um afluxo dos profissionais liberais ao exercício da docência na Educação Superior, cuja oferta de emprego apresenta-se em expansão. Assim, tratar das questões da atuação docente é uma das tarefas da universidade, mas estudos evidenciam que a ação de grande parte dos professores é improvisada, sem qualquer formação 1012
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pedagógica (Pimenta, Anastasiou, 2002). A docência na Educação Superior, notadamente, deixa de considerar características específicas dos cursos, dos estudantes e dos conteúdos. Atuar na Educação Superior significa trilhar uma carreira que é ascendente de acordo com o grau de titulação cada vez maior que lhe é exigido; ensinar, produzir e disseminar conhecimento, entre outras funções complexas que envolvem o mundo universitário. Dessa maneira que é possível o combate à apologia do mercado como instância central e organizadora da vida docente coletiva. Ensinar na Educação Superior significa, literalmente, participar de um processo simultâneo de formação humana discente e docente, em que a adesão ao projeto de consolidação e emancipação intelectual, científica e cultural não se divorcia do mecanismo de produção e socialização deste projeto, visto que o ensinar com qualidade social na Educação Superior agrega, necessariamente, ensino, pesquisa e extensão. Para tanto, consideramos importante destacar que a docência na Educação Superior envolve, em algum momento da carreira profissional, a administração do ensinar e do pesquisar, o que pressupõe atividades que não se improvisam, mas, ao contrário, requerem um diagnóstico e planejamento para atendimento circunstanciado e coerente com as exigências. Deste modo, compete às universidades assumirem “[...] compromissos institucionais [que criem] espaços e modalidades de discussão, reflexão e análise crítica da atividade docente, com o propósito de assegurar maior qualidade ao ensino de graduação” (Borba, Ferri, Hostins, 2006, p.207). Além disso, é da competência das universidades o ensino superior de boa qualidade para os profissionais que forma, com uma sólida base filosófico-científica, que permita ao sujeito exercer com criticidade seu papel de cidadão. Diante do exposto, considerar o contexto institucional no qual ocorre o trabalho docente é de extrema importância, já que podemos verificar, no cotidiano da vida universitária, que ainda há uma preocupação com a competência do profissional na sua área de formação, que se manifesta no estímulo da instituição e no aval de seu departamento para a realização de cursos de pós-graduação com ênfase na pesquisa de seu campo de origem. De acordo com Fernandes (1998), o desempenho do professor acaba ficando sem uma reflexão sistematizada que traga sua prática pedagógica como foco de análise. A preocupação com a qualidade do ensino que o docente oferece à comunidade estudantil ainda não apresenta discussão ampliada. Amaral (2010) afirma que o bom professor é aquele que é pesquisador do seu campo teórico, que compreende a historicidade do processo do conhecimento, mas que também reconhece que a socialização do “arcabouço científico-cultural” (p.27) às novas gerações é sua tarefa primeira, ou seja, ensinar! Com a ampliação da capacidade de análise e percepção crítica sobre os limites das generalizações/ especificidades do processo de construção do conhecimento científico, “o contexto pode ser o ponto ‘concreto’ de partida, mas a elaboração do pensamento e o desenvolvimento da capacidade de abstração [...] fundamentais para a apreensão do conhecimento sistematizado” (Ramos, 2003, p.9), reforçam a urgência da discussão.sobre o significado de os professores serem sujeitos de sua própria história, com a grande responsabilidade de serem protagonistas de novos arranjamentos sócio-históricos. Isso só é possível a partir da compreensão da atividade docente como trabalho produzido e que produz relações sociais, transformador da realidade (Oliveira, 2005). A revisão de literatura, os nossos trabalhos de doutorado e a observação da realidade do ensino no cotidiano das instituições revelaram um panorama que aponta, cada vez mais, para a necessidade de formação pedagógica dos professores de Educação Superior. Trata-se de um requisito essencial para o exercício do magistério superior de boa qualidade. Isaia (2006, p.80) afirma que [...] as bases para o enfrentamento dos desafios relativos à docência superior pressupõem iniciativas conjuntas de professores e alunos, em consonância com seus contextos institucionais e com as políticas de Educação Superior, a fim de favorecerem o desenvolvimento institucional e profissional de todos aqueles que labutam nesse nível de ensino.
Assumimos, portanto, um conceito de formação docente que implica diagnosticar as necessidades de uma instituição e de sua comunidade e o desenvolvimento de programas e atividades para atenderem a estas necessidades. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1011-24, out./dez. 2011
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A formação de professores é uma área de investigação e de práticas que, no âmbito da didática e da organização escolar, estuda os processos pelos quais os professores adquirem ou melhoram seus conhecimentos para intervirem profissionalmente no desenvolvimento do seu ensino, do currículo e da instituição (Pachane, 2006). Mesmo assim, vale lembrar a contradição presente neste fato e tão bem explicitada por Dalben (2010, p.166): Parafraseando Veiga (2009), formar professores é uma aventura [...] Consideramos trabalho docente como uma práxis e, com tal deve ser analisada no contexto da organização escolar. Quando nos lançamos na aventura de formar professores, embora saibamos que seja uma tarefa bastante desafiadora, sabemos que esta tarefa se faz num terreno profundamente vulnerável [...] quando pensamos que formamos docentes para diferentes espaços e contextos.
Sabemos que há aspectos que são importantes “qualidades” que os professores devem possuir, visando proporcionar um “ambiente pedagógico eficaz para diferentes tipos de alunos” (Maués, 2008, p.6). Porém alertamos que, descolado do amparo institucional, produz a ausência ou a insuficiência das condições geradoras de produção de conhecimentos e formação de profissionais qualificados para o magistério superior. A possibilidade de “[...] superar a ilusão de que as idéias têm por si só o poder de transformação, atuando sobre a consciência dos indivíduos” (Ramos, 2003, p.8) deve-se dar no processo de formação do professor, realizado junto à realidade do seu exercício profissional, das condições de trabalho, do valor atribuído ao conhecimento produzido pela humanidade - para além da redução do conhecimento ao domínio de um conjunto de informações que se destinam à aplicação direta ao seu trabalho, ou seja, além da perspectiva de instruir, fornecer dados, esclarecer e atualizar o professor. A produção do conhecimento sobre a qualidade do ensino praticado na universidade ainda é um campo novo; e acreditamos que uma das responsabilidades dos profissionais da área da educação é trabalhar em prol da construção de um corpo consistente de conhecimentos, voltados especificamente para a formação do docente de Educação Superior, para que, cada vez mais, as dificuldades relativas a essa formação sejam superadas (Vasconcellos, 2005).
O caminho metodológico do estudo O trabalho realizado articulou questões de cunho teórico e empírico, estabelecendo relações e significados que apreendessem especificidades de uma dada situação. Em que pesem os limites inerentes a qualquer tipo de pesquisa, realizamos um estudo com base na análise de depoimentos de docentes e estudantes de graduação, ou seja, sujeitos que também organizam suas experiências e convivem com a prática pedagógica cotidianamente na Educação Superior e em um dado contexto sociocultural. São, portanto, coautores dos processos de ensinar e de aprender na Educação Superior. Justificamos nossa escolha baseadas em Vasconcellos (2002), que, ao estabelecer critérios para nortear possibilidades de ações transformadoras, expõe sobre a identificação da necessidade de um número significativo de envolvidos em uma instituição. Para o autor, como a necessidade é um produto de interpretação valorativa, indica a possibilidade de transformação decorrente do poder de ação e de recursos disponíveis em dadas circunstâncias. O questionário foi o instrumento de coleta de dados e de interlocução com os sujeitos que representaram o universo desta investigação. A opção pela utilização de questionários é justificada por Richardson et al. (1999), para quem o questionário, apesar de algumas limitações e de acarretar alguns problemas em relação à devolutiva e confiabilidade, é um instrumento que traz uma série de vantagens em relação a outros. Há a uniformidade da ordem das perguntas e das instruções e, num espaço curto de tempo, obtém informações de um número considerável de pessoas. Richardson (2007) chama a atenção para os cuidados que o investigador deve ter com as técnicas de pesquisa, uma vez que estas não são elementos neutros, mas, meios para se obterem informações. Minayo (1994, p.14) enfatiza que a ciência social é intrínseca e extrinsecamente ideológica e que “[…] 1014
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toda ciência é comprometida”. Sendo assim, está imbuída de interesses e visões de mundo historicamente construídos e pode se submeter ou resistir aos esquemas das políticas de dominação vigentes. Ao se elaborarem os instrumentos de coleta de dados, é fundamental ter clareza em relação a esta questão para se compreender a relação entre “pesquisador” e “pesquisado”, protagonistas de um processo de desenvolvimento (Richardson, 2007, p.19). O autor nos lembra que tanto os questionários como a entrevista não são um fim em si mesmo, mas imprescindíveis instrumentos de coleta, e que utilizá-los de forma adequada é responsabilidade do pesquisador. O exame da realidade foi por nós compreendido no sentido metodológico da reflexão que se relaciona ao sentido epistemológico, visto que “[...] o cerne do procedimento metodológico diz respeito à construção, no pensamento, do desenvolvimento das contradições presentes na prática, incluindo suas possibilidades de superação” (Freitas, 1995, p.71). Neste caso, a abordagem de cunho predominantemente qualitativo, de caráter exploratóriodescritivo, foi considerada o caminho mais adequado a trilhar, por privilegiar os significados, as experiências, os motivos, os sentimentos, as atitudes e os valores dos docentes e dos alunos envolvidos com o fenômeno a ser investigado: a docência na Educação Superior em diferentes áreas, qualidades do ensino vivenciado e as possíveis relações com proposições de formação docente, expressão de um “[...] conjunto de expressões humanas constantes nas estruturas, nos processos, nos sujeitos, nos significados e nas representações” (Minayo, 1994, p.15). Fruto de um trabalho investigativo que reconhece, nos fatos descritos, “símbolos de uma cultura que possui núcleos contraditórios para realizar uma crítica informada sobre eles” (Minayo et al., 2006, p.89), temos plena consciência de que os dados são provisórios, relativos ao conjunto e contexto em questão, todavia, da mesma forma e pelo mesmo motivo, devem ser reconhecidos como importante fonte de informação. A coleta de dados, mediante um questionário, foi realizada com 64 docentes e 715 alunos de cursos de graduação de uma universidade pública estadual. O instrumento para os alunos responderem foi formulado com três questões. Na primeira questão, solicitamos que assinalassem a opção (ruim ou péssimo, fraco, razoável, bom, muito bom) que melhor caracterizasse o ensino recebido durante o curso. A segunda questão requereu dos alunos que apontassem os problemas de ensino vivenciados durante o curso. A terceira questão solicitou que apresentassem considerações sobre o que seria um bom ensino na universidade. Aos docentes, apresentamos o resultado da primeira questão respondida pelos alunos, em gráfico relativo ao curso, e indagamos se os mesmos consideravam existirem problemas de ensino; em caso afirmativo, que explicitassem quais eram. As demais questões aos docentes solicitaram a opinião a respeito da possibilidade de se desenvolverem programas institucionais de formação pedagógica e, ante as respostas positivas, quais poderiam ser os resultados para a melhoria do ensino e da docência.
A realidade investigada em questão Um dado que merece destaque, inicialmente, foi a distribuição de setecentos e quarenta questionários aos docentes e a obtenção de apenas 64 respostas de 17 cursos. Consideramos este fato um sintoma bastante expressivo e contraditório. A não-ocupação dos professores de espaços de pesquisa que pretendem ouvir as suas vozes diminui um campo, um tempo e um espaço de possibilidade do registro de suas presença e identidade profissionais. André (2010, p.278) assevera que, quando se pretende “[...] conhecer mais e melhor os professores e seu trabalho docente [é] porque temos a intenção de descobrir os caminhos mais efetivos para alcançar um ensino de qualidade”, o que remete necessariamente a um “trabalho colaborativo entre pesquisadores e professores”. Cunha (2010, p.131) também nos auxilia nesta reflexão: [...] perceber a ação docente como inserida num campo de tensões representa um avanço para as teorias e práticas da formação de professores [...] o exame da construção do campo científico da educação [deve ter] estruturas de conhecimento fundamentais, que farão parte
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dos processos formativos com larga duração. Certamente é a mirada que os atinge e o contexto em que se recontextualizam que trarão formatos distintos e os legitimarão em condições peculiares.
Outros dados são importantes sinalizadores desta investigação. A percepção dos 715 alunos de 24 cursos indica que o ensino recebido foi regular (262 respostas) ou bom (295 respostas). Considerando que a maioria dos estudantes avaliou como bom o ensino recebido, passamos a analisar as respostas obtidas na segunda e terceira questões, que arrolam os motivos que caracterizaram o conceito. Apresentamos alguns depoimentos para, posteriormente, comentá-los: “Um bom ensino se baseia em: professores qualificados e bem pagos; salas de aula com recursos didáticos variados, investimento em trabalhos de campo de qualidade; investimento em laboratórios onde se possa ver a parte prática do curso”. (aluno do curso de Geografia) “Começando por um efetivo cumprimento dos horários de aula, do conteúdo programático e professores que gostam de ensinar e que conseguem fazer isto, mas esta questão é relativa, depende do aluno também. A universidade deve dar as mínimas condições de estudo aos alunos, por exemplo, silêncio durante as aulas, salas de aula com carteiras decentes e janelas que funcionam”. (aluno do curso de Matemática) “Inicio das disciplinas na data certa, professores em todas as disciplinas, professores e alunos engajados e empenhados”. (aluno do curso de Serviço Social) “Aulas regulares, com professores fixos e capacitados para o trabalho. Recursos físicos disponíveis. Professores que gostem e estejam satisfeitos com o trabalho, pois quem ganha é o aluno”. (aluno do curso de Serviço Social)
O bom ensino seria, portanto, para os alunos, aquele que é realizado com base em uma prática de ação sociointelectual, cujo resultado permitiria a intervenção emancipatória dos estudantes na transformação da realidade. As percepções dos alunos indicam um conjunto de ações e decisões que envolvem a disposição dos professores, a conscientização dos alunos e a intervenção institucional. Separadamente, os elementos deste conjunto não se efetivarão em um ensino de boa qualidade social. Poderão demonstrar êxitos parciais, entretanto não farão parte de soluções efetivas. Alguns professores têm a mesma percepção. Exemplificamos: “[...] entendo que existem os seguintes pontos a considerar: a) os alunos aparentemente são poucos estimulados no ambiente familiar (visão crítica dos problemas); b) a sociedade tampouco favorece esses estímulos, a despeito da internet, etc. [...] c) com exceção de cursos pedagógicos, os professores universitários são profissionais liberais na posição de professores, sem preparo algum para essa função. Comumente, usam seu ‘instinto’ para o exercício da docência num mundo com alta comunicação (EAD, etc.), há necessidade de maior preparo para esse exercício”. (docente do curso de Engenharia Civil) “A qualidade não pressupõe apenas os ‘problemas de ensino’, ainda numa instituição complexa como a universidade brasileira”. (docente do curso de Pedagogia) “Acho que os alunos tratam o problema da falta de docente como qualidade do curso. O Design Gráfico foi criticado sem considerar a necessidade de docentes específicos por estratégias políticas e desde sua criação tem sofrido com um rodízio de docentes temporários, a sua maioria de 20 horas. No ano de 2008 teve turma que ficou sem professor até julho e disciplinas que tiveram três docentes e isso afeta e muito a qualidade do curso”. (docente do curso de Design Gráfico) 1016
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“Os dados parecem revelar o bom aproveitamento do curso apesar da falta de espaço físico adequado [...] e no caso do curso de Artes Cênicas o espaço físico é co-autor no processo de trabalho desenvolvido, certamente que nossos estudantes apontam tal falta que revela um problema de ensino”. (docente do curso de Artes Cênicas)
Os depoimentos registrados nas questões iniciais, ou seja, a qualidade do ensino que se vivencia, remetem-nos a uma discussão, neste artigo, de dois aspectos: a disposição para a docência e a atuação institucional na docência. De acordo com as manifestações dos sujeitos (alunos e professores), alguns docentes não estão “preparados” para o exercício do magistério. Um aluno do curso de Química considera que: “O bom ensino em uma universidade consiste na contratação de verdadeiros docentes, ou seja, professores. Acredito que uma separação entre professor e pesquisador deveria ser feita, pois há muitos pesquisadores que não gostam de ministrar aulas, logo os alunos que arcam com as conseqüências de uma aula ruim”.
A declaração de um docente do curso de ciências sociais referenda a expressão do aluno ao afirmar que há “[...] falta de entrosamento entre os docentes, desconhecimento do PPP [Projeto Político Pedagógico], desprezo pela habilitação em licenciatura [...]”.
O sentido da função “ensinar” requer a aquisição de conhecimentos pedagógicos, aqueles que tratam de princípios fundamentais de organização do trabalho docente, tais como políticas educacionais, sistemas curriculares, comunicação na situação de ensino, planejamento de ensino, avaliação da aprendizagem, entre outros. Bazzo (2008) apresenta indicações de promoções institucionais em programas de formação docente que são esclarecedoras do conjunto de ações e decisões necessárias ao bom ensino na Educação Superior. De acordo com a autora, [...] poderiam ser objeto de estudos e pesquisas desde as discussões dos projetos pedagógicos de cada curso até questões percebidas com merecedoras de maior reflexão nos processos de avaliação institucional, hoje instalados em todas as universidades brasileiras em atendimento ao que determina o programa SINAES [Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior]. Essas atividades seriam permanentemente acompanhadas pelos próprios professores, bem como pelos alunos e pela instituição nos seus diversos níveis e empreendimentos avaliativos, sempre, porém, de características diagnósticas e emancipatórias. Nesse processo, poder-se-ia esperar, em médio prazo, que o professor, ao perceber a importância do seu papel na tarefa educativa dos jovens para além da técnica e do domínio dos conteúdos específicos, fique cada vez mais envolvido pelas questões da educação e da real aprendizagem/formação de seus alunos, de tal sorte que, na mesma medida da importância que dá às pesquisas de sua área específica de conhecimento, engajese na investigação e na descoberta de novas e desafiantes maneiras de desenvolver o ensino. (Bazzo, 2008, p.12)
Os cursos de pós-graduação têm sido o principal veículo de preparação do docente de Educação Superior. Muitas vezes, porém, não há a formação para a docência. Não se questionam, nem nos editais de concursos nem no cotidiano das instituições, elementos que indiquem que o profissional que domina uma área de conhecimento seja capaz também de realizar a transposição didática necessária a um bom ensino. Como descrevem Pimenta e Anastasiou (2002, p.142-3): Institucionalmente, uma vez aprovado no concurso ou contratado, o professor recebe uma ementa, um plano de ensino do ano anterior e, com isso em mãos, o horário de trabalho que
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lhe cabe desempenhar. A partir daí, as questões de sala de aula, de aprendizagem e de ensino, de metodologia e de avaliação são de sua responsabilidade, [...]. Ou seja, reforça-se aí o processo de trabalho solitário, extremamente individual e individualizado; o professor é deixado à sua própria sorte e, se for bastante prudente, evitará situações extremas nas quais fiquem patentes as falhas de seu desempenho.
A formação em cursos stricto sensu tem priorizado as atividades de pesquisa e as associa, com frequência, à essência direta do trabalho docente. A introdução de estágios de docência é uma alternativa interessante, a título de introdução aos pressupostos de formação do corpo docente superior, todavia requer que a discussão do significado de tais experiências seja efetivada como uma relação orgânica de todas as etapas do processo de ensinar e aprender e com os diferentes sujeitos envolvidos (Bazzo, 2008). Porém não podem ser vivências únicas e exclusivas de formação, há que se buscar por formatos mais expressivos de inclusão de processos formativos iniciais e continuados. Vale destacar que processos mais expressivos de formação do docente superior requerem a administração negociada entre as partes. Oportunidades de cooptação podem ser propostas com roupagens que favoreçam o negligenciar das restrições de tempo real de trabalho, as condições de efetivo exercício do magistério e as necessidades pedagógicas da docência superior que abrangem o aluno, o professor e o conteúdo a ser desenvolvido. Em outras palavras, os processos formativos não podem ceder aos moldes de conveniências econômicas, que requisitam o docente como colaborador na consecução de padrões mercadológicos e de produtividade para a Educação Superior, que apelam para parcerias que se destinam a um pseudodesenvolvimento profissional e que trazem mais intensificação do trabalho docente. Como exemplo, podemos destacar um excerto, já citado, das manifestações dos alunos que admitem o bom ensino permeado por “[...] efetivo cumprimento dos horários de aula, do conteúdo programático e professores que gostam de ensinar e que conseguem fazer isto” (aluno do curso de Matemática). Docentes que “conseguem ensinar” na Educação Superior fazem parte de um grupo de profissionais que admitem: o planejamento, a preparação das aulas, o estudo dos temas, a organização do ambiente de ensino e de aprendizagem, a proposição de ações críticas e inovadoras, entre outras, em um conjunto de tensões de diversidades e de demandas acadêmicas. Outro aspecto evidenciado pelos depoimentos de alunos e professores diz respeito ao envolvimento das instituições de Ensino Superior (IES) na docência. São consideradas desde a organização pedagógica dos cursos até as condições materiais das estruturas físicas. Para os alunos que colaboraram com esta investigação, é importante que haja “[...] professores bem preparados e que tenham didática para dar aula [e] laboratórios para desenvolvimento das atividades”. (aluno do curso de Ciência da Computação) Um docente do curso de química assim se manifesta: “[...] as condições de ensino poderiam ser ainda melhores. Como por exemplo: mais materiais no laboratório, técnicos mais bem preparados e com melhor boa vontade para preparar as aulas”. Já um docente do curso de Agronomia afirma: “É lógico também que cursos pedagógicos de formação ajudariam muito na reciclagem dos professores, vejo isso, pois também atuo no ensino médio onde os professores recebem este tipo de formação”. A criação de um ambiente pedagógico favorecedor da aprendizagem deve considerar a superação de três grandes problemas: corpo docente em efetivo exercício profissional; espaços e estruturas físicas compatíveis com as necessidades dos cursos, e acompanhamento e avaliação institucional dos processos pedagógicos vivenciados. Transcrevemos, a seguir, mais alguns dos depoimentos dos sujeitos que exemplificam as situações destacadas: “Falta de materiais decentes para as aulas práticas e técnicos mal preparados para ajudar. Professores (alguns) péssimos, que não deveriam estar dando aula dentro de uma universidade tão grande”. (aluno do curso de Química) “Falta de professores, muita troca de professor em uma disciplina, atraso para início da disciplina (disciplina anual que as aulas iniciaram em setembro)”. (aluno do curso de Serviço Social)
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“Muitos docentes passam nos concursos (efetivos e/ou temporários) tendo pouca ou nenhuma experiência prática. Quando vão atuar não sabem relacionar seu conteúdo com o cotidiano real. Ficam muito preocupados em formar pesquisadores e esquecem de formar profissionais”. (docente do curso de Educação Física) “A falta de preparo se confunde com o desânimo do docente, desânimo pelo baixo salário ou pela falta de perspectiva profissional, ambos aspectos são culpa do governo e da desorganização/descaso para com a educação brasileira. Política e Educação não combinam”. (aluno do curso de Ciências da Computação) “Falta de professores para algumas disciplinas, professores sem didática, materiais desatualizados, falta de alguns livros na biblioteca”. (aluno do curso de Administração) “Creio que temos problemas de ensino em Engenharia Civil porque a maioria absoluta dos docentes não teve formação para ensino profissional”. (docente do curso de Engenharia Civil)
As condições das estruturas físicas, dos ambientes de ensino e aprendizagem, das motivações e contratação docente aparecem como sendo precárias, desatualizadas, insuficientes e, até mesmo, incompatíveis com uma proposta pedagógica de formação de profissionais em nível superior. Isaia e Bolzan (2007, p.174) consideram que a realidade de muitas IES está distante de uma “[...] política consistente, sistemática e organizada, que leve em conta as peculiaridades de cada domínio e do contexto institucional concreto para o qual se orienta”, ou seja, os processos formativos profissionais, entre os quais deveriam estar, inclusive, aqueles direcionados aos professores. É importante trazer para o debate, portanto, a opinião dos docentes relativa aos processos de formação. A maioria dos docentes participantes (42 professores) é favorável ao desenvolvimento de programas institucionais de formação pedagógica. Aqueles que não são favoráveis indicam que os problemas não são de ordem didática ou pedagógica, mas de dedicação de professores e alunos. Os argumentos dos docentes que apoiam a ideia dos programas de formação institucional remetem a muitos pontos, entre eles: a inserção do professor no espaço universitário, o reconhecimento de metodologias de ensino mais apropriadas ao curso, discussão ampliada da função social da universidade, processo de avaliação da aprendizagem, acompanhamento pedagógico das reformulações dos projetos pedagógicos dos cursos etc. Apresentamos algumas manifestações: “Sinto-me totalmente desamparada em relação a minha formação e do exigido pelas IES. Tudo fica por conta do professor: trabalhar com novas tecnologias, trabalhar as diferenças em sala de aula, entender as dificuldades dos estudantes, mesmo que estas estejam muito além da incumbência do professor. Além disto, o professor tem que desenvolver projetos, participar de comissão, ter uma carga horária didática muito acima dos existentes em instituições bem conceituadas do país. Enfim, penso que se exige muito do professor e muito pouco (quase nada) é dado para a execução das exigências. Sem contar a falta de infra-estrutura. Como trabalhar em laboratórios de informática se não tem técnicos e/ou monitores que nos auxiliem. Como ter um “bom” método de avaliação numa sala com 60, 80 estudantes. Como trabalhar em sala o desinteresse dos estudantes. Como trabalhar a falta de conteúdo matemático que vem se acumulando desde a alfabetização. Como dar aulas numa universidade em construção com marretas, brocas, martelos o ano todo na cabeça do professor e do estudante. Como exercer, de fato, a profissão de professor se a maior parte do tempo ficamos envolvidos em imbróglios administrativos, burocráticos e políticos. Que programa desenvolver eu não sei”. (docente do curso de Matemática) “Programas relativos a orientação pedagógica do professor, para trabalhar com as aulas/ alunos. Muitas vezes o docente domina a teoria (principalmente no âmbito da psicologia) /
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prática, mas tem muita dificuldade na transmissão dos conteúdos”. (docente do curso de Psicologia) “Os resultados são em longo prazo, acho importante uma formação integral que envolva prática de ensino, formas de levar o conhecimento ao aluno que o faça participar mais, avaliação, entre outros. Somente melhoraremos o ensino se o professor conseguir controlar efetivamente todas as etapas do ensino-aprendizagem”. (docente do curso de Agronomia) “Didática, metodologias de ensino, uso de novas tecnologias de ensino em sala de aula, tanto para professores quanto para alunos”. (docente do curso de História) “Talvez um levantamento das inovações adotadas pelos docentes e que estão trazendo resultados positivos e que estejam cristalizadas por pesquisas e não pelo ‘achismo’”. (docente do curso de Matemática)
As manifestações dos docentes nos remetem à discussão de que é preciso que a universidade reconheça a importância do trabalho docente na difusão do conhecimento por meio da pesquisa, mas que dê a mesma importância à docência. Lüdke (2005, p.12) utiliza uma expressão muito interessante, a “invisibilidade docente”, para tratar da formação de professores, e considera que, Rompendo com a invisibilidade do trabalho docente, desenvolvem um programa unindo saber e ação na atuação do professor, que assume também o papel de pesquisador [...] centrar-se na situação de trabalho seria condição e garantia de uma pesquisa produtiva e com sentido [...] rompendo com a separação hierárquica entre o pesquisador e o professor.
Trouxemos, novamente, o binômio ensino-pesquisa, considerando que, para que não haja desvinculação, os programas de formação não podem se resumir a eventos isolados e pontuais. Acreditamos que os programas de formação docente devem ser articulados à pesquisa, à produção acadêmica que é desenvolvida na universidade. A indicação de problemas institucionais é consequência de um rol de propostas de “obrigação de resultados”, que hoje é imposta ao professor e que não considera, muitas vezes, as questões estruturais das IES, tais como: condições de trabalho, turmas com número excessivo de alunos, ausência de política de valorização do magistério, entre outras. São condições que incidem sobre o trabalho docente, tornando-o precário, e correspondem ao discurso hegemônico da mercantilização do conhecimento como princípio da excelência (Maués, 2008). Os docentes têm sido alvo do produtivismo acadêmico instalado nas políticas e ações direcionadas à Educação Superior. Desse modo é considerado [...] “competente” aquele docente que consegue cumprir as exigências das agências de fomento, ou seja aprovando projetos de pesquisa, solicitações de financiamento de participação em eventos e tantos outros indicadores estabelecidos a partir da lógica mercantilista. (Maués, 2008, p.10)
Tal pensamento altera a natureza da docência, por retirar a importância de um conjunto de ações que gere formação ética nos alunos, que manifeste interações de boa qualidade entre os pares professor-aluno e aluno-aluno, que favoreça clareza, organização e adequação das linguagens usadas nas aulas, que garanta aprofundamento nas especificidades do ensino de cada área do conhecimento. Em outras palavras, o domínio do conhecimento expressado na situação de ensino requer o trato com os três elementos didático-pedagógicos: aluno, conteúdo e professor, para além da metodologia específica de uma área da pesquisa. Trata-se, conforme nos indicam Borba, Ferri e Hostins (2006), de um compromisso social de base ético-política óbvia.
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A ausência de responsabilização institucional sobre a docência superior tem transformado o professor [...] em empreendedor que precisa ser capaz de celebrar, por meio da instituição, convênios, atrair empresas que se interessem em financiar suas pesquisas e montar seus laboratórios, transformando-se assim em pessoas quase jurídicas que conseguem realizar “negócios” que vão tornar a instituição mais competitiva. Isso representa uma intensificação do trabalho, na medida em que exige mais tempo desse profissional, muitas vezes tendo que estender a jornada de trabalho para além das oito horas, a fim de poder realizar todas essas atividades que agora são dele esperadas. (Maués, 2008, p.11)
Neste momento, vale a pena lembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Brasil, 1994), quando trata sobre as questões que envolvem a educação nacional (Capítulo III – da Educação, da Cultura e do Desporto, seção 1 – Da Educação), estabelece como princípio, entre outros, a “valorização dos profissionais do ensino” (art. 206, V) e a “garantia de padrão de qualidade” (art. 206, VII) para o ensino. Mais recentemente, na forma da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, as diretrizes e bases da educação nacional foram materializadas e acrescentadas de Portarias, Decretos e Resoluções que trazem regulamentações mais ordinárias. Enricone (2007) postula que os problemas da prática educacional de nível superior não podem continuar a se resumir a “problemas meramente instrucionais” (p.151), ao contrário, devem ser objeto de ações e discussões que envolvam “uma mudança simbólica em movimento” (p.155), considerando o modo como a “dimensão profissional do docente universitário tem a ver com o funcionamento de políticas de administração” (p.156) nos níveis pedagógico, pessoal e institucional. Para a autora, qualquer modalidade de educação universitária de professores deve “[...] partir das intenções e dos valores do presente e orientar-se para as expectativas do futuro, que nunca está determinado, ainda que dependa das possibilidades entre as alternativas agora existentes” (p.157). O trabalho do docente universitário - enquanto combinação de demandas complexas que envolvem o ensino, a pesquisa, a extensão, a pesquisa do ensino, o ensino para a pesquisa, a extensão como socialização etc. - com frequência, não encontra os princípios constitucionais e os decorrentes legais assegurados nas IES.
Algumas considerações A título de apresentar algumas ideias conclusivas, lembramos que nossa investigação junto aos professores e alunos permitiu reforçar a questão de que a carreira docente universitária requer que sejam apresentadas propostas pelas IES cujas iniciativas alterem dimensões do ensino e da aprendizagem com argumentação/sustentação teórico-pedagógica. Ao docente, profissional da educação, compete: participar na elaboração dos projetos pedagógicos dos cursos, zelar pela condução do processo de ensino que vise à aprendizagem dos alunos, produzir conhecimentos e disseminá-los como um bem da humanidade, entre outras atribuições. É necessário, portanto, que, na administração da vida universitária, sua carreira docente também seja incluída. Se, por um lado, os estudos na área já apontam necessidades de programas institucionais que amparem o exercício no magistério superior, por outro lado, ainda é perceptível o equívoco da unilateralidade da pesquisa como instrumentalização para a ação docente. As necessidades formativas dos docentes da Educação Superior têm complexidade ímpar, em especial pela consideração de que o processo de formação iniciou-se, mesmo que não intencionalmente, quando aluno dos cursos de graduação. Assim, a superação/manutenção de modelos de ordem didático-pedagógicos refere-se a um conjunto de ações de investigação, análise e discussão de práticas pedagógicas institucionalizadas, como recursos importantes para o planejamento não só de ensino, mas, também, dos sistemas educativos superiores. Além disso, quaisquer que sejam as iniciativas institucionais, uma análise mais rigorosa da qualidade do ensino vivenciado por docentes deve partir da construção das experiências já vivenciadas pelos sujeitos, um marco que permita ser uma espécie de referência sistemática dos investimentos pessoais,
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pedagógicos, materiais, administrativos. O campo do conhecimento tratado na forma de conteúdo de ensino, as concepções e valores atribuídos à prática pedagógica cotidiana precisam ser considerados como elementos fundamentais de formação docente, os quais são tão necessários quanto a pesquisa na área específica. Lembramos, ainda, que as condições materiais e objetivas do trabalho docente são aspectos fundamentais para o desenvolvimento da Educação Superior de boa qualidade. Mais do que um incentivo a um investimento de envergadura maciça, trata-se de mostrar, para a sociedade, a importância da formação do docente que irá formar outros tantos profissionais, muitos deles docentes também. Apesar de dificilmente percebida por esta sociedade, a importância reside em ações prioritárias para a própria vida do homem. O cidadão, que vive em um tempo em que o desmantelamento das estruturas sociais luta arduamente para manter a hegemonia capitalista dominadora, precisa reconhecer, no docente do ensino superior, uma classe de trabalhadores que enfrenta precarização nas relações e condições de trabalho. O aligeiramento das formações, a expansão desordenada de cursos superiores, a ausência de estruturas físicas compatíveis com a produção da ciência são, juntamente com o tempo disponibilizado, alguns dos exemplos de condições materiais que precisam ser repensadas. Os recursos destinados ao ensino perecem diante daqueles dirigidos à pesquisa, levando à diminuição da resistência da cultura instalada do alto desempenho produtivo. O foco no valor central das possibilidades e limites institucionais poderá ser avistado na superação dos problemas, irá refletir nas escolhas e nas tomadas de decisão do objeto de trabalho da profissionalização em nível superior - produzido e atualizado com a pesquisa - e permitirá o mapeamento das bases epistemológicas da docência no campo da Educação Superior. A empreitada de uma Educação Superior de qualidade requer a absoluta prioridade da ordem política, do caráter organizativo e produtivo da ciência e da cultura, e da ação humana participativa na construção social.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AMARAL, A.L. Significados e contradições nos processos de formação de professores. In: DALBEN, A.I.L.F. et al. (Orgs.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p.24-46. ANDRÉ, M. A pesquisa sobre formação de professores: contribuições à delimitação do campo. In: DALBEN, A.I.L.F. et al. (Orgs.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p.273-87. BAZZO, V.L. Constituição da profissionalidade docente na educação superior: apontamentos para uma política nacional de formação. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 30., 2008, Poços de Caldas. Anais... Poços de Caldas, 2008. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes./31ra/1trabalho/GT11-4842—Int.pdf>. Acesso em: 7 mar. 2010. BORBA, A.M.; FERRI, C.; HOSTINS, R.C.L. Formação continuada de professores
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A FORMAÇÃO PEDAGÓGICA INSTITUCIONAL ...
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OLIVEIRA, C.C.; VASCONCELLOS, M.M.M. La formación pedagógica institucional para la docencia en la Enseñanza Superior. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1011-24, out./dez. 2011. El texto presenta resultados de pesquisa relativa a docencia y formación pedagógica en la universidad. El objetivo fue contribuir para el proceso de formación de docentes que actúan en enseñanza superior, recogiendo subsidios para la elaboración de programas institucionales. La opción metodológica fue el planteamiento cualitativo, exploratorio descriptivo. El cuestionario fue usado para colectar datos junto a los docentes y estudiantes de cursos de graduación. Los resultados indican que la construcción de la docencia superior y la enseñanza de buena calidad necesitan inversiones institucionales pedagógicas, administrativas y materiales; la carrera docente requiere propuestas e iniciativas institucionales que alteren dimensiones de la enseñanza y aprendizaje con sustentación teórico-pedagógica; su calidad debe superar el equívoco de la unilateralidad de la pesquisa como instrumentación para la acción docente; las posibilidades y límites institucionales reflejan la selección de la profesionalización y permiten el mapear de las bases epistemológicas de la docencia en la universidad.
Palabras clave: Formación de profesores. Docentes. Enseñanza superior. Práctica profesional. Recebido em 11/08/10. Aprovado em 23/01/11.
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Abordagens de ensino e pesquisa na pós-graduação em saúde: da realidade da disciplina à ‘utopia’ transdisciplinar José Renato Gomes Castro1 Bruno José Barcellos Fontanella2 Egberto Ribeiro Turato3
CASTRO, J.R.G.; FONTANELLA, B.J.B.; TURATO, E.R. Approaches to teaching and research in graduate courses in the health field: from the reality of the discipline to the transdisciplinary ‘utopia’. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1025-38, out./dez. 2011. The field of postgraduate medical education faces sharp criticism against certain weaknesses regarding production, dissemination and use of new knowledge, and it is expected that professors promote technical skills and relevant levels of epistemological study. The objective was to analyze the manifestations of postgraduate programs coordinators regarding theoretical frameworks, meanings and differences between the disciplinary, multi, inter and transdisciplinary approaches. During 2008, seven interviews were recorded; in general, they revealed that there were difficulties in the recognition of the mentioned approaches, justified by their own training as doctors and researchers. Non-theoretical notions tended to be expressed, but they were apparently supported by their professional practices and clinical knowledge, which historically deal with complex clinical research subjects. It is argued that there should be an expansion of the possibilities of pedagogical managements grounded on the precepts of the emerging paradigm, which are possibly already employed and taught, even informally, in the years of clinical training.
O campo de ensino e pesquisa na pósgraduação em saúde enfrenta contundentes críticas a certas fragilidades quanto à produção, divulgação e utilização de novos conhecimentos, cabendo aos formadores promover competências técnicas e níveis pertinentes de aprofundamento epistemológico. Objetivou-se analisar as manifestações de coordenadores de programas de pós-graduação sobre fundamentação teórica, significados e diferenças entre os enfoques disciplinar, multi, inter e transdisciplinar. Pelas entrevistas realizadas com os sujeitos foi possível constatar, de modo geral, dificuldades para reconhecimento dos enfoques, justificadas pela formação no campo das Ciências Médicas. Noções ateóricas tenderam a ser expressas, mas aparentemente ancoradas em práticas profissionais e conhecimentos clínicos que historicamente já lidam com objetos de estudo e de cuidado complexos. Argumenta-se por uma ampliação das possibilidades de gestões pedagógicas fundamentadas no paradigma emergente, possivelmente já empregado e ensinado informalmente nos anos de formação clínica.
Keywords: Health postgraduate programs. Medical education. Research. Epistemology.. Paradigm.
Palavras-chave: Programas de pósgraduação em saúde. Ensino. Pesquisa. Epistemologia. Paradigma.
Elaborado com base em estágio pósdoutoral do autor principal. Sem conflito de interesse e com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição. 1,3 Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (FCM/ Unicamp). Cidade Universitária Zeferino Vaz, Distrito de Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13.083-970. psi@fcm.unicamp.br 2 Departamento de Medicina, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos. *
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Introdução A orientação por um determinado enfoque em ensino e pesquisa é necessária para a consecução de resultados em relação à formação de pesquisadores capazes de atuar sobre os desafios relacionados ao processo saúde-doença materializado nas vidas dos sujeitos e das comunidades. Para tanto, destaca-se a necessidade de certo domínio de concepções teóricas e de habilidades práticas dos intelectuais responsáveis pela coordenação desse processo formativo, seja assumindo e reproduzindo fundamentações epistemológicas mais restritas a condicionantes tradicionais, seja adotando pressupostos que reconheçam instâncias fenomênicas emergidas de contextos complexos. Com atenção a tais aspectos, apresentamos, neste artigo, parte dos resultados de uma pesquisa cujo tema é o discurso de coordenadores de programas de pós-graduação stricto sensu (PPG) na área das Ciências Médicas de uma instituição universitária pública brasileira. São analisados os dados levantados em entrevistas com esses profissionais – todos docentes e pesquisadores, quase todos da profissão médica –, especificamente quanto ao que revelam sobre o tipo de enfoque de ensino e pesquisa por eles dinamizado e, possivelmente, pelos respectivos programas aos quais pertencem. Busca-se, assim, avançar no processo de discussão crítica sobre os conhecimentos e aprofundamentos epistemológicos relativos às fundamentações teóricas, significados e diferenças que caracterizam os enfoques disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, considerando a indicação hipotética de que os discursos dos coordenadores dos PPG podem se revelar insuficientes no reconhecimento de qualidades e fundamentos que norteiam os diferentes tipos de enfoques em ensino e pesquisa. Investigações sobre as responsabilidades dos intelectuais, sobre os resultados sociais de suas práticas e sobre os aspectos ideológicos presentes no pensamento científico já foram tratadas em várias obras, algumas delas clássicas (Marx, Engels, 1987; Weber, 1977; Mannheim, 1968). No presente texto, atualizam-se essas preocupações, direcionando-as ao processo de formação em pesquisa na área médica. Procurou-se incorporar as contribuições que discutem possibilidades, limites e responsabilidades dos intelectuais, bem como necessidades e possíveis distorções dos sistemas de ensino, aglutinando elaborações dos campos da Epistemologia Médica (Canguilhem, 2006, 1977; Foucault, 1994, 1987, 1986, 1985, 1981) e da Sociologia do Conhecimento (Freidson, 2009; Bourdieu, 1983; Bourdieu, Passeron, 1982). Parte das inquietações motivadoras desta pesquisa pauta-se na dúvida quanto à possibilidade efetiva de se prepararem profissionais para trabalhar com sofrimentos e doenças de pessoas e comunidades, estabelecendo condutas terapêuticas amplas e eficazes, sem que estes tenham visão do locus que ocupam no contexto sócio-histórico e dos paradigmas que sustentam suas ações investigativas (Turato, 2003).
Justificativas
Quatro são os níveis de justificativas que sustentam o direcionamento da investigação e das discussões propostas a partir do material coletado. Primeiramente, indica-se, no decurso dos últimos cinquenta anos, a existência de contundentes críticas aos rumos da construção dos conhecimentos científicos e à lógica dos sistemas de ensino (Kuhn, 2003, 1979; Demo, 2002; Santos, 2000; Popper, 1979). Os fazeres acadêmicos calcados unicamente na tradição newtoniano-cartesiana continuam influenciando de forma determinante o sistema de produção (pesquisa), divulgação (ensino) e utilização (consumo) de conhecimentos (D’Ambrósio, 1999, 1997). A essas críticas somam-se os posicionamentos que denunciam abusos de poder e a existência de insuficiências e limitações epistemológicas nas práticas de pesquisa (Capra, 2002, 1997, 1992; Morin, 2000a, 2000b, 2000c, 2000d, 1995; Morin, Baudrillard, Maffesoli, 1993). Em segundo lugar, destacam-se insuficiências ligadas especificamente aos fazeres clínicos na área médica/saúde e às precariedades de discussão epistemológica existente nesses campos científicos de saber. A Medicina (como representante de relevante destaque na área da saúde) não estaria assumindo um comprometimento ético de enfrentamento de questões amplas decorrentes de seu caráter indissociável entre ciência e tecnologia, aspectos que hoje se determinam reciprocamente (Japiassu, 1994, 1992, 1976). Identificam-se críticas e indicações da necessidade de níveis mais qualificados de 1026
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formação de docentes, pesquisadores e clínicos especializados (Turato, 2003; Nunes, 1995; Camargo Jr., 1993, 1990; Minayo, 1991), em razão da fragilidade do sistema educacional médico quanto a questões como: o adoecer, o cuidar e ser cuidado (Ferraz, 2001), a autonomia do sujeito que adoece, a compreensão de fenômenos humanos (Ilário, 2001), as responsabilidades médico-profissionais (Garcia et al., 2007; Ribeiro, 2005; Tesser, Luz, 2002; Almeida, 2001) e a hegemonia do modelo biomédico (Cardoso, Camargo, Llerena, 2002; Stagnaro, 2002; Cadavid, 2001; Koifman, 2001; Epstein, 1999). O terceiro ponto de justificativa incorpora pressupostos teóricos e cosmovisões expressos em construtos como: complexidade, complementaridade e interdependência, transdisciplinaridade, ética e bioética, incerteza e caos, dialógico/holográfico (Marteleto, 2007; Morin, 2000a, 2000b, 2000c, 2000d; Nicolescu, 1999; Morin, 1996; Morin, Baudrillard, Maffesoli, 1993). Eles explicitam posicionamentos que vêm obtendo compreensão e reconhecimento, ao mesmo tempo em que operam transformações, mesmo que modestas, em discursos e realidades. Esse processo carrega significativa herança de avanços emergidos de pensadores de diferentes áreas de conhecimento, como: Física, Biologia (Maturana, 1998, 1995; Maturana, Varella, 1997; Bohm, 1992; Heisenberg, 1962; Bohr, 1961), Educação (Capra, 2002, 1992; Collares, Moysés e Geraldi, 1999; D’Ambrósio, 1999, 1997; Assmann, 1996; Freire, 1991; Freire, Pichon-Rivière, 1991), Teologia, Filosofia e Ética (Boff 2000, 1999, 1997; Bachelard, 1996), assim como de manifestações artísticas nas suas mais diversas formas de expressão. Isso posto, é possível reconhecer a consonância deste trabalho com o que se nomeia paradigma emergente, que vem assumindo contornos progressivamente mais claros e aceitáveis mediante pesquisas que consideram a interferência da subjetividade do cientista (Neubern, 2000) e as possibilidades explicativas de realidades e fenômenos complexos, desde os sistemas biológicos mais simples até o caso da pessoa humana em suas relações intrapessoal e/ou intersubjetivas, grupal ou macrossocial (Iribarry, 2003; Chaves 1998; Weill, 1993, 1987). Essas posições e direcionamentos permitem revisões do processo de cuidado e das concepções de Ética/Bioética (Cruz-Coke, 2005; Luna, Salles 2000), bem como das tendências metodológicas históricas da Medicina (Coelho, Almeida Filho, 2002; Ayres, 1994), pressupondo o resgate de competências práxico-epistemológicas pouco valorizadas no processo de formação e desenvolvimento de pesquisas nas universidades. A última etapa de apresentação das justificativas é respaldada pela constatação de que a produção de novos conhecimentos tende a manter a tradição disciplinar, sem elementos teórico-metodológicos favorecedores do enfoque inter ou transdisciplinar (Castro, 2006). Assim é que todas essas indicações de ‘fragilidades no sistema’ compõem o conjunto de argumentos justificadores da tentativa de desvelar o tipo de formação oferecida pelos PPG a partir dos discursos dos intelectuais responsáveis por tal processo.
Pressupostos teóricos Para respaldar o processo de análise e discussão dos resultados, elegeram-se pressupostos teóricos relacionados às noções de paradigmas tradicional e emergente, bem como às de enfoques disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Consideram-se características do paradigma tradicional (velho paradigma, paradigma newtonianocartesiano, paradigma positivista) o rigor disciplinar que postula a objetividade e a eliminação do sujeito; a matematização, a hiperformalização, a hiperabstração e o decorrente enclausuramento disciplinar; a redução da realidade mais complexa à menos complexa; a tendência de reaproximar os campos do conhecimento realizando, por exemplo, uma redução do biológico ao físico-químico, do antropológico ao biológico (Morin, 2000c). A justaposição do paradigma tradicional com os pressupostos que delineiam o paradigma emergente (paradigma da complexidade, novo paradigma) permite identificar o que passa a ser valorizado nessa nova cosmovisão: no lugar da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (Santos, 2000). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1025-38, out./dez. 2011
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Destacam-se, ademais, as considerações a respeito dos enfoques disciplinar e multidisciplinar em ensino e pesquisa, este último caracterizado como atividades e projetos dos quais vários especialistas, com seus respectivos conhecimentos, participam, permanecendo cada qual com a visão mais ou menos restrita à sua área (Assmann, 2001). Essas reais opções de prática de pesquisa mantêm-se como socialmente justificáveis (Luz, 2009), embora, em muitos casos, apenas reproduzam a ideologia positivista e levem a resultados socialmente limitados e, por vezes, comprometedores. É possível considerar que tais enfoques ainda representem ideais dos saberes que carregam as tradições acumuladas desde o advento do método científico moderno; podem ser qualificados, portanto, como portadores de vieses característicos do paradigma tradicional. Já os enfoques interdisciplinar e transdisciplinar – este reconhecido como a tentativa mais abrangente de processo de transformação das dimensões práxicas no universo acadêmico – demonstram sintonia em relação aos elementos que qualificam o que tem sido nomeado como paradigma emergente. Com relação à interdisciplinaridade, o enfoque reside na tentativa de extrapolar a mera justaposição das contribuições disciplinares, estabelecendo-se um intercâmbio entre especialistas de diversas áreas do conhecimento científico, uma vez que se reconhece a insuficiência de contribuições que se mantêm restritas à dimensão disciplinar. Difícil de edificar, porém anunciado em discursos de experimentados teóricos, o enfoque transdisciplinar procura coordenar as disciplinas e interdisciplinas nos sistemas de ensino, com base em uma axiomática geral que considere questões éticas, políticas e culturais (Gadotti, 2000). A transdisciplinaridade não pretende constituir-se como uma ciência das ciências – a expressão - e a práxis que dela poderia surgir - indica a assunção de posturas cooperativas (D’Ambrósio, 1997), ficando, inclusive, implícitas as possibilidades de construção de conhecimentos sem a necessidade de se excluir e desvalorizar mitos, religiões e outros sistemas interpretativos.
Método Esta pesquisa é orientada por pressupostos metodológicos qualitativos (Nunes, 2005; Turato, 2003; Minayo, 1991). Por meio deles, pretendeu-se revelar, com a coleta de dados, significações e intencionalidades subjacentes às condutas dos entrevistados em relação a si mesmos e em suas relações com os grupos acadêmicos com que convivem como gestores de PPG. A explicitação dos pressupostos apresentados acima serviu de base para a formulação de três questões disparadoras utilizadas nas entrevistas. Para o momento, destaca-se a primeira delas, relativa às noções teóricas que, segundo os coordenadores de pós-graduação, caracterizariam cada um dos quatro tipos de enfoques em ensino e pesquisa (disciplinar, multi, inter e transdisciplinar). A seleção dos sujeitos da pesquisa foi intencional e por conveniência, admitindo-se que cabe aos responsáveis pela análise dos dados identificar, integrar e processar as discussões e considerações em função da compreensão dos limites e da natureza dos dados contingencialmente obtidos. Procurou-se entrevistar a totalidade dos coordenadores de programas de pós-graduação stricto sensu vinculados à área da saúde de uma universidade pública brasileira, pertencentes às seguintes áreas de avaliação da Capes (Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior do Ministério da Educação do Brasil): Medicina I, Medicina II, Medicina III, Saúde Coletiva, Enfermagem e Ciências Biológicas II. Tais sujeitos, em função do locus que ocupam e por dever de ofício, são portadores de um conjunto de informações, entre elas a do tipo de enfoque de ensino em pesquisa assumido por seu PPG. Dessa forma, podem garantir a fidedignidade dos dados, uma vez que respondem, institucional, ética e tecnicamente, pelos resultados do processo de construção de conhecimentos científicos e pela modificação ou reprodução dos mecanismos institucionais de validação pelos pares. Do mesmo modo, respondem, mesmo que indiretamente, pelos resultados sociais que advêm da prática dos novos pesquisadores formados, assim como pela utilização dos novos conhecimentos em escala social. Garantiu-se o anonimato dos sujeitos, informados dos objetivos da pesquisa, assim como do sigilo do tratamento da autoria das falas. A pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa, tendo os participantes assinado um termo de consentimento livre e esclarecido. 1028
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artigos
As entrevistas tiveram duração média de sessenta minutos. O entrevistador, primeiro autor deste artigo, procurou cuidar, desde os primeiros momentos, do estabelecimento de clima de cordialidade, empatia e confiança entre entrevistador-entrevistado, evitando-se a adição de desconfortos de ordem intelectual ou afetiva, além dos já potencialmente intrínsecos à temática abordada. Procedeu-se à leitura das questões disparadoras que compuseram o roteiro de entrevista semidirigida de questões abertas (Turato, 2003; Morse, Field, 1995), técnica favorecedora de uma coleta de dados abrangente e profunda sobre representações e experiências profissionais e pessoais dos entrevistados. As falas foram integralmente gravadas e transcritas. As demais manifestações comportamentais interpretadas como relevantes foram registradas no diário de campo do pesquisador. A análise do material coletado procurou seguir os fundamentos dos passos metodológicos da fenomenologia (Sadala, 2004; Martins, 1992; Martins, Bicudo, 1989; Merleau-Ponty, 1971). Iniciou-se com escutas e leituras repetidas do material, associadas à postura de abertura aos fragmentos, correspondendo ao procedimento das “leituras flutuantes”, que favorecem o conhecimento das narrativas e a emersão de hipóteses compreensivas sobre os núcleos de sentido nelas presentes (Minayo, 2007; Bardin, s/d). Empreendeu-se, a seguir, um processo descritivo do que foi considerado como experiências apreendidas na consciência de cada entrevistado (Martins, 1992), objetivando-se refletir sobre esses conteúdos vividos, cujas expressões verbais, por vezes reveladoras de insights psicológicos, foram mantidas em sua forma original. Procurou-se, então, tematizá-los por meio da circunscrição de unidades de significado (Sadala, 2004), alvo de processo metodológico interpretativo de natureza ideográfica. Por fim, pôs-se em execução o processo nomotético de identificação das convergências das análises de cada entrevista, visando sistematizar e mostrar possíveis invariantes representadas pelas confluências das perspectivas dos sujeitos participantes (Sadala, 2004). Os autores participaram desse processo de análise, que favoreceu a verificação da hipótese inicial e, ao mesmo tempo, a aproximação racional dos fundamentos teóricos em que se apoiou o processo interpretativo.
Resultados Este artigo contempla, conforme explicitado, parte do que foi o projeto original de pesquisa, uma vez que o material dos depoimentos fornece outras discussões. Das três questões propostas, destaca-se a primeira delas, foco de nossa atenção neste artigo: Considerando que a literatura especializada indica a existência de quatro diferentes tipos de enfoques em ensino e pesquisa – sendo eles nomeados, respectivamente, como enfoques disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, o/a Senhor(a) poderia discorrer sobre as características de cada um desses enfoques e, além disso, tecer críticas pertinentes a cada um deles? Foram obtidos sete depoimentos no ano de 2008, com coordenadores(as) de PPG. Tinham, em média, vinte anos de vinculação institucional e faixa etária entre 45 e 55 anos. Tais relatos possibilitaram a elaboração de duas categorias, a seguir explicitadas.
Dificuldades justificadas pelas áreas de formação e de atuação Menções ao fato de se responsabilizarem por áreas de conhecimento à parte dos cânones das ciências humanas, por terem formação biomédica, estiveram presentes: “Minha formação é... mais assim... na área médica... mas... assim... ah... eu gostaria que você tivesse em mente que eu sou... [cita a especialidade médica] ... e muitas vezes partes dessas... eh... discorrer sobre esses assuntos... ah....não é muito fácil pra mim...”. [S2]
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Houve a assunção do fato de não se ter estudado, intencional e objetivamente, os referidos enfoques e abordagens, tendo as informações dessa natureza sido absorvidas a partir da informalidade de conversas com os pares: “Nunca estudei ....assim ...sistematicamente essas abordagens... sei por conversas informais com colegas...”. [S3]
Tal justificativa se apoia no esforço pessoal e no fato de a formação (em nível de pós-graduação) ter origem na área médica. Refere-se a uma busca individualizada, autodidática, ratificando – na opinião dos entrevistados – a condição fragmentária de sistemas institucionais de ensino para concretizarem iniciativas com efetivos níveis de trabalho coletivo na construção de propostas e de atividades cooperativas: “Então minha formação é assim... praticamente... autodidata... e assim, também em termos de formação profissional ...”. [S4]
Observou-se uma tendência ao redirecionamento do foco argumentativo, com alguns entrevistados buscando contraposição à questão proposta, valendo-se da indicação da tipologia do discurso da área qualitativa em comparação ao tipo de atividade ou linha acadêmica com a qual tinham maior afinidade, o que indica a assunção de uma postura aparentemente comum, reproduzida nas instituições de ensino, de dicotomizar abordagens quantitativas e qualitativas: “Bom... primeiro que é assim, embora exista na literatura, a gente tem que parar e pensar...; ...difícil o seu discurso... muito qualitativo... pra nós que somos quadradinhos...”. [S6] Os participantes demonstraram reconhecer suas tradicionais origens como sendo impeditivas para modificar posturas pessoais ou, mesmo, institucionais. O reconhecimento explícito de um dos sujeitos em relação à sua formação caracteristicamente disciplinar pareceu uma forma inicial de tomada de consciência, não demonstrando, entretanto, clareza em relação à dinâmica reprodutiva que sustenta essa tradição em seu próprio cotidiano de profissional de saúde, pesquisador e docente: “Eu vivi essa formação... muito limitada... disciplinar mesmo!... durante a minha formação acadêmica...”. [S7]
As noções sobre os enfoques disciplinar, multi, inter e transdisciplinar A tentativa de os entrevistados ampliarem suas considerações pessoais relacionadas às noções sobre os enfoques reforça as indicações, presentes na categoria anterior, de reconhecimento da dificuldade de trabalharem fora dos aspectos tradicionais contidos em suas próprias histórias de formação acadêmica: “O disciplinar, na minha opinião, é o muito mais confortável, que a gente domina...; ...e aí... fica fácil porque a gente não sai do nosso limite...”. [S2] “Ele [o disciplinar] está condicionado a um grupo de profissionais com a mesma formação e estarem trabalhando em um projeto cujo alcance temático fica restrito...”. [S3] “O disciplinar... ah... normal... foi... somos disciplinares... é o trabalho voltado para a disciplina... dentro da área de conhecimento...”. [S6]
A não-diferenciação entre os termos foi expressa de modo claro por alguns sujeitos:
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“Então quando você fala de disciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar ... é uma linguagem pouco usual na minha área, muito pouco usual...”. [S1] “O inter e o multidisciplinar... ah... confusão... penso que são as mesmas coisas...”. [S6]
Noutro momento, o S1 adquire uma suposta confiança na diferenciação das características entre dois dos enfoques; entretanto ele não chega a expressá-las e não tem clareza sobre elas, mas sua aparente segurança ao apresentar uma ‘noção correta’ (na verdade, bastante descontextualizada) já serve de base para criticar os pares no contexto acadêmico: “Disciplinar e interdisciplinar eu tenho bastante clareza... agora os colegas usam meio que como sinônimos, se você apertar mesmo, eles não sabem diferenciar...”. [S1]
A fragilidade argumentativa nas tentativas de explicitação dos pressupostos do enfoque multidisciplinar e nas considerações sobre as práticas ligadas a possíveis projetos, ou também aos que estão em execução, indica inconsistência epistemológica. A aparente postura de segurança e domínio da temática e de suas decorrências, como iniciativas para lidar com os desdobramentos e demandas desses mesmos projetos, deixa transparecer um posicionamento algo espontâneo ou improvisador, que não expressa as bases para o reconhecimento do paradigma com que se trabalha: “Sempre na nossa área está presente a multidisciplinaridade... trata do processo saúdedoença... uma série de saberes que compõem essa... esse cuidado... isso pra gente é meio comum”. [S2] “O enfoque multidisciplinar... é quando a pergunta que eu tenho não pode ser respondida... ah... só com as ferramentas que eu domino... então, eu convido um colega que eu acho que domina...”. [S3] “O multi... eu teria que buscar a psiquiatria, a cardio... pra resolver as questões na minha área, né? (nome da área/programa). ...Extrapola um pouquinho, indo pro multi...”. [S5]
Apesar da farta veiculação das expressões ‘interdisciplinar” e “interdisciplinaridade’ em âmbito pedagógico, pode-se inferir uma real dificuldade para explicitarem suas noções definidoras sobre os fundamentos do enfoque interdisciplinar: “E... o interdisciplinar, que na nossa área aqui... é a necessidade de dialogar com outros saberes, não só com outros saberes, mas com outras áreas e outros profissionais... outras formas de explicar...”. [S2] “Eu poderia ficar pensando pra você... interdisciplinar...; ...então eu preciso do projeto e, pra responder à minha pergunta, eu preciso de um outro conhecimento... de uma outra pessoa... aí nós fazemos uma associação...; ...mas o nome científico disso... eu não sei... o que me interessa é o resultado que vai dar...”. [S4]
Os entrevistados tenderam, inicialmente, a não explicitar noções sobre enfoque transdisciplinar, tendo sido necessário instá-los. Falas concernentes à transdisciplinaridade variaram, partindo de uma franca postura de desconhecimento sobre a expressão: “A transdisciplinaridade?... ah... a transdisciplinaridade... eh... não sei muito bem o que que é... o processo de ir e vir do conhecimento... ah... estou conjecturando...”. [S2] “O trans... eu acho que extrapolaria qualquer disciplina mesmo... que extrapolaria muito... sei lá... eu não sei se está bom...”. (risos) [S5]
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“Agora... a transdisciplinaridade... o transdisciplinar... é isso eu não sei bem... ah... quando transcende...’”. [S6]
O que foi expresso sobre esse enfoque associou-se notavelmente também a noções ligadas à produção de mercadorias, equipamentos, patentes, com intenções comerciais e/ou tecnológicas de inovação material: “O que vai ajudar o paciente é uma visão que se tem agora... transdisciplinar... nós temos trabalhado com o instituto de química, a engenharia de materiais, a biologia molecular, gerando novos materiais e patentes...”. [S7]
Como últimos destaques, mencionam-se as referências a posturas e fazeres representativos de noções teórico-epistemológicas sobre como se identificarem resultados transdisciplinares no cotidiano socioinstitucional: “Acho que, por exemplo, quando o jornalismo quer divulgar alguns conhecimentos científicos...”. [S6] “E por que que nós estamos chamando de transdisciplinar? Porque eles [outros pesquisadores envolvidos em um mesmo projeto] estão entendendo o que nós estamos falando, nós estamos entendendo o que eles estão falando ...eu não estou fazendo a minha parte e encaminhando o paciente... [referindo-se a ações isoladas]”. [S7]
Discussão As categorias aqui formuladas partiram de fundamentos epistemológicos validados por questionamentos da objetividade do conhecimento (Marx, Engels, 1987; Weber, 1977; Mannheim, 1968) e pela crítica ao papel dos intelectuais e instituições que autorizam os regimes de verdade e poder (Bourdieu, 1983; Bourdieu, Passeron, 1982). Partiram, também, de investigações referentes à validação de discursos, a partir dos quais indivíduos e grupos distinguem o verdadeiro do falso, assumindo, consequentemente, um correspondente poder (Foucault, 1986, 1985, 1981). As considerações de Freidson também serviram de ponto de confirmação dos resultados sociais das práticas reproduzidas nos ambientes profissional-técnico e acadêmico-científico, ainda que tenha pesquisado a dinâmica profissional médica sob outros objetivos (Freidson, 2009). Foram observadas recorrentes justificativas dos entrevistados frente às dificuldades que reconheceram possuir quanto aos significados dos diferentes tipos de enfoque que embasam a questão norteadora. Apresentaram variações, porém se configurariam, ao olhar dos autores, como racionalizações defensivas de possíveis ansiedades frente à problemática via de regra pouco conhecida. Solicitados a se colocarem sobre questões que consideraram ‘não dominar’, e sentindo-se responsáveis pelo processo de formação de pesquisadores, revelaram importante angústia ao constatarem não conseguir se manifestar quanto aos fundamentos processuais de ensino utilizados em seus PPG. A assunção do fato de não terem adquirido conhecimentos – intencional e objetivamente – sobre os referidos enfoques e abordagens, deixando que informações dessa natureza fossem absorvidas ‘apenas’ por transmissão oral e informal em conversações com os pares – compõe um quadro que ratificaria a hipótese inicial deste trabalho. A percepção da insuficiente representação dos fundamentos teórico-epistemológicos e da reprodução do enfoque disciplinar em seus cotidianos institucionais parece ser admitida como ponto de equilíbrio e normalidade do sistema de ensino que coordenam. Embora aparentemente não intencional, o fazer “normal”, presente na fala “normal... foi... somos disciplinares... é o trabalho voltado para a disciplina... dentro da área de conhecimento...” [S6], incita a uma digressão quanto à normalidade da ciência (ou ciência normal) (Kuhn, 2003). 1032
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Extrapolando a compreensão de tal conceito para o contexto do ensino de práticas científicas, os informantes sugeriram exercer um ‘ensino normal’ e por ele advogar, embora tal prática se demonstre insatisfatória para se avançar no conhecimento de variados problemas de pesquisa, anunciando as ditas anomalias e crises, conforme as expressões de Kuhn (Kuhn, 2003). Os resultados indicam a existência de um certo consenso entre os entrevistados sobre a conveniência da continuidade da tradição disciplinar na qual foram educados, tendo como justificativa a dificuldade para se trabalhar além das perspectivas do modelo ou da lógica disciplinarizante. Os próprios termos que expressam as alternativas ao disciplinar (inter e transdisciplinar) mostram-se ainda sendo incorporados a seus vocabulários. Ao se considerar o uso desses termos pelos participantes da amostra estudada, dir-se-ia que veiculam, antes, significados simbólicos do que icônicos. Utilizando a terminologia da teoria das representações sociais (Moscovici, 1978), útil nesta discussão, já que os resultados configuraram uma contraposição de dois universos simbólicos, o universo reificado dos epistemólogos se contrapõe ao universo consensual dos entrevistados, embora, a priori, fosse esperado que estes últimos fossem parte da audiência qualificada das teorizações epistemológicas. Em alguns relatos, foram observadas ancoragens conceituais num dos sentidos mais familiares do termo disciplina – especificamente no sentido de “matéria” ou “assunto escolar”. Já a expressão-conceito transdisciplinar revelou-se ainda mais distante do universo epistemológico em questão, configurando-se, por isso mesmo, no contexto investigado, como possibilidade irrealizável, utópica – pelo menos num futuro próximo, pensam os autores. Pontos considerados presentes na amostra, quanto aos enfoques de ensino e pesquisa, foram: dificuldades teóricas, embora possivelmente compreendam e utilizem intuitivamente os conceitos; percepção de sua utilidade; possível conformismo diante dos entraves de se implantarem mudanças, em nível atitudinal. Como contraponto à discussão feita até aqui, e ainda na busca de possíveis ancoragens utilizadas pelos entrevistados na incorporação dos conceitos de inter e transdisciplinaridade, foram chamativas as recorrências, em suas falas, de aspectos de suas práticas clínicas enquanto profissionais de saúde. A despeito da fragilidade argumentativa nas tentativas de explicitação de seus pressupostos, utilizaram-se de imagens e ideias de um objeto de estudo que pode ser visto como tipicamente complexo, ou seja, pessoas que a eles recorrem enquanto clínicos, em busca de tecnologias multidimensionais (envolvendo entrevistas, exames físicos, elaborações preventivas, diagnósticas, prognósticas, terapêuticas etc.). A prática clínica, e paradigmaticamente a Medicina, é área em que a complexidade do objeto ‘ser humano’ se expressa agudamente. Nesse sentido, os entrevistados se expressaram quanto a: encaminhar pacientes, ser um clínico, aderir a tratamentos e prevenções, bem como a interconsultoria entre especialistas médicos. Tal pode ser visto como saberes práxicos, que “pra gente é meio comum” [S2, referindo-se ao processo de saúde-doença-cuidado]. Assim, a despeito das insuficiências teóricas quanto aos conceitos pesquisados, os entrevistados permitem inferir que dispõem de atributos atitudinais e suficiências práxicas da dimensão clínica, resultante tecnológica última dos saberes desenvolvidos nas iniciativas que coordenam.
Considerações finais O conjunto de fundamentações teórico-epistemológicas oriundas das obras de pensadores que demarcam as preocupações do universo da Sociologia do Conhecimento, somado ao exercício cotidiano de estimular uma ação crítica pautada em perspectivas praxiológicas que procuram operar transformações dentro dos ditames do chamado novo paradigma ou paradigma emergente, favoreceram a coleta de depoimentos suficientes para se reconhecer a existência de fragilidades na forma de compreender, em níveis consequentes e ideais, as atuais tendências pedagógicas e enfoques em ensino e pesquisa. Não obstante as diferenças entre objetivos, eventos históricos e objeto de análise nas obras referenciadas, há convergências em seus posicionamentos quanto ao papel dos intelectuais e às possibilidades propiciadoras de melhores níveis de emancipação daqueles que compõem o universo acadêmico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1025-38, out./dez. 2011
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Os enunciados constatados nas entrevistas apontam a continuidade de sistemas de ensino que validam uma lógica tradicional e disciplinarizante. Dessa forma, ainda que não se consiga verificar a ação individual dos participantes por meio das entrevistas, infere-se que favoreçam limitações técnicoprofissionais. Em nível racional, entende-se que há um delineamento precário de sistemas complexos operantes nos cuidados com o humano, em particular nos processos de adoecimento da pessoa. Os dados ratificam a percepção das dificuldades sociais e a manutenção de níveis insuficientes de ação política diante da perpetuação de práticas que dirigem a construção de novos conhecimentos científicos. Na revisão etimológica e semântica e de elementos críticos sobre a história da ciência, fecha-se esta reflexão lembrando que Morin já notava a palavra disciplina como originalmente designativa de um objeto de ‘autoflagelação’ e que permitia, portanto, a autocrítica (Morin, 2000b). Metaforicamente, é possível, hoje, perceber o flagelo dos sujeitos da aprendizagem e dos especialistas que se aventuram em esforços de pesquisas fora de sua estrita área de formação e titulação. Como consequência, tem-se que tais fatos se perpetuam através de posturas disciplinarizantes que, no máximo, podem ser consideradas como representantes do enfoque multidisciplinar (Castro, 2006). Diante da experiência acadêmica da categoria profissional da qual os entrevistados fazem parte (são formadores com responsabilidades múltiplas: docência em cursos de graduação e pós-graduação, liderança de grupos de pesquisa, gestão direta ou indireta de políticas públicas articuladas) e diante de suas vocações expressas na escolha de profissões que, de forma modelar, lidam com objetos complexos, pesquisas como esta devem ser sensibilizadoras para um aprimoramento cotidiano de competências direcionadas à materialização de perspectivas epistemológicas mais integrativas e integradoras. Para o enfrentamento intelectual das questões epistemológicas relativas aos problemas de pesquisa complexos, típicos dos objetos médicos, parece indicada uma progressiva ancoragem pedagógica e conceitual nos mesmos fundamentos da lógica de pensamento complexo que, ao menos em tese, já é constituinte da boa prática clínica.
Colaboradores José Renato Gomes Castro foi o responsável pela concepção da pesquisa, coleta de dados, planejamento e execução tanto da análise quanto do processo interpretativo dos dados, e a redação do primeiro texto; participação nas revisões subsequentes e aprovação da versão final. Bruno José Barcellos Fontanella participou do processo interpretativo dos dados, da revisão crítica do primeiro rascunho, da organização das versões subsequentes do texto e da aprovação da versão final. Egberto Ribeiro Turato participou do processo interpretativo dos dados, da revisão crítica das várias versões do texto e da aprovação da versão final do manuscrito. Referências ALMEIDA, M.J. A educação médica e as atuais propostas de mudança: alguns antecedentes históricos. Rev. Bras. Educ. Med., v.25, n.2, p.42-52, 2001. ASSMANN, H. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2001. ______. Metáforas novas para reencantar a educação. Piracicaba: Unimep, 1996. AYRES, J.R.C.M. Interpretação histórica e transformação científica: a tarefa hermenêutica de uma teoria crítica da epidemiologia. Rev. Saude Publica, v.28, n.4, p.311-9, 1994. BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, s/d. BOFF, L. O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
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Palabras clave: Programas de pos-graduacion en salud. Enseñanza. Investigación. Epistemologia. Paradigma. Recebido em 26/07/10. Aprovado em 11/11/10.
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artigos
O ensino de pediatria na atenção básica em saúde entre as fronteiras do modelo biomédico e a perspectiva da integralidade do cuidado: a visão dos médicos supervisores *
Alice Yamashita Prearo1 Agueda Beatriz Pires Rizzato2 Sueli Terezinha Ferreira Martins3
PREARO, A.Y.; RIZZATO, Á.B.P.; MARTINS, S.T.F. Pediatrics teaching in primary heath care between the boundaries of the biomedical model and the perspective of integrality of care: the view of the supervisor doctors. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1039-51, out./dez. 2011. This is a study on medical education that focuses on pediatrics teaching in primary care. The aim is to analyze the contribution of the discipline of Social and Community Pediatrics in the 4th year of the Medicine undergraduate course at the Botucatu Medical School, Universidade Estadual Paulista. This qualitative research was based on a case study. The analysis was grounded on the social-historical approach, according to Vygotsky’s studies. We found out what the supervisors considered to be relevant learning to their contribution to the mediation process so that students can learn about work at primary health care, something that they would not be able to reach by themselves. The interviews with the doctors revealed signification nuclei which are common to all these actors: the importance of the diversification of teaching scenarios, learning the main health problems, integral childcare with emphasis on the bond, and the student’s opportunity to learn about health promotion.
Keywords: Medical education. Pediatrics. Primary health care. Case studies.
Trata-se de estudo sobre educação médica, focalizado no ensino de pediatria na atenção básica, com o objetivo de analisar a contribuição da disciplina de Pediatria Social e Comunitária no 4º ano de graduação em medicina da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista.Utilizou-se metodologia qualitativa de pesquisa, tendo como estratégia o estudo de caso. A análise foi fundamentada na abordagem sóciohistórica, subsidiada pelos estudos de Vigotski. Identificou-se o que os supervisores consideraram como aprendizados relevantes a sua contribuição no processo de mediação para que os estudantes aprendam sobre o processo de trabalho na atenção básica, o que não poderiam alcançar sozinhos. As entrevistas transcritas revelaram núcleos de significação comuns: importância da diversificação de cenários de ensino, aprendizado dos principais problemas de saúde, integralidade no atendimento da criança, com ênfase no vínculo e oportunidade do estudante aprender sobre promoção da saúde.
Palavras-chave: Educação médica. Pediatria. Atenção primária à saúde. Estudos de caso.
Elaborado com base em Prearo (2007). 1 Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). Distrito de Rubião Júnior s/n. Botucatu, SP, Brasil. 18.618-000. btalice@fmb.unesp.br 2 Departamento de Pediatria, FMB/Unesp. 3 Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, FMB/Unesp.
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Introdução A diversificação de cenários na educação dos profissionais da saúde é uma tendência destacada nas diretrizes curriculares do curso de Medicina (Brasil, 2001). Entretanto, vários autores têm enfatizado que a mudança de cenário simplesmente não garante a formação de um profissional capaz de reconhecer e atuar considerando as necessidades de saúde da população (Pontes, Rego, Silva Júnior, 2006; Bulcão, 2004; Garcia, 2001; Feuerwerker, 1998). Assim, evidencia-se a importância de estudos que sinalizem o que é necessário, do ponto de vista do ensino médico, para se alcançarem transformações no perfil do profissional de saúde que se está formando. Campos (2005), ao apresentar um documento preliminar para discutir diretrizes para o ensino médico na rede básica de atenção primária à saúde em todas as regionais da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), sustenta que, na Atenção Básica à Saúde (ABS), deveriam ser resolvidos 80% dos problemas de saúde da população. Segundo o autor, colocam-se, para a ABS, três funções importantes: o acolhimento à demanda; a busca ativa com avaliação de vulnerabilidade, e a clínica ampliada que leva o profissional a intervir sobre a dimensão biológica ou orgânica de riscos ou doenças. Devem-se considerar não só as dimensões sociais bem como as da subjetividade e da saúde coletiva, realizando procedimentos de cunho preventivo e de promoção à saúde, no seu território. Em estudo da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) sobre o ensino de pediatria em escolas de medicina da América Latina, com participação de 194 faculdades ou escolas de medicina, Puga e Benguigui (2003) recomendam aumentar a prática que o aluno realiza fora do hospital, incluindo práticas sociais, comunitárias e em nível primário de atenção. A ampliação do tempo desta prática justifica-se pelo fato de permitir ao aluno aprender sobre o processo de atenção de forma integrada, incluindo aspectos de prevenção e promoção da saúde. Tendo em vista a prática de ensino do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, UnespBotucatu, em atenção básica desde 1994, com apoio da literatura acima citada e sob a luz das recomendações da OPAS e ABEM, o presente trabalho analisou a contribuição da disciplina de Pediatria Social e Comunitária para um ensino, na graduação, que se destina à integralidade do cuidado na Atenção Básica à Saúde.
A disciplina de Pediatria na Comunidade – o caso em estudo Desde sua implantação, em 1963, a Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) vem aprimorando e promovendo o diálogo entre a universidade, a comunidade e os serviços de saúde, formando profissionais e realizando estudos que contribuam para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde oferecidos à população e para a transformação social (Cyrino, 2005). A integração do aluno de graduação em pediatria fora do ambiente do Hospital Escola e de seus ambulatórios iniciou-se em 1994, quando passou a ter alunos do 4º ano de Medicina atuando em Unidades Básicas de Saúde Municipais, de forma contínua, com supervisão dos médicos pediatras dos serviços (aqui denominados médicos supervisores) e coordenação de docente do Departamento de Pediatria. São pequenos grupos de sete a oito alunos, distribuídos em três Unidades Básicas de Saúde (UBS), participando do atendimento à criança e ao adolescente, e realizando atividades com a Equipe Multiprofissional de Saúde Escolar do Município de Botucatu que atua junto à comunidade em programas de Educação em Saúde. Os médicos pediatras, que, desde o início, se dispuseram a receber alunos nas UBS Municipais, eram, em sua maioria, profissionais formados pela Faculdade de Medicina de Botucatu. Todas as atividades a serem desenvolvidas foram previamente discutidas e, posteriormente, construídas, respeitando-se a opinião dos profissionais da rede de serviços de saúde e representantes da comunidade - atitude essa presente nos discursos oficiais, mas de difícil execução prática.
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Pressupostos teóricos Este estudo teve, como um dos referenciais teóricos, a pedagogia histórico-crítica formulada por Saviani (2000) que, segundo o próprio autor, é a articulação de uma proposta pedagógica que tenha o compromisso não apenas de manter a sociedade, mas de transformá-la a partir da compreensão dos condicionantes sociais e da visão de que a sociedade exerce determinação sobre a educação e esta, reciprocamente, interfere sobre a sociedade, contribuindo para sua transformação. Para a compreensão do papel do médico supervisor e do aprendizado do estudante num cenário de ensino diversificado, a Unidade Básica de Saúde, buscou-se a contribuição da perspectiva sócio-histórica de Vigotski (2001, 1995), que vem sendo utilizada também no campo da Educação Médica, por seus conceitos de mediação, processo de desenvolvimento e de aprendizagem a partir do trabalho profissional.
Objetivo geral Analisar a experiência educacional desenvolvida pela disciplina de Pediatria Social e Comunitária, na Atenção Básica, no 4º ano da Faculdade de Medicina de Botucatu.
Objetivo específico Analisar os significados atribuídos pelos médicos supervisores de estudantes em relação aos objetivos da disciplina e aos aspectos relevantes a serem vivenciados pelos estudantes na comunidade.
Métodos Foi empregada a metodologia qualitativa de pesquisa, tendo como estratégia o estudo de caso (Yin, 2001), uma escolha determinada pela adequação ao tipo de questão do estudo, de cunho educacional, no campo da formação de profissionais de saúde. A entrevista representa um instrumento básico de coleta de dados dentro da pesquisa qualitativa, sendo um dos principais utilizado nas pesquisas sociais, pelo seu caráter de interação entre pesquisador e pesquisado (Lüdke, André, 1986). Existem várias modalidades de entrevista, mas a semiestruturada foi a escolhida no estudo, pois possibilita, ao entrevistado, discorrer sobre o tema proposto com certa liberdade e, ao pesquisador, fazer adaptações para abordar suas hipóteses ou pressupostos (Thiollent, 1987).
População-alvo O público-alvo foi constituído de sete médicos supervisores dos alunos em Centros de Saúde e Unidades Básicas de Saúde, com, no mínimo, quatro anos de experiência de ensino de graduação.
Instrumentos e procedimentos de coleta de dados As entrevistas foram realizadas pela própria pesquisadora, gravadas com autorização dos entrevistados e transcritas por profissional treinado. Após a transcrição, o material foi lido pelos entrevistados, que aprovaram os textos.
Procedimentos de análise dos dados Os materiais estabelecidos para serem analisados, dentro de uma proposta de pesquisa qualitativa, foram as entrevistas e os documentos existentes sobre a disciplina. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1039-51, out./dez. 2011
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Inicialmente, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo de Bardin (1977). Segundo a autora, a primeira etapa é a descrição e a enumeração das características do texto, resumida após tratamento. A segunda etapa é a interpretação e a significação concedida a essas características. A inferência (dedução lógica) é o procedimento intermediário que permite a passagem explícita e controlada da descrição à interpretação. Na pré-análise, foram realizadas várias leituras flutuantes das transcrições das entrevistas, buscando uma familiarização com as mesmas e seguindo as orientações de Aguiar (2000) e Aguiar e Ozella (2006). Outra fase da análise foi a leitura que possibilitou um agrupamento de pré-indicadores, pela similaridade e pela complementaridade ou contraposição. Nesse sentido, Aguiar e Ozella (2006, p.8), citando Vigotski, relatam que “quando diversas palavras se fundem numa única, a nova palavra não expressa apenas uma idéia de certa complexidade, mas designa todos os elementos isolados contidos nessa idéia”. Essa afirmação reforça o que se observou quando, foi possível, a partir dos pré-indicadores, avançar para indicadores. Esses são importantes para que seja possível identificar conteúdos que revelem a essência dos sujeitos. Esta fase é a análise propriamente dita, em que é possível identificar as contradições que acontecem, os sentidos e significados que vão se revelando nas falas - é o momento da construção dos núcleos de significação.
Aspectos éticos O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
Resultados e discussão A visão dos médicos que participam do curso Caracterização dos médicos pediatras supervisores dos estudantes Dos médicos que participavam da supervisão de estudantes do quarto ano em UBS e no Centro Saúde-Escola (CSE), sete foram entrevistados. Dentre eles, três têm recebido alunos desde 1994 e puderam, assim, relatar sobre o curso de Pediatria Social e Comunitária do Departamento de Pediatria desde seu início. A análise das falas dos médicos permitiu identificar núcleos de significação, dos quais foram selecionados os mais representativos para os profissionais que atuavam com estudantes na comunidade. . a importância da diversificação de cenários de ensino, como base para o aluno vivenciar as principais necessidades de saúde da população; . a importância do perfil do supervisor que identifica, na relação universidade, serviços e comunidade, um espaço de aprendizagem; . a importância do aprendizado centrado na prática cotidiana em atenção básica; . o aprendizado dos principais problemas de saúde; . a experiência na comunidade como oportunidade para vivenciar a complexidade da atenção primária; . a integralidade no atendimento da criança. A atenção básica na comunidade foi identificada pelos supervisores como um outro cenário, que não o hospitalar, onde o estudante pudesse aprender o que acontece na comunidade e como a população lida com problemas reais. O primeiro núcleo de significação que surgiu das falas dos médicos foi “a importância da diversificação de cenários de ensino, como base para o estudante vivenciar as principais necessidades de saúde da população”:
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Ao ressaltar a necessidade de conhecer outros cenários que não o hospital, o médico 7 enfatiza, ainda, a importância de o estudante entrar em contato com as principais necessidades de saúde da população, relembrando que, na sua própria formação, não vivenciou esse tipo de oportunidade. “A gente se formou praticamente sem ter noção do que... De como a população vive [...] Quais são as intercorrências, quais são os problemas que uma comunidade enfrenta e que você vai enfrentar depois que você se forma. [...]”. (médico 7)
Autores como Mendes, Silva, Moysés (1996, p.425), ao discutirem sobre a especificidade do ensino na Atenção Primária e junto à Comunidade, destacam que o mais importante não é a mudança simples de cenário, mas, sim, de objetivos educacionais [...] o objetivo fundamental é organizar a reflexão sobre o trabalho médico, tendo a clínica como fio condutor. A especificidade do atendimento médico nos Centros de Saúde aparece, então, como problema em aberto, problema que vai ser enfrentado pela constante experimentação de modos de trabalho do médico nesses serviços.
Outro tema presente no discurso de todos os médicos, constituindo o segundo núcleo de significação, foi a “importância do perfil do supervisor, que identifica, na relação universidade, serviços e comunidade, um espaço de aprendizagem” - sendo destacada a relevância de ele conhecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e seus programas, a comunidade onde trabalha, as possibilidades de cada área, além de perceber a importância da experiência em atenção primária: “Ele tem que conhecer todos os programas que têm na rede... pra você conseguir orientar o que pode ser feito e o que está sendo feito [...] E eu acho que um outro ponto importante é conhecer a comunidade que ele vai trabalhar”. (médico 2)
Em relação ao perfil de supervisor, pode-se recorrer ao trabalho de Batista e Silva (1998), que, ao investigarem os atributos de um bom professor em saúde, identificaram, entre outros, aqueles vinculados à dimensão do domínio científico da área em que atua: saber o conteúdo, pesquisar os assuntos abordados na disciplina, atuar na prática assistencial; ter experiência como profissional de saúde. Nesse sentido, os supervisores de estudantes de pediatria, do presente trabalho, também apontam o valor da experiência profissional e o saber fazer na prática. “O conhecimento que a gente tem é um conhecimento da prática do dia-a-dia [...]. Eu acho que é o compromisso de estar crescendo junto [...]. Se eu não tiver compromisso com o aprendizado, eu acho que não dá pra ser supervisor”. (médico 5)
São valorizadas neste estudo, e também por autores como Batista e Silva (1998), as atitudes do supervisor perante o estudante: saber ouvir, respeitar, incentivar o estudo, estar disponível para dúvidas, ter paciência com o não-saber do aluno, estimular a pesquisa. São atitudes que aparecem na fala de um dos médicos supervisores: “Na segunda semana, você precisa ter a percepção de que você precisa conversar com eles: “olha, vocês são ótimos, mas vocês precisam estudar mais. Vocês estão esperando que eu dê tudo. Quer dizer, eu posso discutir ou não, mas eu percebo que eles estão estudando”. (médico 5)
Como se trata de supervisores clínicos, há os que destacam a postura frente ao usuário, valorizando a ética, o respeito:
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“Agora, como é que tem que ser essa pessoa? [...] Aberta, disposta a olhar, disposta a se abrir, disposta a... Realmente, olhar cada pessoa que entra pra consultar com você como outra pessoa. Cada pessoa é uma pessoa. Que tem um nome, né?”. (médico 7)
Portanto, a supervisão de um médico que está inserido na atenção básica de saúde, que se mostra atento, atuando como mediador para que o aluno aprenda, problematizando as questões identificadas na prática diária, estimula e favorece a inserção do estudante no trabalho médico. Menin e Menin (2006) valorizam a variabilidade de experiências de aprendizagem que a comunidade oferece, capaz de produzir mudanças nos estudantes, professores e supervisores no processo de ensino-aprendizagem. Garcia (2001), ao discutir a importância da aproximação do estudante do cotidiano do trabalho do profissional de saúde na atenção primária, cita Góes, que utiliza o referencial de Vygotsky, definindo educar como: “[...] o educar se realiza através de mediações entre sujeitos (dimensão pedagógica) e entre discursos (dimensão discursiva), em situações experimentadas. O trabalho tem por função permitir esta mediação entre sujeitos e seus discursos, em ação, tornando as vivências de aprendizado significativas” (Garcia, 2001, p.91). Reforçando esses aspectos relacionados com a importância do trabalho, da exposição do estudante a uma situação na comunidade com possibilidades de mediações entre estudante-supervisor, estudantemãe-criança ou estudante-profissional de saúde, percebe-se melhor o potencial que representa especificamente esse cenário. Pois ele oferece diferentes situações de aprendizado, distintas daquelas próprias da academia, ou do ambiente hospitalar ou, ainda, do ambulatório de especialidades. Para se compreender o papel do professor na comunidade, é essencial observar que, quando o aluno chega à UBS, ele apresenta o que Vigotski (2001) chamou de “nível de desenvolvimento atual” em relação aos vários aspectos considerados relevantes para a sua formação nesse cenário, para os quais já possui uma relativa autonomia para realizá-los (por exemplo, abordagem inicial da mãe). Ao mesmo tempo, o estudante não possui ainda autonomia para realizar várias outras tarefas, necessitando da colaboração de outras pessoas - o que o autor nomeou como “zona de desenvolvimento próximo ou imediato”. São processos que se encontram em desenvolvimento e precisam ser estimulados. Nesse contexto, qual seria o papel do médico supervisor? Possibilitar, como mediador, que a aprendizagem do aluno, na comunidade, seja mais eficaz do que aquela possível se estivesse sozinho, criando condições para que o estudante se desenvolva prospectivamente. O terceiro núcleo de significação é o da “importância do aprendizado centrado na prática cotidiana em atenção básica”. Esse aprendizado foi dos mais salientados pelos médicos. Um deles destaca os diferentes momentos de aprendizagem como: o aprender a dinâmica da UBS, que é bastante complexa, além dos problemas de saúde mais frequentes; e a prevenção e promoção da saúde; conhecer a postura do estudante em relação ao serviço público; otimizar a relação estudante-usuário, e, por fim, incorporar uma visão integral da família e da criança. Em relação à aprendizagem centrada na prática, os médicos assim se expressaram: “você consegue aprender lá no posto de saúde. Tem puericultura e tem as doenças que exigem bastante retornos, assim... E alguns alunos pegam, assim, a evolução das doenças. [...] E dá pra aprender em cima do caso, né?”. (médico 3)
Nos momentos de aprendizagem, cita-se o aprendizado da dinâmica de trabalho: “Primeira coisa, quando o aluno chega, é conhecer a unidade. Onde fica a pós-consulta, onde fica a pré-consulta, onde fica o arquivo... A assistente social, onde fica a cozinha, né? Onde fica a inalação... [...] Primeira coisa, eu explico é o funcionamento [...]. Pra eles verem todos os passos que o paciente faz dentro da unidade básica de saúde”. (médico 1)
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Sabe-se que, no dia a dia, com o tempo, em qualquer local de trabalho, o ser humano consegue aprender. O conhecimento do cotidiano da unidade de saúde, as tarefas ali desenvolvidas são, portanto, os primeiros passos para que o estudante perceba a realidade deste cenário de aprendizagem e de cuidado. O trabalho em uma UBS, desenvolvido no cotidiano, segue alguns princípios. Nessa pesquisa, aprofundou-se como se dá esse aprendizado. A percepção, através da sensorialidade, pode estimular a atenção, o raciocínio, os sentimentos. Desse modo, a orientação do educador pode favorecer o desenvolvimento do indivíduo. Nesse sentido, Leontiev (1996), na mesma perspectiva de Vigotski (2001), afirma que o psiquismo é um produto da experiência sócio-histórica humana. Ele está determinado pelas condições sociais nas quais vivem os indivíduos concretos, isto é, reproduz certas características da realidade material e social com a qual esses indivíduos interagem. O autor afirma, ainda, que, na base do desenvolvimento dos significados e sentidos, está o conteúdo sensível (sensações, imagens de percepção, representações). Deste modo, como a vida cotidiana se constitui numa esfera do ser social, pode-se dizer que o psiquismo humano, de forma geral, sintetiza ou reproduz certas características da cotidianidade. Em suma, pode-se, então, falar em determinadas formas de pensamento, sentimento e ação tipicamente cotidianos (Rossler, 2004). Para entender, também, o aprendizado baseado na prática, a teoria da vida cotidiana de Agnes Heller tem sua contribuição. Para Heller (1989,1984), a formação dos indivíduos começa sempre nas esferas da vida cotidiana. Esse processo de formação se inicia já no momento de seu nascimento e da inserção no universo cultural humano, e se estende por toda a vida. Portanto, para aprender sobre atuação na atenção básica é preciso vivenciar essa experiência cotidiana. Entre as várias características do cotidiano, destaca-se aquela que pode contribuir na compreensão do trabalho em uma Unidade Básica de Saúde, enquanto aprendizado, para quem, na vida profissional, irá atuar nessa mesma prática. Esta característica do aprendizado no cotidiano é a imitação, quando o estudante vivencia diferentes formas de os pediatras se comunicarem com as mães em situações de consulta. A imitação permite aprendizados sobre anamnese e exame físico, como destacado por outro médico: “Puericultura: a gente vai fazer o atendimento, a gente vai ver como é que tira a história, como e o que é que a criança come, o que é que a gente orienta, como é que está o desenvolvimento, como é que a gente examina. Então ele vai fazer, hoje, uma puericultura de bebezinho. Amanhã, outra puericultura. No primeiro dia, ele vai com medo de pegar o nenezinho. Não sabe como é que faz o exame neurológico. No final do último... Do mês, ele já está com uma prática boa de fazer avaliação de desenvolvimento neurológico”. (médico 5)
Observa-se que o aprendizado, no dia a dia, depende de diferentes variáveis, de diferentes características do cotidiano, sintetizadas no dizer de Schraiber (1998, p.384): Quando falamos do exercício de aplicar o conhecimento no cotidiano ou mesmo o de praticar técnicas aprendidas na escola, estaremos diante daquela parte da prática em saúde que trata da relação do profissional com a biodiversidade dos fenômenos em saúde e que se perpassa com a diversidade da vida social. Assim, como é freqüente se dizer que cada caso de paciente é um caso, diz-se que o caso típico só aparece nos livros e que na prática profissional todos os casos sempre se apresentam com variações da norma. Para o médico o saber da ciência é importante, mas principalmente como converter tudo isto no saber operante, como comunicar isto ao paciente, ouvindo e acolhendo suas dúvidas e angústias. Outro núcleo de significação destacado pelos médicos supervisores aponta “O aprendizado dos principais problemas de saúde” como fundamental no ensino na atenção básica, constituindo-se no quarto núcleo de significação.
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“Então um aluno, na unidade básica de saúde, ele pode ver as doenças comuns que aparecem todos os dias e que podem ser tratadas [...] Casos também, doenças com um pouco de mais complexidade que podem ser atendidas e acompanhadas num posto”. (médico 1)
Na análise documental dos programas da disciplina de Pediatria Social na Comunidade, é destacado o aprendizado dos problemas mais prevalentes de saúde da criança. Como o ensino na UBS é realizado no atendimento da demanda, espera-se que o estudante entre em contato, conheça e valorize os casos de puericultura e as doenças de maior frequência, bem como sua prevenção. Os espaços do hospital universitário e dos ambulatórios de especialidade, ao cumprirem seu papel de centro de referência para o sistema de saúde vigente, deixaram de ser os locais adequados para o ensino das doenças prevalentes, pois neles são atendidos os usuários cujos problemas de saúde necessitam de um arsenal tecnológico e de profissionais cada vez mais especializados. Campos (1999) destaca que o Brasil precisa dos hospitais terciários, mas esses são inadequados para o ensino de graduação de Medicina e Enfermagem. São serviços ótimos para a residência, pósgraduação e realização de pesquisa de ponta. Mas não estariam, segundo o autor, servindo para formar médicos com capacidade e responsabilidade clínica integral. Marcondes (1998), em editorial da revista Pediatria (São Paulo), destacava que, em estudo envolvendo 19 escolas médicas do estado de São Paulo, o ensino da atenção primária estava presente em sete escolas das nove que responderam ao questionamento. Os departamentos mais envolvidos eram os de Medicina Preventiva e Pediatria. Afirmo que o pediatra é um médico diferente de qualquer outro profissional de Medicina. Trabalhando com crianças e mães, eles têm uma enorme percepção sobre os fatores ambientais e relações humanas. Lidando com pessoas em crescimento e desenvolvimento, os pediatras enfatizam a Medicina geral e têm uma atenção aguçada para o preventivo na sua prática médica. (Marcondes, 1998, p.171)
É do senso comum a concepção de que, na unidade básica, só existem casos e situações simples, o que não corresponde à realidade, e os médicos supervisores fizeram essa constatação, que se constituiu no quinto núcleo de significação, o da “experiência na comunidade como oportunidade para vivenciar a complexidade da atenção primária”. “A complexidade da inter-relação que existe entre a queixa física que a criança vem apresentando e a relação desta criança, deste pacientinho com a comunidade, com a família, com a escola, ou... A relação disso com a forma como os pais estão experimentando a sua situação naquela mesma época... O que é que está acontecendo dentro da família... Como é que a criança está se desenvolvendo...”. (médico 7) “É de outra natureza as queixas que vêm pro consultório na comunidade. É um ser humano se expressando em toda a sua extensão, toda a sua totalidade”. (médico 7)
A citação acima é um exemplo de que aquela falsa ideia de apenas “casos simples” precisa ser problematizada. Seja através da vivência do estudante nesse cenário, além do aprimoramento de sua capacidade de escuta, de observação e das discussões com os supervisores, que reconhecem essa complexidade e buscam mostrá-la. Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) explicitam como o conceito de atenção primária tem sido associado a uma assistência de baixo custo, tratando-se de um serviço simples e quase sempre com poucos equipamentos, contendo uma prática fadada a ser uma “medicina simplificada”. Esses autores citam Donnangelo e Pereira (1979) para explicar a origem histórica da prestação de serviços, que destinava-se a ampliar a cobertura dos serviços para a população mais carente e excluída, estendendo a assistência médica de forma simplificada e barata. Mas, as enormes dificuldades na extensão dos 1046
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serviços, ou, até mesmo, para manter a cobertura, tornaram-se algo muito mais complexo do que se imaginava. Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) explicam que, na atenção primária, muitas situações cotidianas constituem casos instrumentalmente simples e que, por vezes, são patologicamente mais fáceis, mas que nem por isso deixam de envolver uma grande complexidade assistencial. O sexto núcleo de significados que emergiu das falas dos médicos foi o “da integralidade no atendimento em pediatria”. Esses destacaram, como importante aprendizado para o estudante: a visão integral da criança e da família, a sua não-fragmentação, a possibilidade de um enfoque que não seja centrado só na doença ou no diagnóstico, mas, também, no indivíduo, no ser humano. “No mesmo dia, a gente vê criança que foi só para a puericultura, criança que é asmática, criança com retardo de desenvolvimento, criança que você tem que orientar a alimentação, criança que você tem que fazer orientação ambiental, criança que você, às vezes, precisa de medicamento. Essa variedade acaba, assim, deixando eles fascinados, né? Como que o médico da unidade tem que raciocinar durante o período para ele resolver diversas coisas e pensar em tudo. E ver a orientação, e ver a parte de higiene mental da criança, e ver a parte do vínculo da criança, e ver com resolve o problema da creche, e ver se está inserida ou se não está inserida”. (médico 5) “Que ele veja um ser humano. Não compartimentalizado, não dividido em especialidades, não dividido em... Diagnósticos..”.. (médico 7)
Seis médicos supervisores relataram como fundamental que o estudante vivencie o vínculo que existe entre o profissional e a população de cada área de abrangência. Este vínculo é possível através da interação e, dessa forma, a comunicação deve ser bastante valorizada. “Então é diferente quando você atende o paciente a primeira vez e se você atende ele há dez anos, né?. Então você também tem isso: mostrar que você também faz vínculo com o paciente. Às vezes o paciente pergunta, tem liberdade de falar as coisas. Ou, às vezes, nem sempre o paciente vai falar tudo na primeira vez. Às vezes vai falar numa segunda vez [...] devido a que isso é importante no 4º ano, né? Ele vivencia esse vínculo”. (médico 1) As práticas pediátricas, identificadas por meio do discurso dos profissionais, revelam que, para os médicos, o cuidado com a criança e sua família é o ponto central da consulta, pois qualifica o trabalho do profissional e fortalece o aprendizado de uma clínica ampliada. “Quando eu chego na sala, eu falo, “oi, tudo bem? Como está a senhora?” Trato pelo nome a mãe, trato pelo nome as crianças... Os alunos que vão lá, eu acho que percebem isso também... [...] Faz sete anos que eu estou lá. Eu acho que esse tempo lá de convivência com a população é o essencial pra um posto de saúde ou um programa de médico da família atuar. Fazer com que aquele posto de saúde se torne uma referência, eu acho que é essencial”. (médico 3) “Você conhece todo mundo, as famílias, a dinâmica, o local que eles vivem né? Porque a gente vai na escola, porque a gente vai na creche... Então, tudo isso ajuda nessa visão integral da criança mesmo? Ela inserida onde ela vive, onde ela estuda, onde ela brinca...”. (médico 5)
A relação estudante-usuário aparece como um aprendizado importante na comunidade, a partir da vivência com um profissional que tenha um bom vínculo com sua população.
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“A questão da postura, da... Do respeito... Naquela hora que a gente fica meio aborrecido com o que ela fala [...]. Então é essa coisa da empatia, né? Quer dizer, tentar se colocar no lugar dela pra entender melhor porque é que ela faz ou deixa de fazer isso ou aquilo, né? E, de um modo geral, eles (os estudantes) têm tido, assim... Eu acho que eles têm atendido, assim, com carinho, com atenção, com postura de médico mesmo”. (médico 6)
Franco (2001), ao discutir a qualidade na prática pediátrica em relação ao modelo pedagógico que privilegia o ensino tradicional, relata que os pediatras participantes de seu estudo reconheceram que a escola médica não propiciou a ampliação do núcleo de atuação do médico, onde a clínica privilegiou o enfoque do objeto corporificado, ou seja, apenas o enfoque no biomédico. Durante o processo formativo naquele modelo, o estudante estaria impedido de perceber que o processo de atenção e cuidado é também tecnologia, e que deve ser aprimorado com a incorporação de elementos como o vínculo, a responsabilização, a troca e a comunicação. No presente trabalho, o que foi identificado no discurso de dois médicos supervisores, sobre a clínica ampliada e sobre o vínculo, reveste-se de grande importância, enquanto possibilidade de uma formação diferente para os estudantes de graduação inseridos na atenção primária nos serviços de saúde em Botucatu. Alguns médicos destacaram a postura do estudante um tanto quanto preconceituosa em relação ao serviço público, e a possibilidade de mudança ao atuar na Atenção Básica: “Então eles começam a ver que o sistema de saúde municipal, ele é, em alguns momentos, dependente do serviço da universidade, mas que ele tem uma organização própria [...]. E passando pelos diferentes profissionais, eles vêem a atuação. Eu acho que eles mudam a postura e passam pra uma valorização maior do sistema público”. (médico 5) Em relação aos temas destacados pelos médicos como essenciais na formação dos futuros profissionais, estão referidos nas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Medicina (Brasil, 2001, p.38), que apontam para uma [...] formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença, em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. Nessa perspectiva, o papel mediador do supervisor dos estudantes, dos outros membros da equipe de saúde e do docente responsável, segundo Vigotski (2000), é fundamental para que o estudante alcance aprendizagens próprias desse cenário, como é o caso da clínica ampliada, que pode estar garantida, desde que essa seja a intencionalidade de todos os supervisores.
Considerações finais A construção do ensino de Pediatria na Comunidade, na FMB, realizou-se, ao longo do tempo, dentro de um processo histórico, em conjunto com as experiências de integração docente-assistencial do então Departamento de Saúde Pública, uma vez que os docentes formuladores dessa disciplina acreditaram na introdução de um novo cenário de ensino – a Comunidade - e que hoje, consolidado, mereceu ser estudado no presente trabalho. Deve-se mencionar que, segundo Kisil e Chaves (1994), os Projetos “Uma Nova Iniciativa na Formação dos Profissionais de Saúde” (Projetos UNI) e, mais recentemente, o Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed)
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(Brasil, 2002) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-Saúde) (Brasil, 2005) têm sido importantes políticas indutoras e incentivadoras de um processo de mudança da formação dos profissionais da área de saúde e suas práticas, exigindo dedicação, tanto dos profissionais da academia como dos serviços e comunidade. Foi possível identificar, pela análise dos núcleos de significação, que o ensino de pediatria na comunidade tem contribuído para que alguns dos objetivos traçados pelos docentes formuladores fossem atingidos, como: o de conhecer a realidade das famílias consultadas, das escolas, projetos e creches, além das doenças mais prevalentes, medidas de prevenção e promoção da saúde. O presente trabalho mostrou que, no ensino da Atenção Básica, se faz necessária uma produção sistematizada de conhecimento e de avaliações contínuas, que possibilitem a superação, por exemplo, da falsa dicotomia entre teoria e prática. Os médicos destacaram que a Atenção Básica, como cenário de ensino, favorece a formação de um profissional conhecedor das necessidades de saúde de uma população, o que vem ao encontro de uma das propostas presentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais, para os cursos de medicina. O desafio colocado é o de como inovar e integrar, efetivamente, esse cenário, de modo transversal, em todo o curso de medicina. Atualmente, as pesquisas em Educação Médica tornam-se cada vez mais necessárias. Serão elas que, nos momentos de avaliação da e na Escola Médica, orientarão sua trajetória na busca concreta de cumprir seu papel social.
Colaboradores As autoras Alice Yamashita Prearo, Águeda Beatriz Pires Rizzato e Sueli Terezinha Ferreira Martins participaram integralmente de todas as etapas da elaboração do artigo.
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O ENSINO DE PEDIATRIA NA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE ...
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PREARO, A.Y.; RIZZATO, Á.B.P.; MARTINS, S.T.F. La enseñanza de la pediatría en atención básica en salud; los límites entre el modelo biomédico y la perspectiva de la atención integral: una visión de los supervisores médicos. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1039-51, out./dez. 2011. El estudio presenta una contribución de la pediatría social y comunitaria en el 4º año los de graduación en medicina de la Facultad de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Brasil. Se utilizó una metodología de investigación cualitativa, con una estrategia de estudio de caso. El análisis se basó en el enfoque histórico-social, apoyado por los estudios de Vigotsky. Se encontró lo que los supervisores de disciplina consideran como aprendizaje relevante a su contribución en el proceso de mediación para que los estudiantes aprendan sobre el proceso de trabajo en los cuidados básicos, lo que no podrían lograr por sí solos.Las entrevistas con los médicos revelan núcleos de significación que son comune: la importancia de los diferentes entornos de enseñanza, el aprendizaje de los principales problemas de salud, integración en el cuidado del niño, con énfasis en el vínculo y oportunidad del estudiante para aprender sobre promoción de la salud.
Palabras clave: Educación médica. Pediatría. Atención primaria de salud. Estudio de caso. Recebido em 05/01/10. Aprovado em 24/10/10.
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Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia Mirelle Finkler1 João Carlos Caetano2 Flávia Regina Souza Ramos 3
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Teaching-service integration in the change process in Dentistry training. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1053-67, out./dez. 2011. This study aims to evaluate the integration of dentistry courses with the public health services network. The collected data were used with a qualitative methodology in a case study in which 15 courses participated, and were articulated to a theoretical framework for the analysis of changes in the undergraduate courses. According to this framework, the actual ‘teachingservice’ integration is conceived as ‘teaching, management, care and social control’. The results indicate imprecision regarding this theme, associations with the healthcare system that cannot be characterized as effective integration, and the practically nonexistent integration of teaching-care-management-social control, or at best, a process which is incipient and under construction, with gaps. Thus, it can be concluded that, overall, Brazilian dentistry courses need to improve in terms of the alliances and strategic actions based on permanent health education, so that the new curricular changes can effectively cooperate with the SUS (Brazil’s National Health System).
Este trabalho analisa como ocorre a integração dos cursos de Odontologia com a rede pública de saúde. Para tanto, tomam-se os dados coletados em um estudo de caso do qual participaram 15 cursos, articulando-os a um referencial teórico para análise das mudanças na graduação, no qual a integração “ensino-serviço” é concebida de forma ampliada como “ensino, gestão, atenção e controle social”. Os resultados indicam uma imprecisão sobre o tema, vínculos com o sistema de saúde não caracterizáveis como integração efetiva, e a praticamente inexistente integração ensino – atenção – gestão – controle social, ou no máximo, um processo incipiente e em construção, com lacunas na articulação com a gestão dos serviços e o controle social. Conclui-se que os cursos precisam avançar em muito nas alianças e ações estratégicas com base na educação permanente em saúde, a fim de que as novas mudanças curriculares sejam efetivamente capazes de colaborar com o aperfeiçoamento do SUS.
Keywords: Teaching-care integration services. Higher education. Teaching. Dentistry courses. Dental staff.
Palavras-chave: Serviços de integração docente-assistencial. Educação superior. Ensino. Escolas de Odontologia. Recursos humanos em Odontologia.
1 Departamento de Odontologia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina (CCS/ UFSC). Campus Universitario Reitor João David Ferreira Lima,Trindade, Florianópolis,SC, Brasil. 88.040-970. mirellefinkler@yahoo.com.br 2 Departamento de Saúde Pública, CCS/UFSC. 3 Departamento de Enfermagem, CCS, UFSC.
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A integração “ensino-serviço” no contexto das Diretrizes Curriculares Nacionais Há um consenso na literatura da educação de profissionais da saúde quanto à hegemonia do paradigma biologicista, centralizado no profissional e nas técnicas. Este modelo pedagógico hegemônico, centrado em conteúdos compartimentados e isolados, que fragmentam o ser humano em especialidades, dissociando os conhecimentos das áreas básicas e clínicas, foca o ensino-aprendizagem no espaço da prática hospitalar e clínica, medicaliza o social, orienta para o mercado, incentiva a especialização precoce e a incorporação tecnológica, a partir de bases pedagógicas tradicionais, perpetuando, assim, o modelo vigente e ineficiente de práticas em saúde (Ramos, Padilha, 2006; Brasil, 2004). Por estas razões, organizações docentes e estudantis constituíram movimentos organizados na produção de melhores caminhos para a transformação dos cursos em saúde (Brasil, 2004). Estes movimentos contribuíram com a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), que devem ser compreendidas dentro do contexto da Reforma Sanitária Brasileira (Morita, Kriger, 2004). A publicação destas diretrizes é um dos indicativos do atual momento de mudanças no entrecruzamento dos mundos da saúde e da educação e da visibilidade da formação profissional como política pública prioritária (Ramos, Padilha, 2006). No sentido de tornar o SUS uma rede de ensino-aprendizagem na prática do trabalho, algumas das estratégias implementadas incluíram: a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, o Programa Aprender SUS, a Residência Multiprofissional em Saúde (Brasil, 2004) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde, que passou a incentivar transformações nos processos de formação, com base na reorientação teórica, nos cenários de prática (integração docenteassistencial, diversificação dos cenários e articulação dos serviços assistenciais com o SUS) e na reorientação pedagógica (Brasil, 2005). Embora estas estratégias estejam proporcionando avanços significativos, especialmente na Enfermagem e na Medicina, em relação à Odontologia, percebe-se um atraso histórico nestes movimentos de mudança (Morita, Kriger, 2004). Em qualquer área, formar profissionais com perfil adequado significa propiciar a capacidade de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de comunicar-se, de refletir criticamente e de aprimorar qualidades humanistas. Na discussão mais específica em Odontologia, ressalta-se a importância, também, da inserção precoce do graduando em seu contexto profissional, das clínicas integradas de complexidade crescente, da melhoria na formação em Saúde Coletiva e da diversificação dos cenários de aprendizagem (Morita, Kriger, 2004), bem como um cuidado com a formação ético-humanista dos envolvidos (Finkler, 2009). Estas demandas encontram, na integração “ensino-serviço” (IES), um lócus privilegiado para a reflexão sobre a realidade da produção de cuidados e a necessidade de transformação do modelo assistencial vigente, tecnocentrado, para um modelo que considere como central as necessidades dos usuários (Albuquerque et al., 2008). A IES pode ser definida como o trabalho coletivo, pactuado e integrado de estudantes e professores da saúde com trabalhadores dos serviços e seus gestores, visando à qualidade da atenção à saúde, da formação profissional e ao desenvolvimento dos trabalhadores dos serviços. Seria, portanto, um elemento em si mesmo constitutivo de uma nova maneira de pensar a formação, não se tratando de transformar o espaço dos serviços e comunidade em extensões dos hospitais e das clínicas dos cursos, mas sim, de construir espaços de aprendizagem com a incorporação de docentes e estudantes à produção de serviços em cenários reais. Assim, os docentes constituiriam parte dos serviços e os profissionais dos serviços seriam corresponsáveis pela formação acadêmica (Albuquerque et al., 2008). Não é possível pensar a mudança da formação profissional sem a discussão sobre a IES, até por ser uma estratégia fundamental para a consolidação do SUS. Sob o marco legal, os dois setores - saúde e educação - legítima e legalmente devem ocupar-se da formação na área, de forma articulada, promovendo a cooperação técnica entre os respectivos Ministérios (Haddad et al., 2006) e submetendo as principais decisões à participação popular (Brasil, 2004). Uma avaliação em relação às mais recentes mudanças dos cursos de Odontologia indicou que a aderência média das graduações às DCNs foi de 77% (regular). Entre as características de um grupo de faculdades com menor aderência, observou-se a ausência da integração com a rede de serviços e 1054
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projetos político-pedagógicos (PPPs), redigidos de forma a reproduzirem parte das DCNs, mas sem haver uma correspondência com as realidades observadas. Já nos cursos com maior aderência, verificouse uma maior diversificação dos cenários de ensino, considerados essenciais para o desenvolvimento do perfil profissional voltado para o SUS, uma vez que é no mundo do trabalho que devem acontecer as maiores experiências educativas (Haddad et al., 2006). Entre outras dificuldades - como as de integração curricular, de desenvolver PPPs inovadores, de estabelecer interdisciplinaridade, de formar para um perfil generalista com corpo docente especializado -, observou-se a dificuldade em se utilizar a rede de serviços como espaço de aprendizagem e em estabelecer parcerias para estágios supervisionados (Haddad et al. 2006). Neste contexto, instituiu-se o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), que, de 2009 a 2011, fomentará grupos de aprendizagem tutorial no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF), viabilizando o aperfeiçoamento e especialização em serviço dos profissionais, bem como a iniciação ao trabalho e estágios, aos estudantes, de acordo com as necessidades do SUS (Brasil, 2008). Pretende-se, assim, avançar no processo de IES, à medida que se reconhece e valoriza o papel dos profissionais da rede, com o respaldo do professor tutor, oriundo da universidade (Brasil, 2007). Há, portanto, um momento de políticas públicas favoráveis para que o SUS seja, de fato, considerado o interlocutor essencial na formulação e implementação dos PPPs, para o que as DCNs assumem um papel estratégico no seu aperfeiçoamento (Morita, Kriger, 2004): A formação do cirurgião-dentista deverá contemplar o sistema de saúde vigente no país, a atenção integral da saúde no sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contrareferência e o trabalho em equipe [...] de forma articulada ao contexto social, entendendo-a como uma forma de participação e contribuição social. (Brasil, 2002, p.10)
Estas diretrizes podem ser alcançadas à medida que os cursos de graduação construam e implementem PPPs tendo a integração ensino-serviço como um elemento central do processo de reestruturação da formação profissional. Mas isto tem acontecido? De que forma? O objetivo deste trabalho consiste em compreender a valorização que os cursos de Odontologia brasileiros têm atribuído à IES como uma estratégia capaz de potencializar mudanças na formação profissional, bem como identificar como esta integração tem sido realizada, encaminhando reflexões que buscam cooperar com os atuais desafios à formação de um novo perfil profissional. Antes ainda, é necessário resgatar algumas referências teóricas do campo das mudanças na formação de profissionais de saúde, no sentido de possibilitar a análise da IES nos novos currículos e práticas de formação. Para Feuerwerker (2002), transformar a formação profissional exige mudanças profundas que implicam alterações não apenas de concepções e práticas, mas também de relações de poder nas universidades, nos serviços de saúde e no campo das políticas. A base destas propostas é a democratização, com a construção de espaços de poder amplamente compartilhados, o que requer a articulação estratégica de grupos que acumulam poder e conhecimento, que são capazes de refletir criticamente e que, ao associarem heterogeneidades organizadas e construírem canais de comunicação e discussão coletiva, ganham potência em suas ações. Almeida (1999) representou, em três planos de profundidade, as mudanças na formação de médicos, que podem ser aplicados às mudanças na formação dos demais profissionais da saúde. No primeiro plano o autor situou as mudanças superficiais, geralmente pontuais e parciais, onde as inovações atingem as atividades, os meios e as relações técnicas entre os agentes de ensino e o processo de ensino. Essas mudanças produzem alterações isoladas de conteúdos, ou de relações, ou de processos. É o plano quantitativo, que pode conduzir a mudanças do tipo “inovação”. No segundo plano estão as mudanças mais abrangentes que passam pela reinterpretação das bases conceituais da educação profissional, tendo como resultados alterações nas relações sociais durante a formação acadêmica. É o plano qualitativo, que pode conduzir a mudanças do tipo “reforma”. No terceiro plano, situam-se as alterações que buscam introduzir uma nova ordem no processo de produção de profissionais e nas suas relações com a estrutura socioeconômica, englobando toda a sociedade e o seu COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1053-67, out./dez. 2011
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contexto. Resultam em alterações gerais dos conteúdos, dos processos e das relações, implicando: a substituição da prática profissional, desenvolvimento de tecnologia apropriada, articulação biopsicossocial, intersetorialidade e superação da dissociação entre estudo, trabalho e controle social. É o plano da relevância, capaz de conduzir a mudanças do tipo “transformação”. Utilizando esse esquema de Almeida (1999), Feuerwerker (2002) acrescenta que tais planos implicam, também, a utilização de referenciais teórico-conceituais diferentes quanto à educação e à saúde: o primeiro plano corresponderia à concepção tradicional de educação e à biologicista em saúde, predominando a reprodução das práticas hegemônicas; o segundo corresponderia à concepção humanista (libertária) da educação e ao conceito ampliado de saúde, buscando-se alternativas às práticas hegemônicas por meio das práticas de reflexão crítica e proporcionando uma democratização nas relações; enquanto o terceiro corresponderia à concepção pedagógica crítica-reflexiva e ao pensamento estratégico em saúde, visando à constituição de sujeitos, à busca de práticas transformadoras e à incorporação de outros sujeitos sociais ao processo de educação e de saúde. No mesmo sentido, Lampert (2002) elaborou uma tipologia da implementação de mudanças nos currículos de graduação médica, variando de um perfil tradicional, inovador com tendência tradicional, inovador com tendência avançada, até um perfil avançado, respectivamente e gradualmente correspondentes ao modelo hegemônico de formação em saúde (flexneriano) até o paradigma da integralidade. Ao analisar algumas escolas médicas, a autora observou, em todas, alguma iniciativa de inovação recente, mesmo na de tipologia tradicional, sendo que as com reformas curriculares de tipologia avançada, decorrentes de propostas recentes, ainda não totalmente consolidadas. De estudos como este, advém a constatação de que a formação em saúde passa por mudanças em direção às transformações desejadas, ainda que a tendência de inovação seja carente de tempo e de forte apoio reflexivo, acompanhamento e avaliação, pois muitas dessas mudanças vão de encontro à política neoliberal e à cultura voltada para a doença. Os resultados encontrados por Finkler (2009) na análise das mudanças curriculares nos cursos de Odontologia vão ao encontro dos obtidos por Lampert (2002), destacando-se dentre os principais avanços: a valorização da formação dos professores, a preocupação com o desenvolvimento de profissionais capacitados a atuar nos serviços públicos, a integração do currículo acadêmico e o desenvolvimento de competências profissionalizantes precocemente. Por outro lado, os atrasos mais evidentes relacionaram-se: à pequena valorização da formação humanística, cultural e política dos estudantes, à orientação didática e aos cenários de ensino-aprendizagem, bem como à ausência de tutoria e da avaliação somativa, por conta dos pressupostos e métodos ainda bastante tradicionais do processo educativo. Já o enfoque teórico dos cursos e sua integração com os serviços públicos, embora com indícios de alguns avanços, foram identificados como fragilidades, sinalizando alguns dos desafios que as mudanças curriculares em Odontologia precisam assumir4. Vale ainda resgatar o “quadrilátero da formação para a área da saúde” de Ceccim e Feuerwerker (2004), que concebe a questão específica da IES ou “ensino - serviço - comunidade” de forma ampliada ao considerar os quatro elementos que tomam parte neste processo: ensino, gestão, atenção e controle social. Isto porque o componente “serviço” não pode ser restrito à noção de práticas de atenção, mas deve revelar uma estrutura de condução das políticas, a gerência do sistema e organização de conhecimentos do setor. O componente “comunidade” deve conter algo além da interação com a população, envolvendo 1056
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Em trabalho prévio, analisou-se a formação ética dos estudantes de Odontologia no Brasil, a partir de coleta de dados sobre os múltiplos fatores que tomam parte neste processo e que vão desde o perfil teórico dos cursos e as diversas questões referentes à abordagem pedagógica até as questões mais diretamente relacionadas à abordagem ética (Finkler, 2009). Este estudo, por sua vez, toma alguns daqueles dados, a fim de discutir em profundidade a questão específica da IES, não como mais um elemento da formação ético-pedagógica, mas como um dos elementoschave para redefinir o perfil do egresso acadêmico, à luz das DCNs.
4
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S.
artigos
a noção de relevância e responsabilidade social do ensino, aberto à interferência de sistemas de avaliação, regulação pública e estratégias de mudança que envolvem o controle social. No componente “ensino”, além do reconhecimento dos papéis de dirigentes e docentes, destaca-se a articulação com o movimento estudantil como ator político das instituições formadoras. Essa imagem de um quadrilátero se propõe à construção e organização de uma gestão da educação na saúde integrante da gestão do sistema de saúde, redimensionando a imagem dos serviços e valorizando o controle social. Pode, assim, ser um instrumento útil para a análise das mudanças em curso na formação profissional em saúde.
Procedimentos metodológicos
5
Utilizou-se como modelo o questionário construído por Lampert (2002, p.275-279).
Este estudo exploratório descritivo empregou a abordagem qualitativa por ser considerada a mais adequada à compreensão de fenômenos específicos e delimitáveis mais pelo seu grau de complexidade interna do que por sua expressão quantitativa. Os cursos participantes foram selecionados de modo a compor uma amostra da sua distribuição nacional, em termos de proporção entre cursos públicos e privados (30% e 70%, respectivamente), e de localização, por regiões geográficas (70% no sul e sudeste e 30% nas demais regiões), totalizando 15 cursos. A coleta de dados foi iniciada após a aprovação ética do projeto de pesquisa, consistindo de três etapas: na primeira, um questionário5 foi enviado aos coordenadores dos cursos, sendo que cada questão possuía três possíveis afirmações, dentre as quais deveriam eleger a que mais se assemelhava à experiência predominantemente vivenciada no curso. De um modo em geral, estas afirmações foram elaboradas pensando-se em três situações distintas que caracterizariam o processo de mudanças curriculares, paralelas ao modelo de ensino que desenvolvem: desde o mais tradicional, hegemônico, nos moldes flexnerianos (respostas A), passando pelo inovador (respostas B), em direção ao mais avançado, a caminho de reformas transformadoras na construção do paradigma da integralidade (respostas C) (Lampert, 2002, p.171). Neste trabalho, recortam-se as três questões diretamente relacionadas ao objeto aqui em foco, conforme apresentado no Quadro 1. A partir dos primeiros resultados, a segunda etapa pôde ser iniciada, buscando-se um aprofundamento da análise das experiências dos dois cursos de resultados mais diferenciados entre si quanto à IES. Solicitaram-se, às instituições selecionadas, documentos tais como o PPP e o currículo, que permitiram uma aproximação do arcabouço teórico-metodológico dos cursos. Na terceira etapa, buscou-se uma aproximação mais concreta com a realidade acadêmico-pedagógica, por meio de entrevistas semidirigidas, observação direta de atividades acadêmicas e grupos focais, que permitiram a triangulação dos dados. Em todas estas estratégias, a amostragem foi delimitada pelo critério de saturação dos dados. Uma vez transcritas as falas das entrevistas e dos grupos focais e agrupadas as informações registradas no diário de campo, os dados coletados foram: (1) ordenados, (2) categorizados, (3) reordenados de acordo com as categorias iniciais gerando categorias temáticas, e, por fim, (4) analisados a partir da interpretação destas categorias, à luz das referências teóricas pertinentes.
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Quadro 1. Questões do questionário empregado mais relacionadas à integração “ensino-serviço” 1. PERFIL DO EGRESSO - Esta Escola predominantemente... a) forma cirurgiões-dentistas com perfil liberal e generalista, com acentuada ênfase no uso de tecnologias e na importância da especialização para o mercado de trabalho b) forma cirurgiões-dentistas com perfil generalista, orientados para a competitividade do mercado de trabalho liberal e com algum preparo para trabalhar no setor público, segundo os princípios do SUS c) forma cirurgiões-dentistas com um perfil generalista, humanista, autônomo, crítico e reflexivo, familiarizados com os serviços de saúde (SUS) e capacitados a atuar de acordo com as necessidades da sociedade, segundo os princípios do SUS Justificativa: Evidência(s): 2. ENFOQUE TEÓRICO - Esta Escola predominantemente... a) ministra o curso sob enfoque biomédico/clínico b) ministra o curso buscando um equilíbrio no enfoque biológico e no social c) ministra o curso sob enfoque epidemiológico, enfatizando os processos sociais na determinação dos fenômenos de saúde-doença Justificativa: Evidência(s): 3. INTEGRAÇÃO COM OS SERVIÇOS DE SAÚDE - Esta Escola predominantemente... a) tem corpo docente que não participa dos serviços de saúde (SUS) e do seu planejamento na sua área de influência, assim como os dentistas dos serviços também não participam na docência b) tem docentes que participam esporadicamente dos serviços e do planejamento do sistema de saúde público e profissionais dos serviços que eventualmente participam na docência c) tem serviços docentes-assistenciais integrados com o sistema de saúde público, sendo que seus docentes participam do planejamento e da avaliação do sistema em sua área de influência Justificativa: Evidência(s):
Um panorama da integração “ensino-serviço” nos cursos de Odontologia brasileiros As respostas fornecidas em cada questão foram agrupadas e classificadas (Tabela 1) de acordo com o perfil dos cursos com relação ao processo de mudanças curriculares que vêm desenvolvendo e conforme o referencial teórico-metodológico adotado. Os dados demonstram que apenas dois coordenadores consideraram que o perfil dos egressos de seus cursos ainda é o tradicional, no qual o profissional é formado para um mercado de trabalho basicamente liberal, com alta valorização das especializações clínicas. Possivelmente, as mudanças recentes no trabalho em saúde (implantação das Equipes de Saúde Bucal na ESF e dos Centros de
Tabela 1. Somatórios das respostas dos coordenadores dos 15 cursos participantes, classificados por questão e de acordo com o perfil dos cursos com relação ao processo de mudanças curriculares
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Questão/perfil
Tradicional (resposta A)
1. Perfil do egresso 2. Enfoque teórico 3. Integração com serviços Total
2 0 1 3
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Inovador (resposta B) 6 11 6 23
Avançado (resposta C) 7 4 8 19
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artigos
Especialidades Odontológicas) contribuem em parte para que a maioria das faculdades comece a se preocupar em preparar cirurgiões-dentistas com um perfil generalista, capazes, pelo menos razoavelmente, de trabalhar no SUS. Contudo, os sete coordenadores que elegeram a resposta mais abrangente, não fizeram referências às qualidades citadas no enunciado da alternativa – “perfil autônomo, crítico e reflexivo”, no máximo comentando o perfil humanista desejado e, ainda assim, com poucas evidências. Deste modo, algumas das características importantes para o exercício da profissão parecem não ser suficientemente valorizadas e desenvolvidas. Tampouco houve justificativas ou evidências do fato de os egressos estarem realmente “familiarizados com os serviços de saúde”, o que seria um importante indicativo dos esforços para a IES. Com relação ao enfoque teórico, as escolas relataram ministrar seus cursos predominantemente buscando um equilíbrio no enfoque biológico e social, sendo poucas as que se baseiam no enfoque epidemiológico com ênfase na determinação social do processo saúde-doença. Observa-se, portanto, o indício positivo de que nenhum curso seguiria com o paradigma biomédico-clínico, ao que corresponderia um perfil de egresso tradicional. Contudo, constatou-se nas evidências relatadas uma atribuição de responsabilidade quase exclusiva às disciplinas de Saúde Coletiva pela concepção social deste enfoque teórico. É inegável a contribuição destas disciplinas, mas questionável a manutenção, ainda hoje, de outras disciplinas na visão estritamente biológica, até mesmo porque “os estudantes valorizam as diferentes áreas do conhecimento do mesmo modo que a maior parte de seus docentes” (Finkler, 2009, p.163). Desta forma, é também duvidoso que um curso consiga formar profissionais sob o enfoque teórico indicado, se este enfoque está restrito a poucos. Já a questão que abordava diretamente a IES foi a que mais apresentou inconsistências entre as respostas eleitas e as justificativas e evidências apontadas, o que demanda cautela na análise. As inconsistências se devem, basicamente, ao conceito de serviços docente-assistenciais e de IES, que, apesar de constar por extenso no questionário, parece não ter sido sempre considerado ou não ser conhecido por todos, ou, ainda, ser confundido com outras atividades. Apenas três faculdades demonstraram indícios de alguma IES. As demais se referiram ao vínculo criado entre os cursos e os serviços por conta de convênios para o ressarcimento de atendimentos, de parcerias para campos de estágios, da presença de docentes que também são funcionários municipais ou estaduais, e de profissionais dos serviços que trabalham na escola. Porém, estes vínculos com o SUS não são indicativos de que o ensino-aprendizado esteja sendo desenvolvido sob suas diretrizes, em cenários reais de prática e conjuntamente com os profissionais dos serviços, gestores e usuários, co-participem tanto do ensino quanto do planejamento, execução e avaliação dos serviços. De fato, percebe-se uma confusão conceitual no meio acadêmico e o uso indiscriminado de termos como IES, estágio docente-assistencial, estágio curricular supervisionado, estágio intra e extramuros, internatos, entre outros, de modo que novos nomes podem ser atribuídos a práticas já tradicionais, numa apenas aparente adequação às DCNs. Tome-se, como exemplo, o estágio curricular que as DCNs preconizam que seja desenvolvido sob supervisão docente, de forma articulada e com complexidade crescente ao longo do processo de formação, tendo uma carga horária mínima de 20% do total (Brasil, 2002). No entanto, a Associação Brasileira de Ensino Odontológico define o estágio curricular como o “instrumento de integração e conhecimento do aluno com a realidade social e econômica de sua região e do trabalho em sua área [...] o atendimento integral ao paciente que o aluno de Odontologia presta à comunidade, intra e extramuros” (ABENO, 2002, p.39). Mas, como afirmam Tumang, Rigolon e Gasparetto (2004), o estágio intramuros não contempla o contato do aluno com a realidade social, pois essa realidade é mascarada pela estrutura institucional que interfere nas relações. O atendimento ao paciente onde ele vive é distinto do atendimento no espaço escolar que é familiar ao próprio aluno e que reproduz os seus próprios valores. No ambiente externo é que o papel social do estudante é transformado, quando ele se coloca frente aos desafios da população que vai atender (Werneck et al., 2007). Porém, o fato de o estágio ser extramuros tampouco assegura a aderência às DCNs, pois não garante que haverá integração com o mundo do trabalho, não implica necessariamente na articulação com o SUS, nem no envolvimento crescente ao longo e desde o início da formação. Mas, para formar 1059
INTEGRAÇÃO “ENSINO-SERVIÇO” NO PROCESSO DE MUDANÇA ...
profissionais com o perfil adequado, os cursos precisam promover atividades práticas com estas características, em cenários de ensino diversificados. Isto exige sair das práticas profissionalizantes realizadas em clínicas de ensino de especialidades para as clínicas integradas e atividades extramurais em unidades do SUS, com graus crescentes de complexidade, bem como substituir os serviços próprios isolados da rede por serviços próprios completamente integrados, com mecanismos institucionais de referência e de contrarreferência (Morita, Kriger, 2004). Indo além, o estágio supervisionado, na lógica da IES, pressupõe a supervisão das atividades do estudante tanto por docentes quanto por profissionais dos serviços. Esta preceptoria externa é um elemento pedagógico fundamental, visto que concebe o trabalho como fonte de saberes e de experiência (Werneck et al., 2007). Estágios supervisionados em escolas, creches, asilos, hospitais, internato em saúde coletiva ou internato rural, embora possam ser bastante válidos sob alguns aspectos (Moimaz et al., 2008; Werneck et al., 2007; Medeiros Jr. et al., 2005; Werneck, Lucas, 1996), de um modo em geral não possibilitam o alcance dos objetivos das DCNs. Isto porque não é possível, por meio de atividades pontuais e isoladas no currículo, estabelecer-se um compromisso social, já que o envolvimento costuma ser de curta duração (Werneck et al., 2007). Além disto, a interação ativa do aluno com a população e com os profissionais deve ocorrer a partir de problemas reais, assumindo-se responsabilidades crescentes (Morita, Kriger, 2004). Portanto, é questionável também a realização destes estágios visando à IES somente ao final do curso, quando toda a formação prévia do estudante o preparou para uma atuação desarticulada das demandas dos serviços. Quando hoje se menciona o termo IES, é preciso se ter em mente que as tentativas nesse sentido não são novas. Há um acúmulo de experiências cujos resultados já mostraram que a associação universidade-serviço-comunidade, juntamente com um programa de apoio, são as estratégias que mais proporcionam acumulação de recursos de poder entre os atores interessados em transformações, tanto na formação universitária, quanto na atuação dos serviços (Almeida, Feuerwerker, Llanos, 1999). A estratégia de integração docente-assistencial (IDA), nas décadas de 1970 e 1980, foi a pioneira na articulação de cursos de medicina, enfermagem, odontologia e outros com os serviços. Apesar de terem contribuído de forma significativa para a construção do SUS, o seu impacto na formação profissional foi limitado, pois muitas das experiências inovadoras permaneceram isoladas nas universidades e também porque as relações estabelecidas com os serviços eram bastante verticais, considerados mais cenários que parceiros (Feuerwerker, 2002). Além disto, as relações entre os atores envolvidos davam-se apenas de forma bilateral, por conta da IDA (universidade/serviços), da extensão universitária (universidade/ comunidade) e da atenção primária à saúde (serviços/comunidade) (Albuquerque et al., 2008). A Rede IDA foi um fecundo espaço de criatividade para gestar ideias e lideranças fundamentais no desenvolvimento do setor, tal como o Programa UNI, no início dos anos noventa, que considerava a comunidade sujeito de seu próprio destino, contando com dois parceiros: a universidade e os serviços. Sua proposta era construir estas parcerias (“integração ensino-serviço-comunidade”) para a transformação da educação profissional, a reorganização dos serviços e para o fortalecimento da organização comunitária (Chaves, 1993). A entrada dos projetos UNI na Rede IDA constituiu a Rede UNIIDA, que se construiu como um ator social, buscando influenciar as políticas públicas, como, por exemplo, no trabalho em torno da proposta das DCNs para as profissões da saúde (Feuerwerker, 2002). Vale, portanto, observar que as DCNs possuem, em seu âmago, os resultados acumulados das experiências prévias de integração “ensinoserviço- comunidade”: A formação do cirurgião-dentista deverá contemplar o sistema de saúde vigente no país [...] exercer sua profissão de forma articulada ao contexto social, entendendo-a como uma forma de participação e contribuição social [...] proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a formação e a cooperação através de redes nacionais e internacionais (Brasil, 2002, p.10).
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artigos
Evidencia-se, portanto, que a concepção de integração “ensino-serviço-comunidade” que permeia este documento não confere com os conceitos e entendimentos expressos pelos coordenadores dos cursos, levantando indícios de que a real IES é ainda incipiente. Uma análise mais aprofundada sobre esta realidade foi possível com o seguimento da pesquisa, para o que, tanto o curso que se revelou o mais tradicional quanto o curso aparentemente mais avançado foram escolhidos (Curso T e Curso A, respectivamente).
Focando a integração “ensino-serviço” na prática: uma aproximação da realidade vivenciada em dois cursos de Odontologia O trabalho de análise qualitativa do novo PPP do Curso T evidenciou a preocupação principal com a adaptação do curso às DCNs. Uma das principais mudanças realizadas consiste na reestruturação do currículo com a integração das disciplinas profissionalizantes, por meio do trabalho multidisciplinar nas clínicas de complexidade crescente. Ainda hoje, as disciplinas pré-clínicas e clínicas deste curso possuem, cada uma, o seu próprio ambiente de ensino-aprendizagem. No novo currículo, as disciplinas do ciclo profissionalizante deverão atuar integradamente; no entanto, as disciplinas do chamado ciclo básico não foram pensadas sob esta mesma lógica, fato justificado pelo “modo ainda tradicional de organização burocrática e administrativa da instituição”. Outra ressalva se faz ao conceito de multidisciplinaridade, restrito ao trabalho conjunto de disciplinas apenas do curso de Odontologia. Experiências de ensino-aprendizagem multiprofissional não estão previstas, nem mesmo no estágio supervisionado extramuros onde atuam estudantes de diferentes cursos de graduação em saúde, uma das poucas atividades acadêmicas desenvolvidas nos serviços. Lá os estudantes permanecem durante um mês, no último período do curso, sob supervisão de um professor substituto, exercitando seu aprendizado clínico. As demais atividades desenvolvidas nos serviços estão limitadas a uma disciplina introdutória de saúde coletiva, que proporciona uma aproximação superficial com o SUS aos estudantes que nela se matriculam (por ser optativa), e a um estágio curricular em ambiente hospitalar. Os estudantes, no entanto, parecem sentir falta de uma aproximação do ensino com a realidade dos serviços, pois assim se manifestam: “A gente tá aprendendo uma coisa que é totalmente correta, como no livro, e quando chega lá fora, como na experiência do posto de saúde assistindo um dentista, meu Deus do céu, é totalmente diferente!” (estudante 1, grupo focal, curso T) “Isso aqui é um serviço público, né? Só que a gente trabalha de uma forma quase se fosse de uma forma particular. Se a gente for pro serviço público de verdade, num posto de saúde, aí você vê o que é!” (estudante 2, grupo focal, curso T)
O coordenador do curso afirma que tão logo o curso disponha de incentivos financeiros tentará equipar algumas Unidades Básicas de Saúde (UBS) para levar os estudantes aos serviços. Contudo, não há estratégias delineadas neste sentido. Por todos estes aspectos, percebe-se que o Curso T pouco valoriza a IES e não a desenvolve: não há planejamento em comum com os serviços nas áreas de influência do curso, nem mesmo um serviço de referência e contrarreferência das clínicas da faculdade estruturado com o SUS. Não há previsão de um programa de integração docente-assistencial, nem um diálogo iniciado com os gestores dos serviços, estando a participação de profissionais da rede no ensino limitada à atuação clínica em um serviço de pronto-atendimento do curso. Os termos “saúde da família” e “controle social”, por exemplo, constam uma única vez em todo o PPP, ainda que nele estejam inclusas as ementas de todas as disciplinas relacionadas à Saúde Bucal Coletiva. Portanto, resultam escassas as situações de ensino-aprendizagem pensadas na rede de saúde, envolvendo profissionais, usuários e gestores. É evidente que um novo currículo vai sendo aperfeiçoado concomitantemente com a sua implantação, e que as ausências aqui indicadas poderão vir a ser contempladas, mas, de qualquer maneira, o não-dito no PPP de alguma forma também diz sobre as escolhas, valores e possibilidades de cada curso. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1053-67, out./dez. 2011
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Uma segunda mudança curricular enfatizada diz respeito a uma maior importância em relação às temáticas da saúde coletiva. É possível perceber a valorização das diferentes áreas pela distribuição do tempo curricular entre elas (Figura 1); e, efetivamente, as disciplinas que estão diretamente relacionadas à saúde coletiva e aos serviços públicos passaram a ocupar, de 5,30% no antigo currículo, 9,75% do tempo da nova matriz curricular, devido à inclusão de quatro disciplinas de Saúde Bucal Coletiva ao longo da formação.
Currículo antigo
63,26%
Currículo novo
58,53%
24,48%
6,93% 5,81%
Humanidades
9,75% 5,30% Saúde Coletiva
5,81% 0,00% Pesquisa
0,00%
20,86%
2,29%
Complementares
Básicas
Laboratoriais e clínicas
Figura 1. Distribuição da carga horária entre as disciplinas agrupadas por temas, nos currículos antigo e novo do Curso T
Contudo, o aumento da carga horária destinado à temática é um indicador limitado, uma vez que puramente quantitativo. A aparente redistribuição do tempo entre os temas curriculares se deve basicamente ao aumento no total de horas do curso. Isto fica evidente ao se observarem as disciplinas básicas, que ocupavam 24,48% do tempo, e que, no novo currículo, passaram a equivaler a 20,86%, embora a redução tenha sido de apenas 15 horas-aula. Do mesmo modo, as disciplinas pré-clínicas e clínicas, que antes representavam 63,26% do total, apesar de terem sido aumentadas em número, agora constituem 55,53% do tempo curricular. Assim, as mudanças propostas pelo novo currículo não são indicativas de um reequilíbrio entre o enfoque biológico/clínico hegemônico e o social/epidemiológico, ou de uma provável alteração do perfil do egresso. De acordo com a classificação de Almeida (1999), aperfeiçoada por Feuerwerker (2002), a reforma curricular em implementação neste curso se enquadra no plano mais superficial de mudanças na formação em saúde, caracterizada por algumas inovações pontuais, sem alteração da concepção tradicional de educação e da concepção biologicista em saúde, e, portanto, com uma provável reprodução das práticas hegemônicas nas duas áreas. Já o PPP do Curso A levou a sério as DCNs, adequando-o às diretrizes a partir da convicção da necessidade de mudanças nas concepções e estratégias curriculares, e não apenas pela demanda externa ao curso. Esta motivação está muito relacionada aos seus dirigentes, devido a sua formação e experiências prévias e a sua capacidade de liderança e articulação de um grupo docente que soma forças no alcance das metas instituídas no novo currículo. As principais ênfases do PPP recaem sobre a necessidade de mudanças nas concepções acerca do processo ensino-aprendizagem, as inovações metodológicas que buscam a integração curricular, o trabalho multidisciplinar e a interatividade dos estudantes. 1062
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Currículo antigo
artigos
A integração curricular foi possível pela união dos antigos ciclos básico e profissionalizante em quatro eixos estruturais, transversais e multidisciplinares. Os estudantes são inseridos precocemente nos contextos profissionais: no primeiro semestre eles já estão presentes nas UBS, sendo integrados às Equipes de Saúde da Família (SF) como observadores (com envolvimento crescente ao longo do curso), e, no segundo semestre, na clínica odontológica da faculdade. Essa entrada precoce nos diferentes cenários de ensino-aprendizagem é uma das questões que reforçam a valorização da interatividade acadêmica, também percebida quanto às inovações em termos de metodologia de ensino: a problematização vem sendo empregada no curso como o referencial educativo para as atividades de promoção de saúde realizadas no contexto da SF. No momento da pesquisa, os alunos do último ano utilizavam o PBL em uma das quatro disciplinas, mas a intenção era de capacitar um maior número de docentes para o seu emprego e utilizá-lo também como referencial filosófico-pedagógico do curso. Outra questão evidenciada relacionava-se à preparação do estudante para atuar no mercado de trabalho, tanto público quanto privado. A ênfase na saúde coletiva e nos serviços públicos de saúde pode ser confirmada pela quase triplicação da carga horária atribuída a estas temáticas em relação ao currículo anterior (Figura 2).
65,00%
Currículo novo
50,00%
21,90% 14,07% 4,24% 6,86% Humanidades
5,30% Saúde Coletiva
13,63% 90,9% 1,41% Pesquisa
2,12%
6,10%
Complementares
Básicas
Laboratoriais e clínicas
Figura 2. Distribuição da carga horária entre as disciplinas agrupadas por temas, nos currículos antigo e novo do Curso A
Ainda que o número de horas total do curso tenha sido um pouco ampliado, uma melhor distribuição do tempo dedicado a cada área foi possível pela integração das disciplinas básicas, laboratoriais e clínicas do antigo currículo, diminuindo significativamente a proporção de suas cargas horárias em favor das demais temáticas. Há, também, outros indicadores, desde a missão da instituição universitária até os diferentes cenários de aprendizagem no SUS com graus crescentes de complexidade, que confirmam a importância da saúde coletiva no curso, revelam sua consciência pela responsabilidade social e a valorização da IES. Contudo, esta integração é ainda parcial: o sistema de referência e contrarreferência entre a escola e o SUS funciona apenas para algumas das especialidades clínicas, sendo os pacientes oriundos de demanda livre atendidos no curso sem nenhuma integração com a rede. Além disso, os estudantes atendem clinicamente as famílias da ESF na clínica do próprio curso, embora o PPP preveja “que as Equipes de Saúde Bucal acompanharão os trabalhos dos acadêmicos como preceptores”. Assim, o atendimento clínico reabilitador continua desvinculado do mundo do trabalho, isolado da interação com os profissionais da rede, da gestão do sistema e do seu controle social. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1053-67, out./dez. 2011
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Os docentes relatam dificuldades nesta integração, experimentadas desde o planejamento do novo currículo, pela pequena participação da gestão dos serviços nas oficinas da reforma curricular, e, sobretudo, na realização dos estágios em campo. Questões administrativas com a Secretaria Municipal de Saúde e alguns problemas de relacionamento junto à coordenação de Saúde Bucal são apontados como entraves significativos para uma maior IES, mas consideram estar avançando ao longo do tempo. Se retomarmos, aqui, o conceito do “quadrilátero para a formação em saúde” (Ceccim, Feuerwerker, 2004), ficam evidenciadas as lacunas que dificultam a reformulação das práticas que precisam estabelecer relações orgânicas entre si. Retomando a classificação de Almeida (1999) aperfeiçoada por Feuerwerker (2002), a reforma curricular neste curso se enquadra no segundo plano de mudanças na formação em saúde, correspondente à concepção humanista de educação e ao conceito ampliado de saúde. A instituição, assim, progride na busca de alternativas às práticas hegemônicas, considerando o social em direção às práticas de reflexão crítica. Mas ainda precisa investir em uma maior integração ensino-gestão-atençãocontrole social e no trabalho multiprofissional e interdisciplinar, para que a profundidade das mudanças possa ser considerada efetivamente como uma reforma, e não apenas como inovações. A classificação do Curso A, considerado o mais avançado dentre os cursos pesquisados, como estando no segundo plano de profundidade em relação às mudanças no processo de formação em saúde, é indicativa de que os cursos de Odontologia ainda têm um longo caminho a percorrer em direção a mudanças mais profundas que sejam capazes de promover uma verdadeira transformação social. Segundo Feuerwerker (2002), os cursos precisariam investir não só no trabalho multiprofissional interdisciplinar e na efetiva integração IES, mas também na atuação inter-setorial, na efetiva articulação biopsicossocial, no controle social, na associação entre estudo e trabalho, e na transformação do poder em autoridade compartilhada. Assim, as mudanças poderiam ser não apenas técnicas e sociais, mas também políticas, o que corresponderia ao plano de maior profundidade de mudanças. Considerando-se que os resultados indicaram a praticamente inexistente integração do mundo da escola com o mundo do trabalho em saúde em uma instituição (curso T) e o processo apenas incipiente na outra (curso A), ficam evidenciadas as limitadas ações dos cursos de Odontologia quanto à integração ensino-gestão-atenção-controle social, bem como alguns dos desafios àqueles que pretendem avançar no processo de mudanças da formação profissional.
Considerações finais Todos os esforços prévios de IES em Odontologia tiveram pouca sustentabilidade, pois sempre dependeram de uma adesão ideológica de docentes e estudantes e da voluntariedade dos professores, mais do que do apoio institucional e da participação do quadro docente como um todo (Morita, Kriger, 2004). Recentemente, no entanto, o apoio institucional começa a se fazer presente por meio de políticas públicas e de programas, pelo menos nos 32 cursos de Odontologia que fazem parte das 67 instituições selecionadas para o PET-Saúde em 2009. Este momento político favorável vem ao encontro dos resultados desta pesquisa, reveladores de uma apenas incipiente integração entre os cursos de Odontologia e o SUS, no momento imediatamente anterior ao lançamento do PET-Saúde. Tal investimento de recursos e esforços no fomento desta integração revela-se promissor, pois nossas mudanças curriculares serão socialmente tão relevantes quanto forem nossos avanços no processo de integração ensino–gestão–atenção–controle social. Aproximar-se dos serviços de saúde tem de ser uma opção consciente e oficial de cada um dos cursos. Esta aproximação deve ser conduzida na forma de uma proposta-convite aos serviços, para que o local do desenvolvimento das atividades dos estudantes passe a ser o mesmo que os profissionais enfrentam no cotidiano de suas práticas. Nele, o sujeito do aprendizado não deve ser visto como mãode-obra (Werneck, Lucas, 1996), pois a contrapartida do ensino para os serviços deve se dar na colaboração para a reorientação da prática de atenção à saúde, de um modelo tecno-assistencial hegemônico, centrado na produção de procedimentos, para um modelo centrado nas necessidades 1064
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sociais. Portanto, os cursos não devem impor esquemas preconcebidos que possam prejudicar a percepção da realidade ou predefinir propostas de trabalho, mas adequar as atividades demandadas pelos municípios aos objetivos da formação profissional. A integração poderá acontecer quando existir, tanto para a escola quanto para a rede, uma intencionalidade complementar e convergente, com objetivos comuns e peculiares, capazes de constituir espaços pedagógicos com vivências que possibilitem, para ambas, ganhos reais. Neste contexto, a realidade que ensina é, ao mesmo tempo, objeto do aprendizado, gerando reflexão, crítica e autocrítica, constituindo-se no substrato fundamental à formação pessoal e profissional do acadêmico (Werneck et al., 2007). Mas a integração só acontecerá de fato quando pensada longitudinalmente, desde o seu início da graduação, de modo que, ao final de cinco anos, o formando se sinta familiarizado e comprometido com o SUS, capacitado a atuar na transformação do seu modelo de atenção, de gestão e de controle social. Sabe-se que nada disto é tarefa simples, pois exige uma organização de coletivos centralmente comprometidos com a dimensão pedagógica das práticas de ensino, de atenção à saúde, de gestão setorial e de controle social, e com a defesa do interesse público na política de saúde e de educação nacionais. Contudo, é o caminho que precisa ser trilhado em cada curso da área da saúde, despertando sensibilidades, reflexão e diálogo, promovendo negociações, aproximações, rearranjos, superações, enfim: um processo que precisa ser calcado na certeza de que a construção de cidadania e da democracia dependem fundamentalmente do sucesso no trabalho intersetorial da saúde e da educação.
Colaboradores Mirelle Finkler responsabilizou-se pela produção da pesquisa e pela elaboração do artigo. João Carlos Caetano e Flávia Regina Souza Ramos responsabilizaram-se pela orientação da pesquisa e pela revisão crítica do artigo.
Referências ABENO. Diretrizes da ABENO para a definição do estágio supervisionado nos cursos de Odontologia. ABENO, v.2, n.1, p.39, 2002. ALBUQUERQUE, V.S. et al. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. RBEM, v.32, n.3, p.356-62, 2008. ALMEIDA, M.J. Educação médica e saúde: possibilidades de mudança. Londrina: UEL, 1999. ALMEIDA, M.; FEUERWERKER, L.; LLANOS, M. (Orgs.). A educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec, 1999. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Interministerial n° 1.802, de 26 de agosto de 2008. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde – PET-Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, 26 ago. 2008. Seção 1, p.27. ______. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial. Brasília: Ministério da Saúde, 2007.
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artigos
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S.
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Integración “enseñanza-servicio” en el proceso de cambio en la formación profesional en Odontología. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1053-67, out./dez. 2011. Este trabajo intentó evaluar la integración de las licenciaturas de Odontología con la red pública de salud. Para eso, se toman los datos recolectados con metodología cualitativa en un estudio de caso con 15 cursos, articulados con un referencial teórico para el análisis de los cambios en la formación en salud, en lo cual la integración “enseñanza-servicio” es concebida como enseñanza, gestión, atención y control social. Los resultados indicaron una confusión conceptual acerca del tema, vínculos con el sistema de salud distintos de la integración y la prácticamente inexistente integración enseñanza-atención-gestión-control social, o como máximo, un proceso incipiente y en construcción. Se puede así considerar que los cursos de Odontología brasileños necesitan avanzar en las alianzas y en las acciones estratégicas con base en la educación permanente en salud, a fin de que los nuevos cambios curriculares sean efectivamente capaces de colaborar con el Sistema Único de Salud.
Palabras clave: Servicios de integración docente asistencial. Educación superior. Enseñanza. Escuelas de Odontología. Personal de Odontología. Recebido em 18/02/10. Aprovado em 22/09/10.
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artigos
Estudo qualitativo da integração ensino-serviço em um curso de graduação em Odontologia * Ana Luiza de Souza1 Daniela Lemos Carcereri2
SOUZA, A.L.; CARCERERI, D.L. Qualitative study of the teaching-service integration in an undergraduate Dentistry course. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1071-84, out./dez. 2011. This qualitative study aimed to investigate, through individual and group interviews, the teaching-service integration between a public university in southern Brazil and the public health services. The data were analyzed following the Thematic Content Analysis. Two thematic axes and four categories emerged. The thematic axis called Activator grouped aspects developed in the program, and the axis under Construction revealed the difficulties that were observed. The identified categories were: Teaching-Service Partnership; Curricular Structure; Paradigm Change; and Teaching Practices. It was concluded that the participants understand the teaching-service integration as a potential strategy that can contribute to the process of change of practices in health education, although there are resistant groups. The curricular restructuring collaborated to develop new actions in education, as well as to improve the teaching and service integration.
Keywords: Teaching-care integration services. Dental education. Dental staff.
Este estudo, de abordagem qualitativa, investigou, por meio de entrevistas individuais e em grupo, a integração ensino-serviço entre uma universidade pública do sul do Brasil e os serviços públicos de saúde. Os dados foram analisados sob a Análise Temática de Conteúdo, e, na análise, emergiram dois eixos temáticos e quatro categorias. O eixo temático Ativador agrupou aspectos desenvolvidos no programa e o eixo em Construção revelou as dificuldades observadas. As categorias identificadas foram: Parceria Ensino-Serviço; Estrutura Curricular; Mudança de Paradigma e Práticas Pedagógicas. Conclui-se que os participantes compreendem a integração ensino-serviço como potencial estratégia colaboradora do processo de mudança de práticas na formação em saúde, apesar de haver grupos resistentes. O processo de mudança de práticas se desenvolveu ativamente a partir da reestruturação curricular. A integração ensino-serviço é um dos eixos que busca solidificar a proposta curricular, por meio de ações diversas na interface do ensino com o serviço.
Palavras-chave: Serviços de Integração docente-assistencial. Ensino de Odontologia. Recursos humanos em Odontologia.
Elaborado com base em Souza (2010), pesquisa parcialmente financiada por bolsa de estudos do Programa de Fomento à Pós-Graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 1 Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília. SQN 214, Bloco F, apto. 513. Asa Norte. Brasília, DF, Brasil. 70.873-060. analuizadesouza@ ymail.com 2 Departamento de Odontologia, Programa de Pós-Graduação em Odontologia, Universidade Federal de Santa Catarina. *
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Introdução A inadequação da formação em saúde ao longo do tempo tem gerado consequências prejudiciais ao sistema de saúde e à saúde da população, como: o desequilíbrio entre oferta e demanda de profissionais, a má-distribuição, as dificuldades de fixação, as competências e o conhecimento limitado, o desenvolvimento de estratégias equivocadas de gestão frente à realidade do serviço e à demanda populacional (Brasil, 2009). É no descompasso que existe entre a formação dos profissionais e as necessidades da população que está a grande barreira da relação Serviços de Saúde/Ensino em Saúde (González, Almeida, 2010). Dentre as características que contribuíram para a inadequação da formação dos profissionais de saúde está a fragmentação de conteúdos e a centralização do professor especialista no processo ensinoaprendizagem. Essa configuração do ensino privilegia a excessiva especialização e o distanciamento do profissional de saúde da preparação para o cuidado resolutivo e contínuo à população (Albuquerque et al., 2009). Campos et al. (2009) consideram a aprendizagem centrada no professor socialmente irresponsável, devido à postura passiva dos participantes (estudantes, docentes e gestores) neste processo. Desde o Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, diversas iniciativas têm sido propostas para enfrentar este descompasso entre as necessidades da população e o caráter formativo em saúde, dentre elas a reestruturação do processo de formação dos recursos humanos. Um marco histórico para a reorientação da formação em saúde foi a promulgação da Constituição Brasileira, em 1988, que, no Artigo 200, dispõe que o Ministério da Saúde é responsável pela ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde (Brasil, 2007). O Quadro 1 sumariza eventos importantes da última década no Ensino em Odontologia. Desde então, o governo tem se comprometido a cumprir a legislação, porém, isto tem sido feito com emprego variável de recursos e em diferentes intensidades. Uma das vertentes importantes da reestruturação é a integração ensino-serviço, que envolve: o quadro docente das universidades, os trabalhadores da saúde, a reorganização curricular dos cursos de graduação e pós-graduação, e o estabelecimento de vínculos com os serviços públicos de saúde. A integração ensino-serviço é compreendida como eixo do processo pedagógico, integra a universidade aos serviços de saúde, privilegia o estudante, seus conhecimentos, expectativas e experiências no processo de ensino-aprendizagem. O conteúdo programático do curso é elaborado de acordo com a prática em situação real de ensino e com o ambiente de trabalho. Portanto, o estudante tem a oportunidade de unir seus conhecimentos à prática do serviço e refletir sobre seu papel e atitudes junto à comunidade (Morita, Haddad, 2008; Pereira, Ramos, 2006; Yoder, 2006). Os currículos precisam ser construídos e reconstruídos cotidianamente com o intuito de promover efetivas mudanças no Ensino Superior, priorizando o pensamento, a crítica e a criatividade (Lemos,
Quadro 1. Eventos históricos que marcaram o ensino da Odontologia na última década
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1988
Constituição Federal – Saúde na Constituição Regulamentação do Sistema Único de Saúde
1990
Sancionada Lei Orgânica da Saúde
1993
II Conferência Nacional de Saúde Bucal
2002
Aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Odontologia
2003
Criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
2004
III Conferência Nacional de Saúde Bucal Criação do Fórum Nacional de Educação das Profissões na Área da Saúde (FNEPAS)
2005
Criação do Pró-Saúde (SGTES)
2008
Criação do PET-Saúde e UNA-SUS (SGTES)
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Fonseca, 2009). O foco deve ser na aprendizagem, oportunizando, ao estudante, a possibilidade de transformar, elaborar, integrar o novo conhecimento ativamente, rompendo com esquema de aulas e avaliação fechada (Campos et al., 2009). As novas DCN são o eixo orientador do atual projeto político-pedagógico de um curso de graduação em Odontologia, em uma universidade pública situada no sul do Brasil. Os incentivos do Pró-Saúde e do PET-Saúde ampliaram o espaço de discussão entre a universidade e os serviços públicos de saúde e a representatividade da integração ensino-serviço no cotidiano de ambas as instituições. O início das atividades junto aos serviços de saúde nesta universidade aconteceu na década de 1970, no contexto do movimento nacional na época denominado integração docente-assistencial. Atualmente, a universidade conta com a chamada Rede Docente Assistencial, responsável pelo processo de articulação ensino-serviço, da qual participam profissionais da Secretaria Municipal de Saúde, docentes, estudantes e representantes dos Conselhos de Saúde (SMS, 2008). A última reestruturação curricular do curso de graduação em Odontologia foi oficializada em 2006, com a aprovação de um projeto político-pedagógico que reúne dois eixos principais: o eixo interdisciplinar, ou da interação comunitária, e o eixo multidisciplinar. No eixo da interação comunitária, as atividades de integração ensino-serviço se iniciam no segundo semestre e se desenvolvem até o oitavo semestre, no âmbito da atenção básica. Posteriormente, a atuação dos estudantes contempla serviços de média e alta complexidade até o final do curso, no décimo semestre. As atividades desenvolvidas no serviço são orientadas por docentes e preceptores que acompanham os estudantes nos cenários de prática (Coordenadoria do Curso de Graduação em Odontologia, 2006). O currículo propõe aprendizagem construtivista, onde o estudante é responsável por seu aprendizado e o docente é o orientador do processo. As disciplinas são organizadas em eixos integrados e a formação ocorre em clínicas integradas de complexidade crescente, nos serviços e na comunidade. Há combinação de estratégias de ensino-aprendizagem de acordo com as características socioculturais da instituição, da sociedade e das necessidades dos estudantes (Alonso, Antoniazzi, 2010). O professor não é mais o centro do processo pedagógico e a doença é substituída pela saúde como estrutura fundamental do processo de aprendizagem (Campos et al., 2009). Este importante desafio a ser vencido pela universidade na ressignificação dos processos de ensinar – aprender – atuar deve ser acompanhado por meio de estratégias que possibilitem o direcionamento adequado das ações. Frente a esse contexto, justifica-se compreender a integração ensino-serviço a partir da percepção de seus participantes, procurando identificar os fatores que direcionam e/ou distanciam o referido Curso de Graduação em Odontologia da operacionalização de seu atual projeto político pedagógico.
Percurso metodológico Utilizou-se a metodologia qualitativa, e os dados foram coletados através da realização de entrevistas individuais e em grupo. Os métodos qualitativos têm sido aplicados de forma adequada para responder temas complexos, com os quais pesquisadores em saúde se confrontam, como a avaliação de reformas e mudanças organizacionais para oferta dos serviços de saúde, sob o ponto de vista de pacientes, profissionais de saúde e administradores (Pope, Mays, 2005). Segundo Flick (2004, p.28), “A pesquisa qualitativa é orientada para a análise de casos concretos em sua particularidade temporal e local, partindo das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais”. A seleção dos participantes para as entrevistas foi intencional, seguiu a lógica dos objetivos do estudo e o envolvimento dos participantes com o objeto de investigação. No âmbito dos serviços de saúde, envolveu gestores e cirurgiões-dentistas preceptores dos estudantes, nos cenários de prática dos serviços públicos de saúde. No âmbito da instituição de ensino, envolveu gestores, docentes e estudantes. Os estudantes participantes do estudo foram aqueles que se encontravam inseridos no novo currículo e que, no momento da coleta de dados, realizavam atividades nos serviços públicos de saúde. Portanto, participaram estudantes do primeiro ao quinto semestre do curso de graduação em Odontologia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1071-84, out./dez. 2011
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A pesquisa totalizou 14 participantes — número determinado pelo procedimento de saturação teórica dos dados, baseado nos critérios de resposta aos objetivos do estudo, recorte do objeto do estudo e referencial teórico (Yin, 2005). As entrevistas tiveram uma duração média de quarenta minutos, foram registradas com o auxílio de um gravador de voz digital, e estruturadas a partir de um roteiro de questões norteadoras, cujo foco foi o programa de integração ensino-serviço. Esse estudo foi realizado em observância à norma 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e suas complementares, com aprovação junto ao Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos. Após a coleta dos dados e transcrição das entrevistas, as informações foram analisadas seguindo os pressupostos da Análise Temática de Conteúdo. A análise perpassou por três etapas principais: préanálise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação junto ao referencial teórico. Durante a pré-análise foi realizada leitura flutuante do material, e estabelecimento das unidades de registro (categorização inicial). A fase de exploração do material procurou atingir o núcleo de compreensão do texto, através da classificação das informações em categorias e especificação dos eixos temáticos (Minayo, 2006; Bardín, 1979).
Resultados e discussão A análise das informações possibilitou a identificação de dois eixos temáticos: um eixo ativador e um eixo em construção. O eixo temático ativador é aquele onde se encontram os aspectos desenvolvidos, em direção à reflexão e mudança de práticas. Por outro lado, o eixo em construção representa a face em desenvolvimento, onde se encontram as dificuldades e entraves observados em diferentes dimensões do processo. Os eixos temáticos orientaram a identificação de quatro categorias: parceria ensino-serviço; estrutura curricular; mudança de paradigma; e práticas pedagógicas. Aliados ao referencial teórico, os dados geraram o seguinte esquema (Figura 1).
EIXO ATIVADOR EIXO EM CONSTRUÇÃO
A PARCERIA ENSINO-SERVIÇO
A ESTRUTURA CURRICULAR
A interface entre a universidade e os serviços de saúde
A rede de integração
A MUDANÇA DE PARADIGMA
As atividades no ensino e no serviço
A disposição disciplinar
A credibilidade e pertinência da proposta
A morosidade do processo de mudança
A sobrecarga As estratégias de trabalho
A presença de grupos resistentes
Figura 1. Esquema ilustrativo dos eixos temáticos e categorias
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AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Ensino/ aprendizagem O estudante nos serviços
A formação do docente e do preceptor
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Os resultados são descritos a seguir, acompanhados da discussão, divididos entre as categorias analisadas. Fragmentos de entrevistas acompanham a discussão e estão em destaque.
Parceria ensino-serviço A integração ensino-serviço faz parte de um processo de reflexão de práticas curriculares, planos e conteúdos de ensino, que têm sido consolidados à medida que o curso de graduação em Odontologia avança em semestres. O estabelecimento da parceria entre a Universidade e os serviços públicos de saúde obteve maior representatividade à medida que as questões curriculares foram motivadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e por programas colaboradores, como o Pró-Saúde e o PET-Saúde (Brasil, 2009, 2005, 2002; Silva, 2008). Surgiu, então, a Rede de Integração, dotada de regimento próprio e membros diretores de ambas as instituições, o que possibilitou o estabelecimento de relações de trabalho diferenciadas e a possibilidade de tomada de decisões pactuadas. São exemplos de tais decisões: a escolha dos locais de atuação dos estudantes nos cenários de prática e a aplicação de recursos do Pró-Saúde e do PET-Saúde. A decisão sobre as unidades de saúde que recebem os estudantes considera: a garantia de estabilidade das atividades do serviço com a presença do ensino, a disponibilidade dos cirurgiões-dentistas da unidade em atuar na preceptoria, a estrutura física e pessoal da unidade, a necessidade social e o interesse à formação. Para modificar o contexto da parceria entre universidade e serviço, as instituições pesquisadas têm investido na ampliação e aprimoramento da estrutura física do serviço, na formação dos preceptores, na realização de pesquisas no nível da atenção básica e na atuação dos estudantes em diferentes ocasiões, potencializando atividades de prevenção, educação e recuperação da saúde. As experiências de integração vivenciadas até o momento foram agradáveis aos participantes, e os gestores se destacam como principais articuladores do processo. Feuerwerker e Sena (2002) ponderam as características essenciais de uma proposta de inovação curricular: a organização curricular em módulos integrados, baseados em problemas extraídos da realidade; metodologias ativas de ensino-aprendizagem; prática nos serviços, interação com a comunidade desde o início do curso e avaliação permanente do processo. Estas características se fazem presentes no Curso analisado por este estudo e de maneira crescente têm sido consolidadas. A universidade participa do Programa PET-Saúde. O programa PET foi idealizado como uma das ações intersetoriais potencializadoras do Pró-Saúde, pois favorece a atuação pedagógica na atenção básica, com o envolvimento de preceptores, docentes e estudantes. Visa o desenvolvimento de pesquisas, práticas de atenção e formação dos estudantes e preceptores. Reforça a importância da desconcentração de papéis e responsabilidades, e da formação pedagógica para atuação dos preceptores como educadores e participantes ativos do desenvolvimento curricular (Brasil, 2009, 2008; Silva, 2008; Schmidt, 2008). Tais iniciativas fortalecem a corresponsabilização das instituições: a universidade na prestação do cuidado e os serviços na atuação junto à formação (Albuquerque et al., 2008). De acordo com Araújo e Zilbovicius (2008); Morita e Haddad (2008) e Silva (2008), as atividades que intencionam a integração teórico-prática, o trabalho em equipe e a prestação de cuidado integral à saúde têm a possibilidade de potencializar a formação, a reorganização do modelo de atenção e o enfrentamento das necessidades em saúde da população. A integralidade do ensino em saúde afirma a formação pautada no cuidado humanizado e na promoção da saúde (González, Almeida, 2010). A combinação de critérios utilizada na parceria universidade/serviço é julgada adequada frente ao proposto pelo Ministério da Saúde e da Educação, e às diretrizes do Pró-Saúde (Brasil, 2008, 2005). A integração, através da Rede de Integração, é um pilar importante das atividades entre ensino e serviço, pois se trata de uma proposta formalizada. Segue os desígnios da Lei 8.080/1990 (Artigo 14), que diz que deverão ser criadas comissões permanentes de integração entre os serviços de saúde e as instituições de ensino profissional e superior, com o intuito de cooperar técnica e cientificamente e para proposição de prioridades na formação e na educação permanente (Brasil, 1990). Tais direcionamentos vão ao encontro da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Superior e das Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 1990, 2002). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1071-84, out./dez. 2011
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Estrutura curricular As incursões dos estudantes nos cenários de prática ocorrem desde o segundo semestre do curso de graduação em Odontologia, onde são desenvolvidas atividades na atenção básica. Entretanto, os níveis secundário e terciário de atenção (média e alta complexidade) são contemplados somente após o sexto semestre do curso. Previamente às atividades de campo, existe uma fase de planejamento e orientação teórica, onde docentes, preceptores e estudantes contribuem na definição das atividades a serem executadas e têm a oportunidade de manifestar sua opinião. “E aí a gente está participando nesse processo junto, em alguns momentos nós até comentamos que agora estamos tendo que ajudá-los [os estudantes] a decidir o que eles vão pesquisar. Claro que sempre tentamos pensar o que será útil para eles e que também possa dar um retorno para nós no Centro de Saúde, como muitos aqui tiveram, nos trabalhos, nas pesquisas. Isso foi algo bastante enriquecedor”. (preceptor B)
Por outro lado, existem algumas atividades sem planejamento, que fazem com que o encaminhamento dos estudantes seja diretamente aos cenários de prática, sem que haja um diálogo prévio com o serviço, o que prejudica a dinâmica das atividades. “Eu vejo que às vezes existe algum conflito, porque a Universidade quer que eles [referindo-se aos estudantes] façam determinada coisa, mas que na prática não condiz com a nossa realidade. Então acaba criando um certo conflito ou um desconforto entre o serviço e a Universidade”. (preceptor C)
As atividades no início do curso ficam centradas na atenção básica, um espaço privilegiado para a exploração do ambiente, da unidade de saúde, dos recursos e da dinâmica da comunidade. Os exercícios focam, sobretudo, o diagnóstico da situação de saúde da população, e não o enfrentamento de problemas pelos estudantes. Nos semestres mais avançados, o programa prevê que os estudantes executem atividades variadas em todos os níveis de atenção, direcionadas à Odontologia e à saúde geral, com participação em grupos de promoção e educação em saúde. Tal planejamento está em concordância com os direcionamentos relatados por Morita e Haddad (2008). Entre as atividades já realizadas pelos estudantes, destacam-se aquelas fundamentadas na epidemiologia geral e bucal, bioestatística, planejamento, programação e avaliação em saúde bucal, aplicadas à comunidade. O reconhecimento da estrutura do serviço e a coleta de dados epidemiológicos são atividades relevantes na formação direcionada aos serviços públicos de saúde. Os estudantes anseiam pela possibilidade de ampliarem sua atuação na comunidade: “Então eu acho que o trabalho é importante, não tem que parar, mas pode se tornar bem melhor, pode ampliar. E não só no sentido que eu estou fazendo agora de ajudar os outros, não. Quando eu estiver na sexta fase quero fazer uma coisa maior ainda, tentar resolver os problemas”. (estudante D)
As atividades das disciplinas da Saúde Pública/Coletiva têm recebido atenção diferenciada pelos estudantes, que têm as enfrentado com mais seriedade, apresentando-se mais participativos e ativos. “Ali eu sinto que há uma diferença de interesse pela disciplina, os alunos comparecem a aula, a participação deles na aula, comentários e tudo mais. O que para mim é diferente, é novo, e eu estou atribuindo a esta mudança toda que já começou no currículo deles”. (docente B)
A atribuição de valores às disciplinas precisa ser conduzida de maneira equilibrada. Historicamente, as disciplinas que envolvem aspectos biológicos e intervenções clínicas recebem maior investimento e 1076
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ganham destaque no currículo. Já as disciplinas que propõem reflexões e ações no campo da ética e das ciências humanas recebem pouca atenção (Albuquerque et al., 2009). Este é um dos paradigmas que a nova estrutura curricular pretende modificar, trazendo, aos estudantes, tais disciplinas equilibradamente na formação contextualizada. Os estudantes reconhecem que as disciplinas encontram-se articuladas e percebem a relação existente entre a formação social e técnica, posicionando o conhecimento sobre o SUS como parte global da formação (Araújo, Zilbovicius, 2008). Tais achados estão consoantes com os relatos de Matos e Tomita (2004), que realizaram entrevistas com estudantes e concluíram que, apesar da permanência da visão mercadológica, há concepção ampliada da Saúde Coletiva. As atividades de planejamento criam espaços coletivos de discussão, onde as propostas podem ser acompanhadas, avaliadas e tornam-se motivadoras para o comprometimento dos participantes (Schmidt, 2008). A formação pautada na integralidade deve associar estágios na atenção básica a outros campos de produção da saúde, durante todo o curso. Diversas escolas têm direcionado as atividades da mesma maneira que o curso observado neste estudo, o que se percebeu como uma atitude relevante, porém não eficaz na integração dos campos de conhecimento da profissão e multiprofissionais (Brasil, 2008). A avaliação do Ministério da Saúde prevê que, mesmo em fases iniciais do curso, é importante que os estudantes percebam a integração entre os níveis de assistência, para que sejam capazes de desenvolver habilidades que possibilitem a produção de níveis crescentes de saúde na população, equilibrando ações sociais e formação técnica. Dessa maneira, cria-se oportunidade para o enfrentamento de diferentes problemas, em todos os cenários onde ocorre a prática profissional (Araújo, Zilbovicius, 2008; Brasil, 2008; Morita, Haddad, 2008). As atividades em cenários de prática, aliadas ao conteúdo teórico do Curso, geram alta carga horária semanal, diminuindo a flexibilidade curricular, limitando a participação dos estudantes em projetos de extensão e pesquisa, que poderiam contribuir com a sustentabilidade das mudanças (Brasil, 2008). A alta carga de atividades também traz sobrecarga ao trabalho dos gestores, docentes e preceptores. Esta dificuldade foi relatada por Lemos e Fonseca (2009), que realizaram entrevistas — e, unanimemente, os entrevistados criticaram a elevada carga horária semanal, que limita o tempo de dedicação ao estudo e a atividades extras. Um dos entrevistados considerou a carga horária um verdadeiro “massacre pedagógico”. Neste estudo, os preceptores relataram que a formação profissional até então não fazia parte da agenda de trabalho, e que o acréscimo de mais uma função sobrecarrega a estrutura do serviço. Tais considerações também são relatadas por González e Almeida (2010).
Mudança de paradigma Há certeza de objetivos pelos participantes. “Não dá para nós querermos que hoje esteja desse jeito e amanhã de outro. O currículo mudou então amanhã já vai ser diferente. Não! A coisa é gradativa. Temos que nos fortalecer com as pequenas mudanças que acontecem, que daí tu tá vendo que antes não era assim e agora já é. Então já melhorou. Então não está sendo em vão”. (gestor B)
A credibilidade e a pertinência das ações são percebidas pelos participantes do programa de integração ensino-serviço, que sentiam necessidade da mudança de práticas: “Mas por muito tempo eu sonhei em ter estudantes que vissem o que acontece na realidade [...]. Normalmente ele não imagina aquilo ali, ele não sabe como se articula um serviço de saúde, como se trabalha em equipe, como se conhece a população, como se consegue fazer atenção básica para uma determinada região, ele não tem essa noção. Por mais que ele aprenda na Universidade o que é o SUS, ele vai ver a realidade lá no serviço”. (preceptor A)
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Uma das características desejáveis na formação é o desenvolvimento de capacidades para o trabalho multiprofissional e interdisciplinar. Ferreira et al. (2006) destacam que a solidariedade deve estar presente entre os atuantes na equipe, para que compartilhem saberes e práticas. No curso de graduação em Odontologia analisado por este estudo, até o momento não foi possível organizar atividades intercursos que estimulariam o trabalho interdisciplinar, devido à dificuldade em conciliar o horário das disciplinas e dos docentes e à capacidade física limitada de algumas unidades de saúde. Para reverter esse quadro, está sendo realizado um movimento através da Rede de Integração, onde os coordenadores dos cursos de Enfermagem, Medicina, Odontologia e outros cinco cursos da área da saúde discutem a possibilidade de se articularem momentos comuns de aprendizagem. “Se tiver dentro duma Unidade só estudantes da Odontologia, é uma realidade, se você tiver uma equipe de saúde que envolve a Odonto, Medicina e quem sabe, futuramente, Fisioterapia, Nutrição, etc.; você possa fazer um trabalho conjunto das várias especialidades em prol de um objetivo comum, em benefício da instituição, do aluno e da comunidade”. (preceptor A)
Segundo o Relatório do II Seminário Nacional do Pró-Saúde, o arranjo para o direcionamento de atividades multiprofissionais pode ser feito através de: alocação dos estudantes nos mesmos campos de estágio; desenvolvimento conjunto de atividades entre diferentes cursos da área da saúde; atividades de extensão e pesquisa; e interação em ambientes onde há Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Outro dispositivo é a criação de disciplinas ou módulos integradores como promotores de atuação coletiva. A qualificação dos profissionais de saúde para o trabalho multiprofissional é um objetivo a ser alcançado. As atividades práticas nas comunidades devem ser priorizadas entre os profissionais, para que a organização do trabalho em equipe reconheça a limitação de um único profissional para atender as necessidades de saúde do indivíduo e da comunidade, em todos os níveis de atenção à saúde (LochNeckel et al., 2009). Percebe-se o conflito entre o novo e o velho, a busca por novas maneiras de praticar, formar e produzir conhecimento em saúde. A reforma traz questões que direcionam a construção de sujeitos coletivos e ao êxito das ações em saúde (Feuerwerker, Sena, 2002). Compreende-se que o processo de reflexão de práticas é gradativo e moroso, visto o enraizamento das práticas vigentes. A morosidade das mudanças acompanha o processo de reforma do setor saúde, induzidas pelo SUS e suportadas por movimentos sociais e recursos financeiros (Araújo, Zilbovicius, 2008).
Práticas pedagógicas Percebe-se a concordância dos participantes com a reflexão sobre as atividades, entretanto essa anuência não é unânime. Os interesses mercadológicos prevalecem nas falas de alguns estudantes. Esta mesma conduta foi observada por Lemos e Fonseca (2009). “Vai influenciar para pessoas que não conhecem a profissão. Meu pai é dentista também, entende? Eu acho que ele já tem uma carreira, já tem a clínica e eu vou usufruir disso. Mas uma pessoa que não tem essa base vai... Hoje em dia o mercado está acirrado, muitos dentistas. Eu acredito que essas pessoas, por exemplo, muita gente da nossa sala, vai para o postinho, vão fazer PSF, essas coisas... Porque o mercado está difícil, tem que ser muito bom para ganhar clientela, essas coisas. Eu acho que a tendência é essa, o pessoal tentar procurar emprego no PSF, se encaixar no SUS”. (estudante C)
Existe a divisão de opiniões dos estudantes entre favoráveis e desfavoráveis à mudança. Aqueles que acreditam na mudança consideram a formação atual um diferencial de empregabilidade no futuro, e os demais não consideram que a reestruturação curricular pode contribuir de alguma maneira na sua formação. 1078
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“Eu sempre achei esse currículo novo a melhor opção. E se eu tivesse entrado no currículo antigo e tivesse vendo o currículo novo acontecer, eu iria voltar, assim como um monte de gente já voltou, eu iria voltar, a despeito de me formar antes, entrar no mercado de trabalho. Eu tenho noção de que o meu currículo é muito melhor para o meu futuro”. (estudante D)
O grupo de docentes também se apresenta heterogêneo quanto à concordância com as mudanças curriculares. “É porque são pessoas que se formaram há muito tempo, que sempre atuaram em clínica privada, que a perspectiva deles é o consultório privado. [...] Alguns desqualificam todo o esforço tanto da coordenação quanto dos outros profissionais que estão, mas eu acho que é isso, a gente precisa estar tensionando”. (docente A)
Alguns estudantes consideram as atividades nos cenários de prática a parte mais importante do curso, que aliadas à orientação teórica, oportunizam um olhar crítico ao Sistema, fundamentado na aprendizagem contextualizada. “Então eu acho que com essas atividades a pessoa vê um outro jeito do SUS. Então ela tem uma experiência ótima. Porque aí a gente saiu ótimo, vendo o SUS perfeito para trabalhar. Nós achávamos que o SUS era tudo largado... O que a gente viu foi uma coisa bem organizada e isso vai nos ajudar bastante, não só pensando em atender no particular, como nos Postos de Saúde”. (estudante A)
O depoimento acima representa a visão dos estudantes sobre os serviços públicos, considerando-os de baixa qualidade e insuficientes. Tal percepção é relatada por Santa-Rosa et al. (2007), que realizaram grupos focais e observaram a modificação dessa visão após as atividades de campo, assim como observado entre alguns estudantes envolvidos neste estudo. Os gestores e os trabalhadores dos serviços públicos percebem tal impressão no grupo de estudantes e docentes, gerando desconforto na relação ensino/serviço (preceptor/estudante/docente). “E acho que ainda existe o problema do preconceito, esse é muito forte. De que existe uma Odontologia de consultório e uma Odontologia de serviço público. [...] Ele pode não ser claro, mas tu percebes que existe essa visão de que no serviço público é algo, vamos dizer assim, de menor qualidade. Então que se nós trabalharmos com nossos alunos para eles irem para as Unidades, que eles vão sair profissionais com menos qualidade, menos formados. É triste”. (gestor A)
No presente estudo, tanto os preceptores quanto os docentes encontram-se fragilizados e necessitam de formação para atuar de maneira mais resolutiva na nova lógica curricular. A relação entre preceptores e docentes é percebida como a mais delicada entre os participantes do programa, e pode ser fortalecida por meio de atividades conjuntas que estimulem o conhecimento um do outro, a troca de saberes e o compartilhamento de responsabilidades. As dificuldades no processo fazem com que os preceptores sintam-se desestimulados com as atividades no ensino, e isso reflete no seu aproveitamento e participação. O grupo de docentes também vivencia dificuldades em relação às atividades de campo, demonstrando resistência em acompanhar os estudantes nos cenários de prática e no aceite da proposta de mudança. Na comunidade, os estudantes realizam atividades que dinamizam o trabalho da equipe de saúde, instigando atitudes crítico-reflexivas dos profissionais. “Então existe uma riqueza bastante grande dessa presença dos alunos ali dentro da Unidade de Saúde e não só pela pesquisa, mas também as intercorrências trazem muitos benefícios para eles, e para a gente. Querendo ou não, dá uma reflexão tanto do profissional que está ali dentro tanto dos alunos, porque entra em choque de informações e de realidade”. (preceptor C)
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Toassi (2008) observou que a resistência frente à implantação de um currículo modular foi manifestada principalmente por docentes, enquanto os estudantes se mostraram receptivos e avaliaram positivamente a mudança. No presente estudo foi observado que os docentes apresentam resistência em relação à modificação de suas práticas de ensino, e alguns estudantes não se sentem sensibilizados e inseridos na proposta, concordando com os achados de Schmidt (2008). Historicamente, o professor de Odontologia é o profissional bem-sucedido, com disponibilidade para o ensino. As necessidades provenientes da atividade docente no contexto educacional atual demandam, além da formação técnica, a didático-pedagógica (González, Almeida, 2010). A formação do professor é um desafio para as instituições de Ensino Superior e depende da motivação pessoal e, sobretudo, institucional. Com a falta de motivação, os professores desenvolvem sua profissionalidade docente de forma empírica e intuitiva, baseados, especialmente, em experiências pessoais (Bazzo, 2007). Percebese a necessidade de formação dos docentes na dimensão didático-pedagógica. Sobretudo, os docentes devem se dispor a atuar de forma diferente, ensinar e aprender de modo diferente, pois a conduta inovadora no processo de ensino-aprendizagem requer a utilização de metodologias de ensino que estimulem a participação dos estudantes, como protagonistas do aprendizado, e posicionem os docentes e preceptores como orientadores (Schmidt, 2008; Toassi, 2008; Moysés, 2004). Um dos grandes acréscimos trazidos com a formação aliada ao serviço é o conhecimento dos serviços públicos de saúde como realmente estão estruturados (Moysés, 2004). Outro benefício importante proveniente das atividades de campo é o contato com a comunidade, que proporciona a oportunidade de percepção do indivíduo, inserido no meio social, possibilitando a formação humanizada em saúde (Araújo, Zilbovicius, 2008). O processo de corresponsabilização deve ser fortalecido. No serviço, facilitaria o envolvimento dos preceptores e buscaria o envolvimento dos gestores das unidades de saúde. No ensino, a corresponsabilização pelo serviço traz a possibilidade de potencializá-lo (Araújo, Zilbovicius, 2008; Morita, Haddad, 2008). Tais dificuldades também se encontram presentes no relatório do seminário nacional do Pró-Saúde, que sugere a formação técnica e pedagógica dos docentes (Brasil, 2008). De acordo com González e Almeida (2010, p.760), “identificar a necessidade de mudança, buscar novos conceituais e explorar práticas inovadoras” são elementos indispensáveis, mas não suficientes para superar o paradigma hegemônico instalado nas instituições de ensino. É preciso aproximação e comprometimento de todos os participantes, fazendo com que as mudanças cheguem às salas de aula. Observa-se que todas as categorias sinalizam aspectos ativadores e em construção do programa de integração ensino-serviço. Para sintetizar e tornar mais clara a visualização dos resultados, foi elaborado um esquema posicionando os dados em relação aos eixos temáticos (Quadro 2).
Quadro 2. Quadro-síntese dos resultados aliados aos eixos temáticos EIXO ATIVADOR
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EIXO EM CONSTRUÇÃO
Rede de integração universidade/serviço: trabalho intersetorial
Institucionalização da proposta
Bom relacionamento entre gestores: articulação do processo
Definição de papéis dos participantes
Novas práticas na dinâmica ensino/serviço
Sobrecarga de atividades
Formação dos estudantes
Alta carga horária curricular
Inserção nos cenários de prática: aliam necessidades do ensino e do serviço
Deficiência na variabilidade dos cenários de prática
Planejamento conjunto das atividades
Heterogeneidade da relação docente/preceptor
Receptividade dos participantes
Presença de grupos resistentes
Busca por equacionar falhas e dificuldades
Corresponsabilização do ensino e do serviço
Há certeza de objetivos: credibilidade e pertinência das ações
Formação de docentes e preceptores
Metodologias de ensino-aprendizagem
Atividades multiprofissionais intercursos
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Considerações finais Com este estudo, foi possível compreender, a partir da percepção dos participantes, a integração ensino-serviço entre os serviços públicos de saúde e o curso de graduação em Odontologia, de uma universidade localizada no sul do Brasil. A categoria parceria ensino-serviço destaca-se como eixo ativador, enquanto os demais aspectos observados dividem-se entre o eixo ativador e em construção. A integração ensino-serviço é percebida como potencial estratégia colaboradora do processo de mudança de práticas na formação em saúde, apesar de haver grupos resistentes. O processo de mudança de práticas se desenvolveu ativamente a partir da reestruturação curricular e da reforma do projeto político-pedagógico do curso. A integração ensino-serviço é um dos eixos que buscam solidificar a proposta curricular, através de ações diversas na interface do ensino com o serviço. A formalização da integração ensino-serviço, através da rede de integração, é uma potencialidade que colabora com o diálogo entre as instituições, os gestores e os demais participantes do processo pedagógico, fortalecendo a relação interinstitucional. As atividades de integração têm tido uma articulação adequada entre as instituições, e as dificuldades fazem parte do processo de mudança e têm sido corrigidas conforme o progresso do curso, em diferentes momentos, após exaustivas avaliações e discussões. As atividades previstas dentro da nova dinâmica curricular demandam mais tempo e dedicação dos participantes. Os estudantes sentem-se limitados pela alta carga horária do curso para dedicarem-se a atividades extras, como projetos de extensão, pesquisa e estágios. Os preceptores sentem dificuldade em aliar suas atividades regulares ao ensino, o que pode ser amenizado com a adesão de mais profissionais. Já no caso dos docentes, para distribuição das atividades, está sendo realizada a ampliação do quadro docente, por meio da contratação de professores efetivos e substitutos. A sobrecarga dos espaços físicos do ensino e, sobretudo, do serviço tem sido amenizada com o investimento de recursos, advindos sobretudo do Pró-Saúde, na ampliação, equipamento e melhoria dos ambientes utilizados pelos estudantes. Os cenários de prática estão concentrados na atenção básica e inserem os estudantes nas unidades de saúde. Observou-se a necessidade de inclusão de maior variedade de cenários de prática nos períodos iniciais do curso, pois é importante que os estudantes percebam, desde o início, a aplicabilidade dos princípios da integralidade. Também são necessárias atividades motivadoras de enfrentamento de problemas em saúde pelos estudantes. Atualmente, as atividades nos cenários de prática focam o diagnóstico, o reconhecimento da comunidade e suas características. Espera-se, com o decorrer do curso, desenvolver atividades que motivem os estudantes ao enfrentamento de problemas e situações adversas em saúde, para o desenvolvimento de características de autonomia profissional. A formação dos estudantes se percebe diferenciada em relação às disciplinas de caráter social, ao contato com a comunidade e ao conhecimento do Sistema Único de Saúde. Tais direcionamentos são adequados frente ao previsto pelo Ministério da Saúde e da Educação (Brasil, 2009). Evidenciam-se as novas abordagens de ensino-aprendizagem, como a utilização de metodologias que estimulam a participação ativa dos estudantes e propõem uma avaliação processual frente à proposta de ensino. A receptividade dos participantes frente à proposta se mostrou heterogênea; alguns são muito favoráveis, no entanto, existe a presença de grupos resistentes, especialmente entre os docentes. A dissolução desses posicionamentos poderia ser realizada através da divulgação do projeto e do contexto em que está envolvido (parte de um movimento nacional e mundial) para todos os participantes. Dessa maneira facilitaria a conscientização da dimensão dos acontecimentos e da necessidade iminente da participação. Os docentes precisam ser capacitados para atuação fora da universidade, para o acompanhamento das atividades dos estudantes nos cenários de prática. Os preceptores precisam de formação didáticopedagógica para interação adequada com os estudantes nos serviços públicos de saúde. De modo geral, observou-se que todas as dificuldades identificadas pelo estudo têm sido enfrentadas. Apesar das resistências e fragilidades, a perspectiva futura é positiva. Como caminhos a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1071-84, out./dez. 2011
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seguir, visualizam-se: a necessidade de capilarizar o projeto através da divulgação, desenvolver ambientes de diálogo entre os participantes, para que compartilhem conquistas e dificuldades; e oferecer atividades de formação. Para acompanhamento e avaliação totalizadora do curso, recomenda-se a realização de estudo semelhante quando as atividades curriculares inovadoras contemplarem todos os semestres. Os novos estudos podem incluir os gestores das unidades de saúde e a comunidade nas entrevistas, visto que esta foi uma limitação do presente estudo. A integração ensino-serviço mostra-se fundamental para a operacionalização do atual projeto político pedagógico do curso de Odontologia envolvido neste estudo. Dentre as soluções para os problemas encontrados na relação entre as instituições estudadas, destaca-se a longitudinalidade das ações. A continuidade e conclusão do projeto de reforma curricular em curso contribuirão para a consolidação dos espaços de diálogo construídos e para uma maior integração entre os envolvidos durante o planejamento, realização e avaliação das atividades pedagógico-assistenciais.
Colaboradores Ana Luiza de Souza realizou a pesquisa do referencial teórico, a coleta e análise dos dados; elaborou o relatório da pesquisa e o artigo. Daniela Lemos Carcereri participou como orientadora durante todas as fases da pesquisa e da elaboração do manuscrito. Referências ALBUQUERQUE, V.S. et al. Currículos disciplinares da área da saúde: ensaio sobre saber e poder. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.261-72, 2009. ______. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais de saúde. Rev. Bras. Educ. Med., v.32, n.3, p.35662, 2008. ALONSO, M.S.; ANTONIAZZI, J.H. (Coord.) Livro do Projeto Latino-Americano de Convergência em Educação Odontológica (PLACEO). São Paulo: Artes Médicas, 2010. ARAUJO, M.E.; ZILBOVICIUS, C. A formação acadêmica para o trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS). In: MOYSÉS, S.T.; KRIGER, L.; MOYSÉS, S.J. (Orgs.). Saúde bucal das famílias: trabalhando com evidências. São Paulo: Artes Médicas, 2008. p.277-90. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. BAZZO, V.L. Constituição da profissionalidade docente: desafios e possibilidades. 2007. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. A Educação e o Trabalho na Saúde: A Política e suas Ações. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. ______. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Relatório do II Seminário Nacional do Programa de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. 1082
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Palabras clave: Servicios de integración docente-asistencial. Enseñanza de Odontología. Recursos humanos en Odontología. Recebido em 06/07/10. Aprovado em 09/01/11.
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artigos
Sociologia das profissões e percepção de acadêmicos de Odontologia sobre o Agente Comunitário de Saúde em Saúde Bucal Rodrigo Otávio Moretti-Pires1 Levi Abraão Marinho Lima2 Maria Helena Machado3
MORETTI-PIRES, R.O.; LIMA, L.A.M.; MACHADO, M.H. Sociology of professions and Dentistry academics’ perception about the Community Health Agent in Oral Health. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1085-95, out./dez. 2011. Professional action in the Family Health Program requires that dentists have an attitude that breaks with traditional clinical practices, such as the articulation with the Agente Comunitário de Saúde (Community Health Agent – ACS) in this context of teamwork. These questions refer to the field of Sociology of Health Professions. This article investigates the perception of Dentistry academics about the ACS performance in oral health work. Concerning the methodology, we used 40 interviews with Dentistry academics from a federal university, and the interviews were treated by a hermeneutical-dialectical process. The results point to lack of training in multiprofessional teamwork, difficulties in working in Public Health, and also lack of knowledge about the tasks of the Family Health Team members, in particular about the ACS’s tasks within Oral Health.
Keywords: Medical sociology. Dental students. Family Health. Health manpower. Oral Health.
A atuação profissional no Programa de Saúde da Família exige dos odontólogos uma postura que rompa com práticas clínicas tradicionais, a exemplo da articulação com o ACS neste contexto de trabalho em equipe. Estas questões remetem ao campo da sociologia das profissões de saúde. O presente artigo objetiva investigar a percepção de acadêmicos de Odontologia sobre a atuação dos ACS junto ao trabalho de Saúde Bucal. Em termos metodológicos, foram utilizadas quarenta entrevistas com acadêmicos de Odontologia de uma universidade federal, tratadas por um processo hermenêutico-dialético. Os resultados apontam para a falta de formação no trabalho em equipe multiprofissional, a existência de dificuldades para atuação em Saúde Coletiva, assim como para a deficiência no conhecimento das atribuições dos membros da equipe de Saúde da Família, em especial sobre as atribuições dos ACS junto à Saúde Bucal.
Palavras-chave: Sociologia médica. Estudantes de Odontologia. Saúde da Família. Recursos humanos em saúde. Saúde bucal.
1 Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário, Trindade, Florianópolis, SC, Brasil. 88.040-900. rodrigomoretti@ccs.ufsc.br 2 Universidade Federal do Amazonas. 3 Escola Nacional de Saúde Pública.
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Introdução A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 foi um marco inicial e histórico de profundas mudanças no setor da saúde, desencadeando uma reorganização do sistema e de diversos mecanismos, procurando sua implementação de fato no arcabouço dos princípios ideológicos da Universalidade, Equidade e Integralidade. Na década de 1990, a necessidade de transformação levou à reformulação da atenção primária, processo que estabeleceu o Programa de Saúde da Família (PSF) como estratégia para a consolidação do sistema dentro dos referidos princípios fundamentais. O PSF traduz avanços no modelo de atenção pela priorização da atenção primária frente à atenção hospitalar ou ao nível especializado. Em termos de processo de trabalho, formaliza, dentro do SUS, a mudança da prioridade na doença e no indivíduo para o foco na saúde e na coletividade - mais particularmente, na família, de forma integral e contínua (Brasil, 2006). Neste modelo há um caráter diferenciado no processo de trabalho, constituído por equipe multidisciplinar, com ações intersetoriais e participação da população, o que exige novas formas de atuação e postura dos profissionais de saúde inseridos, incluindo os odontólogos (Baldani et al., 2005). Neste ínterim, preconiza-se romper com as práticas tradicionais na assistência, voltadas para processos biológicos, redirecionando o enfoque para o processo de determinação social da saúde (Rabello, Cotbino, 2001). A configuração do trabalho no PSF oferece condições legais para atuação multidisciplinar, capaz de estabelecer conexões entre os conhecimentos de uma profissão e os de outra, com a finalidade de atuação em novas práticas sem excluir a identidade de cada um (Baldani et al., 2005; Moysés, Silveira Filho, 2002; Rabello, Cotbino, 2001). A pesquisa nacional de amostras por domicílio revelou graves deficiências em termos de Saúde Bucal na população brasileira (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000), resultando na inclusão da Odontologia entre a equipe mínima do PSF em dezembro de 2000. Em teoria, a inserção da Saúde Bucal no modelo possibilitaria romper com a exclusão não apenas de acesso aos serviços desta natureza, mas também pela lógica do cuidado integral que foge ao curativismo, tecnicismo e biologicismo (Souza, Roncalli, 2007; Calado, 2002). Mesmo anteriormente à inclusão da Saúde Bucal no PSF, há registros de experiências bem-sucedidas de incorporação do odontólogo no PSF, o que corrobora a importância deste profissional para a saúde integral. No intervalo de dez anos da incorporação (2001-2010), o número de equipes de Saúde Bucal aumentou de 2.248 para 20.103 em todo o país, demonstrando a importância do incentivo do Estado para a consecução da Odontologia neste novo modelo (Brasil, 2010). Moysés, Moysés e Krüger (2008) defendem que existem problemas críticos para o pleno desenvolvimento do PSF em termos da inserção da Saúde Bucal em seu escopo, sobretudo em relação à deficiência deste modelo em termos práticos, de consonância com seus princípios norteadores, e à falta de qualificação dos odontólogos para o modelo, já que sua formação pauta-se no modelo biomédico. A inserção do odontólogo no processo de trabalho em Saúde da Família gerou discussões sobre a formação dos profissionais de saúde frente às demandas deste modelo de atenção. A necessidade de se formar um profissional que cuide da Saúde Bucal de acordo com os princípios da Saúde da Família mostrou-se premente, de forma que os Ministérios da Saúde e da Educação têm discutido novas orientações para os currículos de graduação. Essa realidade não se aplica apenas à Odontologia, mas a demais áreas da saúde, em especial a Enfermagem e a Medicina, as três profissões de nível superior que se inserem no PSF atualmente (Moretti-Pires, 2008). Em particular, um tema imbricado neste contexto é atuação do Agente Comunitário de Saúde (ACS), que exerce funções de grande importância ao estar implicado no contato permanente da equipe com a população e no vínculo com os usuários, sendo, muitas vezes, membros da própria comunidade. Apesar da não-exigência de formação técnica específica, suas principais funções referem-se à identificação de problemas e distúrbios de saúde na população, havendo necessidade de conhecimentos básicos de saúde, articulando o conhecimento geral com saberes específicos de cada área, entre elas a Saúde Bucal (Brasil, 2006).
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Paralelamente, a atuação do ACS diz respeito, também, ao seu papel como educador para a saúde, fortalecendo a capacidade da própria população de enfrentar os problemas de saúde, em um genuíno processo de empoderamento, uma vez que seu processo de trabalho o leva a estar na interface entre comunidade e equipe de saúde (Silva, Trad, 2005; Silva, 2001; Gonzaga, Müller-Neto, 2000). No entanto, é exíguo o debate sobre o envolvimento do ACS e a equipe de Saúde Bucal (Levy, Matos, Tomita, 2004; Nunes et al., 2002), tema que incide diretamente na efetivação do PSF enquanto modelo de atuação de equipes multiprofissionais de fato (Moretti-Pires, 2008). Este contexto tem especial interesse para o campo da Sociologia das Profissões de Saúde. Investigações que se refiram às articulações das profissões/ocupações no locus privilegiado da Saúde da Família ainda são exíguas na literatura científica. Guimarães e Rego (2005) apresentam que o trabalho em equipe é complexo e apresenta consequências importantes para as corporações profissionais da saúde, que se constituem como tal por possuírem características, historicidades e processos de trabalhos que as distinguem das demais. A temática pode tornar-se acirrada e tensa entre as diversas corporações, a exemplo do episódio da regulação do ato médico, no início do século XXI (Pucca, 2006; Guimarães, Rego, 2005; Machado, 2000). Freidson (1994, 1970) afirma que os saberes profissionais e suas especificidades referem-se à autonomia profissional, questão central para o entendimento sociológico das profissões. A existência de conhecimentos próprios à profissão remete ao trabalho especializado e à base epistemológica própria, institucionalmente consagrada. Paralelamente, o PSF exige, no trabalho em equipe, o exercício dos saberes e práticas compartilhadas, com vistas às necessidades do usuário de maneira integral, além das especialidades clínicas. A atuação em equipe multiprofissional nos moldes do PSF prescreve a articulação entre todas as profissões, criando uma zona comum de troca de conhecimentos, de certa forma na contramão do esoterismo corporativo, termo que descreve a característica do saber exclusivo de cada profissão para Freidson (1970). Uma vez que os acadêmicos de Odontologia se tornarão os futuros odontólogos, e que estes, pela inserção da categoria no PSF, terão sua atuação na estratégia com seus limites e competências profissionais aplicadas junto às demais profissões/ocupações, o presente trabalho teve por objetivo investigar a percepção dos acadêmicos de Odontologia sobre o papel do ACS frente à atuação em Saúde Bucal, assim como levantar o que é considerado e o que não é considerado como ação privilegiada dos odontólogos no âmbito deste modelo de atenção.
Percurso metodológico O presente estudo teve uma abordagem qualitativa, justificando-se que esta permite levantar a percepção e compreensão dos problemas a partir dos próprios sujeitos que os vivenciam (Leopardi, 2002), permitindo a obtenção de informações sobre aspectos específicos de um fenômeno, no que se refere a sua origem e sua razão de ser (Haguette, 2001). Seu maior ganho é, exatamente, a capacidade de incorporar significado e intenção aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas, tanto no seu advento como na sua transformação, como construções humanas significativas (Minayo, 2000). Trata-se de uma metodologia que abarca aspectos da realidade que escapam a simples quantificação e extrapolações, características da ciência positivista (Crotty, 2003). As pesquisas qualitativas indicam a procura essencial pela natureza dos fatos (Berg, 2004). Com relação ao recrutamento dos sujeitos, após aula regular do curso, o pesquisador explicou o projeto aos acadêmicos do último período, convidando-os a tomarem parte do estudo. Foram entrevistados quarenta acadêmicos de Odontologia, de ambos os sexos, e de uma Instituição de Ensino Superior do Estado do Amazonas, todos do último ano do curso investigado, de um total de 42 universitários. Em termos instrumentais, utilizou-se a técnica de entrevista individual com roteiro semiestruturado (Minayo, 2000), com questões que versavam sobre a importância e qualificação dos ACS para atuação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1085-95, out./dez. 2011
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em Saúde Bucal no PSF, o que estes profissionais deveriam saber, e quais as funções dos ACS para com a população adscrita. Foram critérios de inclusão dos sujeitos: ser discente da Universidade Federal do Amazonas; cursar Odontologia; estar cursando o último período no ano de 2008; cursar todo o curso na mesma turma que os outros sujeitos; não ter cursado outro curso de graduação anteriormente. A inadequação a qualquer dos critérios foi considerada como único critério de exclusão. Todas as discussões foram registradas por meio de gravação com fita magnética. Todas as gravações foram transcritas na íntegra — material sob o qual se realizou leitura exaustiva para apropriação do conteúdo, seguindo o modelo para tratamento, redução e análise, conforme preconizado pela literatura (Campos, Rodrigues, Moretti-Pires, 2011; Minayo, 2000). A análise pautou-se na hermenêutica dialética (Minayo, 2002), perspectiva adotada pela reflexão que se funda na práxis, na busca pela compreensão atrelada à análise crítica da realidade, processualmente seguindo as etapas de confrontação, convergências e divergências das categorias (Campos, Rodrigues, Moretti-Pires, 2011), registrando a interpretação/dialética e legitimação de falas nos resultados, assim como preconizado no talhe metodológico empregado. A análise pautou-se no conteúdo da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2006), que normatiza o funcionamento do PSF e atribuições profissionais, nas Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2004); em literatura especializada em Saúde Coletiva (Moretti-Pires et al., 2007; Baldani et al., 2005; Lima, Moura, 2005; Levy, Matos, Tomita, 2004; Calado, 2002); e nos pressupostos da Sociologia das Profissões (Machado, 2000; Machado, 1995; Freidson, 1994; 1970), utilizando-se uma perspectiva hermenêutico-dialética (Minayo, 2002). O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Amazonas (CEP/UFAM), obedecendo todos os procedimentos preconizados na legislação brasileira sobre pesquisa com seres humanos.
Resultados Os acadêmicos entrevistados, de uma maneira geral, apresentaram certa noção básica do que é (ou o que deveria ser) um ACS, em perspectiva consonante com as diretrizes do PSF. Atribuem ao ACS a responsabilidade pela atenção primária da população assistida. No que concerne especificamente à Saúde Bucal, os ACS têm atuação frente aos cuidados da higiene oral, técnicas adequadas de escovação, prevenção e diagnósticos de problemas simples, além do papel de educador para saúde bucal. “O ACS deve saber sobre higiene bocal, hábitos alimentares saudáveis para a dentição, fatores que influencie no processo da cárie, [...] Instrução de higiene oral, orientação..., técnicas de escovação e higiene, para instruir as pessoas que são visitadas”. (entrevistado 22) “O AC deve primeiramente saber ensinar a seus pacientes, técnicas adequadas de uma boa higiene bucal. Deve saber passar para as pessoas como deve ser usado o fio-dental, como deve ser feita a limpeza bucal, quais os produtos devem ser utilizados”. (entrevistado 13)
A concepção de que o ACS tem importância emergiu. No entanto, para estes futuros odontólogos, aqueles que atualmente desempenham a função não estão devidamente capacitados para exercerem ações em Saúde Bucal, justificando tal percepção pela falta de orientação quanto à problemática, falta de recursos e falta de disponibilidade de tempo para este exercício. “Os ACS devem ser qualificados para desempenharem a função. Com certeza deveriam saber muito mais coisas do que já sabem. É muito complicado o PSF funcionar com agentes ignorantes, pois eles não conseguem passar para o restante da equipe o que realmente ocorre na comunidade”. (entrevistado 03)
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“Não poderiam ter uma maior efetividade, pela pouca disponibilidade de material e tempo”. (entrevistado 37) “Deveria saber quais cuidados tomar, com a finalidade de todos terem saúde bucal e não terem cáries. Eles não estão preparados para isso”. (entrevistado 01)
Para parte dos entrevistados, os ACS deveriam ter melhor qualificação para o trabalho, no sentido de que fossem capazes de realizar funções que não se constituem pertinentes legalmente aos ACS, com a justificativa de diminuição das filas nos hospitais, melhor atendimento aos pacientes e auxílio aos odontólogos. Estas afirmações mostram indício da falta de formação destes futuros odontólogos para a Saúde da Família, uma vez que desconhecer a importância de cada profissional em sua especificidade, de maneira articulada com as demais profissões, torna-se uma questão grave quando se pensa na inserção destes futuros profissionais no PSF. “O ACS deve saber tudo, conhecimento nunca é demais. Deveriam fazer exames mais complexos, com mais dedicação aos estudos científicos”. (entrevistado 07) “Precisam ter noção sobre Lesões orais, com relações sistêmicas, noções de lesões précancerigenas, técnicas de escovação, noções de cronologia eruptiva dental”. (entrevistado 19) “Deveriam saber fazer um tratamento demasiadamente sofisticado como: canal, clareamento, ou limpezas muito elaboradas [...]. Porém não podem por falta de tempo e recurso, para que eles também aprendam”. (entrevistado 21) “Acho que o ACS deveria ter pelo menos curso superior, ou entender sobre saúde”. (entrevistado 22)
Parte dos estudantes aponta que a dificuldade dos ACS em exercer corretamente suas funções está relacionada à falta de conhecimento sobre as diretrizes do PSF. No entanto, não apontam como ou quais seriam os tópicos a serem abordados para uma capacitação desta natureza. “Deveria saber primeiramente a importância do PSF, as metas deste programa e o papel do ACS”. (entrevistado 10) “Devem saber relacionar a Odontologia com outras áreas da saúde para que realmente o PSF funcione”. (entrevistado 33)
Os acadêmicos revelam falta de conhecimento apropriado sobre os princípios e processo de trabalho no PSF, em termos específicos da Odontologia, e os saberes e práticas a compartilhar com os demais profissionais, entre eles o ACS. Tal situação pode ser associada à grande carga de conhecimentos técnicos específicos da formação profissional, altamente biologicista. Ao debater o tema ‘saúde’, os futuros odontólogos apresentam dificuldades em analisar as outras categorias profissionais em paralelo às suas funções, o que denuncia, no mínimo, falta de informação e vivência multiprofissional e junto ao processo de trabalho em Saúde da Família. Em um talhe oriundo de modelo de ação odontológica, que segmenta prevenção e cura, os entrevistados responderam que a atuação dos ACS junto à Saúde Bucal se refere às ações preventivas e educativas, não só com visitas domiciliares, mas também em palestras e acompanhamento/detecção de problemas bucais com imediato encaminhamento a unidade de Saúde da Família, para os cuidados pelos odontólogos. Há total desconsideração sobre a possibilidade de trabalho conjunto, ou que extrapole o limite de protocolos, ou, mesmo, da Educação para a Saúde como ações de cunho diferente de palestras. O ACS não é percebido como um profissional a serviço do empoderamento, sendo aludido como um recurso humano a serviço da vigilância em saúde, mas não da promoção em saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1085-95, out./dez. 2011
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“O ACS tem que saber fazer prevenção e curativos, e saber encaminhar casos mais graves para centros especializados”. (entrevistado 03) “Ele deve prevenir o aparecimento e o aumento do numero de cáries na população”. (entrevistado 09) “Trabalhar na prevenção e informação da população sobre a prevenção da placa bacteriana e prevenção de doenças”. (entrevistado 19) “Ele deve levar panfletos sobre o controle de câncer bucal e poderia se instruído por um cd a levar informações e ensinar os pacientes a fazer curto exame. Se constatar alguma alteração tecidual, procurar um dentista com ajuda do agente”. (entrevistado 40)
Discussão Com a criação e implementação do PSF no Brasil, houve mudança significativa na necessidade de profissionais preparados para o trabalho no novo talhe da Atenção Primária, desencadeando a discussão sobre mudanças na constituição das equipes de saúde, incluindo profissões tradicionalmente liberais como a Odontologia. Estas discussões não se referiram apenas a este aspecto de interesse ao sistema de saúde, mas também ao anseio das corporações por novos postos, uma vez que existem alterações no mundo do capital como um todo neste período, que afetaram diretamente o locus privilegiado de atuação profissional (Guimarães, 2005), em particular no mundo do trabalho dos odontólogos (MorettiPires, 2005). Em uma aproximação da história da Odontologia com a Medicina no Brasil, fica claro que a oferta de serviços médicos ao sistema público diferiu significativamente quando comparado à inserção da Odontologia, na medida em que esta procura o setor público quando a remuneração oriunda dos consultórios particulares não é mais satisfatória. Tal fato é creditado à crise do mercado de trabalho da Odontologia a partir da década de 1980 (Moretti-Pires, 2005). Diferente da categoria médica, em que existe prestação de serviços particulares conveniados junto ao SUS pelo princípio da complementaridade do setor privado, a categoria dos odontólogos tem a venda de seus serviços exclusivamente de forma assalariada (Souza, Roncalli, 2007). As crescentes dificuldades de um mercado de trabalho imerso no processo de reestruturação produtiva do capital, acrescidas à remuneração garantida pelo trabalho no serviço público, além da nãodependência do pagamento dos pacientes, fazem do setor uma oportunidade ansiada pelas categorias não médicas de saúde, que batalham pela sua inserção no trabalho de Saúde da Família. De maneira diferente de outras corporações profissionais — como os fisioterapeutas, os nutricionistas, os assistentes sociais — a inserção do odontólogo no PSF foi vitoriosa, fundamentada nas necessidades da população com relação à Saúde Bucal (Pucca, 2006), através do já referido levantamento epidemiológico nacional que denunciou a demanda por ações curativas odontológicas para a maioria dos brasileiros. Uma vez que a proposta do PSF se pauta não apenas na ação curativa, mas sim em uma visão ampliada de Saúde, rapidamente questionou-se a formação do odontólogo, na medida em que se distancia desta perspectiva. A promoção de saúde é um dos baluartes que sustentam este modelo de atenção, sendo que o odontólogo é formado para a prática clínica em consultório particular, para o trabalho individual sobre o paciente, perfil dicotômico ao trabalho em PSF (Moretti-Pires, 2008, 2005). Os odontólogos buscam inserção em Saúde da Família como forma de resistência às mudanças no mundo do trabalho e à perda das características liberais da profissão, mesmo sem a capacitação para o trabalho em equipe de saúde e a articulação com outros setores. Vale ressaltar que os acadêmicos investigados cursam faculdade que segue formalmente as Diretrizes Nacionais Curriculares para os Cursos de Odontologia, que orientam a formação do odontólogo para o trabalho no SUS (Moretti-Pires, 2008). 1090
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Guimarães e Rego (2005) defendem que, para efetividade do trabalho multiprofissional, faz-se necessária a reavaliação dos saberes e competências específicas de cada formação, preservando limites e respeitando a divisão do trabalho, mas não desconsiderando a necessidade de ações em comum, remetendo a questionamentos, tais como: quais competências diferenciam-se entre as tradicionais e as da Saúde da Família? Para quais profissões/ocupações? No caso específico do presente trabalho, a inserção da Odontologia no PSF já é uma realidade concreta, inclusive com debates na literatura sobre a adequação, entre o ensino universitário, em formar para o SUS/PSF (Ciffo, Ribeiro, 2008). No entanto, o mesmo não pode ser afirmado com relação aos estudos sobre profissionalização e outras temáticas próprias da Sociologia das Profissões. Na medida em que o monopólio de saberes, como exposto, é um requisito para a profissionalização, transmitida de quem a possui para os futuros pares, debate-se: na proposta da ação profissional em Saúde da Família, a equipe multiprofissional fere o princípio dos monopólios específicos de cada profissão? Ao se questionar qual o papel do ACS frente à Saúde Bucal, os futuros profissionais transitaram entre uma perspectiva de desconhecimento do que esta ocupação poderia desempenhar até um claro desconhecimento sobre os limites profissionais da atividade da Odontologia, uma vez que diversas das atividades atribuídas aos ACS são próprias da identidade profissional do odontólogo. Pereira e Pereira Neto (2003) reafirmam a perspectiva de que uma das etapas da profissionalização repousa no valor social de determinada profissão. Uma abordagem muito adequada para o modelo de atuação em Saúde da Família, vez que fulgura, entre suas diretrizes, o imergir da equipe na realidade em que a população encontra-se. A equipe tem ampla possibilidade de mostrar e firmar seu valor social para a população. Mas em que estes princípios referem-se ao processo de construção profissional na academia? Em que medida o odontólogo, objeto do presente estudo, aprende estas competências que seriam de todos os que atuam em Saúde da Família e não apenas dele? Esta dimensão deve fazer parte da formação do odontólogo? Mas, profissionalizar não é legar um conhecimento específico e de monopólio corporativo? As sociedades atuais desenvolveram o pensamento de que o profissional não é apenas um indivíduo capaz de resolver problemas concretos relacionados aos problemas do cotidiano da população, mas também um indivíduo detentor de conhecimento que lhe proporciona um poder de autorregulamentação, considerado uma das maiores ambições das profissões atuais, proporcionando, à profissão, a capacidade de delimitar os próprios limites de atuação (Souza, Roncalli, 2007). No caso específico do modelo de Saúde da Família, o interesse do Estado e da sociedade supera o interesse específico das corporações. Há indícios de que os cursos universitários não conseguiram, até o presente, adequação a esta realidade, preservando o talhe tradicional. Ao mesmo tempo, há constantes iniciativas do Estado para a migração da formação que prima pela especialidade para outra que se torne fortemente pautada na generalidade, a exemplo do Pró-Saúde (Brasil, 2005). Reafirma-se que o debate contemporâneo sobre as profissões de saúde e sua articulação no SUS não se refere apenas a mudanças internas nas universidades e nos modelos pedagógicos. Antes, diz respeito ao processo de formação e desenvolvimento da divisão social do trabalho em saúde que, historicamente, consolidou-se na especialização e monopólio do saber. Para Machado (1995), os conhecimentos ímpares e a existência de trabalho próprio que não pode ser desempenhado por mais nenhum outro tornam a Medicina e a Odontologia profissões em termos sociológicos, havendo clientela específica para sua negociação profissional. As características do SUS vão à contramão do trabalho em saúde especializado, primando pela promoção de saúde conduzida por generalistas. Generalistas em equipes multiprofissionais que foquem na Saúde da Família e no entorno sociocultural dos pacientes, exigindo uma formação e profissionalização diferenciada da tradicional, conforme Moretti-Pires (2008). No que concerne ao presente estudo, os entrevistados dão a impressão de fundamentarem suas respostas a partir da experiência do dia a dia como usuário do sistema de saúde, a despeito das disciplinas relativas à saúde pública. Ao se referirem ao trabalho neste setor, a maior preocupação diz respeito à orientação sobre saúde bucal para a população, como medida de ação junto à coletividade, 1091
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também revelando silêncio sobre outras formas de atuação. Esta falta de perspectiva sobre possibilidades de atuação não tradicional segue paralela ao conceito de que os ACS deveriam ter noções de procedimentos odontológicos mais complexos, o que vai ao encontro de um paradoxo: na compreensão destes futuros odontólogos, quais os limites da atuação multiprofissional em termos operacionais? Até que momento ou em que o odontólogo e o ACS compartilham o mesmo objeto no processo de trabalho? As especificidades do trabalho odontológico, assim como a articulação que será exigida em PSF e no SUS, foram discutidas com estes acadêmicos no processo de formação profissional? Quais são as especificidades processuais e tradicionais de cada categoria profissional que devem ser respeitadas nesta nova forma de organização do trabalho? Na medida em que os ACS são trabalhadores selecionados a partir do capital social que dispõem, facilitam a interface entre os demais profissionais de Saúde da Família e a sociedade em que se inserem. A capacitação destes profissionais, portanto, é de suma importância para se atingirem os objetivos do programa, que parte de uma lógica de planejamento embasado na realidade dos que vivem os problemas de saúde, incluindo, nestes, os pertinentes à Saúde Bucal (Lima, Moura, 2005). Apesar de os depoimentos revelarem este conteúdo, não operacionalizam quais seriam os saberes e as práticas gerais, o que também não está claro nos documentos oficiais utilizados como fundamento da análise dos resultados (Brasil, 2006, 2004). Há evidencias empíricas de que a capacitação dos profissionais do PSF para o trabalho em conjunto em saúde bucal é deficiente, inclusive com problemas quanto ao envolvimento das comunidades e à avaliação da efetividade/eficácia de ações de saúde bucal realizadas (Moretti-Pires et al., 2007). Ainda se preserva o enfoque tradicionalista e segmentário. Levantam-se outras questões: qual é o corpo de conhecimento multiprofissional? Qual é o corpo de conhecimentos da equipe de PSF além da sobreposição de conhecimentos específicos das corporações? Em especial para a Odontologia, o PSF tem se tornado uma importante instância da inserção do odontólogo recém-formado no mercado do trabalho. Paralelamente, a expansão do número de odontólogos na atenção primária está calcada, na perspectiva do programa, como importante estratégia de reorientação assistencial, não apenas na expansão quantitativa de serviços, mas qualitativa em termos de transformar o SUS, de fato, em profunda coerência com seus princípios norteadores. O presente estudo limitou-se a investigar a percepção dos acadêmicos de Odontologia sobre questões eminentes da Sociologia das Profissões no âmbito da prática profissional em Saúde da Família, dada sua característica que incide no paradoxo entre a formação profissional em saberes privilegiados à corporação odontológica e a atuação em equipe multiprofissional, tomando a articulação do odontólogo com o ACS como emblema de análise. Há que se ressaltar a necessidade de estudos pela perspectiva sociológica empregada, que abordem alguns limites do presente trabalho, tais como: a diferença entre os achados e a articulação da Odontologia no PSF na percepção dos ACS, assim como dos próprios odontólogos que atuam no modelo de atenção. Outra limitação que incita a investigação posterior é a importância da Saúde Pública nos cursos de Odontologia – responsáveis pela profissionalização; da mesma forma que a motivação para o trabalho em Saúde da Família.
Considerações finais Os dados empíricos reafirmam o debate na literatura científica sobre a necessidade de se criarem mecanismos de capacitação permanente às equipes de Saúde da Família. Tal capacitação deverá estar articulada desde o ensino de graduação, uma vez que, neste espaço, se desenvolvem as competências específicas que mediarão futuras ações dos profissionais de saúde. Por outro lado, odontólogos e os ACS estão próximos dentro das equipes de PSF. Próximos fisicamente. Próximos em termos de objetivos comuns frente às demandas populacionais. Próximos em termos de possibilidades de atuação. No entanto, distantes na prática diuturna, um impulso que originou a presente investigação. Os dados empíricos do presente estudo evidenciam a ausência de instrumentos curriculares que permitam que vivenciem esta proximidade de áreas, não apenas em vistas à questão de 1092
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efetivar o trabalho em equipe como um fato, mas também pela necessidade em termos de saúde bucal que as populações apresentam. A capacitação dos ACS nesta área, mesmo na forma de orientação teórica, como no preparo para a identificação de problemas que necessitem intervenção odontológica, é um encaminhamento necessário para o verdadeiro entrosamento entre esta categoria e as categorias odontológicas, sejam estas odontólogos, técnicos de saúde bucal ou atendentes de saúde bucal. No entanto, o debate deve caminhar, também, para a questão das competências e dos limites de cada profissão/ocupação em Saúde da Família, para a existência do objeto e processo de trabalho que efetive a Equipe enquanto tal, não apenas como a ação conjunta de diversas corporações no mesmo paciente. O presente trabalho traz considerações sobre a problemática no contexto do ensino odontológico. Fica a necessidade de investigação junto aos próprios ACS, assim como junto às demais categorias odontológicas, havendo lacunas a serem investigadas por outros trabalhos na temática à luz da Sociologia das Profissões.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BALDANI, M.H. et al. A inclusão da Odontologia no Programa Saúde da Família no estado do Paraná, Brasil. Cad. Saude Publica, v.21, n.4, p.1026-35, 2005. BERG, B.L. Qualitative research methods for the Social Sciences. Long Beach: Pearson, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção Básica e Saúde da Família. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/dab/ abnumeros.php#historico>. Acesso em: 20 nov. 2010. ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Aprova Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Educação. Ministério da Saúde. Portaria n° 2.101, de 3 de novembro de 2005. Dispõe sobre o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Brasília: Ministério da Educação/Ministério da Saúde, 2005 ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica, Coordenação de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CALADO, G.S. A inserção da equipe de saúde bucal no Programa de Saúde da Família: principais avanços e desafios. 2002. Dissertação (Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2002. CAMPOS, D.A.; RODRIGUES, J.; MORETTI-PIRES, R.O. Pesquisa qualitativa em Saúde Coletiva como instrumento de transformação social: uma proposta metodológica fundamentada na postura hermenêutica-dialética. Saude Transf. Soc., v.1, n.3, 2011. (no prelo) CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B. Sistema Único de Saúde e a formação dos médicos: um diálogo possível? Interface - Comunic., Saude, Educ., v.12, n.24, p.125-40, 2008. CROTTY, M. The Foundations of social research. London: Sage Publications, 2003.
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MORETTI-PIRES, R.O.; LIMA, L.A.M.; MACHADO, M.H.
artigos
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MORETTI-PIRES, R.O.; LIMA, L.A.M.; MACHADO, M.H. Sociología de las profesiones y percepción de académicos de Odontologia sobre los Agentes Comunitarios de Salud en la Salud Bucal. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1085-95, out./dez. 2011. La actuación profesional en el Programa de Salud Familiar exige a los dentistas una actitud capaz de romper con las prácticas tradicionales de clínicos, tales como la articulación dentro de la ACS en este contexto de trabajo en equipo. Estas cuestiones se refieren a la sociología de las profesiones de salud. En este artículo se investiga la percepción de académicos de Odontología sobre el desempeño de los ACS en el trabajo de salud oral. En términos metodológicos, se utilizaron 40 entrevistas con académicos de Odontología de una universidad federal, tratadas por un proceso hermenéutico-dialéctico. Los resultados apuntan a la falta de formación en el trabajo en equipo multiprofesional, las dificultades en el rendimiento de la Salud Colectiva, tales como la deficiencia de los conocimientos sobre las atribuciones de los miembros del equipo de Salud de la Familia, en especial sobre las tareas de lo ACS dentro de la salud oral.
Palabras clave: Sociología médica. Estudiantes de Odontologia. Salud de la Família. Recursos humanos en salud. Salud bucal. Recebido em 25/01/10. Aprovado em 11/11/10.
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Solicitações profissionais e sociais de professores de cursos de enfermagem no Brasil Paulo Gomes Lima1 Patrícia Leal de Freitas Santos2
LIMA, P.G.; SANTOS, P.L.F. Professional and social requests of the nursing professor in Brazil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1097-109, out./dez. 2011.
In this work we analyze the professional and social requests of the nursing professor in Brazil in view of the requirements, identity and didactichistorical training of their knowledge field through a literature review. The findings pointed to a necessary reflection in the area, breaking the purely instrumental logic both of the teacher and of the professional to be trained, as the actionreflection-action sieve gradually occupies the centrality of the interaction between knowledge and action in a humanized perspective.
Keywords: Nursing. Faculty nursing. Didactic-pedagogical training.
Neste trabalho analisamos as solicitações profissionais e sociais do professor universitário de cursos de enfermagem no Brasil frente às exigências históricometodológicas da enfermagem e dos profissionais que exercem a docência nessa área, por meio de uma revisão de literatura especializada. As conclusões apontam para uma necessária reflexão da área, rompendo com a lógica meramente instrumental, tanto do professor quanto do profissional a ser formado, à medida que o processo de ação-reflexão-ação ocupa a centralidade da interação dos saberes e fazeres, em uma perspectiva humanizadora.
Palavras-chave: Enfermagem. Docentes de enfermagem. Formação didáticopedagógica.
1 Programa de PósGraduação Strictu Sensu, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Rua Barão do Rio Branco, 570, apto 203. Jd. Clímax, Dourados, MS, Brasil. 79.820-011. paulolima@ufgd.edu.br 2 UFGD.
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Introdução No final do século XIX, um processo de urbanização lento e progressivo já se fazia sentir nas cidades que possuíam áreas de mercado mais intensas, como São Paulo e Rio de Janeiro. Esse processo acompanhava algumas mudanças político-econômicas no Brasil, como, por exemplo, a passagem da fase agroexportadora para a incipiente fase urbano-industrial, que teria mais ênfase na década de 1930, quando as cidades começavam a receber um contingente significativo de pessoas por conta do arranjo industrial inaugurado na recém república brasileira. As escolas de enfermagem surgem, portanto, ainda no final do século XIX, para dar conta de um contingente populacional crescente nas cidades frente aos desafios sociais e de mercado, cuja regularização da profissão do enfermeiro deu-se no século XX, corporificando status específico e solicitações de formação educacional para o seu exercício, cada vez mais sistematizadas. Geovanini et al. (2002) acentuam que, no início da história da enfermagem, a preocupação era a formação de profissionais para dar assistência a doentes e feridos a partir de uma perspectiva instrumental e curativa. Nesse âmbito, a dimensão causa-efeito, comumente associada ao positivismo, ocupava a centralidade nas escolas de formação de enfermeiros, o que influenciaria significativamente a história da enfermagem liderada pela tradição de ensino dos países desenvolvidos, cujos modelos os demais países acabariam por assimilar. Em relação à formação docente para o exercício do magistério no curso de enfermagem no Brasil, muitos profissionais buscavam noutros países (especialmente Estados Unidos e França) o seu referencial praxiológico, o que lhes conferia status e reconhecimento a ponto de ocuparem cargos de direção de escolas de enfermagem que, até então, ficavam sob a responsabilidade de enfermeiras americanas e francesas. A orientação pedagógica recebida pelos professores brasileiros de enfermagem centrava-se na dimensão pragmática causa-efeito transversalizando o século XX e chegando aos dias atuais (Pinhel, 2006). Essa última afirmação solicita, de forma recorrente, algumas indagações, como seguem. Ao longo do tempo, temos ou não desenvolvido, no Brasil, a formação de professores para o Ensino Superior de enfermagem com uma perspectiva não meramente reducionista e utilitarista? Os acadêmicos da área desenvolvem uma perspectiva de ressignificar a enfermagem para além do cunho assistencialista, isto é, num processo de formação continuada em que o ensino, a pesquisa e a extensão estejam sempre evidenciadas? Considerando essas questões e a partir da trajetória e desenvolvimento da enfermagem em nível Superior, o objetivo deste trabalho é problematizar a formação didático-pedagógica de professores nessa área e as recorrências significativas de sua intervenção numa perspectiva mais ampla, isto é, para além do caráter instrumental da profissão. Organizamos este trabalho em quatro momentos interligados. O primeiro listando as exigências histórico-metodológicas da enfermagem e dos profissionais que exercem a docência nessa área; o segundo, um breve histórico do curso Superior de enfermagem no Brasil. O terceiro, a problematização da identidade profissional do professor de Ensino Superior nos cursos de enfermagem e, finalmente, as solicitações da formação didático-pedagógica requeridas desse profissional, considerando o comprometimento com a sua ação interventiva e respectiva ampliação da perspectiva profissional.
Enfermagem e docência universitária: exigências histórico-metodológicas O desvelamento de um objeto histórico se dá pela disposição do professor (pesquisador) sobre o objeto pesquisado, ou seja, pelo desenvolvimento de sua ação – que é a primeira leitura da realidade contextual, de como se apresenta e de como se articulam todos os elementos e situações a ela pertinentes, situando um panorama da instituição, evento, curso, formação profissional, dentre outros (Lima, 2007). A ação leitora sobre a realidade permitirá o acesso ao diagnóstico da realidade, solicitando, ao pesquisador, uma reflexão intencional sobre as problemáticas identificadas e de como manter, aperfeiçoar ou transformar o que já é proveitoso para todos os atores. A reflexão sobre a ação possibilitará a sugestão do coletivo frente às questões que se colocam no cotidiano, mas também, em nível individual, servirá ao professor como ponto de autoavaliação 1098
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permanente quanto à validade e aproveitamento do que está desenvolvendo e como aprimorar ou mudar de direção pedagógica, se for o caso. O terceiro momento dialético e concomitante do processo será o retorno à própria prática ou ação, evidenciando uma ação transformada e disposta ao processo de transformação dos fazeres e amadurecimento do investigador ou do educador, em se tratando de sua prática didático-pedagógica. Não se pode destacar, nesse sentido, esse ou aquele elemento como o mais relevante do contexto desvelado, mas, no conjunto, procurar entendê-lo sob o eixo central da ação-reflexão-ação. Esta é nossa proposta a seguir. Um episódio relevante no contexto histórico da sistematização da enfermagem, tanto na Inglaterra, com Florence Nightingale, quanto no Brasil, com Anna Nery, está ligado ao papel do voluntarismo exercido em períodos de guerras, imprimindo os valores militares como o valor de espírito de serviço (Rodrigues, 2000). A exigência histórica, explicitada no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX, que se delineava quanto à formação do enfermeiro, além de se assentar numa base epistemológica meramente instrumental, recorria, paralelamente, ao sentimento ideológico salvacionista da profissão, qualificando-a como objeto de ação missionária. Esse processo era interiorizado tanto pelo professor de Ensino Superior que formava o enfermeiro, quanto pelo próprio profissional formado ou em formação, que materializava tal ideário em sua força de trabalho. Afora esse quadro, a inclinação para a profissão em nível de gênero fora circunscrita ao gênero feminino, isto é, somente nas mulheres as características humanizadoras e voluntaristas seriam reunidas, a ponto de doarem-se para o exercício da profissão, a exemplo do que fazia uma mãe. Pires (2007) afirma que esta disposição social da profissão era conveniente: âmbito religioso e dimensão de gênero, simplificando, inclusive, o trabalho da docência para esta área, uma vez que o caráter instrumental e utilitarista já havia sido incorporado pelos candidatos à enfermagem. Historicamente, a disciplinaridade orientou a formação profissional do enfermeiro em áreas específicas de atendimento preventivo e curativo. Tal orientação deveu-se ao tratamento científico válido e aceito pela ciência, destacadamente a partir do século XIX, quando da inauguração do positivismo. Assim, as contribuições objetivas das ciências naturais passariam a ser o vetor da epistemologia do campo científico como um todo, colocando à margem quaisquer outras possibilidades de desenvolvimento e tratamento dos objetos. Isso se deveu, inclusive, à secundarização das ciências humanas na estrutura curricular de formação do enfermeiro - o que ainda continua nos dias atuais - relegada a espaços espremidos no início ou final da estrutura curricular, dentre os conteúdos considerados “nobres” ou centrais da enfermagem, reduzindo, ao mínimo necessário, a sua carga horária, e o pior, muitas vezes sem a necessária articulação com a totalidade do curso (Oguisso, Freitas, 2007). É indispensável que os enfermeiros se apropriem de conhecimentos de outras disciplinas, dentre elas a História, a Filosofia, a Sociologia, refletindo um mundo que não se apresenta sem intencionalidades na exploração do trabalho e formação histórica de mentes e mão de obra que garantam o seu funcionamento pertinente. A ação-reflexão-ação sobre sua condição profissional, social e cidadã é dimensão imprescindível para a formação integral do profissional, quer seja do professor de Ensino Superior que escolheu a enfermagem como área de atuação ou do candidato a enfermeiro ou enfermeira que, ressignificando sua prática, a exercerá numa dimensão mais ampla do conhecimento, não reduzida ao fazer utilitarista, mas como uma das interfaces da produção do conhecimento em articulação com outras áreas. A exigência histórica de mercado para a qualificação profissional, a partir da formação inicial, simplesmente continua com o mesmo projeto tradicional de reproduzir competências e habilidades necessárias ao atendimento do desenvolvimento ideológico do capital. É necessário observarmos que, quando o professor de Ensino Superior, particularmente da área de enfermagem, não se dá conta dessa lógica, não tomará posse de leituras distintas das solicitações sociais da própria profissão e nem sequer de seu papel de agente transformador na perspectiva de outra exigência histórica – a da concretude social, que deve primar pelo desenvolvimento do profissional em sua totalidade, considerando as distintas possibilidades e campo de imersão do enfermeiro não dissociado do quadro macrossocial que envolvem questões econômicas, culturais e orientadas por condicionantes sócio-históricos.
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Curso de Enfermagem em nível Superior no Brasil Segundo Lima (2008), a exigência histórico-emancipadora do Ensino Superior no Brasil não deve prescindir da problematização acerca da docência no espaço universitário, e sua respectiva formação continuada deve se constituir objeto de constante atualização e recorrência, reivindicando a coerência propriamente científica da universidade como local privilegiado do conhecimento e da consistência entre o arcabouço discursivo e respectivas intervenções nas práticas pedagógicas. As diretrizes da docência universitária no Brasil reiteram essa necessidade por meio das finalidades da Educação Superior, como se segue na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 (Brasil, 1996), no Capítulo V – da Educação Superior: Art. 43 – A Educação Superior tem por finalidade: I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; II – formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III – incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV – promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V – suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI – estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII – promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. Depois de mais de uma década da promulgação desta lei, ainda procuramos romper politicamente com os modelos e ideologias subjacentes também nos cursos superiores. No âmbito da docência universitária na enfermagem e como um todo, o reposicionamento sociopolítico dessa solicitação não se dá de forma abrangente, visto que os paradigmas hegemônicos historicamente situados sobre a concepção de cientificidade (validação das ciências naturais como expressão do valor científico centrado na precisão, mensurabilidade, neutralidade, dentre outros) exercem expressões significativas sobre os fazeres docentes (Lima, 2008), inviabilizando um olhar mais plural sobre a missão e função da docência no Ensino Superior e das possibilidades de sua transformação. Goergen (1997, p.28) nos diz que, na medida em que a nossa sociedade está se tornando a sociedade do conhecimento, faz-se urgente “[...] reinventar uma ética social e coletiva que zele pela educação da razão em sentido mais abrangente, que não inclui apenas o teórico (a ciência), mas também o prático (as relações dos homens entre si e com a natureza)”, mesmo em face da polêmica de que o sentido da razão foi perdido ao longo da modernidade. Certamente, esse olhar traz elementos pontuais para a atualidade da discussão sobre as pistas necessárias que o professor do curso de enfermagem deve levar em consideração no desenvolvimento de seu trabalho na universidade. A tomada de consciência do processo de formação unidirecional do curso pode ser percebida pelos aspectos históricos no Brasil, apresentados a seguir, e que servem como pano de fundo para encaminhamentos necessários quanto ao papel do professor universitário no curso de enfermagem. No final do século XIX (1889), inaugurada a república no Brasil, imediatamente foram evidenciados problemas em distintas áreas infraestruturais, inclusive na saúde. Um das mais emergentes era a falta de pessoal qualificado para o atendimento à população, exigência esta demandada pelo crescente interesse hegemônico que apostava no crescimento industrial, ainda em projeto no Brasil. Assim, por meio do 1100
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Decreto 791/1890 (Brasil, 2010), para dar conta das solicitações do Hospício Nacional de Alienados ou Hospício Dom Pedro II, foi criada a Escola de Enfermeiros e Enfermeiras, que seria denominada de Escola Alfredo Pinto, e que tinha como referencial formativo o modelo francês (ensino profissional uniforme coordenado por grupo específico da área de conhecimento). Terminada a primeira guerra mundial, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, por meio do Decreto 3.987 de 02/01/1920 (Brasil, 1921), iniciando, assim, o serviço de visitadoras, que tinha por objetivo atender aos enfermos em suas casas, visando à prevenção mais do que a cura da doença (Paixão, 1969). Até então não existia uma escola de enfermagem propriamente dita, reconhecida oficialmente, o que viria acontecer somente com a criação do citado Departamento. Vale destacar que os interesses do mundo capitalista estavam disseminados em inúmeras fundações e organismos multilaterais de apoio técnico e financiamento, garantindo ideologicamente sua hegemonia. Não distante desta realidade, por meio do apoio de uma instituição norte-americana, a Fundação Rockfeller, foi fundada oficialmente a EEDNSP (Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde), criada pelo Decreto 15.799 de 10/11/1922 (Brasil, 1923), entrando em funcionamento em 19/ 03/1923, cuja orientação da formação profissional assentava-se na enfermagem nightingaleana.. A educação nightingaleana propunha uma educação de enfermeiros com base em postulados de comodidade, necessidade, saúde, prevenção e manejo do ambiente, separada e orientada diferentemente da medicina (Huarcaya, 2003). Numa tentativa de listagem, Geovanini et al. (2002) afirmaram que as primeiras escolas de enfermagem no Brasil foram: Alfredo Pinto, Escola da Cruz Vermelha do Rio de Janeiro, Escola Anna Nery, Escola Carlos Chagas, Escola Luisa de Marillac, Escola Paulista de Enfermagem e Escola de Enfermagem da USP. Três anos mais tarde (1926), a primeira escola oficial de enfermagem no Brasil (EEDNSP) receberia o nome de Escola de Enfermeiras Dona Anna Néry (pioneira brasileira da enfermagem). Nesse período ainda não existia universidade oficialmente reconhecida no Brasil, o que viria acontecer somente depois da criação do Estatuto das Universidades Brasileiras, com Francisco Campos (1931). Somente por meio do Decreto 21.321 de 18/06/1946 (Brasil, 1964), no início da retomada da democratização no Brasil pela queda de Vargas, é que esta escola se integrou à Universidade do Brasil. A grande reforma do ensino de enfermagem ocorreu em 1949, pela lei n° 775 de 06 de Agosto de 1949 (Brasil, 1974), que padronizou o ensino de enfermagem. E do Decreto n° 27.426 de 14 de Novembro de 1949, o qual estabeleceu o currículo para a formação do enfermeiro (Brasil, 1949). Com a promulgação da LDBEN 4.024/61 (Brasil, 1961), levando em consideração as transformações econômicas e necessidade de mão de obra com mais fluidez, cujo ideário era encampado, inclusive, por alguns intelectuais na área da saúde, duas emendas foram incorporadas no artigo 47, que tratava da criação do ensino técnico da enfermagem em grau Médio, e nos artigos 90 e 91, que incluíam a assistência da enfermagem ao escolar. Esse encaminhamento resultou no Parecer 171/1966 (Brasil, 1966), que regulamentava os cursos técnicos de enfermagem no Brasil, e o reconhecimento, propriamente dito, da enfermagem como curso Superior (Araújo, Silva, 2007). O currículo do curso de enfermagem numa perspectiva instrumental – cujo centro era o manejo de técnicas – a partir da Lei 5.540 de 1968 (Brasil, 1968), é ainda mais enfatizado, sobretudo, por conta da influência norte-americana, naturalizada, inclusive, por meio de acordos bilaterais, com uma iniciativa diferente – a inclusão das disciplinas sociologia e psicologia, numa orientação funcionalista e behaviorista. Nesse momento histórico em que vivia o Brasil (ditadura militar), a inclusão das disciplinas acima, conforme o Parecer CFE 163/72 (Brasil, 1972), pode ser considerado um avanço, tendo em vista a ênfase de especialização do curso. No final da década de 1960, a despeito de os estudos teóricos da enfermeira Wanda de Aguiar Horta apontarem para a necessidade do registro no planejamento da assistência (Carrijo, 2007), para a compreensão e melhor intervenção do enfermeiro em seu cotidiano, as práticas dos docentes universitários ainda eram centralizadas no modelo mecanicista de formação e instrumentalização dos futuros profissionais. Se havia, de um lado, uma projeção para mudança de planificação instrumental da formação, por outro, os parâmetros e finalidades tecnicistas no processo ensino-aprendizagem na universidade permaneciam inalteráveis. Esse quadro apresentou o mesmo arranjo nas legislações oficiais nacionais e subnacionais, até mesmo ante a LDBEN 9394/96 (Brasil, 1996), que garantia a formação de 1101
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distintos perfis profissionais no Ensino Superior, considerando o mundo do trabalho e suas solicitações como ponto de partida. Em 2001, foi homologado o parecer CNE/CES n° 1133/2001 (Brasil, 2001b), que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação, e a Resolução n° 03/2001 (Brasil, 2001a), instituiu as diretrizes específicas para o ensino de graduação em Enfermagem (Machado, 2007), mas, ainda assim, o processo interdisciplinar de formação não se consubstanciou como questão resolvida. Do ponto de vista da lógica capitalista, tanto a enfermagem quanto qualquer outro curso universitário só encontram respaldo quando articulados ao “mercado de trabalho”, e não necessariamente ao “mundo do trabalho”. Eis o explícito legal e a sua operacionalização diferenciada implícita, característica de uma sociedade dualista, cuja leitura o professor de Ensino Superior, nos cursos de enfermagem, necessita problematizar, ressignificando a sua ação formativa do profissional cidadão verdadeiramente para o mundo do trabalho em todas as suas múltiplas determinações.
Perspectiva profissional e social da enfermagem: uma problematização da identidade docente A enfermagem, em sua origem, está relacionada com a missão da igreja ou pessoas leigas que tinham desenvolvido um espírito missionário, cuja base centrava-se na caridade e misericórdia (Rodrigues, 2000). Daí a proliferação das Casas de Misericórdia (do coração que se inclina aos pobres), a partir do século XV, lideradas por Ordens religiosas distintas e a modelação do conceito de enfermagem como a arte e a ciência do cuidar, característicos da missão do cristianismo, sobretudo no que diz respeito aos desfavorecidos econômica e socialmente. Com o passar dos séculos e modificações derivadas das novas formas de produção, a enfermagem como área de conhecimento solicita modificações quanto às políticas públicas sociais. A enfermagem como profissão surgiu com Florence Nightingale (1820-1910), reconhecida como precursora da Enfermagem Moderna (Carrijo, 2007). No decorrer da história, Florence destacou a peculiaridade do trabalho em enfermagem quando o distingue das tarefas domésticas e reconhece o seu cunho científico, conferindo-lhe status específico e autoridade como área de conhecimento, despontando a enfermagem profissional (Abrão, 2006) como de formação específica. Entretanto, como destacado anteriormente, a enfermagem como profissão possui enredo diferenciado em sua trajetória, pois está intimamente ligada ao servir social. A sua relação com a sociedade é permeada pelos conceitos que se estabeleceram na sua trajetória histórica e que influenciam, até hoje, a concepção do que é, e qual o seu significado enquanto profissão da saúde (Padilha, Borenstein, 2006). A enfermagem como área de conhecimento profissional está articulada ao contexto social em todo o mundo. Sua prática está profundamente interligada com os fatos sociais, culturais, históricos e políticos, com os quais os seres humanos vivem e se relacionam (Huarcaya, 2003). Entretanto, várias são as dimensões de sua compreensão, enquanto profissão e enquanto prática social ao longo do processo histórico (Abrão, 2006). Para Paixão (1969), existem três elementos principais para se compreender tais dimensões, os quais constituem a profissão do enfermeiro, a saber: o espírito de serviço (ou ideal), habilidade (arte) e ciência. Porém, destaca que o mais importante é o espírito de serviço, por ser uma inclinação natural no homem, ser social por excelência. Para Shinyashiki (2006), as pessoas que assumem o papel de enfermeiro não somente assimilam novos conhecimentos e aprendem novas habilidades, mas imergem em uma nova cultura com expectativas de valores e normas e, acrescentamos, na possibilidade de recriação e ampliação do mundo e seus arranjos contextuais. Kemmer e Silva (2007) enfatizam que a enfermagem como profissão tem caminhado para a formação de um corpo próprio de conhecimentos científicos, buscando, por meio de estudos e pesquisas, a sua definição como ciência. Entretanto, Pai, Schrank e Pedro (2006) denunciam que o trabalho de enfermagem no Brasil acontece, muitas vezes, sob condições precárias de recursos humanos e materiais, baixos salários, ambientes insalubres, dividido por tarefas e com extensas horas de trabalho, e que, na maioria das vezes, não oferece local apropriado ao descanso. 1102
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Huarcaya (2003) destaca que o sentido da identidade profissional não consiste em atingir um modelo ideal de enfermeiro, mas de entender sua história, situar-se no contexto e olhar em perspectiva. Significa, também, a reconstrução da autoimagem e da autoestima, a procura de satisfações profissionais dentro do trabalho realizado. Perante esse amplo campo de significações e ressignificações profissionais e acadêmicas, coloca-se o docente do curso de enfermagem, que pode orientar-se por uma ação interventiva centrada na formação instrumental do cuidar humano, como sinalizam os autores tradicionais da área, ou, sem perder o foco, ampliar as possibilidades de o futuro profissional enxergar-se num contexto social mais amplo, isto é, o de estudioso permanente da área. Nessa diretriz, as interlocuções com as questões macrossociais podem contribuir para a elaboração de uma identidade profissional comprometida e coerente com o projeto de emancipação social, assim os profissionais não são reduzidos a “fazedores” parcelizados de tarefas, mas construtores de conhecimento em serviço ou em espaço permanente de formação continuada, o que os impulsiona a refletir sobre a formação docente para o curso de enfermagem com maior profundidade.
A formação docente para o curso de enfermagem e a trilogia ensino-pesquisa e extensão: aspectos didático-pedagógicos Cumpre ao docente universitário a ampliação de sua visão acerca do conhecimento, dos saberes pedagógicos necessários ao desenvolvimento de sua atribuição, das possibilidades de sua própria formação profissional continuada e acerca dos princípios que prezam pela dignidade e eticidade (dentre outros) humanas: sua, dos seus alunos, de sua comunidade e do homem em todo o universo de sua produção. Esta ampliação necessária se caracteriza pelo “desarmar-se” acerca de concepções acabadas sobre o conhecimento historicamente produzido, isto é, cabe ao educador assumir que, por meio dos tempos, o conhecimento do homem se amplia e se refaz, se corrige e possibilita novas leituras de um mundo que precisa ser redescoberto a cada encontro e a cada achado científico que se elabora, e que, por sua vez, deve ser estudado e entendido à luz de teias relacionais intrínseca e extrinsecamente, conforme as possíveis visões de totalidades científicas e humanas que se apresentam disponíveis e em processo de construção. Para a enfermagem, a formação do docente segue os mesmos referenciais dos demais cursos superiores no Brasil, isto é, considerando a sua formação em nível de graduação, especializações e cursos Strictu Sensu (Mestrado e Doutorado). A partir da última LDBEN 9394/96 (Brasil 1996), a ênfase deve se dar na contratação de professores com nível Strictu Sensu em, pelo menos, 1/3, considerando os demais níveis (graduação e especialização) a partir do mérito de cada candidato e exigências institucionais dentre outros. O perfil do profissional a ser formado para a área da enfermagem, consequentemente, como vimos no artigo 43 da LDBEN 9394/96, prima pela formação inicial e continuada desse profissional, o que requereria intervenções diferenciadas cujos referenciais possam exprimir a leitura do real. Entretanto, observamos que historicamente os referenciais epistemológicos para a enfermagem orientam grande parte dos futuros profissionais, para o grupo dos executores, reduzindo de forma utilitária “o cuidar” ao sentido de abnegação de sua tradição. Segundo Huarcaya (2003), o modelo nightingaleano adotou muito do espírito religioso que norteou as práticas do cuidado como atividades específicas de enfermagem. A escola de Florence serviu de modelo para a enfermagem em vários países do mundo. O modelo vocacional era um modelo internalizado e legitimado pelas alunas durante o processo de formação. Florence Nightingale destacava que a Enfermagem era um chamado, uma vocação em que as enfermeiras poderiam mostrar sua docilidade, sua “vocação de serviço”, relacionadas com a obediência religiosa. A filosofia de vida de Florence permeava todo o currículo de sua escola. Ela acreditava que a saúde deveria estar presente tanto na alma como no corpo. Seu currículo não tinha um conjunto de metas a ser atingido, sua ênfase centrava-se nos talentos e habilidades das estudantes que compartilhavam a missão do enfermeiro e que deveriam ser desabrochados. De acordo Pinhel (2006), o treinamento era COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1097-109, out./dez. 2011
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uma forma de fazer com que a aluna usasse seus recursos intelectuais inatos, logo, a escola deveria ensinar à enfermeira sua função de ajudar o paciente a viver. Portanto, a enfermagem era entendida como uma arte que requeria treinamento organizado, prático e científico; a enfermeira deveria ser uma pessoa capacitada a servir a medicina, a cirurgia e a higiene, e não a servir aos profissionais dessas áreas. Florence defendia que a enfermagem era corolário necessário desses campos e que, para o bem-estar dos pacientes, a enfermeira deveria saber adaptar suas habilidades ao trabalho da equipe e, para isso deveria obedecer, de forma inteligente, as solicitações do campo. Conforme Pimenta e Anastasiou (2002), ainda que os docentes universitários possuam experiência expressiva na área de atuação, há um despreparo e um desconhecimento científico do que seja o processo de ensino-aprendizagem. O o docente universitário deve ampliar permanentemente a sua compreensão do próprio conhecimento, seu processo evolutivo e as maneiras possíveis de comunicá-lo. Dessa maneira, desperta em si e nos alunos a condição de protagonistas na descoberta das manifestações do conhecimento em sua vivência e interpretação; assim, o conhecimento não deve ser entendido com viés determinista, mas como um objeto em construção, solicitando a sensibilização do educador e do educando, em comunhão, para “aprender a aprender”, para considerar possibilidades, para reunir hipóteses e para entender que o homem mobiliza a história e mobiliza-se com a história num processo de vir-a-ser, considerando e reconsiderando seus encaminhamentos à luz da reflexão de seus desafios, como objeto processual e dinâmico e, por isso mesmo, sujeito a possíveis transformações na medida em que constrói os seus saberes. Nesse olhar, para Reibntz e Prado (2006), tornar-se professor na área de enfermagem requer mais do que ser bom profissional, isto é, são necessárias competências especificas que vão além das competências requeridas para um bom enfermeiro. E, vale lembrar, que provocar a construção da sensibilização para as mesmas é um dos desafios do professor, ou seja, além de ser capaz de desdobrar e dominar o campo do conhecimento deve educar o olhar contextual (seu e do estudante) sobre a historicidade vivenciada e os respectivos condicionantes sociais, o que certamente contribuirá com a transformação tanto do processo educacional, como dos indivíduos em seus posicionamentos. Todavia, toda transformação gera um conflito, uma vez que provoca rupturas de conceitos, hábitos, preconceitos e comportamentos, dentre outros. Pode-se dizer que uma pedagogia transformadora é sempre uma pedagogia do conflito (Padovani, 2007). Nessa diretriz, Freire (1996) acrescenta que a formação de professores deve estar inserida numa reflexão sobre a prática educativa em favor da autonomia dos indivíduos, uma vez que os homens se educam por meio de intercâmbios, socializações e da construção da história do conhecimento humano. As bases epistemológicas do curso de enfermagem, as intervenções didático-pedagógicas e a leitura transversalizada do professor, a partir desse conjunto identificado, reúnem parte dos elementos para o exercício significativo de sua intervenção. Parte, porque esse primeiro passo necessita estar articulado ao desenvolvimento discente e sua compreensão do mundo concreto, das contribuições da área que escolheu e das inferências provocadas pela dialogicidade recorrente da ação-reflexão-ação. O trabalho transversal do docente da área de enfermagem não se reduz puramente ao campo didático-pedagógico, mas não prescinde do mesmo para formação significativa do profissional, dado que pressupõe pontos de encontro das distintas áreas do saber que primam pelo conhecimento do objeto em sua totalidade. Assim, os conteúdos são atravessados como integrantes da totalidade e que encontram sentido com outras interconexões, pois o mundo mudou, as pessoas mudaram, e a simples constatação da velocidade em que ocorrem transformações em nossa vida cotidiana já nos mostra que estamos diante de uma nova sociedade, uma outra realidade que nos envolve e nos desafia (Lima, 2008). Nesse sentido, Antunes (2002) reforça a necessidade de capacitação permanente do docente como profissional consciente da responsabilidade sobre sua atuação, que precisa adquirir melhor conhecimento de si mesmo, no que é, no que faz, no que pensa e no que diz, e, ao mesmo tempo, sobre o outro, portanto, numa relação si-outro num processo de ressignificação dos saberes e fazeres. Ebisui (2004), por meio de pesquisa realizada entre professores que ministram aulas no curso de enfermagem, concluiu que os próprios profissionais caracterizam como frágil uma intervenção docente
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que não ressignifique o rol de conhecimentos específicos de sua área; logo, a responsabilidade do formador nunca pode perder de vista a dimensão crítica, criativa, inovadora, ética, facilitadora e, acrescentamos, problematizadora do processo ensino-aprendizagem. Em relação ao papel do professor, por meio do olhar freireano, inferimos que a tomada de consciência para uma prática pedagógica ressignificada na/e pela convivência é um exercício de aprendizagem que aprimora o reconhecimento de que os conhecimentos, os valores, os sentidos das ações docentes são construídos por múltiplas vozes, que solicitam encontros dialéticos permanentes, mas que, em si, estão sempre em estado de “novidade de encaminhamentos e propósitos”, não pela inediticidade de temáticas da escola e seu entorno, mas pelo acuramento do olhar sobre os fundamentos, consequências e implicações que tais objetos demandam frente a interesses identificados que inquietam os interlocutores por seu ocultamento; dessa maneira, a prática pedagógica ressignificada na convivência possibilita uma outra forma de aprendizagem para os alunos, para o professor e para toda a comunidade escolar. O espaço de convivência não é o espaço onde os conflitos não existem, muito pelo contrário, é também o espaço onde se possibilita a exposição dos conflitos, mas longe de se constituir um muro de lamentações, caracteriza-se como uma “ponte” onde ninguém poderá atravessar no lugar dos interlocutores, porque a travessia, sendo personalizada, é um caminho de todos; assim, as resoluções dos conflitos são encaminhadas, são pensadas, são discutidas a partir da evocação das inquietações dos sujeitos. Sabe-se que as respostas podem até não serem consensuais, respeitada a diversidade das individualidades, mas podem alcançar uma dimensão democrática significativa em relação à unidade (uno) dos objetivos que todos compartilham, mesmo que de ponto de vista diferenciado; assim, mudam os sujeitos, e a prática pedagógica será orientada por uma autoridade legitimada em múltiplas leituras, onde todos, ao mesmo tempo, são atores e protagonistas da vida real da escola (Lima, 2010). Dessa maneira, a pesquisa como parte inerente ao trabalho do professor universitário para o curso de enfermagem será ressignificada, porque orientada por uma finalidade profissional e social comprometida com as devolutivas institucionais e populacionais. O sentido da pesquisa norteada por uma dimensão transversalizada possibilita as percepções e dimensões da própria carreira: para o professor, o despertar e aprofundamento na construção do objeto; para o aluno em interação recorrente, a aprendizagem e produção do conhecimento ressignificado, e, para ambos, o desvelamento do mundo e do homem. As práticas de extensão, por sua vez, articuladas às perspectivas destacadas, têm como objetivo a socialização e a disponibilização do acesso às contribuições científicas e tecnológicas, não excluindo quaisquer pessoas num processo contínuo de universalização do conhecimento. As grandes preocupações de países desenvolvidos, entretanto, são constituídas por outra lógica: formar um exército consumidor compatível, tanto na academia quanto numa dimensão social mais ampla. O âmbito de compreensão ressignificado pelo professor de Ensino Superior do curso de enfermagem o impelirá a posicionar-se com intervenções sociopolíticas ressignificadas, isso não significa que somente tangenciará o aporte instrumental da profissão e papel específico da área, ao contrário, poderá expandir de forma transversal o alcance do processo ensino-aprendizagem e construir um espaço universitário problematizador. Nesse contexto, a educação universitária assume a tarefa social de despertar, no homem, a consciência de si e do outro no mundo, contribuindo, de forma relevante, para o seu crescimento formativo e informativo, favorecendo o exercício ativo em todos os processos de sua história (e implicações advindas desses). Dessa forma, poderá desfazer as tramas reducionistas dessa realidade histórica (que é, sobretudo, vivida), considerando o universo relacional que possui essencialmente um caráter multidimensional, cuja finalidade maior é a de elevar o homem à categoria de sujeito de sua construção histórica, mediatizada pela compreensão, interpretação e crítica de sua realidade. Lima (2010) observa que a valoração do homem como ser que se autoproduz, transforma e se transforma no desvelamento do mundo e dos demais homens, adquire um caráter libertador; nas palavras de Paulo Freire (1980, p.34), a sua “a vocação ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar exato, em tal momento, em tal contexto”.
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Considerações finais Nota-se que, à medida que o docente tem clareza em relação aos seus projetos e leitura dos condicionantes sócio-históricos, há uma relevante contribuição para sua formação profissional consciente e compromissada, assumindo um papel significativo de colaboração e transformação do aprenderensinar no ciclo ação-reflexão-ação. Assim, é necessário que o profissional de enfermagem, em seu processo de formação inicial, continuada ou de intervenção pedagógica na práxis, tenha consciência do amplo espectro da profissão, não como dádiva do sobrenatural, mas como processo em construção. Tal perspectiva contribui para se compreender a intervenção pedagógica na enfermagem como uma profissão para além do instrumentalismo. Nesse caso, o professor, como pesquisador de seu próprio campo, é responsável por contribuir com a formação de profissionais competentes e conscientes da dimensão de sua intervenção no contexto social e, acima de tudo, que entendam que o educar está inserido em todos os momentos da enfermagem, pois, se ensina e aprende no exercício da construção do conhecimento. Organizar a prática pedagógica sob o prisma da reflexão-na-ação não é, e jamais foi, sinônimo de permissividade ou de reducionismo, mas, ao contrário, é aperfeiçoá-la, tornando-a dinâmica, criativa e agradável; nesse caso, o professor é ator e autor social, que deve primar por sua formação e atualização permanente, ao mesmo tempo em que busca seu aperfeiçoamento e superação em cada olhar, tendo o aluno como um interlocutor ativo do processo ensino-aprendizagem e todos os outros professores como tessitura da mesma rede, construída e compartilhada por atores sociais históricos, dentre os quais o professor de Ensino Superior na enfermagem pode contribuir significativamente. A visão de conjunto toma a totalidade como fio condutor, a fim de acompanhar todo um processo que se torna revolucionário no afrontamento ao reducionismo e à fragmentação, rumando-se à proposição de delineamentos coerentes e consistentes com o real social e educacional - revisão essa que não admite mais padronizações dos próprios saberes e fazeres da escola nem de verdades e visão de homem determinadas por conta de manutenção de vontades particulares daí a importância de uma educação compreensiva balizada em valores sociais, antropológicos, políticos, filosóficos, culturais e, sobretudo, valores humanos universalizados. Esse norteamento é o veículo que vai situar a universidade, destacando o curso de enfermagem como elemento de transformação social; assim, importa que o professor, em seu processo de formação continuada, conheça e inclua o comprometimento pela educação: a totalidade da leitura do contexto pelo qual atravessa o mundo, o planeta, o país, o Estado, o município, o bairro, a comunidade extraescolar, a escola e a universidade, como objetos indissociáveis do conhecimento no exercício de sua prática docente. Consideradas as múltiplas determinações sócio-históricas, é necessário ressignificar a formação do professor do ensino superior em enfermagem, instrumentalizando-o com saberes e fazeres críticoreflexivos, imprescindíveis à formação de profissionais-cidadãos. Esta não se esgota na área das ciências naturais, uma vez que seu objeto tem início e recorrência no humano: assim, um não nega o outro e, consequentemente, a transversalidade recorrente aprimora e fornece elementos necessários para seu crescimento e aperfeiçoamento contínuos. Ressaltamos que não há pretensão de respondermos a todos os questionamentos referentes ao tema tratado. Desejamos, sim, oferecer elementos para trazer à luz esse campo de discussão e indicar perspectivas de pesquisa para futuros trabalhos. A formação do professor de Ensino Superior no Brasil necessita ultrapassar a lógica de uma ciência determinista que, não raras vezes, exclui o homem de sua humanização, isto é, valida somente aspectos pontuais, deixando à margem o que julga descartável, daí tornar tangencial, no currículo do enfermeiro, as solicitações das ciências humanas. Cremos que o teor comunicacional e interdisciplinar entre as áreas de conhecimento enriquece a formação profissional de qualquer profissional e, particularmente, a visão do docente universitário, cujo trabalho contempla a formação de inúmeros atores sociais que, por sua vez, poderão compartilhar ou aprofundar tais solicitações como um recorrente vir a ser, sem esquivar-se dos fazeres necessários à sua profissão — eis o porquê da centralidade da formação profissional e social do professor de enfermagem no crivo açãoreflexão-ação. 1106
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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ABRÃO, F.M.S. Primórdios da enfermagem profissional na cidade de Recife/ Pernambuco: raízes de pré-institucionalização da formação do campus organizacional (1922-1938). 2006. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade São Paulo, Ribeirão Preto. 2006. ANTUNES, M.N.V. A formação continuada do professor universitário de Enfermagem: discutindo sua contribuição com as mudanças no ensino de enfermagem. 2002. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2002. ARAUJO, D.V.; SILVA, C.C. Historicidade institucional do ensino de enfermagem na Paraíba: uma contribuição para o estudo. Cogitare Enferm., v.12, n.1, p.14-9, 2007. BRASIL. Decreto n.791, de 27 de setembro de 1890. Crêa no Hospício Nacional de Alienados uma escola profissional de enfermeiros e enfermeiras. Rio de Janeiro Imprensa Nacional, 1890. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ ListaTextoIntegral.action?id=53774>. Acesso em: 13 abr. 2010. _______.Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES n. 3, de 07 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, 9 nov. 2001a. Seção 1, p.37. _______.Ministério da Educação e Cultura. Parecer CNE/CES n.1133/2001. Aprovado em 7 de agosto de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Enfermagem, Medicina e Nutrição. Diário Oficial da União, Brasília, 03 out, 2001b. _______.Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996. p.27.833-27.841. _______. Lei n.775, de 6 de agosto de 1949. Dispõe sobre o ensino de enfermagem no País e dá outras providências. Rio de Janeiro: Ministério de Serviços de Saúde Pública, 1974. v.1, p.154-7. _______. Conselho Federal de Educação. Parecer 163/72. Currículo mínimo para os cursos de graduação em enfermagem e obstétrica. Diário Oficial da União, Brasília, 25 fev. 1972. _______. Lei n.5.540, de 28 de novembro de 1968. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 29 nov. 1968. Seção 1, p.10369. _______.Parecer n.171 de 22 de dezembro de 1966. Regulamenta os cursos técnicos e superior na área de enfermagem Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 1966, Seção 2, p.2. _______. Decreto n.21.321, de 1946. Aprova o Estatuto da Universidade no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1964. ______. Ministério da Educação e Cultura. Lei n.4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 20 dez. 1961.
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artigos
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Palabras clave: Enfermería. Docentes de enfermería. Formación didáctico-pedagógica. Recebido em 09/08/10. Aprovado em 22/02/11.
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A formação ético-humanista do enfermeiro: um olhar para os projetos pedagógicos dos cursos de graduação em enfermagem de Goiânia, Brasil *
Juliana de Oliveira Roque e Lima1 Elizabeth Esperidião2 Denize Bouttelet Munari3 Virginia Visconde Brasil4
LIMA, J.O.R. et al. The ethical-humanistic education of nurses: analyzing the pedagogic projects of the nursing courses in Goiânia (GO, Brazil). Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011. This qualitative study with a documentary research design aims to identify and describe the inclusion of the ethicalhumanistic framework in the Pedagogic Projects of the Courses (PPC) of Nursing in the city of Goiânia, state of Goiás. The research was developed in five Higher Education Institutions through the study of the PPC, in which we searched for terms that referred to the ethicalhumanistic approach. Two categories were generated: “The education of the ethical-humanistic professional” and “The focus of integrality in the PPC context.” Among 218 analyzed syllabuses, only in forty of them did we find some term related to the studied framework. Despite the limited number of selected syllabuses, the detailed analysis of the documents allowed to identify, in all their extent, relevant theoreticalphilosophic aspects of this framework. Thus, the research presents elements that can promote reflections, making the principles of the ethical-humanistic framework effectively guide the curriculum reform in accordance with the current Brazilian educational legislation.
Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, com delineamento de pesquisa documental, cujo objetivo é identificar e descrever a inserção do referencial éticohumanista nos projetos pedagógicos dos cursos de graduação em Enfermagem de Goiânia, Brasil. A investigação foi desenvolvida em cinco instituições de Ensino Superior por meio da análise dos referidos projetos, nos quais buscamos termos que faziam referência à abordagem ético-humanista, gerando duas categorias: “A formação do profissional éticohumanista” e “O enfoque da integralidade no contexto dos projetos pedagógicos dos cursos”. Das 218 ementas analisadas, em apenas quarenta encontramos algum termo relacionado ao referencial estudado. A análise detalhada desses documentos permitiu identificar, em toda a sua extensão, aspectos teóricofilosóficos relevantes desse referencial. O estudo apresenta elementos que poderão promover reflexões, fazendo com que os princípios do referencial ético-humanista sejam efetivamente norteadores da reforma curricular de acordo com a atual legislação educacional brasileira.
Keywords: Nursing education. Pedagogic project. Curriculum. Humanism. Ethics.
Palavras-chave: Bacharelado em Enfermagem. Projeto pedagógico. Currículo. Humanismo. Ética.
Elaborado com base em Lima (2009), trabalho vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Enfermagem na Gestão, Desenvolvimento de Pessoas e da Tecnologia de Grupo no Contexto do Trabalho em Saúde (NEPEGETS). Apoio: Capes. 1-4 Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Goiás. Rua 227 Qd 68, S/N, Setor Leste Universitário. Goiânia, GO, Brasil. 74.605-080. ju1lianaroq@hotmail.com.br *
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Introdução A institucionalização da enfermagem como área do ensino ocorreu em 1922, na mesma época em que aconteceu o advento da enfermagem brasileira. A partir dessa época, o ensino da enfermagem vem sofrendo grandes transformações nas atividades pedagógicas devido às exigências do mundo capitalista. Em 1961, fixaram-se as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e foi criado o Conselho Federal de Educação com competência para definir os currículos mínimos dos cursos. Mas foi em 1996 que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB foi criada e o conselho passou a ser denominado de Conselho Nacional de Educação. Esse conselho tinha como competência definir as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos (Lopes Neto et al., 2006; Silva, 1986). Antes da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), os currículos dos Cursos de Graduação em Enfermagem seguiam modelos norte-americanos e franceses. Após muitas reformulações, o Ministério da Educação, por meio da Resolução nº. 3 CNE/CES de 2001, instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Enfermagem (DCN/ENF) com o objetivo de orientar os currículos das IES na formação do enfermeiro (Brasil, 2001). As DCN/ENF descrevem que as IES deverão assegurar ao aluno a formação que valorize a dimensão ética e humanista, favorecendo a ele o desenvolvimento de atitudes e valores orientados para a cidadania e solidariedade. As diretrizes determinam os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da formação do enfermeiro, norteando os Cursos de Graduação em Enfermagem na construção do seu Projeto Pedagógico do Curso (PPC) , assim, prepararem o futuro profissional para o atendimento e compromisso da saúde da população (Brasil, 2001). A intenção das DCN/ENF é oferecer diretrizes para que a formação seja desenvolvida por meio de competências e habilidades, necessitando, assim, de experiências e oportunidades de ensinoaprendizagem que vão além do cognitivo. Por meio da formação por competências, espera-se que o futuro profissional seja capaz de articular diversos conhecimentos na solução de problemas do cotidiano, relacionando cultura, sociedade, saúde, ética e educação, garantindo capacitação de profissionais com autonomia para assegurar a integralidade da assistência (Fernandes et al., 2005). Dessa forma, uma mudança nos currículos de enfermagem, que siga as orientações das DCN/ENF, poderá ser um meio de formar enfermeiros críticos, reflexivos, criativos, com compromisso político, e capazes de enfrentar problemas complexos na área da saúde. Contudo, para que haja a efetivação desse novo modelo curricular, que as DCN/ENF propõem, é necessário que todos os envolvidos nesse processo sejam responsáveis pela mudança (Fernandes et al., 2003). Em toda essa mudança é indispensável que o professor esteja preparado tanto para as habilidades específicas de sua área, como, também, para as habilidades relacionais que podem favorecer ou dificultar o aprendizado desejado, pois o docente passa a ser não mais o transmissor, mas sim o mediador para se alcançar o conhecimento. Observando as dificuldades encontradas pelo corpo docente de determinada IES, por ocasião da sua reformulação curricular, em que o PPC estava sendo reconstruído com vistas a atender às DCN/ENF, Esperidião (2005) desenvolveu um estudo que, por meio da pesquisa-ação, propiciou amplo debate entre os docentes acerca do processo de construção e tomada de consciência necessários para a formação do enfermeiro pautada no referencial ético-humanista. Neste sentido, a autora destaca que apenas tomar consciência de algo, não garante que sejam tomadas atitudes que irão concretizar o que está sendo proposto, podendo, entretanto, promover novos investimentos para enfrentar as dificuldades e direcionar ações pertinentes ao alcance desejado, mais especificamente à efetivação da mudança curricular. Ribeiro et al. (2005), ao analisarem e discutirem as DCN/ENF, ressaltando o enfoque éticohumanista, apontam que a discussão gerada nesse documento deixa “clara a preocupação com a solidariedade e cidadania, como saber conviver com o aprender a ser e o aprender a viver juntos, elementos que constituem a essência do humanismo e da ética como mola mestra do comportamento humano e das ações profissionais” (Ribeiro et al., 2005, p.403). A necessidade do investimento na formação de profissionais de saúde sob a ótica ético-humanista é condição indispensável para a consolidação do SUS. Qualquer cidadão, na condição de usuário dos serviços de saúde, público ou privado, pode perceber a necessidade de se melhor qualificarem os 1112
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trabalhadores da saúde, visto suas dificuldades no atendimento de questões inerentes aos princípios humanísticos no cotidiano assistencial. No estudo realizado por Gomes et al. (2008), cujo objetivo foi avaliar a humanização da assistência hospitalar na percepção de pacientes hospitalizados, numa perspectiva etnográfica, a competência humana foi o componente mais destacado. Esta foi caracterizada por atitudes e formas de comunicação e informação onde prevaleceram narrativas que retrataram atitudes de indiferença, grosseria e descaso, poder associado ao status financeiro e ação individualizada, sem espírito de equipe, e, também, a comunicação desfavorável, já que o paciente não era tratado pelo nome, nem olhado com interesse, e a linguagem utilizada era incompreensível à maioria. A humanização depende de mudanças das pessoas, da valorização em defesa da vida, na possibilidade do aumento do grau de desalienação e de transformação do trabalho em um método criativo e prazeroso (Campos, 2005). Segundo Casate e Corrêa (2005), as mudanças nos currículos de enfermagem, dando destaque às Ciências Sociais e Humanísticas, são de fundamental importância à humanização da assistência, pois estas podem contribuir na busca das abordagens em saúde diante das demandas públicas no setor. Em 2004, o Ministério da Saúde, reconhecendo graves lacunas no SUS, entre elas, a “falta de preparo dos profissionais para lidar com a dimensão subjetiva que toda prática de saúde supõe”, substituiu o PNHAH (Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar) pela Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde, o HumanizaSUS (Brasil, 2004a). Os idealizadores dessa proposta pretendiam que a humanização da assistência não fosse vista como mais um programa a ser aplicado aos serviços de saúde, mas como uma política transversal, em toda rede do SUS, que valorizasse os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores (Brasil, 2004a). A humanização é um meio de interferência nas práticas de saúde, levando em consideração que os atores envolvidos no processo, quando mobilizados, são capazes de mudar a realidade, transformando a si próprios. E a Política de Humanização só será efetivada se conseguir agregar “o que fazer” com “o como fazer”, relacionando conceito, conhecimento e prática (Benevides, Passos, 2005). Nessa direção, é importante que as IES considerem, na formação do enfermeiro, além dos princípios doutrinários do SUS (universalização, descentralização, regionalização, equidade e integralidade), as orientações do HumanizaSUS, as quais são também contempladas nas DCN/ENF. Desta forma, o enfoque ético-humanista poderá contribuir para que os futuros profissionais sejam capazes de valorizar as dimensões subjetivas e sociais da relação interpessoal com seus clientes e com toda equipe multidisciplinar envolvida na assistência à saúde (Brasil, 2004a, 2001). Tais abordagens levam a considerar que, para se empreenderem ações na área da saúde, é preciso a busca constante de conhecimento, que pode iniciar-se na sala de aula, onde o aluno aprende a refletir, analisar e compreender a prática. Espera-se que este processo continue durante a vida profissional, “pois o conhecimento não é algo acabado, mas uma construção que se faz e refaz de forma dinâmica” (Camacho, Santo, 2001, p.14). Por essa razão, procurando conhecer a formação do enfermeiro com base nas orientações das DCN/ ENF, propusemos este estudo com o objetivo de identificar e descrever a inserção do referencial éticohumanista nos Projetos Pedagógicos dos Cursos de Graduação em Enfermagem de Goiânia-GO.
Metodologia Pesquisa documental, que se caracteriza pelo levantamento de dados restritos a documentos, escritos ou não. Esses são classificados segundo a fonte oriunda de: 1) arquivos públicos – municipais, estaduais e federais, arquivos particulares e fontes estatísticas; e 2) documentos escritos, iconografia, fotografias, objetos, canções folclóricas, vestuário e folclore (Marconi, Lakatos, 2006). O Projeto Pedagógico do Curso (PPC), utilizado como objeto de análise neste estudo, se enquadra, de acordo com a classificação de Marconi e Lakatos (2006), como documento escrito, pois provém de fontes de arquivos particulares das instituições participantes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011
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O município de Goiânia (GO) possuía, na ocasião da realização da presente investigação, seis instituições que disponibilizavam cursos de graduação em Enfermagem. Todas foram convidadas a participar do estudo, por meio de uma visita da pesquisadora a cada instituição de Ensino Superior, na qual foi feita reunião com os diretores e/ou coordenadores de curso, com vistas a esclarecer a temática e delineamento da pesquisa. Já no primeiro contato, duas IES manifestaram-se interessadas em participar da pesquisa e, nas outras quatro, as coordenadoras do curso se comprometeram a consultar os diretores para um possível aceite na participação. Posteriormente, três delas concordaram em participar do estudo, e uma, após ter analisado a documentação, manifestou-se contrária a fazer parte da presente investigação. Para a condução da mesma, o projeto que deu origem ao estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Goiás. Os responsáveis pelas IES oficializaram a participação por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Dessa forma, tivemos cinco instituições participantes, sendo uma pública e quatro particulares. As instituições foram denominadas por letras (A, B, C, D e E), para que fosse garantido sigilo quanto à sua identificação e preservação dos envolvidos, atendendo os princípios éticos da pesquisa desenvolvida com seres humanos (Brasil, 1996). A cópia dos PPC foi disponibilizada na íntegra aos pesquisadores, que, tendo em vista os objetivos do estudo e para facilitar a coleta das informações pertinentes à pesquisa nos projetos, utilizaram um instrumento que permitiu a análise dos dados gerais da instituição e do curso, dados relacionados ao processo de construção dos PPC e a inserção do referencial ético-humanista em toda a sua extensão. Os dados que emergiram da análise dos PPC foram submetidos à análise qualitativa atendendo as orientações de Bogdan e Biklen (1994), considerando que são voltadas, especificamente, para investigação nos contextos educacionais. Os autores sugerem que esse procedimento deve ser realizado passo a passo e iniciado logo após a coleta dos dados. De acordo com tais orientações, primeiramente, realizamos várias leituras de todos os PPC com a intenção de preencher os dados do instrumento relativos à caracterização da instituição e do curso. Na sequência e com base no conteúdo e terminologia encontrados nas DCN/ENF (Brasil, 2001), no HumanizaSUS (Brasil, 2004) e em alguns estudos da literatura, como Esperidião (2005); Ribeiro et al. (2005); Almeida (2007), iniciamos o processo de identificação das categorias de codificação, ou seja, palavras ou termos que tratavam do referencial ético-humanista no PPC em toda sua extensão, em áreas ou disciplinas que apresentam este enfoque presentes no ementário do curso. Durante essas leituras, grifamos as unidades de registro que se relacionavam ao referencial éticohumanista, presentes nos PPC das instituições envolvidas. Tal procedimento possibilitou anotar algumas palavras ou termos que, posteriormente, formaram as seguintes categorias de codificação: ético, humanista, solidariedade, relação interpessoal, valorização e integralidade. Após o entendimento do sentido de cada uma dessas categorias de codificação, foi possível agrupá-las em duas categorias: “A formação do profissional ético-humanista” e “O enfoque da integralidade no contexto dos PPC”. Para apresentação de trechos ou aspectos destacados dos dados analisados, os mesmos foram identificados com a sigla PPC, seguida por uma letra para diferenciar as instituições.
Resultados e discussão Caracterização das IES e dos cursos de graduação em Enfermagem O tempo de existência das IES no município de Goiânia varia entre três e 49 anos, enquanto os dos cursos de Enfermagem variam entre dois e 34 anos. Todos os cursos das IES investigadas funcionam em regime semestral. Três cursos têm duração de oito semestres e dois têm duração de nove e dez semestres, respectivamente. Dentre os cinco cursos de graduação em Enfermagem pesquisados, apenas um deles oferece também a opção de Licenciatura em Enfermagem. O turno de oferta dos cursos é variado: um curso oferece vagas no turno diurno, um no turno matutino e noturno, e três oferecem vagas em turno integral. A carga horária total dos cursos varia entre 3.660 e 5.215 horas. 1114
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Em outubro de 2008, foi aprovado, por unanimidade, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), o Parecer CNE/CES nº 213/2008, que estabelece a Carga Horária Mínima para o Curso de Graduação em Enfermagem, sendo recomendado o mínimo de 4.000 horas (Brasil, 2008). Esse parecer já sinaliza que alguns cursos de graduação em Enfermagem de Goiânia, que não contemplam essa carga horária, precisarão rever seus PPC. O total de docentes que formam o quadro efetivo dos cinco cursos de graduação em Enfermagem das IES investigadas é de 169 docentes, variando entre 27 e 43 docentes por IES. Em relação à qualificação desses docentes, encontramos: 21% doutores, 50% mestres, 28% especialistas e apenas 1% graduado em Enfermagem. Existe, no Brasil, um grande estímulo para a formação dos docentes de nível Superior. O Ministério da Educação, a fim contribuir com a formação dos docentes, implantou o Plano Nacional de PósGraduação (PNPG). Instituído já há alguns anos junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 2004, implantaram o PNPG 2005-2010. Um dos seus objetivos fundamentais é a expansão do sistema de pós-graduação que leve a expressivo aumento do número de pós-graduandos requeridos para a qualificação do sistema de Ensino Superior do país, do sistema de ciência e tecnologia e do setor empresarial (Brasil, 2004b). Cada IES organiza sua matriz curricular de modo distinto. Encontramos duas que a organizam em módulos: em uma delas existe um módulo por semestre, e cada módulo é composto por disciplinas; na outra, os módulos se conformam em Unidades Pedagógicas e Eixos Temáticos e cada unidade apresenta o seu propósito, o que representaria o sentido da ementa. A matriz curricular do curso de enfermagem de outra IES é organizada em Créditos, sendo que cada período possui disciplinas com seus referidos créditos. Há uma IES cuja matriz curricular está organizada em disciplinas divididas entre os oito períodos do curso. Por fim, encontramos, também, conteúdos da matriz curricular distribuídos em Núcleos, e cada um deles composto por disciplinas específicas divididas nos períodos do curso.
A inserção do referencial ético-humanista nos projetos pedagógicos dos cursos A leitura atenta dos PPC possibilitou identificarmos termos ou palavras que remetessem à abordagem ético-humanista, de acordo com a literatura (Almeida, 2007; Esperidião, 2005; Ribeiro et al., 2005) e com documentos oficiais brasileiros, como as DCN (Brasil, 2001) e o HumanizaSUS (Brasil, 2004b), para depois formarmos as categorias de codificação. Assim, as categorias de codificação consideradas na captação dos dados presentes nos PPC das instituições envolvidas no estudo foram: ético, humanista, solidariedade, relação interpessoal, valorização e integralidade. Essas seis categorias de codificação, agrupadas de acordo com a análise dos conteúdos dos PPC, em relação à inserção do referencial ético-humanista, geraram duas categorias: “A formação do profissional ético-humanista” e “O enfoque da integralidade no contexto dos Projetos Pedagógicos dos Cursos”, que exploram os aspectos relevantes acerca do referencial ético-humanista nos PPC das instituições estudadas. A análise destas nos permitiu identificar elementos que indicam a preocupação das mesmas na busca por uma formação que contemple os pressupostos das DCNs e do SUS, relativos à dimensão do cuidado humanizado. Em seguida, estes são detalhados na apresentação e discussão das categorias.
A formação do profissional ético-humanista Essa categoria revela o interesse dos cursos de graduação em Enfermagem investigados em formar profissionais capazes de proporcionar a assistência mais humana, norteada por princípios éticos, valorizando a pessoa do paciente nos diferentes ciclos da vida. Dessa forma, de modo geral, os cursos demonstram estar respondendo as orientações estabelecidas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem (DCN/ENF) (Brasil, 2001) O ensino de graduação, sobretudo na área da saúde, não pode estar voltado apenas para o desempenho técnico. As instituições de Ensino Superior devem se orientar para uma formação profissional com competência técnica e científica e, especialmente, com ampla visão da dimensão COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011
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humana, no sentido de oferecer, ao aluno, conhecimento e habilidade para falar, ouvir, reconhecer e expressar sentimentos, desenvolvendo sua própria grandeza como pessoa e profissional (Camillo, Silva, Nascimento, 2007; Kestenberg et al., 2006). Todos os PPC pesquisados - em sua parte introdutória, onde estão dispostos os objetivos, as responsabilidades e justificativas para a implantação do curso ou modificação do currículo - descrevem a necessidade de se formarem profissionais éticos e humanistas. O trecho a seguir, retirado de um dos PPC, explicita essa tendência: [...] o Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Enfermagem apresenta orientações para a preparação de recursos humanos altamente qualificados, exigidos pelo processo de desenvolvimento nacional, de forma que a deste projeto permite a formação de profissionais éticos, humanísticos, autônomos, cooperativos, solidários [...]. (PPCA)
Ao proporem este tipo de formação aos seus alunos, profissionais éticos, humanos e solidários, as IES estudadas procuram atender às DCN/ENF e demonstram preocupação com o desenvolvimento humano dos seus alunos enquanto cidadãos. A Resolução CNE/CES nº 3/2001 sugere, aos cursos de graduação em Enfermagem, um perfil do profissional com formação generalista, humanista, reflexiva e crítica, pautado em princípios éticos, de forma a atender às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS, garantindo a humanização da assistência (Brasil, 2001). Praticamente todas as IES, ao traçarem o perfil do egresso, trazem explicitamente a formação éticohumanista, ao descreverem que o futuro enfermeiro a ser formado deve ser ético, técnico-científico e, acima de tudo, humano. O fragmento de um PPC comprova a afirmativa: [...] formação geral para o exercício profissional eticamente rigoroso, cientificamente fundamentado, tecnicamente preciso, socialmente compromissado, humanisticamente orientado [...]. (PPCC)
No estudo de Silva e Sena (2006a), realizado em quatro IES do Brasil, os participantes também mencionam que se tem buscado a construção do perfil de um enfermeiro reflexivo, entendedor dos determinantes ético, político, histórico, ideológico e cultural da profissão, conforme proposto pelas DCN/ENF. No que diz respeito ao desenvolvimento de competências e habilidades gerais e específicas dos futuros profissionais que estão formando, apenas uma IES deixa de explicitar, em seu PPC, a necessidade de se incluírem, no processo de formação, conhecimentos éticos e humanísticos. O processo de ensino-aprendizagem precisa ser construído de forma que leve o profissional a desenvolver competência profissional específica, adotando uma visão integral do processo saúde-doença e do ser cuidado, ultrapassando a fragmentação entre o técnico e o humano (Silva, Sena, 2006a). A preocupação com a formação ético-humanista do enfermeiro também pode ser identificada nos ementários dos cursos de todas as IES participantes deste estudo, por meio de termos relacionados à ética, conforme ilustra a seguinte afirmação de uma delas: Estudo da compreensão da ética enquanto dimensão fundamental do ser, das relações entre os seres humanos e do ser no mundo na dimensão do cuidar. (IESB)
A ética é algo inseparável da prática educativa e absolutamente indispensável à convivência humana, pois o ato de educar é sempre um ato ético, e não há como fugir de decisões éticas, desde a escolha de conteúdos até o método a ser utilizado ou a forma de relacionamento com os alunos (Freire, 1998). Ao documentarem o perfil ou a função dos docentes dos cursos, três IES fazem referência à necessidade de o professor compreender e respeitar o aluno na sua individualidade, a fim de atender à formação fundamentada nos princípios éticos humanistas. A título de ilustração, destacamos o conteúdo do PPC de uma das IES que aborda esse aspecto com detalhe: 1116
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Compreender, discutir e respeitar as semelhanças e diversidades ideológicas, culturais, políticas, étnicas, de gênero e de outras naturezas, procurando inspirar nos alunos posturas éticas, democráticas e justas [...] desenvolver conduta ética [...] considerar os problemas pessoais do aluno e auxiliá-los quando esses começarem a intervir na sua aprendizagem, relacionamento, auto-estima e vida acadêmica [...]. (PPCC)
Ao indicar, em um documento oficial, as diretrizes em que o professor deve se basear para construir sua relação com o aluno e como alcançar os objetivos do processo ensino-aprendizagem, o próprio curso indica que é necessário, ao docente, compreender e respeitar o aluno na sua individualidade, auxiliando-o nas suas limitações. Dessa forma, o PPC parece sinalizar os caminhos para o docente contribuir para que o aluno tenha atitudes semelhantes com os seus futuros clientes, ou seja, estará formando um enfermeiro com postura ética e humana. Durante a formação do enfermeiro, valorizar o aluno como pessoa, favorecendo o seu fortalecimento emocional e o reconhecimento de si mesmo, possibilita, ao futuro profissional, uma postura mais humanizada no encontro com o outro, ou seja, maiores habilidades nas relações humanas na assistência à saúde (Esperidião, Munari, 2004, 2000). Assim como as autoras, acreditamos que a formação do enfermeiro necessita de mudanças no contexto da relação professor-aluno, na medida em que é preciso estabelecer uma relação dialógica, de forma que professor e aluno caminhem juntos na busca do conhecimento, a fim de que o aluno adquira habilidades para o relacionamento com o cliente. Segundo Moscovici (2001, p.36), competência interpessoal é a “habilidade de lidar eficazmente com relações interpessoais, de lidar com outras pessoas de forma adequada às necessidades de cada uma e às exigências da situação”. Na leitura dos ementários foi possível notar a ênfase dada pelas IES para a formação do enfermeiro com habilidades para o relacionamento interpessoal, tanto entre profissional-cliente, profissional-família ou profissional-profissional. Nas ementas das disciplinas da maioria das IES, encontramos dados que sugerem o desenvolvimento da relação interpessoal na formação profissional. De acordo com Kestenberg et al. (2006), habilidades de interação precisam ser ensinadas concretamente, sendo, portanto, fundamental estabelecer estratégias de ensino que possibilitem a ampliação ou desenvolvimento de habilidades interpessoais nos alunos de enfermagem, pois nem todos trazem esse tipo de habilidade em sua bagagem pessoal, ainda que seja imprescindível na relação enfermeiro-paciente. Devido à herança de um ensino fragmentado, onde era priorizado o ensino técnico e pouco valorizada a dimensão humana dos profissionais, existem algumas barreiras na prática docente atual, que estão relacionadas às dificuldades encontradas pelo professor para desenvolver as habilidades interacionais, tais como: a incapacidade de reconhecer e expressar suas experiências e a dos outros e desenvolver a empatia (Esperidião, 2005).
O enfoque da integralidade no contexto dos Projetos Pedagógicos dos Cursos Nessa categoria, apresentamos dados referentes à formação de profissionais que valorizam a integralidade da assistência, com o intuito de garantir a implementação dos princípios do SUS e das orientações nas DCN. A integralidade busca a assistência ampliada, transformadora, centrada no indivíduo como um todo, e não apenas na doença ou na dimensão biológica. A integralidade envolve a valorização do cuidado e o acolhimento (Fontoura, Mayer, 2006). Em seu estudo sobre a integralidade, Santana (2007) descreve que a construção da integralidade do cuidado envolve o resgate da dimensão total do ser humano, em seus aspectos biológicos, psicológicos, espirituais e sociais, ou seja, o cuidado global do indivíduo, o cuidado holístico. A maioria das IES estudadas, na parte introdutória dos PPC, além dos objetivos, missões e propostas didáticas pedagógicas, apresenta que um curso de graduação em enfermagem precisa colaborar para que o aluno desenvolva atitudes de cidadania a fim de que, dessa forma, reconheça o seu cliente como um ser que necessita ser cuidado de forma integral, como sinaliza o trecho a seguir: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011
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[...] para assegurar um ensino que considera os projetos profissionais dos alunos, o desenvolvimento de atitudes e comportamentos condizentes com a formação cidadã e com o desenvolvimento cientifico e técnico compatíveis com as necessidades biopsicossociais da população assistida. (PPCA)
Em quase todos os PPC analisados, foi possível identificar o princípio da integralidade ao delinearem o perfil do egresso, como enfermeiro que deve ser capaz de identificar as necessidades biopsicossociais do ser humano: Capaz de atender as necessidades sociais da saúde [...] e assegurar a integralidade da atenção [...] identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes [...] Capacitado a atuar... como promotor da saúde integral do ser humano [...], (PPCB)
A resolução CNE/CES nº 3 recomenda que “a formação do enfermeiro deve assegurar a integralidade da atenção” (Brasil, 2001, p.3). Da mesma forma que as DCN/ENF, ao citarem as competências e habilidades do enfermeiro, a maioria dos cursos participantes deste estudo descreve que o profissional deve ter capacidade para cuidar integralmente do seu cliente. As teorias de enfermagem, de um modo geral, explicitam que o enfermeiro seja o responsável por cuidar do ser humano integralmente, em relação as suas necessidades biopsicosocioespirituais, pois “não dá para falar de partes, mas de um todo que se organiza, que se complementa” (Kestenberg et al., 2006, p.197). Portanto, é preciso que, durante sua formação, o aluno aprenda a desenvolver a competência que valorize o homem em sua integralidade. Abordar a integralidade do cuidado na formação do enfermeiro requer uma compreensão do ensino como um processo construído coletivamente, em que os sujeitos envolvidos definem as estratégias que amparam o modelo de ensino, uma vez que assumir a finalidade de formar para a integralidade do cuidado implica revisitar o pensar e o fazer pedagógico, revelando as concepções de educação que determinam a práxis educativa na enfermagem (Silva, Sena, 2008, 2006b). Em todas as IES, encontramos, pelo menos, uma disciplina cuja ementa traz, explicitamente, algum termo relacionado à integralidade, indicando a formação do enfermeiro para uma assistência biopsicossocial do ser humano, como ilustram os trechos a seguir: [...] atendimento às necessidades do ser humano enquanto ser holístico, visando seu bem estar. (IESB) Propõe que o aluno conheça, planeje e interaja o cuidar de enfermagem ao individuo na sua integralidade em todos os níveis de atenção e saúde [...]. (IESC)
A produção de conhecimentos para a integralidade, resultantes dos saberes e das práticas do ensino da saúde, exige uma construção teórica contextualizada em movimentos de vontade, desejo e movimento de transformação, capazes de tecer a experiência concreta da vida que lhe dá origem e da vida que irá originar. . Deve-se estabelecer uma nova união entre as culturas científica e humanística, apta a produzir uma escuta singular da realidade (Pinheiro, Ceccim, Mattos, 2006). Entretanto, a integralidade poderá ser alcançada por meio de um olhar atento que possibilite apreender as necessidades das ações levando em conta a contextualização. Dessa forma, os profissionais devem refletir os alcances e limites da integralidade como tarefa fundamental para a saúde coletiva e para a eficiência e eficácia do Sistema Único de Saúde (Menicucci, 2009; Silva, Sena, 2008; Fontoura, Mayer, 2006).
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O referencial ético-humanista nas ementas Durante a análise do ementário dos cinco cursos de graduação em Enfermagem das IES participantes, analisamos um total de 218 ementas, sendo que em apenas quarenta delas identificamos algum termo relacionado ao significado ético-humanista. A quantidade de disciplinas, nos PPC, que apresentam algum termo relacionado ao referencial éticohumanista por IES e a especificidade dos conteúdos que contemplam as Ciências Básicas e da Saúde, Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Enfermagem, conforme classificação presente nas DCN (Brasil, 2001), estão ilustradas no Gráfico 1.
Quantidade de disciplinas
8 7 6 5 4
Ciências Básicas e da Saúde
3
Ciências Humanas e Sociais
2
Ciências da Enfermagem
1 0 A
B
C
D
E
IES Gráfico 1. Disciplinas nos PPC que apresentam algum termo relacionado ao referencial ético-humanista por IES, de acordo com o tipo de ciência. Goiânia-GO, 2008
É possível afirmar que, em todos os cursos de graduação investigados, há disciplinas que, em suas ementas, especificam algum termo relacionado ao referencial ético-humanista. Do total de quarenta disciplinas, 68% encontram-se na área das Ciências da Enfermagem (CE), 25% na área das Ciências Humanas e Sociais (CHS), 7% na área das Ciências Básicas e da Saúde. Por outro lado, observamos que, em quatro IES (A, B, D e E), não existem disciplinas da área das Ciências Básicas e da Saúde que descrevem, explicitamente, em seus ementários o referencial ético-humanista. Dessa forma, embora apenas nas áreas da CHS e CE reconheçamos objetivamente o referencial ético-humanista nos ementários dos PPC analisados, torna-se importante saber como esse está sendo implementado na formação do acadêmico de enfermagem. A carga horária das disciplinas, que em suas ementas apontam a formação ético-humanista, varia conforme cada instituição: encontramos uma oscilação entre 13% e 26% do total de horas do curso. Em todas as IES pesquisadas, a distribuição das disciplinas, ao longo do curso, que contêm algum termo relacionado ao referencial ético-humanista também é variável. O Quadro 1 especifica as disciplinas com suas respectivas cargas horárias, o momento do curso em que elas são oferecidas (período/semestre) e a área da ciência de que fazem parte.
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Quadro 1. Distribuição das disciplinas das IES pesquisadas que contemplam o referencial ético-humanista, agrupadas por Ciência, com suas respectivas cargas horárias e período/semestre Disciplinas
Ciência CE
· · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
Práticas Educativas em Saúde Teoria Geral da Enfermagem Introdução à Enfermagem Bases Teóricas e Técnicas de Enfermagem Prática Clínica no Processo de Cuidar do Adulto Sistematização do Cuidar II Assistência de Enfermagem da Pessoa em CC Ética e Bioética Profissional Saúde Mental Propedêutica da Saúde da Mulher Cuidado à Pessoa/Família Saúde Mental Psiquiátrica Enfermagem na Saúde do Adulto Enfermagem Clínica Enfermagem na Saúde da Mulher e do RN Saúde do Adulto II Enfermagem na Saúde da Criança e do Recém-nascido Enfermagem na Saúde do Adolescente Enfermagem na Saúde Mental Assistência de Enfermagem a Paciente Crítico Ética e Exercício da Profissão Atenção à Pessoa/Família em Situação de Risco Trabalho de Curso I Saúde Materno Infanto-Juvenil Administração Aplicada a Enfermagem Enfermagem Ginecológica e Obstétrica I Ética e Exercício da Enfermagem Estágio supervisionado I
CH (hora)
Período/semestre
80 60 90 80 80 80 80 60 45 60 40 85 100 140 180 160 70 70 100 40 80 20 120 110 100 40 330 2500
1º 1º 1º 3º 4º 4º 4º 4º 4º 5º 5º 5º 5º 6º 6º 6º 6º 6º 6º 7º 7º 7º 7º 7º 7º 7º 8º
CHS
· Psicologia do Desenvolvimento no Ciclo Vital · Comunicação · Psicologia · Antropologia e Sociologia · As Dimensões do Humano · Avaliação Clínica e Psicossocial em Enfermagem · Ser Humano, Sociedade e Enfermagem · Psicologia Aplicada à Enfermagem · Filosofia e Ética · Psicologia Aplicada à Saúde
40 40 80 80 180 80 60 45 40 45 690
1º 1º 1º 1º 1º 2º 2º 2º 3º 4º
CBS
· Bases Morfológicas e Processos de Agravos do Ser Humano I · Bases Morfológicas e Processos de Agravos do Ser Humano III · Bases Morfológicas e Processos de Agravos do Ser Humano IV
90 60 120 270
1º 3º 4º
A análise destes dados possibilita assegurar que, em todas as IES, as disciplinas que contemplam o referencial ético-humanista se encontram distribuídas do início ao final do curso, levando-nos à consideração de se tratar de um tema transversal presente nos cursos de graduação em Enfermagem de Goiânia. Os temas transversais são conteúdos educativos, que, mesmo não vinculados às disciplinas curriculares, podem ser considerados comuns a todas elas, que perpassam todo o currículo da escola (Brasil, 2000; Yus, 1998).
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Grifo do autor.
Para Yus (1998), os temas transversais são possibilidades de criação de uma nova escola5, centrada na educação para a vida, resgatando o valor da educação para a escola, dos valores humanistas, e que permita o desenvolvimento de indivíduos autônomos, críticos e solidários. A partir da inserção dos temas transversais no currículo, este ganha maior flexibilidade e abertura, haja vista que os assuntos podem ser priorizados e contextualizados conforme a realidade local e regional, e outros temas também podem ser incluídos (Brasil, 2000). Outra constatação obtida por meio do Quadro 1 é a de que, na maioria das IES, as disciplinas que mais contêm os referenciais ético-humanista são: Psicologia, Ética e Saúde da Mulher. Em quatro cursos de graduação em Enfermagem, especificamente na disciplina de Psicologia, apresenta-se algum termo relacionado ao referencial éticohumanista. Esse dado pode estar relacionado ao fato de que a disciplina de Psicologia, pela própria natureza, trata de uma especialidade que foca o desenvolvimento humano, a relação entre os indivíduos e entre esses e a sociedade. Martins (2003) afirma que conhecer a natureza humana e o desenvolvimento de atitudes de valorização do homem contribui para a humanização da profissão. Dessa forma, a autora acredita que é fundamental, para os novos currículos de cursos da área da saúde, incluir conteúdos de aspectos psicológicos, sociológicos e antropológicos na formação desses profissionais. A disciplina de Ética também está presente em quatro IES, apresentada apenas com nomes diferentes. Esta disciplina traz um dos conteúdos essenciais recomendados pelas DCN/ENF, razão pela qual é necessário que os cursos de graduação em Enfermagem preocupem-se em formar profissionais que valorizem os princípios éticos da profissão. Assim, alguns conceitos de pessoa, responsabilidade, respeito, verdade, consciência, autonomia e justiça precisam ser incorporados na formação dos profissionais da área da saúde a fim de nortearem e modelarem as suas ações, pois refletir sobre questões éticas geradas pela vida é a base do código moral e das condutas de um indivíduo (Martins, 2003). Além disso, são fundamentos que dão base ao próprio SUS, o qual só se consolidará na medida em que os profissionais de saúde tiverem esses como princípios básicos que norteiem as ações de saúde (Menicucci, 2009; Silva, Sena, 2008). Outra disciplina que também enfoca o referencial ético-humanista em quatro IES é Saúde da Mulher. Entendemos que, possivelmente, este fato relaciona-se à Política de Humanização do Parto e Nascimento, instituída pelo Ministério da Saúde anteriormente às Diretrizes Curriculares Nacionais, para os cursos de graduação em Enfermagem que também destacam tais aspectos.
artigos
5
Considerações finais O estudo realizado em cinco IES que oferecem o curso de graduação em Enfermagem, em Goiânia, permitiu identificar e descrever a inserção do referencial ético-humanista na formação do enfermeiro. Os resultados deixam claro que os respectivos Projetos Pedagógicos de Curso procuram atender as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem (DCN/ ENF) quanto à formação do enfermeiro norteado por princípios éticos humanistas. Da mesma maneira que se observa em nível nacional, em Goiânia, a adequação dos Cursos de Graduação em Enfermagem às DCN/ENF é gradativa e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011
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A FORMAÇÃO ÉTICO-HUMANISTA DO ENFERMEIRO: ...
não ocorre da mesma maneira em todas as instituições investigadas, pois essa mudança depende de muitas variáveis, entre elas: de políticas institucionais, do compromisso dos envolvidos nesse processo e, ainda, da qualificação do corpo docente. Neste cenário, as instituições de Ensino Superior, ao formarem o enfermeiro com competências relativas ao referencial ético-humanístico, estarão contribuindo para fortalecer os aspectos do relacionamento interpessoal, da integralidade da atenção à saúde, e, consequentemente, beneficiar o desenvolvimento da Política Nacional de Humanização, que compartilha dos mesmos princípios teóricofilosóficos voltados ao Sistema Único de Saúde no Brasil. O presente estudo não pretendeu apresentar maneiras preestabelecidas para a construção/ reformulação de projetos pedagógicos de curso, mas, fundamentalmente, identificar e descrever a inserção do referencial ético-humanista nos PPC dos cursos de graduação em enfermagem investigados. Entendemos que, por meio das discussões dos resultados encontrados, abrimos a possibilidade de se apresentarem elementos teóricos que promovam reflexões, a fim de se delinearem alternativas para a transformação dos currículos, favorecendo o atendimento efetivo da atual legislação pelos princípios teóricos e filosóficos norteadores da reforma curricular. Considerando que se trata de um tema amplo, além de emergente no atual panorama educacional da enfermagem no Brasil, visto que envolve articulações com inúmeros fatores, sociais, políticos, econômicos e culturais, temos a convicção da necessidade de se continuar investindo em pesquisas e atividades que promovam tais discussões, para a efetivação do referencial ético-humanista na formação do enfermeiro. Vimos como é necessário envolver os vários segmentos e atores nas discussões, de forma que as ações e seus desdobramentos se fortaleçam com vistas na real e significativa mudança nas práticas educacionais e da assistência à saúde. A maioria dos documentos pesquisados não traz, na sua essência e amplitude, o que realmente é feito na prática. Pois, convivendo durante a pesquisa nas instituições pesquisadas, foi possível notar que muitas ações em relação ao referencial ético-humanista são desenvolvidas no dia a dia e não estão descritas nos PPC, da mesma forma que, em algumas IES, o que está apresentado nos PPC não está sendo desenvolvido. A disponibilização dos documentos pelas IES foi um processo que gerou bastante desgaste por parte dos pesquisadores, pois, mesmo tendo deixado claro, no início da pesquisa, para todos os responsáveis dos cursos, que seria necessária a entrega de uma cópia do Projeto Pedagógico de Curso, houve certa resistência de algumas IES, devido à construção deste documento ter sido bastante dispendiosa. Porém, após vários contatos e esclarecimentos, houve a liberação dos documentos. Vale dizer que, atendendo as questões éticas relativas à pesquisa, colocamo-nos à disposição das IES investigadas para que os resultados fossem apresentados e discutidos, com vistas a possíveis encaminhamentos de acordo com a realidade e necessidades de cada uma delas. Acreditamos que os resultados dessa pesquisa serão dados valiosos tanto para os Cursos de Graduação em Enfermagem que buscam a adequação dos seus PPC às DCN/ENF quanto para novos cursos que estão iniciando essa construção.
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artigos
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A FORMAÇÃO ÉTICO-HUMANISTA DO ENFERMEIRO: ...
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artigos
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LIMA, J.O.R. et al. La formación ético-humanista del enfermero: una mirada a los proyectos pedagógicos de los cursos de enfermería en Goiania/GO, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1111-25, out./dez. 2011. Estudio cualitativo, con delineamiento de investigación documental, cuyo objetivo es identificar y describir la inserción del referencial ético-humanista en los Proyectos Pedagógicos de los Cursos (PPC) de Enfermería en Goiânia, estado de Goiás, Brasil. La investigación fue realizada en cinco Instituciones de Educación Superior (IES) por medio del análisis de los PPC, en los cuales hemos identificado los términos que se relacionan con el enfoque ético-humanista, produciendo dos categorías: “La formación del profesional ético-humanista” y “El enfoque de la integración en el contexto de los PPC”. De un total de 218 programas de estudios analizados, en sólo cuarenta de ellos hemos encontrado algún término relacionado al referencial estudiado. A pesar de un número limitado de programas seleccionados, el análisis detallado de los documentos ha permitido identificar aspecto relevantes en ese sentidos teórico-filosóficos. Así la investigación presenta elementos que podrán incentivar reflexiones haciendo con que los principios del referencial ético-humanista sean efectivamente norteadores de la reforma curricular de acuerdo con la actual legislación brasileña.
Palabras clave: Bachirellato de Enfermería. Proyectos pedagógicos. Curriculum. Humanismo. Ética. Recebido em 22/02/10. Aprovado em 27/01/11.
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artigos
Assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde (SUS): percepções de graduandos em Farmácia
Claudia Benacchio Nicoline1 Rita de Cássia Padula Alves Vieira2
NICOLINE, C.B.; VIEIRA, R.C.P.A. Pharmaceutical assistance in the Brazilian National Health System (SUS): Pharmacy students’ perceptions. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1127-41, out./dez. 2011. The aim of this study was to understand the perceptions of pharmacy students from a Brazilian public university regarding the Pharmaceutical Assistance (PA) offered by the National Health System, in light of the political and educational context in health, with the aim of enhancing the discussion about education in this field. Final year students were submitted to semistructured interviews, and the results were interpreted with the aid of Thematic Content Analysis. In spite of some advances, the shared perceptions pointed to a gap in the students’ education, regarding their performance in PA. Such education is in a process of consolidation, and there is a need of more adequate methodological teaching strategies, diversification of teaching-learning scenarios in the health services, and greater effort from managers, health professionals and educators.
Keywords: Pharmaceutical services. Pharmacy education. Health manpower.
Este estudo teve como objetivo compreender as percepções de graduandos em farmácia de uma universidade pública brasileira sobre a Assistência Farmacêutica (AF) no Sistema Único de Saúde, frente ao atual contexto político e educacional em saúde, com a perspectiva de incrementar a discussão sobre a formação para esta área. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com estudantes do último ano letivo, sendo os resultados interpretados a partir da análise temática de conteúdo. Verificou-se que apesar de alguns avanços, as percepções partilhadas demonstram a lacuna existente na formação para a atuação em AF, considerada em processo de construção, indicando a necessidade de desenvolvimento de estratégias metodológicas de ensino mais adequadas, de diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem nos serviços de saúde, bem como de maiores esforços de gestores, profissionais de saúde e docentes.
Palavras-chave: Assistência farmacêutica. Educação em farmácia. Formação de recursos humanos em saúde.
* Elaborado com base em Nicoline (2010), pesquisa sem financiamento, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 Núcleo de Assistência Farmacêutica, Superintendência Regional de Saúde de Juiz de Fora, Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Av. dos Andradas, 222. Juiz de Fora, MG, Brasil. 36.036-000 . claudia.nicoline@ saude.mg.gov.br 2 Departamento de Alimentos e Toxicologia, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Juiz de Fora.
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ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ...
Introdução Iniciativas governamentais, acadêmicas, institucionais e da sociedade organizada indicam estar em curso um processo sociopolítico que reflete maior comprometimento com a necessidade de mudanças nas graduações da área da saúde, visando à formação de recursos humanos para atuação no Sistema Único de Saúde (SUS), aí incluída a do profissional farmacêutico (Leite, 2008; Ceccim, Feuerwerker, 2004). O debate acerca das mudanças necessárias na graduação em farmácia, do papel social do farmacêutico e da necessidade de qualificação dos serviços de Assistência Farmacêutica (AF) no SUS vem se ampliando nos meios acadêmicos e governamentais, visto que os medicamentos ocupam lugar hegemônico e de destaque na terapêutica contemporânea (Leite et al., 2008). O medicamento, quando bem utilizado, mostra-se como o recurso terapêutico de maior custoefetividade, porém, seu uso inadequado configura um problema de saúde pública mundial. Por um lado, tem-se o acesso deficitário pelas populações menos favorecidas economicamente, implicado na lógica do mercado que visa ao lucro e, por outro lado, o seu uso irracional (Barros, 2004). Atualmente, a AF, que envolve, além da atuação do farmacêutico, a de outros profissionais, é conceituada como sendo um conjunto de ações voltadas à promoção, proteção, e recuperação da saúde, tanto individual quanto coletiva, tendo o medicamento como insumo essencial, que visa promover o acesso e o seu uso racional; esse conjunto de ações envolve a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de medicamentos e insumos, bem como a sua seleção, programação, aquisição, distribuição, dispensação, garantia da qualidade dos produtos e serviços, acompanhamento e avaliação de sua utilização, na perspectiva da obtenção de resultados concretos e da melhoria da qualidade de vida da população. (Brasil, 2004, p.1)
Neste contexto, também é considerado que as ações de AF envolvem aquelas exclusivamente desenvolvidas pelo profissional farmacêutico, referentes à Atenção Farmacêutica (Atenfar), que é entendida como um modelo de prática farmacêutica, desenvolvida no contexto da Assistência Farmacêutica e compreendendo atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e coresponsabilidades na prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde. É a interação direta do farmacêutico com o usuário, visando uma farmacoterapia racional e a obtenção de resultados definidos e mensuráveis, voltados para a melhoria da qualidade de vida. Esta interação deve envolver as concepções de seus sujeitos, respeitadas as suas especificidades bio-psico-sociais, sob a ótica da integralidade das ações de saúde. (Brasil, 2004, p.1)
A construção destes conceitos, que trazem uma perspectiva de reorientação da atuação do farmacêutico para os interesses sociais, decorre, sobretudo, da mobilização que se deu a partir do final da década de 1980. A discussão envolvendo o uso de medicamentos nos serviços públicos de saúde brasileiros intensificou-se a partir do movimento de reforma sanitária, especialmente a partir de 1988, com a institucionalização do SUS (Perini, 2003). Na Lei 8.080, de 1990, que estabelece a organização básica das ações e serviços de saúde, consta que, entre os campos de atuação do SUS, está incluída a execução de ações de “assistência terapêutica integral, inclusive a farmacêutica”, bem como a “formulação da política de medicamentos” (Brasil, 2007b, p.15). Configura-se uma nova fase no contexto político e institucional de saúde no país, implicando a construção de um conceito de AF “capaz de orientar novas posturas profissionais e institucionais que procuravam se contrapor às ações desarticuladas e submissas ao interesses econômicos” (Perini, 2003, p.9). 1128
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Esta proposta de reorientação da AF influenciou importantes avanços, como a Política Nacional de Medicamentos, em 1998, e a Lei de Genéricos, em 1999. Contudo, Vieira (2008) aponta para a lacuna de dez anos entre o estabelecimento do SUS e a inclusão da AF na agenda governamental. O processo de descentralização das ações de saúde e a busca pela consolidação da atenção básica, da universalização do acesso, da equidade e da integralidade em saúde implicaram a necessidade de conformação de novas estratégias para ampliação da capacidade de gestão dos estados e municípios, que passaram a assumir novas responsabilidades, exigindo mobilização de conhecimentos e habilidades técnicas, gerenciais e políticas no que se refere à AF (Marin et al., 2003). Destacam-se, porém, em 2003, as deliberações da 12ª Conferência Nacional de Saúde e da 1ª Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica, que forneceram subsídios para a normatização das ações governamentais na área e se concretizaram, em 2004, na Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), aprovada através da Resolução nº 338. O Conselho Nacional de Saúde preconiza que a PNAF “deve ser compreendida como política pública norteadora de políticas setoriais”, com destaque para a “de medicamentos, de ciência e tecnologia, de desenvolvimento industrial e de formação de recursos humanos” (Brasil, 2004, p.1). No âmbito do SUS, além da necessária atuação na pesquisa e produção de medicamentos, e junto a serviços gerenciais e de gestão, constata-se a necessidade de o farmacêutico atuar no contato direto com os usuários do sistema, visando uma farmacoterapêutica racional e a produção do cuidado. Neste sentido, nos últimos anos, a atuação do farmacêutico na atenção à saúde vem sendo discutida na perspectiva da Atenfar, modelo de prática que aposta no restabelecimento da relação terapêutica entre este profissional e o paciente (Brasil, 2007a). Como iniciativa governamental que envolve a inserção do farmacêutico no SUS, dentre outros profissionais, para atuação junto às equipes do Programa Saúde da Família, destaca-se a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), pelo Ministério da Saúde, através da Portaria nº 154, em 2008. Com o objetivo de ampliação da resolubilidade e do escopo das ações da atenção básica, para os NASF é previsto fomento financeiro para a contratação, a critério dos gestores municipais, de farmacêuticos para atuação nestes núcleos (Brasil, 2008). A perspectiva atual é de reorientação da atuação do farmacêutico para a atenção à saúde, num contexto em que a formação de competências que correspondam às necessidades em saúde da população tem se apresentado como um desafio. No Brasil, o ensino farmacêutico iniciou-se, formalmente, em 1832, com a criação dos cursos de Farmácia vinculados às escolas de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Da segunda metade do século XIX até o início do século passado, o farmacêutico estabelecia uma relação próxima com a comunidade, a partir de sua atuação como boticário, sua denominação na época (Haddad et al., 2006). A partir de 1920, com o desenvolvimento da industrialização do medicamento no país, incrementado pela abertura da economia ao capital estrangeiro, teve início um processo de desaparecimento das boticas (denominação, da época, para as farmácias), implicando a conversão do farmacêutico em um simples intermediário comercial entre o usuário e a indústria. Especialmente a partir da década de 1960, verifica-se um desdobramento da profissão para as áreas de análises clínicas e toxicológicas, bem como para a da indústria de medicamentos e de alimentos, o que envolvia habilidades para procedimentos prioritariamente técnicos, desconectados com a atenção à saúde (Campese, 2006). Este processo de descaracterização do farmacêutico como profissional de saúde agravou-se, também, em função das lacunas na formação acadêmica em farmácia. Após 1961, quando foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabeleceu os currículos mínimos para os cursos de graduação, tanto no primeiro Currículo Mínimo para os Cursos de Farmácia, do ano de 1962, quanto no segundo, de 1969, a concepção de mercado fica clara no perfil desejado do egresso, bem como “a tendência à fragmentação do conteúdo a ser transmitido na formação do farmacêutico” (Haddad et al., 2006, p.173). Em 1974, “apenas 4% do alunado faziam opção por farmácia, 82% pelo setor de análises clínicas e toxicológicas e 14% pela área de tecnologia” (Estefan, 1986, p.515). Tal contexto contribuiu com a conformação de problemas relativos à formação tradicional do profissional farmacêutico, como “a visão tecnicista, com uma atuação exclusiva ou excessivamente 1129
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centrada no ‘produto’ medicamento”, e o “enfoque dado à formação para áreas eminantemente não privativas”, implicando a deficiência na formação de um profissional voltado para a dispensação do medicamento (Leite et al., 2008, p.275). No início da década de 1980, no país, 35 instituições ofertavam cursos de graduação presencial em farmácia, sendo sete da iniciativa privada (Estefan, 1986). Já em 2008, existia um total de 353 cursos (64 de instituições públicas e 289 de instituições privadas) (INEP, 2009). Após uma década do início do processo de consolidação do SUS, são aprovadas, em 2001 e 2002, as novas DCN para os cursos da área de saúde que, além de sua implicação com este sistema, de acordo com Pinheiro e Ceccim (2005, p.23), “correspondeu ao esforço intelectual de romper com o paradigma biologicicta, medicalizante, hospitalocêntrico e procedimento-centrado, atendendo aos novos desafios da contemporaneidade na produção de conhecimento e na construção das profissões”. Nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Farmácia (DCNF), instituídas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da Resolução CNE/CES-2/2002, tem-se, como perfil do egresso, o profissional farmacêutico com formação que “deverá contemplar as necessidades sociais da saúde, a atenção integral da saúde no sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contra-referência e o trabalho em equipe, com ênfase no Sistema Único de Saúde” (CNE, 2002, p.3). Embora as DCNF configurem um marco para a educação farmacêutica no Brasil e já tenham ocorrido alguns avanços decorrentes do seu estabelecimento, muitos desafios se colocam para a formação de profissionais com este perfil. Leite et al. (2008) apontam para as dificuldades de se inserirem os farmacêuticos em equipes multiprofissionais e, ainda, de se sensibilizarem docentes para um maior comprometimento com as mudanças necessárias. O contexto de diversidade de interpretações e de processos de implementação das DCNF nas faculdades de farmácia no país implica a conformação de currículos distintos, sendo que a ênfase nas disciplinas, como norteadoras do processo de reorganização dos currículos, em detrimento das competências e das estratégias de ensino e aprendizagem, é também considerada como um obstáculo para a implementação das DCNF (Ivama et al., 2003). Além da dificuldade em se apreender como a atuação do farmacêutico em AF pode dar-se na promoção da saúde, Ivama et al. (2003, p.19) apontam, também, para o desafio de se contemplarem, de forma equilibrada, as atividades “relacionadas à tecnologia (pesquisa, desenvolvimento, produção, controle de qualidade) e aquelas relacionadas à atenção a saúde (gerenciais e assistenciais do farmacêutico)”. Como iniciativa governamental de integração do ensino farmacêutico com o SUS, destaca-se, em 2007, a ampliação do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde)3, para os cursos de farmácia, dentre demais cursos da área da saúde (Brasil, 2007c). Nesse mesmo ano, também é criada a Associação Brasileira do Ensino Farmacêutico, que deixa clara sua orientação para o SUS (CRF-MG, 2007). Considerando que as políticas de saúde e educacionais não são suficientes para a realização de mudanças na formação de profissionais de saúde, Ronzani (2007, p.42) afirma que, para se “ultrapassar a barreira formal das reformas curriculares”, deve ser considerada a “mudança de crenças e atitudes em relação à prática em saúde”. Nesse sentido, argumenta que “o que os profissionais de saúde, estudantes e professores pensam sobre as práticas em saúde, junto com o 1130
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O Pró-Saúde, inicialmente, contemplou cursos de Medicina, Enfermagem e Odontologia, quando criado, em 2005, com o objetivo de promover a integração da rede de serviços com a formação dos profissionais de saúde, qualificando-os para o atendimento das necessidades da população brasileira (Brasil, 2007b).
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contexto em que tais reformas estão inseridas, são situações suficientemente fortes para dificultar a efetividade das ações formais”. No país, “o debate articulado em torno da educação farmacêutica foi alvo de poucas investigações sistemáticas e poucos registros formais” (Soares et al., 2008, p.274). Assim, este estudo teve como objetivo compreender as percepções de graduandos em Farmácia da UFJF acerca da atuação em AF no SUS, frente aos contextos sociopolítico e educacional em saúde. Na perspectiva de verificar o que representa, para esses graduandos, tal campo de atuação, a orientação deste trabalho se deu em função dos seguintes questionamentos: qual noção os graduandos têm acerca da amplitude das ações envolvidas na AF no SUS? O que influencia o interesse ou desinteresse nesta área? Que relação os graduandos estabelecem entre o perfil do farmacêutico preconizado pelas DCNF, a formação que receberam e a AF no SUS?
Percurso metodológico Este é um estudo descritivo, exploratório, cujos referenciais metodológicos decorrem dos princípios da pesquisa qualitativa. Na busca por um espaço mais profundo das relações, processos e fenômenos, de acordo com Minayo (2006), esta abordagem trabalha com significados, crenças, motivos, valores e atitudes, visando uma aproximação com o objeto de estudo. Na pesquisa qualitativa, a realidade é tomada como uma construção social da qual o investigador participa, sendo que os fenômenos só podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva multidimensional, em que se levem em consideração os sujeitos e seus contextos em interações recíprocas (Minayo, 2006). O campo de estudo escolhido foi a Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Juiz de Fora (FF/UFJF). Após aprovação do projeto, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFJF, foram feitos contatos com a direção e a coordenação do curso, de forma a viabilizar o acesso às suas instalações da FF/UFJF, aos documentos que descrevessem a estrutura curricular e o Plano Político Pedagógico do curso, bem como as listagens dos estudantes, organizados por período, com dados como: telefone, endereço eletrônico e área de interesse (análises clínicas, medicamentos ou alimentos). Os sujeitos estudados constituíram-se dos estudantes que estivessem cursando o último ano letivo da graduação. Tal grupo correspondeu à quinta e à sexta turma a se formar sob a orientação do novo currículo, vigente a partir do primeiro período letivo de 2003. Dentre os discentes do nono e do décimo período, considerando a necessidade de aprofundamento, da abrangência e da diversidade para o processo de compreensão, se buscou, assim como indicado em Minayo (2006, p.197), uma amostra que reflita “a totalidade das múltiplas dimensões do objeto”. Nesse sentido, buscou-se selecionar estudantes que tivessem optado por disciplinas que refletissem diferentes áreas de interesse. Inicialmente, o contato com os estudantes foi feito a partir da participação da autora como ouvinte em aulas teóricas de disciplinas obrigatórias e comuns a todas as áreas. Alguns dos convites para participação na pesquisa foram feitos pessoalmente, nas instalações da FF/UFJF, sendo que outros foram feitos através de correio eletrônico. Para a coleta dos dados, foram realizadas 17 entrevistas semiestruturadas, realizadas no segundo semestre de 2009. Como instrumento, utilizou-se um roteiro de perguntas, previamente elaborado com perguntas abertas baseadas nas questões norteadoras/objetivos da pesquisa. O registro das entrevistas foi feito por meio de gravação em fitas-cassete e, também, em um gravador digital, de forma a se minimizar a ocorrência de perdas das falas. O encerramento da coleta de dados deu-se a partir do critério da saturação, conhecimento formado em campo, após o entendimento das homogeneidades e das diferenciações internas do grupo. Os procedimentos para a análise dos dados foram desenvolvidos a partir da análise temática de conteúdo, a qual se apoia na noção de tema, que pode estar relacionada a uma afirmação ou a uma alusão. De acordo com Minayo (2006, p.316), esta técnica “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objeto analítico visado”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1127-41, out./dez. 2011
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Após a realização das entrevistas, estas foram transcritas, textual e literalmente, e posteriormente impressas, sendo seu conteúdo organizado e categorizado a partir de operacionalização sintetizada por Minayo (2006), que consiste em três etapas: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na pré-análise, inicialmente, foram feitas várias leituras do material e, posteriormente, foram organizadas tabelas impressas contendo as respostas dos estudantes, nas quais foram anotadas as unidades de significação (temas) correspondentes, facilitando o processo de categorização e análise dos dados. Para a exploração do material, após a apreensão das unidades temáticas, estas foram classificadas e reagrupadas, sendo definidas categorias, organizadas neste trabalho em: (1) AF no SUS como um campo de trabalho em construção; e (2) Educação farmacêutica para atuação em AF no SUS: desafios e perspectivas. Estas categorias de referência resultaram em um texto descritivo explicitando os aspectos mais significativos, sejam estes semelhantes, divergentes e/ou elementos neutros presentes nos depoimentos analisados. Os estudantes entrevistados encontram-se codificados pela letra ‘E’ seguida de numeração (E.1, E.2, E.3...).
Resultados e discussão Dos 17 estudantes que participaram da pesquisa, seis do sexo masculino e 11 do feminino, com idade média de 23 anos, nove deles tinham como disciplinas de interesse as relacionadas às Análises Clínicas, seis aos Medicamentos e dois aos Alimentos. O aspecto tecnicista e “de bancada”, ainda característico da educação e da prática profissional farmacêutica tradicional, mostrou-se refletido na motivação inicial destes estudantes para estudar farmácia, sendo que esta motivação, de forma geral, não foi vinculada diretamente ao futuro exercício profissional na atenção em saúde.
AF no SUS como um campo de trabalho em construção O entendimento dos estudantes acerca do significado da AF e de suas atividades relacionadas envolveu dois tipos principais de interpretação, discutidos logo a seguir, a saber: a AF como um campo amplo ou como a prática de Atenfar. Na primeira perspectiva, muitos consideraram o aspecto logístico para o acesso ao medicamento: “É um campo extremamente amplo [...] abrange tudo na questão do medicamento, da organização, planejamento, aquisição, em volta do planejamento de distribuição do medicamento”. (E. 4)4 “[...] tem que implantar o ciclo, as etapas, pra você ter o acesso, tanto no particular como no público”. (E. 8)
Conforme colocado por Barreto (2007, p.108), no âmbito das práticas dos serviços farmacêuticos “vigora o enfoque no fornecimento dos medicamentos”, sendo que este entendimento limitado da AF “leva a supor que o conceito adotado na Legislação Federal ainda não está consolidado no país”.
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4 As falas dos entrevistados foram reproduzidas literalmente. Desta forma, foi dispensada a introdução da expressão sic et simpliciter (sic), considerando-se a mesma implícita em todas as falas.
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Ao se argumentar sobre a limitação da ideia de ciclo da AF, em Perini (2003), é colocado que o termo etapas pode prejudicar a compreensão da AF como um sistema complexo, levando ao entendimento de uma simples sequência de atividades, sendo considerada a “necessidade de um redirecionamento do campo: é preciso ampliar essa percepção, extrapolando a cadeia de gestão do medicamento como foco da conceituação, para que o paciente seja assumido como o usuário do medicamento que necessita ou que participa da assistência à saúde” (Perini, 2003, p.16). Ainda considerando uma maior amplitude do campo, poucos estudantes entrevistados fizeram menção à produção dos medicamentos e/ou à Atenfar, nestes casos, como fazendo parte da AF. A visão da AF exclusivamente voltada à atuação em hospitais foi também verificada a partir do depoimento de alguns dos entrevistados, aspecto também verificado por Furtado (2008, p.109), em estudo junto a coordenadores de cursos de farmácia no estado do Rio de Janeiro. Quanto à segunda perspectiva que preponderou nos depoimentos sobre AF, a qual envolve orientações aos usuários dos medicamentos, ficou nítido um entendimento voltado à Atenfar como principal ou exclusiva área de atuação. “A assistência farmacêutica é como se fosse um apoio pro paciente pra ele estar sabendo como ele deve tomar o medicamento, porque às vezes o médico não explica direito como ele deve tomar”. (E. 12)
Considerando que a Atenfar deva ser compreendida como fazendo parte das ações da AF, a limitação da compreensão da AF como Atenfar parece demonstrar falta de apreensão adequada dos conceitos das mesmas durante a formação, ou seja, que não está ocorrendo uma integração dos conteúdos, de maneira a garantir a percepção de um cenário abrangente das práticas e áreas de atuação em AF. Com exceção dos depoimentos de estudantes que estagiaram em secretarias municipais de saúde, não foram mencionadas possíveis atuações em farmácias centrais ou outros departamentos de Secretarias municipais ou estaduais de saúde, em órgãos reguladores, em instituições de ensino e/ou de pesquisa e em Laboratórios Oficiais. Assim como Cordeiro e Leite (2008) e Barreto (2007), a maioria dos estudantes considera a AF no SUS como não devidamente implantada, ainda em processo de construção: “O farmacêutico não tem espaço no SUS, eu acho que não tem, e a assistência farmacêutica ainda tá muito engatinhando mesmo, precisa de muita coisa pra melhorar [...] a assistência farmacêutica ainda tem que acontecer”. (E. 13)
A falta do profissional farmacêutico no sistema público de saúde, como característica do cenário brasileiro, também foi muito enfatizada pelos estudantes, permeando as respostas de muitos dos questionamentos, o que evidenciou sua influência no desinteresse dos estudantes em atuar em AF no SUS. Outro aspecto que influencia o desinteresse na atuação na área se relaciona à desvalorização profissional: “Não tem retorno no sentido de haver reconhecimento do seu trabalho”. (E. 2) “[...] não dá dinheiro, a gente vai trabalhar com assistência farmacêutica aonde, pensando diretamente”? (E. 11)
Não foram localizados estudos acerca das condições salariais dos profissionais farmacêuticos que atuam em AF no SUS, sendo que Vieira (2008) aponta para o fato de que não foram desenvolvidos estudos acerca da relação do número de farmacêuticos que atuam em AF nos serviços públicos em municípios e estados.
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Assim como no depoimento a seguir, no estudo de Saturnino et al. (2007) também foram apontados, por estudantes de farmácia, a falta de apoio e incentivo da faculdade como fatores que contribuem para o desinteresse dos estudantes pelas atividades relacionadas ao SUS. “Eu não sei se o que é dado na faculdade inspira tanto os estudantes a querer trabalhar no SUS, porque a idéia que se tem é que você vai trabalhar muito pra ganhar pouco e ser mal tratado [...] falta um direcionamento pra saúde pública”. (E. 4)
Embora alguns poucos sujeitos percebam o SUS como efetivo e importante para a população brasileira, verificou-se que a maioria dos estudantes o considera como “bom só na teoria”, com profissionais descompromissados e/ou desqualificados. Quanto aos poucos estudantes que declararam ter interesse em atuar em AF no SUS, tal interesse é relacionado com a possibilidade de inovação na área, consideração que vai ao encontro da percepção de uma área de trabalho em construção. Considerando o contexto em que vem sendo esboçada uma mudança de paradigma para a profissão farmacêutica e de demandas por serviços farmacêuticos de qualidade, Cordeiro e Leite (2008, p.21-2), ao discutirem sobre comentários de que “a profissão farmacêutica está em crise”, argumentam que “é muito bom estar em crise”, no sentido de que etimologicamente, crise (crítica) vem de busca da verdade. [...] a tão propalada “crise” ou “procura de identidade” são aspectos salutares, dinâmicos, geradores de reflexões e de uma práxis motivacional direcionadas para as mudanças exigidas por um novo século. (Cordeiro, Leite, 2008, p.22)
Educação farmacêutica para atuação em assistência farmacêutica no SUS: desafios e perspectivas A percepção de que o momento é de transição também no âmbito da educação farmacêutica igualmente fica demonstrada nas falas dos estudantes, numa perspectiva de que a qualidade da formação está imbricada com a dos serviços de saúde: “[...] inserindo o farmacêutico no SUS, eu acho que isso implicaria imediatamente numa melhora do sistema educacional mesmo, da formação do farmacêutico, acho que isso vai vir de cima, mas eu acho que já está mudando [...] futuramente vai ter um impacto positivo”. (E. 9)
Tal momento de mudanças também é avaliado por estudantes de farmácia ligados ao movimento estudantil em nível nacional, sendo percebido, em relação às dificuldades inerentes à implantação das DCNF, que estamos em uma zona cinzenta. Um momento de transição que provoca certa inquietude, desconhecimento e ansiedade. Isso é gerado pelo momento atual, onde temos a implantação parcial do novo projeto de educação farmacêutica. (EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE FARMÁCIA, 2008, p.4)
Considerando que as DCNF preconizam a formação de um profissional que atue em prol da transformação social, ao serem questionados sobre o papel social do farmacêutico, dentre as considerações feitas pelos estudantes, destaca-se: “Eu acho que tem que sair um pouco do papel [...], cansei de teoria já, cansei de ouvir o farmacêutico e seu papel, tá bom, mas você tá exercendo onde e quando? [...] não adianta nada ter um papel no papel e na prática não ter nada”. (E. 5)
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Embora seja percebida uma maior proximidade entre o que é preconizado e a realidade do curso, em função de disciplinas5 que procuram uma aproximação com conteúdos e práticas relativos à AF ao SUS, estas não são devidamente conduzidas e valorizadas pela maioria dos estudantes. A relação que a maioria destes estabelece da temática ‘social’ com a experiência vivenciada na formação revela, de certa forma, um distanciamento do curso com conteúdos ou vivências no âmbito coletivo.
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Atualmente, no que se refere à AF e ao SUS, o curso da FF/UFJF oferece as disciplinas: Planejamento e Gerenciamento em Saúde, Saúde Coletiva e Epidemiologia, Sistemas de Saúde, Estudos de Utilização de Medicamentos; bem como cinco disciplinas denominadas Atividades Orientadas: Reconhecimento do SUS, Diagnóstico Local em Saúde, Inserção do Farmacêutico no SUS, Assistência Farmacêutica e Atenção Farmacêutica. 5
“Apesar de estar escrito, isso é uma coisa que eu sinto falta no curso, não tem nada de humanista, pelo contrário, a gente chega aqui e fica assim, focado, mais nesse caso de orientar sobre o medicamento, orientar como deve usar, não é nem uma atenção farmacêutica”. (E. 6) “Chega nestas matérias, assim, a gente sempre desconsidera um pouco [...] a gente acredita que uma matéria de assistência farmacêutica, você usa o bom senso, decora umas oito palavras chave, então a gente acaba que não dedica tanto assim, são matérias que a gente lê”. (E. 8) “A gente na verdade não leva estas matérias à sério”. (E. 11)
Nascimento Júnior (2007, p.59) considera que, a exemplo de outros cursos da área da saúde, a maioria dos estudantes e professores de farmácia não gosta dos cursos de Saúde Pública ou de Saúde Coletiva, por serem teóricos, refletindo um longo período de distanciamento da educação farmacêutica em relação aos serviços públicos e políticas de saúde. No que tange à necessidade de aproximação dos estudantes da área da saúde com a sociedade, as questões de aprendizagem devem ser significativas do ponto de vista social (cultural, epidemiológico, social, econômico, etc.), porque somente assim são capazes de propiciar a produção de conhecimento e a conformação de um perfil profissional que dialogue com a realidade social e com os problemas e as políticas de saúde do país. (Feuerwerker, Cecílio, 2007, p.968)
Dentre as percepções dos sujeitos acerca do papel social do farmacêutico, alguns estudantes consideram este como sendo o de se garantir o acesso aos medicamentos. Considerando a necessidade da inserção da AF no conjunto das ações de saúde, argumenta-se que não se trata de apenas se promover o acesso a medicamentos, mas, sim, o acesso a serviços de saúde de qualidade que promovam a integralidade da assistência (Brasil, 2009). Numa outra perspectiva, vários dos sujeitos consideram tal papel social como relacionado a práticas referentes à Atenfar: “O papel social do farmacêutico estaria mais ligado à parte de atenção farmacêutica em si, este contato mais ligado ao paciente, pra poder instruir ele em relação aos medicamentos, como que deve administrar o medicamento, em relação aos efeitos adversos, até mesmo indicações em relação à saúde mesmo, alimentação, exercício físico, porque é uma coisa que o farmacêutico pode realizar”. (E. 13)
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“Eu acho que é orientar o paciente quanto ao uso da medicação, quanto a como fazer o exame, higiene pessoal”. (E. 5)
A aproximação com o ‘social’, além do contato com o usuário de medicamentos para lhe fornecer orientações, passa também pela ideia da Educação em Saúde, no sentido de se proverem aconselhamentos acerca da higiene e dieta pessoal e de se promoverem palestras e campanhas junto à comunidade. Tal aspecto indica que a ideia de atuação do farmacêutico como limitada ao repasse de informações técnicas reflete a permanência do modelo hegemônico na prática profissional que, verticalmente, preconiza a adoção de novos comportamentos [..]. Desconsidera-se que no processo educativo lida-se com histórias de vida, um conjunto de crenças e valores, a própria subjetividade do sujeito que requer soluções sustentadas sócio-culturalmente. (Gazzinelli, Reis, Penna, 2005, p.201)
A importância da inserção, na estrutura curricular do curso de farmácia, de disciplinas da área das ciências humanas - no caso, a antropologia - também foi colocada: “O nosso curso, da área de saúde, é o único que não tem antropologia [...] é uma coisa que poderia humanizar o profissional [...] a gente, farmacêutico que é industrial, não que ele não seja sensível, mas ele é desumanizado, porque a indústria prega a venda de medicamentos, não importa se vai fazer bem ou mal pra pessoa, o negócio é produzir e vender”. (E. 11)
No que tange ao desenvolvimento de habilidades humanísticas para melhor interação do farmacêutico com os usuários e a equipe multidisciplinar, as deficiências da formação em farmácia são também apontadas por Campese (2006) e Leite et al. (2008). Contudo, a inclusão de disciplinas comuns às áreas das ciências humanas e sociais, também proposta pelas DCNF, tem sido considerada como um dos desafios da implementação destas diretrizes, de acordo com Furtado (2008). Quando questionados a respeito de qual relação eles estabelecem entre a capacitação para se atuar na atenção à saúde e a formação que receberam, alguns estudantes manifestaram dúvidas e receios relativos ao preparo para esta atuação, embora seja reconhecida a tentativa do curso para tal. “Não sei se a gente foi tão bem preparado assim não, eu acho que vai precisar muito empenho [...]a gente é mais laboratorista mesmo”. (E. 8)
De forma correspondente, Saturnino et al. (2007, p.2304), em trabalho junto a graduandos de farmácia, apontam que o “despreparo dos profissionais recém-formados para atuarem na complexidade inerente ao sistema público de saúde é uma constatação freqüente, assim como a dificuldade encontrada por eles em compreender a gestão e o controle da sociedade sobre o setor”. O fato das DCNF apresentarem parâmetros “amplos e genéricos, marcados pela possibilidade de variadas interpretações”, conforme colocado por Nascimento Júnior (2007, p.59), não garante a existência de “componentes curriculares que assegurem a formação de farmacêuticos qualificados no âmbito do medicamento e da assistência farmacêutica”. Grande parte do grupo estudado percebe a necessidade: de maior proximidade com conteúdos envolvendo a administração e o planejamento de serviços farmacêuticos; do desenvolvimento de estratégias metodológicas de ensino mais adequadas, e da continuidade e integração dos aprendizados. Nascimento Júnior (2007, p.59), ao apontar para o questionamento de “como conseguir a “adesão” do aluno se os próprios professores não acompanham a evolução cotidiana do SUS, e não dispõem de conhecimentos e vivências no sistema de saúde”, argumenta que Os professores dos cursos de farmácia (todos, não só aqueles titulares das disciplinas da área) devem conhecer o sistema de saúde vigente, suas características [...] e relacioná-lo com os conteúdos que estão sendo ministrados. 1136
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Já o estudo de Furtado (2008) demonstra que docentes de farmácia consideram que direcionar a educação farmacêutica para atender ao SUS, tal como é indicado pelas DCNF, pode representar a perda de espaço profissional no mercado de trabalho. Esta autora destaca a importância do desenvolvimento docente, da adoção de novas concepções educacionais que utilizem metodologias ativas de ensino e da diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem. Neste sentido, quase a totalidade dos estudantes apresentou discursos enfáticos no sentido da valorização das práticas junto aos serviços de saúde. Também no trabalho de Saturnino et al. (2007) foi verificada a importância dada por estudantes de farmácia à articulação entre a teoria e a prática. Considerando que as vivências práticas em AF dos entrevistados ocorrem não como estágios obrigatórios, mas como atividades vinculadas a projetos pontuais que dependem da concessão de bolsas, os estudantes demonstraram insatisfação em relação a esse aspecto: “[...] se não tem bolsa, não existe, então ninguém faz? A pessoa forma sem fazer, por quê? É complicado porque é uma coisa que todo mundo devia fazer, independente de ter bolsa ou não”. (E. 3)
No trabalho organizado por Pinheiro, Ceccim e Mattos (2005), aponta-se para a importância da definição e dos pressupostos de seleção dos cenários de aprendizagem, considerando o impacto destes na formação dos profissionais de saúde e seu aprendizado sobre a prática do cuidado e do exercício da profissão. Apesar da necessidade de o estudante “compreender como ocorre o encaminhamento, entrada, fluxo e saída em cada serviço”, conforme enfatizado em Pontes et al. (2005, p. 266), a ampliação dos cenários de ensino aprendizagem em AF encontra algumas dificuldades: “Vamos ver onde estão os farmacêuticos, o que eles estão fazendo, mas isto não depende só da vontade da faculdade, depende da vontade dos gestores também, o que não é fácil, então você tendo não só a visão de UBS, mas de outros setores do SUS eu acho que seria mais interessante, ia gerar mais interesse dos estudantes”. (E. 4)
Embora a inserção de estudantes e docentes nos serviços de saúde possa implicar a reorganização dos trabalhos aí desenvolvidos, os depoimentos dos entrevistados demonstram que sua participação nestes serviços tanto não possibilitou uma aprendizagem mais abrangente, como não proporcionou condições para que influenciassem nos processos de trabalho em curso. “Eles não deram abertura pra gente ficar fazendo assistência farmacêutica [...] a gente fica lá conversando... isso não é assistência farmacêutica, ah, pegar o omeprazol, tá aqui, não é né, eu acho que tinha que ser um estágio bem feito sabe, bem elaborado”. (E. 11)
De acordo com Pontes et al. (2005, p.270), “as escolas buscam formar um tipo de profissional que atue segundo uma lógica diferente da que se encontra nos serviços” sendo, porém, solicitado, ao estudante, que tenha “postura, prática e discurso diferentes dos trabalhadores na realidade dos serviços”. Para finalizar esta discussão, considerando que esta problemática se aplica à formação em farmácia, aponta-se para a dificuldade de se encontrarem serviços onde a AF esteja implantada, o que representa um paradoxo para as instituições formadoras. Esta situação, de certa forma, fica demonstrada nestas últimas falas: “A gente aprende na teoria como é lindo a atuação do farmacêutico na assistência farmacêutica, mas a prática demonstra outra realidade”. (E. 14). “Todos estão aprendendo, como fazer o farmacêutico, que era técnico, laboratório só, incluir ele no atendimento ao paciente, é uma coisa que vai levar tempo”. (E. 15)
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Considerações finais Com este trabalho, buscou-se contribuir para a reflexão de como os saberes relacionados à AF no SUS estão sendo construídos pelos graduandos em farmácia, bem como para a sistematização de processos históricos em curso relativos às mudanças na educação farmacêutica. Apesar de alguns avanços terem sido reconhecidos, caracterizando um momento de transição, as diversas percepções partilhadas pelos estudantes pesquisados demonstram a lacuna existente na formação de profissionais farmacêuticos para a atuação em AF no SUS. Nota-se que as transformações ocorridas nos âmbitos político e educacional em saúde na última década parecem não refletir adequadamente a importância da capacitação para tal área. Paralelamente a este contexto, também no âmbito das práticas em saúde, muitos são os desafios para a qualificação da AF, o que inclui a sua adequada inserção nos serviços do SUS, com vistas à integralidade da atenção. Entendendo como fértil o momento de transição pelo qual passa a profissão farmacêutica, aponta-se para o desafio de como se formar para a AF no SUS, diante de um contexto em que não se tem a AF devidamente implantada nos serviços de saúde. Acredita-se que tal desafio só será enfrentado a partir do entendimento de que a construção de uma AF de qualidade no país passa, necessariamente, pelo investimento de mais esforços, por parte de gestores, docentes e profissionais das IES e das secretarias estaduais e municipais de saúde, para a conformação de parcerias que subsidiem a produção de conhecimento em AF e a capacitação profissional dos futuros farmacêuticos.
Colaboradores Claudia Benacchio Nicoline é autora da dissertação de mestrado que deu origem ao artigo. Rita de Cássia Padula Alves Vieira foi responsável pela orientação da dissertação e responsabilizou-se pela revisão do manuscrito. Referências BARRETO, J.L. Análise da gestão descentralizada da assistência farmacêutica: um estudo em municípios baianos. 2007. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2007. BARROS, J.A.C. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses de saúde? Brasília: Unesco, 2004. BRASIL. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Dispensação de medicamentos e a visão institucional. 29 slides. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: <http://www.prosaude.org/not/PriSemProII/.../assist_farm_pro-saude.ppt>. Acesso em: 12 jun. 2009. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria 154, de 25 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. ______. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Assistência Farmacêutica no SUS. Brasília: CONASS, 2007a. (Coleção Progestores, v.7). ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. O ensino e as pesquisas da atenção farmacêutica no âmbito do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2007b. (Série B, Textos Básicos de Saúde).
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artigos
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artigos
NICOLINE, C.B.; VIEIRA, R.C.P.A.
NICOLINE, C.B.; VIEIRA, R.C.P.A. Asistencia farmacéutica en el Sistema Único de Salud brasileño (SUS): percepciones de graduandos en Farmacia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1127-41, out./dez. 2011. Este estudio tuvo como objetivo comprender las percepciones de estudiantes de farmacia de una universidad pública brasileña sobre la Asistencia Farmacéutica (AF) en el Sistema Único de Salud, frente al actual contexto político y educacional de salud, con la perspectiva de incrementar la discusión sobre la formación para esta area. Fueron realizadas entrevistas semi-estructuradas con alumnos del último año lectivo, siendo los resultados interpretados a partir del análisis temático del contenido. Se verificó que a pesar de algunos avances, las percepciones compartidas demuestran la laguna existente en la formación para la actuación en la AF, considerada en proceso de construcción, indicando la necesidad de desarrollo de estrategias metodológicas de enseñanza más adecuadas, de diversificación de los escenarios de enseñanzaaprendizaje en los servicios de salud, así como de mayores esfuerzos de gestores, profesionales de salud y docentes.
Palabras clave: Asistencia farmacéutica. Educación farmacéutica. Recursos humanos en salud.
Recebido em 18/09/10. Aprovado em 03/02/11.
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artigos
Formação do psicólogo para a saúde mental: a psicologia piauiense em análise
João Paulo Macedo1 Magda Dimenstein2
MACEDO, J.P.; DIMENSTEIN, M. Psychologist education in the field of mental health: Piauí’s psychology under analysis. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1145-57, out./dez. 2011. This study discusses the curricular proposals of the psychology courses of the state of Piauí (Northeastern Brazil) for the field of mental health. We analyzed the pedagogical project and curricular organization, and also the way in which the psychology courses have invested their curriculum contents in the promotion and appropriation of principles, concepts and practices for the effective accomplishment of the psychiatric reform and of the psychosocial care strategy. A documental analysis was performed, as well as semistructured interviews with coordinators of the three courses in the capital city. The results indicate that, despite the progress in the incorporation of the discussions about public and mental health, and the action of psychologists in social-community contexts, the curricula maintain a clear and traditional dichotomy between the clinic and public health; they do not advance much regarding the new knowledge and practices to consolidate the psychiatric reform in the state; and they maintain the asylum and psychosocial models in the training and intervention ways of psychologists in Piauí’s mental health.
Keywords: Psychiatric reform. Mental health. Psychologist’s professional education. Curriculum.
Este estudo discute as propostas curriculares dos cursos de psicologia do estado do Piauí, Brasil, para o campo da saúde mental. Para tanto, analisamos o projeto pedagógico e a organização curricular, além da maneira com que os cursos têm investido seus conteúdos curriculares na promoção e apropriação de princípios, saberes e práticas para efetivação da reforma psiquiátrica e da estratégia de atenção psicossocial. Foram realizadas pesquisa documental e entrevista semiestruturada com os coordenadores dos três cursos da capital. Os resultados indicam que os currículos, apesar do avanço na incorporação dos debates da saúde coletiva e saúde mental, bem como da atuação do psicólogo em contextos social-comunitários, mantêm uma nítida e tradicional dicotomia entre clínica e saúde coletiva; avançam pouco em relação aos novos saberes/práticas para consolidar a reforma psiquiátrica no estado; mantêm os modelos asilar e psicossocial nos modos de formar e intervir dos psicólogos na saúde mental piauiense.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica. Saúde mental. Formação profissional do psicólogo. Currículo.
Agradecemos pelo apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Piauí. Campus Ministro Reis Veloso, Nossa Senhora de Fátima, Parnaíba, PI, Brasil. 64.202-020. jpmacedo@ufpi.edu.br 2 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. *
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FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO PARA A SAÚDE MENTAL: ...
Introdução Este artigo apresenta reflexões sobre a formação dos psicólogos piauienses para a saúde mental. Para tanto, partimos do questionamento sobre como a formação dos psicólogos piauienses tem se organizado para que seus profissionais atuem em consonância com os princípios da reforma psiquiátrica e do SUS. Ou, de outra forma, interessa-nos saber se os cursos de psicologia do Piauí têm contribuído com a formação de profissionais que fortaleçam o processo de luta antimanicomial e o enfrentamento dos desafios que a política de saúde mental encontra no estado, bem como no país. Duas questões de base impulsionaram a realização desse trabalho. Primeiro, a que se refere sobre a tardia implantação dos primeiros serviços extra-hospitalares e de base territorial em saúde mental no Piauí. Somente no ano de 2004, 17 anos depois de implantado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial do Brasil, o Caps Luís da Rocha Cerqueira (1987), em São Paulo, houve a implantação dos primeiros serviços substitutivos em território piauiense (Rosa, 2006). Em segundo lugar, também tivemos uma implantação tardia dos primeiros cursos de psicologia no Piauí. Somente no ano de 1997, 44 anos depois da criação do primeiro curso de psicologia do Brasil na PUC-RJ (1953) (Jacó-Vilela, 1999), é que registramos a abertura dos primeiros cursos de psicologia no estado. Entretanto, apesar dos referidos atrasos, observamos um rápido crescimento do número de serviços substitutivos e demais dispositivos em saúde mental implantados no Piauí a partir do ano de 2004 (Rosa, 2006). Contávamos, inicialmente, com um único Caps (não registrado no Ministério da Saúde) em 2002, e avançamos para 36 serviços em 2010 (Piauí, 2009; Brasil, 2003). Tendência essa também visualizada em todo o país, quando avançou de 424 CAPS, em 2002, para 1.541 serviços em 2010 (Brasil, 2010). Por isso a preocupação quanto à formação profissional e as transformações ocorridas nesse campo, tendo em vista o rápido crescimento dos serviços e o objetivo de consolidar e fazer avançar novas práticas em torno da reforma psiquiátrica e da atenção psicossocial. Nesse caso, questionamos em que medida os cursos de psicologia localizados em Teresina-PI têm acompanhado e, de alguma maneira, respondido aos desafios (teórico-prático e ético-político) que têm surgido no campo da saúde mental. Não obstante, apresentaremos um estudo implicado com os debates que têm circulado no país, na última década, sobre o fortalecimento da atuação do psicólogo no SUS, consequentemente, na saúde mental. Ou seja, são discussões que tentam construir novos “modos de fazer a formação (princípios e métodos) pelo o ethos da integralidade e da indissociabilidade entre cuidar, gerir e formar” (Heckert, Neves, 2010, p.17). Para tanto, situaremos o cenário em que o processo de reforma psiquiátrica e a abertura dos cursos de psicologia no Piauí foram constituídos. E, em seguida, realizaremos a análise da formação do psicólogo piauiense para atuar na saúde mental.
Cenário da Reforma Psiquiátrica e da abertura de cursos de psicologia no Piauí Considerando a realidade nacional, identificamos que a rede de atenção psicossocial do Piauí, nos últimos seis anos, teve um surpreendente crescimento do ponto de vista da abertura de novos serviços. Esse não foi um processo simples, pois sua efetivação ocorreu meio a intensas (e tensas) negociações entre a coordenação estadual de saúde mental e os gestores municipais. Sendo que, quase sempre, foi um processo intermediado pelo Ministério Público Estadual, através de Termos de Ajustes de Conduta (TAC); e, em outras, houve participação dos movimentos sociais. O fruto de tais investidas foi o surpreendente número de Caps abertos no Piauí nos últimos anos, resultando num total de 36 Caps, distribuídos em 26 municípios, além da instalação de quatro Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) (três na capital e um no interior) – que reúnem 24 moradores, dos quais 21 são beneficiários do Programa de Volta para Casa (PVC) e os demais estão incluídos no programa de Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ademais, contamos com 49 leitos de psiquiatria em hospitais gerais, sendo trinta localizados na capital e 19 distribuídos no interior do estado (Piauí, 2009). A estruturação dessa rede de serviços resultou no incremento de 3% para 66% da população coberta em cuidados em saúde mental no estado (Brasil, 2009, 2003). Fora isso, a coordenação estadual 1146
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Informação recuperada pelo CadSUAS em novembro de 2010.
Informação concedida pelo CRP11, Seção PI, em fevereiro de 2010.
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Informação recuperada pelo DataSUS em novembro de 2010.
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Informação recuperada pelo CadSUAS em novembro de 2010.
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artigos
tem se esforçado para finalizar sua gestão com vinte novos projetos de Caps enviados para o Ministério da Saúde, para consolidar a rede de serviços em saúde mental em todo o estado (Piauí, 2009). A abertura dos serviços substitutivos no Piauí a partir de 2004 viabilizou a contratação de vários psicólogos na rede SUS (nível básico e especializado de atenção) em todo o estado, inclusive alcançando outras redes de cuidado e proteção social, especialmente na assistência social. Fato que contribuiu, sem dúvida, com a interiorização do profissional de psicologia entre os muitos municípios existentes no estado. Realidade também percebida em todo o Brasil, que conta com: 1.541 CAPS, 1.165 Núcleos de Apoio Saúde da Família (NASF) (Brasil, 2010) e 6.184 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)3 instalados em todo o território nacional. Portanto, serviços que se configuram como importantes dispositivos de interiorização da profissão no país. Para comentar sobre o grau de expansão do número de psicólogos no Piauí, especialmente na saúde, destacamos o ano de 1998, ano de abertura dos primeiros cursos de psicologia no estado, e que contávamos com apenas 119 psicólogos registrados na 11ª Regional do Conselho de Psicologia - Seção PI. Desses 119 psicólogos, somente 38 (31,93%) atuavam em instituições públicas e/ ou privadas conveniadas ao SUS (Dimenstein, 1998). Decorridos um pouco mais de dez anos, contamos, atualmente, com 1.125 profissionais registrados na mesma seccional4, sendo 208 (18,48%) o número de psicólogos que atuam no SUS5. Apesar de proporcionalmente termos registrado uma queda de 13,45% no percentual de psicólogos atuando na saúde pública do Piauí, cerca de outros 257 psicólogos (22,84%) se inseriram nos serviços de proteção social da assistência social (CRAS e CREAS)6, além da presença de outros 67 profissionais nas entidades não governamentais (Associações, Fundações, ONGs etc.) (IBGE, 2006). Dado que, somado àqueles profissionais que ingressaram na Saúde, confere um índice de institucionalização de 47,28% da profissão nos aparelhos do Estado, através das políticas que compõem a seguridade social brasileira. Tal crescimento é resultante do funcionamento dos três cursos de psicologia localizados em Teresina: a) Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – com seu curso fundado em 1997 (mas em funcionamento somente em 1998), conta com cerca de quatrocentos alunos graduados até o ano de 2010; b) Faculdade Santo Agostinho (FSA) – com seu curso fundado em 1998, conta com cerca de setecentos e vinte alunos graduados até o ano de 2010; e c) Faculdade Integral Diferencial (FACID) – com seu curso fundado em 2002, conta com cerca de trezentos alunos graduados até o ano de 2010. Esses três cursos juntos oferecem um total de 425 vagas/ano (25 UESPI, duzentas FSA e duzentas FACID). Mais recentemente, e acompanhando o forte movimento de interiorização da profissão (reflexo de um processo que vem se dando em todo o país), foram abertos outros três cursos de psicologia, mas, agora, no interior estado do Piauí. Fato que amplia para seis a quantidade de cursos de psicologia existentes, integralizando outras 175 vagas/ano (25 UESPI - Campus Floriano, cem UFPI Campus Parnaíba, e cinquenta, Faculdade Piauiense (FAP) – Parnaíba). Portanto, um total de seiscentas vagas/ano. Nota-se, a partir disso, quão acelerado vem se dando o processo de expansão, tanto da rede psicossocial do estado quanto do número de agências formadoras de psicólogos existentes no Piauí. Consequentemente, também tem aumentado o número de profissionais inseridos no mercado de trabalho, inclusive no campo das políticas públicas nos últimos seis anos. 1147
FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO PARA A SAÚDE MENTAL: ...
É importante considerar que tal movimento de expansão da rede de serviços em saúde mental e da Psicologia no Piauí foi contemporâneo ao forte debate e aos inúmeros obstáculos/desafios em relação ao processo de Reforma Psiquiátrica e ao movimento de mudanças e revisões quanto aos modelos de formação dos psicólogos brasileiros na última década. Tais debates, especialmente na esfera da saúde mental, estiveram mais presentes nas regiões sul/ sudeste do país e em algumas poucas capitais do nordeste: Salvador, Recife e Natal (Rosa, 2006). As discussões tinham como norte: 1) a reorientação das práticas e modos de gestão não manicomiais e desinstitucionalizantes em saúde mental, com mudanças não apenas no modelo assistencial, mas paradigmáticos do modo como pensar o lugar da loucura em nossa sociedade (atenção psicossocial) (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2000); 2) uma maior inserção da Psicologia e de sua categoria profissional na sociedade de uma maneira geral, inclusive engajando-se na agenda política dos movimentos sociais e nos debates em torno das políticas públicas, especialmente em relação a uma postura mais atuante em relação à maioria dos problemas e desafios que a sociedade brasileira impõe (Dimenstein, 2009; Bernardes, 2007; Bock, 1999). Esses foram movimentos que possibilitaram a abertura de várias frentes de problematização e avanços nos planos epistemológico, técnico-assistencial, jurídico e cultural, criando novos referentes para a compreensão da loucura como uma experiência da existência humana, que requer a atualização permanente das formas de cuidar, afirmar direitos, trabalhar e ter participação na cultura (Bezerra Jr., 2007). Especificamente no âmbito da Psicologia, a literatura mais crítica tratou sobre os modelos profissionais para atuar no SUS (e demais políticas sociais), exigindo revisões dos padrões de formação que atendem pouco ao movimento de consolidação do psicólogo no âmbito da saúde (Dimenstein, 2009). A justificativa da crítica é que ainda não avançamos suficientemente no desenvolvimento de experiências que “repercutam significativamente na cultura profissional e leiga que permeia a atuação do psicólogo” na saúde pública (Oliveira et al., 2005, p.282). Dentre os muitos desafios referidos na literatura especializada, destacamos a questão de como nossa cultura profissional, essencialmente privatista e individual (Dimenstein, 2000), ainda se coloca muito pouco permeável - apesar dos avanços - ao debate sobre os problemas que nossa sociedade enfrenta, a exemplo da “questão social” e das políticas públicas, e de como atuamos na esfera pública. Daí a insistência de Bock (1999) e Silva (2001) em avançarmos na construção de uma nova relação da Psicologia com a sociedade, através de ações: a) que invistam numa formação com discussões e criação de tecnologias de intervenção no campo das políticas públicas e dos direitos humanos; b) que desenvolvam práticas profissionais menos voltadas para o nosso tradicional conjunto técnico corretivo, que apenas reencaminha, realinha, adapta, pretendendo ações de cura; c) que levantem debates e diálogos de modo a “estreitar” nossas relações com o Estado e suas instituições; d) que contribuam com as discussões sobre a qual Estado estamos nos associando, quando, cada vez mais, fazemo-nos presentes no âmbito das políticas públicas; e mais, sobre quais estratégias governamentais e relações de força estamos nos filiando quando realizamos tal tarefa. Considerando a importância de que as reflexões acima ganhem maior espaço e envolvam organicamente as agências de formação de psicólogos e demais profissionais da saúde, Yasui e CostaRosa (2008) apostam na necessidade de uma formação permanente, que faculte a redefinição e reorganização de seu processo de trabalho, e a articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas, entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de atenção e cuidados baseada em um território e pautada nos princípios de integralidade e participação popular. (Yasuy, Costa-Rosa, 2008, p.29)
Nesse aspecto, torna-se urgente avançarmos na formação de recursos humanos qualificados em termos técnicos e, também, a partir de uma disposição afetiva e ético-política, capazes de desenvolver ações que materializem o ideário da reforma sanitária e psiquiátrica e do movimento de luta antimanicomial, resultando, assim, numa saúde mental mais integrada e contextualizada ao SUS. 1148
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Por isso, a indagação sobre a maneira com que os cursos de psicologia do Piauí têm trabalhado os preceitos e compromissos com a responsabilidade sanitária e a desinstitucionalização psiquiátrica, afirmando novas posturas e novas abordagens para consolidação do SUS e das políticas de saúde mental no estado. Especificamente, objetivamos com este estudo identificar as formas com que os cursos de psicologia do Piauí têm conduzido a formação de profissionais para atuarem na política de saúde mental do estado. Ademais, pretendemos ainda: a) analisar o projeto pedagógico e a organização curricular dos cursos de psicologia do Piauí em relação ao campo da saúde mental; e b) avaliar a maneira com que os cursos de psicologia do Piauí têm investido seus conteúdos curriculares na promoção e apropriação dos princípios, saberes e práticas para efetivação da reforma psiquiátrica e da estratégia de atenção psicossocial.
Estratégias metodológicas O estudo tem como base o método qualitativo, sendo estruturado a partir das seguintes etapas e processos metodológicos: 1) Realização de pesquisa documental a partir dos projetos pedagógicos de curso, incluindo as matrizes curriculares, ementários, bibliografias, planos de curso, bem como os planos de estágio, relacionados direta ou indiretamente com o campo da saúde coletiva e da saúde mental, propostos pelos três cursos de psicologia localizados em Teresina (UESPI, FSA e FACID). O critério de escolha desses cursos justifica-se por serem os únicos do estado com turmas já concluídas. 2) Realização de entrevistas a partir de um roteiro semiestruturado com os coordenadores (n=3) dos respectivos cursos. O roteiro de entrevista utilizado trabalhou com o seguinte propósito: a) aprofundar as informações colhidas na pesquisa documental, especialmente sobre as alterações curriculares ocorridas; b) dimensionar o lugar e as compreensões que os cursos deram à saúde mental e à reforma psiquiátrica nos projetos pedagógicos; c) explorar as formas com que os cursos organizaram e privilegiaram saberes e práticas para se atuar nessa área. Como procedimentos de análise, apoiamo-nos na técnica de análise de conteúdo com base em Minayo (2000). Inicialmente, trabalhamos na organização dos documentos selecionados e na transcrição das entrevistas. Em seguida, realizamos a leitura flutuante e a identificação do material de análise, constituindo assim o corpus da pesquisa. Por fim, identificamos as unidades de registro e de contexto para a formulação das categorias de análise e interpretação dos núcleos de significação encontrados. Em suma, as análises consistiram na identificação e verificação da maneira como os princípios, conceitos, temas, debates e demais conteúdos - elaborados no campo da saúde mental na perspectiva da reforma psiquiátrica, da saúde coletiva e da estratégia atenção psicossocial, amplamente discutidos/ divulgados na literatura especializada e demais fóruns de debates - foram garantidos na formação dos psicólogos piauienses.
Discussão dos resultados Identificamos, com base no material analisado, que tanto os documentos pesquisados quanto os relatos dos entrevistados contemplaram diversos termos, conceitos e aspectos teórico-práticos do campo da saúde mental e da saúde coletiva, como, também, da reforma psiquiátrica e sanitária ou das políticas de saúde em geral, além das psicopatologias e das perspectivas clínicas e psicossociais de atenção e cuidado. Nesse sentido, observou-se que os cursos lidam claramente com duas concepções e entendimentos para instrumentalizarem saberes e práticas para a saúde mental: 1) ora expressam uma perspectiva completamente centrada na doença, apoiada pelo paradigma biomédico ou asilar, com foco no diagnóstico e remissão dos sintomas a partir da ação farmacológica e psicoterápica; 2) ora expressam uma perspectiva centrada nas potencialidades dos usuários e familiares, apoiada pelo paradigma psicossocial, com foco no cuidado e enfrentamento das dificuldades frente ao processo de sofrimento e adoecimento psíquico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1145-57, out./dez. 2011
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Entretanto, o curioso é que essas duas concepções são apresentadas sem qualquer referência crítica e reflexiva uma da outra, fazendo, inclusive, com que sejam entendidas como complementares. O principal efeito disso não seria outro senão a manutenção de ações centradas na doença e na objetificação do sujeito. Portanto, na despotencialização da perspectiva psicossocial, em termos do fundamento de sua ação geradora de cuidado, autonomia e reinserção social. A partir disso, discutiremos sobre a “maquinação” entre esses dois entendimentos presentes nos currículos piauienses, considerando a organização das suas matrizes e a relação que esses projetos pedagógicos estabeleceram com a saúde mental.
A organização dos currículos dos cursos de psicologia do Piauí Os primeiros currículos dos cursos de psicologia do Piauí datam dos anos de 1997/1998 e foram organizados com base no “currículo mínimo” de 1963, fixado pelo Parecer 403/62 do Conselho Federal de Educação. Entretanto, apesar de terem seguido tal orientação, esses currículos passaram por revisões (embora alguns mais tardiamente) para que fossem incorporadas as sugestões propostas pelo debate sobre a profissão e a formação de psicólogos no Brasil, além das discussões sobre as Novas Diretrizes Curriculares (NDC). Por terem focado suas matrizes curriculares a partir do desenvolvimento das práticas psicológicas no campo da clínica e das áreas organizacional e escolar, as primeiras experiências dos cursos piauienses (UESPI e FSA) acabaram estabelecendo uma formação centrada em padrões tecnicistas de atendimento e prestação de serviços, com foco na identificação dos aspectos psicológicos (diagnóstico) e intervenção voltada para a resolução de problemas de ajustamento, conforme previa o artigo das funções privativas do psicólogo na Lei 4.119/1962 (Brasil, 1962). Apenas o curso da UESPI chegou a garantir disciplinas voltadas para a área da saúde, com discussões em torno da saúde pública e da reforma sanitária e psiquiátrica. Mas, apesar disso, os currículos então analisados contribuíam muito pouco para a promoção de habilidades práticas que superassem a deficiência e inadequações da formação do psicólogo para atuar junto às necessidades sociais e de saúde da população. Pelo contrário, eram currículos que apenas reforçavam a demanda por disciplinas/ conteúdos voltados predominantemente para a reprodução de modelos prontos de trabalho, tendo em vista a supremacia da técnica, com implicações diretas na manutenção do lugar do aluno como mero consumidor de conhecimentos e práticas psicológicas (Dimenstein, 2000, 1998). Frente à saúde mental, os documentos levantados, tanto do curso da UESPI quanto da FSA, dimensionaram suas primeiras compreensões para esse campo a partir das psicopatologias e do enfoque centrado na doença. A organização curricular de ambos os cursos para a saúde mental estava fundamentalmente centrada em ações de diagnóstico e elo no tratamento farmacológico/psicoterápico, além de orientações para os familiares na compreensão do processo de adoecimento. Portanto, eram currículos com conteúdos expressamente voltados para o paradigma biomédico ou asilar. Após a aprovação das NDC para os cursos de Psicologia em 2004, os cursos piauienses iniciaram seu movimento de adequação curricular, que só se efetivou a partir de 2007. A UESPI, por exemplo, estruturou nesse mesmo ano sua adequação curricular com base numa única ênfase: “Psicologia e Processos de Promoção de Saúde – Social Comunitária” (UESPI, 2007). No que tange à FSA, adequouse às NDC organizando o seu novo currículo somente em 2008 a partir de três ênfases: Processos de Aprendizagem, Saúde Pública e Coletiva em Psicologia, e Clínica Psicológica (FSA, 2008). Ambos os cursos preocuparam-se em organizar os eixos estruturantes do seu currículo especificando as disciplinas que compunham o núcleo básico e profissionalizante da formação, sem fazerem qualquer menção sobre as disciplinas/conteúdos e práticas de estágio que comporiam o núcleo comum e de aprofundamento do curso. Além disso, também não especificaram que disciplinas e estágios do núcleo de aprofundamento na fase profissionalizante do curso seriam comuns a todos os alunos, e quais aqueles que seriam específicos de cada ênfase curricular, respeitando a opção de escolha de cada aluno. Na prática, na contramão do que referem as NDC sobre a organização dos cursos em núcleo comum e de aprofundamento, de modo a oferecer, no mínimo, duas ênfases para que os alunos pudessem optar por uma delas (Câmara Superior de Educação, 2004), tanto o atual currículo da UESPI quanto da 1150
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FSA continuaram o mesmo após sua adequação curricular. Ou seja, os alunos da UESPI e da FSA têm de cursar, igualmente e sem exceção, todas as disciplinas e estágios dos seus respectivos cursos, inclusive do núcleo profissionalizante, sem nenhum aprofundamento gerador de competências e habilidades mais específicas por ênfase curricular. Quanto aos conteúdos, verificamos que houve um ganho substancial de carga horária sobre o debate das políticas públicas no atual currículo da UESPI, e uma perda de horas das disciplinas relacionadas à saúde coletiva e saúde mental. Também houve o deslocamento de discussões sobre a reforma psiquiátrica e luta antimanicomial para a grade de disciplinas eletivas, sendo anteriormente de caráter obrigatório. Como novidade, houve a inclusão do debate sobre as novas formas de atenção/cuidado em saúde e o trabalho em rede, apesar de também constarem na grade das eletivas. Tais “perdas” reduziram o potencial do curso da UESPI em relação ao campo da saúde e saúde mental, especialmente no momento delicado que passa o SUS e a saúde mental do país. Quanto ao currículo da FSA, apesar da forte presença de disciplinas de cunho clínico, também houve um incremento de disciplinas e estágios que abordassem o campo da saúde, saúde mental e políticas públicas. Portanto, um avanço, pois nos currículos anteriores, conteúdos em torno da reforma sanitária, políticas de saúde (e saúde mental), reforma psiquiátrica e movimentos populares de saúde e luta antimanicomial, não tinham espaço na grade curricular do curso de psicologia da FSA. Na verdade, o currículo da FSA garantia unicamente o conhecimento em torno das psicopatologias, através da atuação por meio do diagnóstico, observação e intervenções individuais, centrado no modelo clínico-liberal, norteado por conhecimentos e procedimentos especializados com fins terapêuticos normatizadores ou adaptativos, vinculados ao processo doença-cura. Com relação à FACID, o novo currículo do curso foi organizado em duas ênfases: Psicologia e Processos de Prevenção e Promoção da Saúde, e Psicologia e Processos Educativos (FACID, 2008). Sua matriz está dividida em: 1) núcleo comum – com disciplinas/conteúdos e práticas dos estágios básicos comuns a todos os alunos até o 5° período de curso; e 2) núcleo de aprofundamento: 2.1) com disciplinas/conteúdos e estágios profissionalizantes comuns a todos os alunos (7° e 8° períodos – estágio em comunidade e estágio em psicologia organizacional e do trabalho; 9° e 10° períodos – estágio em clínica I/II); e 2.2) disciplinas/conteúdos e estágios profissionalizantes específicos, conforme a escolha da ênfase (FACID, 2008). É importante ressaltar que os três cursos dão um enfoque importante à questão da saúde, especialmente aos processos de prevenção e promoção de saúde e ao campo clínico, apesar da nítida separação entre eles. Tal questão encontra fundamento na forma como esses campos são apresentados (em termos do que os caracteriza e que habilidades e competências pretendem alcançar) e na maneira como estão descritos no projeto pedagógico de curso e na organização curricular. Apesar de mencionaram a importância da integralidade e da interdisciplinaridade como fundamentos para o desenvolvimento de conteúdos e práticas profissionais, os documentos pesquisados, além de separarem os processos de prevenção/promoção do campo clínico, muitas vezes, opõem a clínica da saúde coletiva, como opõem o indivíduo da sociedade e também opõem a atenção da gestão. Fato observado por Paulon e Carneiro (2009) em suas análises sobre formação em saúde, quando questionam a pouca atenção dos cursos para alguns princípios-chave que podem nortear as políticas de formação: a inseparabilidade entre formar/intervir; o foco no “aprender-fazendo”; e a avaliação formativa. Entendemos que tal posicionamento quanto à separação e oposição dos processos de prevenção/ promoção daqueles do campo clínico nos currículos pesquisados é fruto da compreensão que separa saúde psicológica e psicossocial, bem como atuação individual e coletiva, presente no próprio documento das NDC dos cursos de graduação em psicologia, como bem discutido por Ribeiro e Luzio (2008). Para esses autores, tal distinção reproduz a tradicional ideia (inclusive indo de encontro ao princípio da integralidade em saúde proposto pelo SUS) de pensar ações de promoção/prevenção e reabilitação/ cura como independentes e circunscritas a certos domínios privilegiados de atenção em saúde (Ribeiro, Luzio, 2008). Ou seja, enquanto as ações de promoção/prevenção são compreendidas como específicas da saúde coletiva e estariam centradas nas determinações socioculturais, na identificação precoce da doença e nas ações coletivas (práticas sociocomunitárias) junto à comunidade, as ações de reabilitação/ cura exigiriam uma intervenção individual, baseada no paradigma doença-cura. 1151
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Nesse sentido, entendemos que tal distinção acaba reafirmando as formas já instituídas de atenção e organização das ações dos serviços, fato este que reduz a invenção de práticas em torno do cuidado, bem como identifica a promoção de saúde apenas às ações preventivas. Para nós, isso só atualiza o debate preventivo-comunitário dos anos de 1950 frente às ações de saúde e saúde mental fortemente presentes em tempos atuais nos cursos de psicologia piauienses. Em contrapartida, percebe-se a manutenção do modelo clínico tradicional, voltado centralmente para a prática da diagnose e psicoterapias, inclusive coexistindo de forma harmônica e complementar às perspectivas de ajustamento e prevenção (Ribeiro, Luzio, 2008; Amarante, 2007). Apesar de termos verificado a presença de disciplinas mais voltadas para o campo da saúde pública e saúde mental/reforma psiquiátrica nos currículos pesquisados, identificamos poucas sinalizações nos textos analisados sobre a construção de habilidades profissionais que expressem o entendimento da saúde como um campo multideterminado e pautado pela cultura interprofissional e interdisciplinar, inclusive desenvolvendo experiências inter e multiprofissionais que valorizem o trabalho em equipe. Também verificamos poucas referências à necessidade de se ampliarem as ações de cuidado na promoção de novos modelos de atenção e à necessidade do fortalecimento da participação popular e do controle social. Além disso, encontramos quase nenhuma referência quanto à necessidade de se desenvolverem competências nas situações de crise e urgência psiquiátrica, bem como no trabalho em rede, inclusive intersetorializando as políticas, direta ou indiretamente envolvidas (Paulon, Carneiro, 2009; Oliveira, 2008; Ribeiro, Luzio, 2008; Yasui, Costa-Rosa, 2008;). Na verdade, verificamos que, apesar da preocupação em garantir conteúdos e compreensões da perspectiva psicossocial nos currículos pesquisados após a adequação às NDC, os cursos acabaram valorizando, no campo prático, o fazer técnico clássico da psicologia (psicoterapia e psicodiagnóstico); ou então, quando muito, com práticas preventivas vinculadas somente ao processo doença-cura. O efeito disso são formações com pouca ou quase nenhuma relação existente com os princípios e orientações teórico-práticos e ético-políticos da atenção psicossocial. Daí a importância de se pensar uma política de formação que supere tais imprecisões (Heckert, Neves, 2010; Yasui, Costa-Rosa, 2008).
A relação entre saúde mental e os currículos dos cursos de psicologia do Piauí Em termos da forma com que os cursos de psicologia do Piauí têm investido seus conteúdos curriculares na promoção e apropriação dos princípios, saberes e práticas para efetivação da reforma psiquiátrica e da estratégia de atenção psicossocial, os dados analisados dão indicativos de que nas disciplinas do núcleo básico: a) foi contemplado tanto no currículo da FACID quanto na UESPI (em especial): o debate sobre as condições sociais e de saúde da população; a análise da construção social da demanda; a relação entre cultura e saúde com foco no debate sobre o normal e o patológico; e a compreensão antropológica dos processos saúde/doença e suas práticas; b) foi contemplado, nos três currículos, o debate em torno das relações entre sociedade e Estado, levando em consideração o estado do bem-estar social, as políticas sociais, o neoliberalismo e os movimentos sociais; c) foi fortalecido, nos três currículos, o debate em torno da atuação do psicólogo em contextos comunitários e institucionais, sob o foco das categorias de análise da psicologia social-crítica e metodologias participativas; d) foram priorizadas práticas de estágio básico voltadas para contextos comunitários e institucionais com foco na promoção e educação em saúde (UESPI e FACID), e em serviços de saúde mental de base extrahospitalar e territorial (FSA). Quanto às disciplinas de saberes específicos voltados para a saúde e saúde mental, basicamente os três cursos trabalham com o mesmo rol de disciplinas com algumas variantes: Psicopatologias I/II, Psicofarmacologia, e Psicologia da Saúde (no caso da UESPI), Psicologia e Saúde Pública (no caso da FSA) e Saúde Pública, Psicologia e Saúde e Psicologia Hospitalar (no caso da FACID). Em relação às Psicopatologias, os cursos organizaram o seu conteúdo com base no exame psiquiátrico e descrição do quadro dos transtornos mentais, sem haver qualquer debate crítico sobre as bases do paradigma psiquiátrico e do modelo asilar que orientam a centralidade na doença, o tratamento medicamentoso e a objetificação do paciente e do seu sofrimento (Costa-Rosa, 2000). Em relação à Psicofarmacologia, trata-se de uma discussão completamente especializada, sem qualquer 1152
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debate sobre a prescrição indiscriminada de psicofármacos e a medicalização dos problemas sociais (Oliveira, 2008). Quanto às disciplinas: 1) “Psicologia da Saúde” – o curso da UESPI propôs o debate em torno da vigilância em saúde e dos serviços em saúde, com foco maior na psicologia hospitalar e na psicologia médica; 2) “Psicologia e Saúde Pública” – o curso da FSA propôs o debate sobre o processo de organização dos serviços de saúde, contemplando as políticas e os programas de saúde, bem como a política de assistência social e a inserção do psicólogo nesses campos; e 3) em relação às disciplinas ofertadas pelo curso da FACID, identificamos: a) “Saúde Pública” – que versa sobre as políticas de saúde e o processo de reforma sanitária e psiquiátrica, além da atuação do psicólogo nesse campo; b) “Psicologia e Saúde” – que versa sobre os fundamentos e abordagens psicológicas na promoção, prevenção e reabilitação em saúde, bem como a atuação do psicólogo nas diversas instituições de saúde; e c) “Psicologia Hospitalar” – que versa sobre a psicologia no contexto hospitalar, com base na psicologia médica e psicossomática. Além dessas disciplinas, ainda há aquelas de ênfase garantidas apenas pelo currículo da FACID, como: Tópicos Especiais em Psicologia e Saúde, Promoção da Saúde e Qualidade de Vida, Psicooncologia e Psicologia e Vulnerabilidade Social. Quanto ao curso da UESPI, há as disciplinas eletivas: Bioética, Epidemiologia, Integralidade em Saúde e Psicologia e Saúde Mental. No tocante aos estágios profissionalizantes, apenas a UESPI e a FACID mantêm estágios no campo da saúde, saúde mental e/ou políticas públicas. Ambos os cursos oferecem estágios em serviços de base territorial (PSF e CRAS) sob o enfoque da psicologia comunitária, além de estágios em saúde nas unidades básicas de saúde, hospital geral, CAPS, hospital psiquiátrico etc. Quanto à FSA, os estágios no campo da saúde mental são ofertados apenas como estágios básicos. De uma maneira geral, percebe-se que os currículos analisados avançaram bastante na ampla incorporação do debate sobre as políticas públicas no Brasil e a atuação do psicólogo em contextos comunitário e institucionais, envolvendo a saúde pública e seus diversos serviços, inclusive com experiências de estágio básico e profissionalizante nesses campos. Muito embora, também, percebamos que a incorporação dessas discussões teve um foco maior para análises de contextos e problematizações sobre os modos de atuar do psicólogo nas políticas públicas em geral. Enquanto isso, foi dada pouca atenção à produção de novas ferramentas e estratégias de intervenção em relação à prática do cuidado e a conformação de novos processos de trabalho e gestão em saúde nesse campo. Especificamente em relação às disciplinas de saúde mental, os currículos ainda mantêm uma dupla identidade que faz conviver dois modelos ou modos de atenção: asilar (biomédico) e psicossocial. O modelo asilar encontra sustentação nos currículos pesquisados com os conteúdos das psicopatologias e psicofarmacologia (e, de certa forma, com os conteúdos da clínica psicológica tradicional, ainda fortemente presente nas matrizes dos cursos). Essas discussões apresentam um íntimo debate em torno da racionalidade médica (e das teorias psicológicas da personalidade), com foco na objetivação e no cuidado tutelar do paciente, bem como no conhecimento de tecnologias médicas e psicoterápicas como determinantes para o tratamento e supressão dos sintomas (Costa-Rosa, 2000). Por outro lado, sob a perspectiva psicossocial, dentre os três currículos pesquisados, somente a UESPI oferta uma disciplina específica em saúde mental (mas que é optativa), garantindo, assim, maior cargahorária para os debates sobre as diversas experiências de reforma psiquiátrica no Brasil (e no mundo) e as políticas de saúde mental. Os demais currículos (FSA e FACID) acabam diluindo tais discussões nas disciplinas que versam sobre as temáticas da saúde pública e práticas de estágio básico e profissionalizante, que a UESPI também o faz em certa medida. Apesar do esforço, verificamos que os currículos pesquisados dão pouca atenção aos fatores políticos e psicossociais como determinantes das ações de cuidado e dos meios básicos como dispositivos de reintegração social. Também verificamos que os currículos consideram pouco as ações de uma terapêutica voltada para a (re)construção da vida e “invenção da saúde”, bem como para o protagonismo de usuários e familiares nos serviços e na comunidade (Costa-Rosa, 2000; Rotelli, Leonardis, Mauri, 1990). Nesse sentido, entendemos que a reformulação curricular dos cursos pesquisados avançou com reservas em relação à saúde mental, tendo em vista a pouca ênfase dos debates em torno das dimensões fundamentais da desinstitucionalização e de sustentação do paradigma psicossocial (teórico1153
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conceitual, jurídico-político, técnico-assistencial, sociocultural), bem como no caráter interventivo propriamente dito. Daí o motivo dos currículos pesquisados explorarem tão pouco as práticas do modelo psicossocial que podem ser centrais na efetivação do processo de reforma psiquiátrica no estado do Piauí e no país: 1) incremento de ações de cuidado em saúde, trabalho territorial e em rede, com articulações entre atenção básica e saúde mental, através da corresponsabilidade e a continuidade da atenção; 2) realização de ações da vigilância sanitária, clínica ampliada, acolhimento e matriciamento de equipes da saúde da família; 3) realização de visitas domiciliares, oficinas terapêuticas e atividades de planejamento e gestão do trabalho; 4) centralidade do cuidado nos projetos terapêuticos individuais e coletivos que atendam as necessidades de saúde e o protagonismo dos usuários; 5) ações de ajuda e suporte mútuos e participação na construção da cidadania e produção/invenção de saúde por meio do trabalho e geração de renda, lazer, cultura e participação social e política na cidade (Quintas, Amarante, 2008; Yasui, Costa-Rosa, 2008; Costa-Rosa, 2000).
Considerações finais A realização de estudos que têm como finalidade a produção de reflexões sobre o modo como a formação profissional dos trabalhadores do campo da saúde mental está organizada, encontra fundamento no argumento de que, muitas vezes, a formação desses profissionais “ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-repticiamente como uma antítese das propostas das Reformas Sanitárias e Psiquiátrica” (Oliveira, 2008, p.38). E, apesar dos esforços de mudança paradigmática nesses campos, não é raro encontrarmos, vez ou outra, currículos de graduações que, na maioria das vezes, quando não marginalizam as discussões do campo da saúde mental, “os submetem à psicopatologia tradicional, privilegiando procedimentos clínicos quase que exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios tradicionais”, com vistas à medicalização e psicologização dos problemas sociais (Oliveira, 2008, p.38). Esse é o caso dos currículos de psicologia do Piauí, que avançaram na incorporação de vários debates do campo da saúde coletiva e saúde mental, formando, assim, profissionais que não mais desconhecem o SUS, bem com as políticas públicas de saúde e saúde mental e seus serviços e programas. Entretanto, são currículos que pouco contribuem quanto à proposição de novas práticas e novos saberes necessários para consolidar as propostas da reforma psiquiátrica, ou, então, que construam, no cotidiano desses serviços, o modelo da atenção psicossocial (Ribeiro, Luzio, 2008; Onocko-Campos, 2001). Desse modo, observamos, através dos currículos pesquisados, uma tímida incorporação do corpo literário e das experiências e debates fomentados pelo movimento da reforma psiquiátrica e sanitária no Brasil. Nesse caso, fica difícil, então, requerer da profissão que contribua com os desafios que a política de saúde mental enfrenta no estado, bem como no país: 1) prioridade de rotinas voltadas aos cuidados com a doença, foco na remissão dos sintomas com pouca alternativa para ações de promoção de saúde e investimento na autonomia e cidadania dos usuários; 2) pouca capacidade dos serviços atenderem à crise – quadro que reforça o hospital psiquiátrico como o lugar por excelência para esse tipo de demanda; 3) processos de trabalho burocratizados e ainda orientados pela lógica do especialismo, que dificultam a transformação/avanço das práticas em saúde mental; 4) manutenção da lógica ambulatorial e das filas de espera; 5) nítida dicotomia entre a clínica e política nas formas de intervenção profissional; e 6) frágil efetivação do papel do CAPS como ordenador da rede – serviço que acaba ficando com pouca ou nenhuma articulação no território, voltado para si próprio, produzindo novas cronicidades (Dimenstein, Liberato, 2009). Questões semelhantes têm sido amplamente debatidas nos inúmeros estudos sobre formação de psicólogos no Brasil (Dimenstein, 2009, 2000, 1998; Sales, Dimenstein, 2009; Bernardes, 2007; Oliveira et al., 2005). Fato este que torna o caso piauiense não uma problemática isolada, mas uma tendência nacional que precisa de uma condução urgente com políticas de formação que possam superar a tecnificação do ensino e a fragmentação e o reducionismo que permeiam o campo de atuação/ intervenção dos psicólogos em relação à saúde pública.
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Por esse caminho, acreditamos que é possível propor atualizações curriculares e experiências práticas que materializem uma formação baseada na “inseparabilidade entre formar e intervir” com foco no “aprender-fazendo” (Paulon, Carneiro, 2009, p.749). Talvez essa seja uma saída para rompermos com a lógica do especialismo e da “solidez identitária”, que apenas “acumula energia em torno do modelo médico e psicoterápico” (Baptista, Zwarg, Moraes, 2003, p.226). Por fim, entendemos que, para avançarmos de fato no campo da saúde mental, é preciso bem mais do que incorporar debates que apenas informam ou fazem conhecer o SUS, a reforma sanitária/ psiquiátrica e o debate crítico sobre as inadequações das atuações nessa área. É preciso incorporar/ manejar saberes/práticas do paradigma da desinstitucionalização e da estratégia de atenção psicossocial que, inclusive, interfiram nos modos de subjetivação dos novos profissionais, produzindo, com isso, novas formas de ação.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. BAPTISTA, L.A.; ZWARG, M.D.; MORAES, R. A reforma psiquiátrica e o cotidiano nos serviços residenciais: a formação dos profissionais da saúde mental em questão. In: JACÓ-VILELA, A.M.; CEREZZO, A.C.; RODRIGUES, H.B.C. (Orgs.). Clio-Psyché: historiagrafia, psicologia e subjetividades. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p.225-33. BERNARDES, J.S. A psicologia no SUS: alguns desafios na formação. In: SPINK, M.J. (Org.). A psicologia em diálogo com o SUS: prática profissional e produção acadêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p.105-28. BEZERRA JR., B.C. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis, v.17, n.2, p.243-50, 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/physis/v17n2/ v17n2a02.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2010. BOCK, A.M.B. Psicologia a caminho do novo século: identidade e compromisso social. Est. Psicol., v.4, n.2, p.315-29, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ epsic/v4n2/a08v4n2.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental em dados – 7. Inform. Eletrôn., v.5, n.7, 2010. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/ smdados.pdf>. Acesso em: 1 out. 2010. ______. Ministério da Saúde. Saúde mental em dados – 6. Inform. Eletrôn., v.4, n.6, 2009. Disponível em: <http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/smDados/ 2008_SMD_06.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2010. ______. Ministério da Saúde. Saúde mental do SUS. Inform. Eletrôn., v.2, n.10, 2003. Disponível em: <http://www.inverso.org.br/index.php/content/view/7102.html>. Acesso em: 1 abr. 2010. ______. Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Disponível em: <http:// www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/legislacao/legislacaoDocumentos/ lei_1962_4119.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2011.
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FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO PARA A SAÚDE MENTAL: ...
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MACEDO, J.P.; DIMENSTEIN, M.
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MACEDO, J.P.; DIMENSTEIN, M. Formación del psicólogo en salud mental: la psicología en el estado de Piaui en analisis. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1145-57, out./dez. 2011. En este artículo se investigan las propuestas curriculares de cursos de psicología en el estado de Piauí, Brasil para la salud mental. Fueron analizados el proyecto pedagógico y la organización curricular, además de la forma en que los cursos han invertido su plan de estudios en la apropiación de los principios, conceptos y prácticas para una reforma psiquiátrica eficaz y de la estrategia de la atención psico-social. Se llevó a cabo la investigación de archivos y entrevistas semi-estructuradas con los coordinadores de tres cursos. Los resultados indican que los currículos, pese a incorporar el debate de la salud colectiva y mental, asi como la actuacción del psicólogo en contextos sociocomunitários, mantienen una dicotomía entre clínica y salud colectiva; avanzan poco en relación a nuevos saberes/prácticas para consolidar la reforma psiquiátrica en el estado y mantienen los modelos asilar y psico-social en la formación y en las prácticas de los psicólogos.
Palabras clave: Reforma psiquiátrica. Salud mental. Formación profesional del psicólogo. Currículo. Recebido em 09/05/10. Aprovado em 06/12/10.
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Sistematização de estratégias de ensinar-aprender pesquisa na graduação Zuleica Maria Patrício1 Maria Regina Silvério2 Ivete Maria Ribeiro3 Janete Elza Felisbino4 Ingrid May Brodbeck5 Greice Wessler Medeiros Martins6 Gilmara Medeiros Vieira da Silva7 Adriana Elias dos Reis8
PATRÍCIO, Z.M. et al. Systematization of strategies for teaching-learning research in an undergraduate course. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1159-72, out./dez. 2011. This study aimed to analyze the systematization of pedagogical practices related to the teaching and learning of research methods in the daily routine of the disciplines of a health undergraduate course. The data were obtained from documents referring to developed pedagogical activities and analyzed through a content analysis technique, following the categories of the adopted social practices systematization framework, namely: object delimitation; time and context; objectives and purposes; employed frameworks; content of the utilized practices and strategies; dynamics of the activities and generated feelings; results; conclusions and proposals for further activities. The results present a teaching-learning research method, collectively created, that has its own theoretical-methodological framework. This framework guides, throughout all the disciplines, the development of strategies to build knowledge on an increasing complexity level, based on problematic health situations and on qualitative and quantitative data arising from different sources and socio-environmental contexts.
O objetivo deste trabalho foi analisar a sistematização de práticas pedagógicas de ensinar-aprender pesquisa no cotidiano das disciplinas de um curso de graduação da área da saúde. Os dados foram levantados em documentos referentes a atividades pedagógicas desenvolvidas e analisados pela técnica de análise de conteúdo seguindo categorias do referencial de sistematização de práticas sociais adotado: delimitação do objeto; tempo e contexto; objetivos e finalidades; referenciais utilizados; conteúdo das práticas e estratégias utilizadas; dinâmica das atividades e sentimentos gerados; resultados; conclusões e propostas de encaminhamentos. Os resultados apresentam um método de ensinaraprender pesquisa, criado coletivamente, constituído por referencial teóricometodológico próprio que orienta, no decorrer de todas as disciplinas, o desenvolvimento de estratégias para construção de conhecimentos em nível de complexidade crescente, com base em situações-problema da saúde e dados qualitativos e quantitativos de diferentes fontes e contextos socioambientais.
Keywords: Research teaching. Higher Education. Teaching-learning strategies. Systematization of practices.
Palavras-chave: Ensino da pesquisa. Educação Superior. Estratégias de ensinoaprendizagem. Sistematização de práticas.
Participaram, também, como coautores, os seguintes docentes da Universidade do Sul de Santa Catarina: Ana Maria Henrique Martins Costa, Elvis Diene Bardini e Vera Maria Antunes da Fonseca Pinto. 1 Docente aposentada, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua das Araras, 396, Lagoa da Conceição. Florianópolis, SC, Brasil. 88.062-075. zucamp@ccs.ufsc.br 2-8 Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus Tubarão. 9
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Introdução A intenção de integrar a pesquisa ao ensino tem sido uma constante nos discursos de representantes de universidades brasileiras e nos textos dos projetos pedagógicos de seus cursos de graduação. Prova disso é o aumento considerável de programas de incentivo à pesquisa que incluem alunos de graduação, o que se constata pelo número de relatórios de pesquisa apresentados em eventos científicos (Fórum, 2009; Moor, 2003). Entretanto, esse cenário, se analisado com base no número de graduandos no território nacional, mostra que apenas uma minoria tem o privilégio de aprender a fazer pesquisa na graduação. Isso porque a cultura da pesquisa nesse contexto é predominantemente focada na produção de conhecimentos científicos via projetos de pesquisa. Há graduandos que, durante a vida acadêmica, têm, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), sua única oportunidade de aprender a pesquisar. Inúmeros trabalhos sobre essa temática mostram tentativas de incrementar a pesquisa na graduação e suas conquistas e dificuldades. Entretanto, observa-se que poucos tratam de práticas sistemáticas de pesquisa no decorrer do cotidiano das disciplinas que compõem o currículo do curso (Laffin, 2008; Rossi, Ribeiro, Teodósio, 2008; Soubhia, Garanhani, Dessunti, 2007; Nóbrega-Therrien, Therrien, 2006). A análise de relatórios de vários projetos pedagógicos de cursos de graduação em Santa Catarina valida essa observação e aponta que o desafio ainda é integrar atividades acadêmicas de ensino, pesquisa e extensão. O estudo de Comerlatto (2008), realizado em um curso de graduação, demonstrou que o ensino da pesquisa está concentrado em disciplinas específicas, e que a concretização da transversalidade da pesquisa é um desafio a ser enfrentado. A autora sustenta que a importância da pesquisa na formação profissional reporta para a necessidade de se repensarem modos de ensinar geradores de processos educativos interdisciplinares, que assegurem o envolvimento com a pesquisa e para a pesquisa. O trabalho de Morato (2005), com base em Marques (1997), Ruiz (1992) e Lucas (1991), destaca a importância do ensino da pesquisa para que o aluno desenvolva o senso de busca e a disciplina de trabalho, de forma a habilitá-lo para seguir ou reconstituir trajetórias metodológicas percorridas por cientistas. Nesta perspectiva, a pesquisa tem um significado de redescoberta e deixa de ser vista como cristalizadora de conhecimentos armazenados, mas como reconstrutora da ciência. Desde muito tempo é denunciada a preponderância do ensino fragmentado subsidiado por reproduções de textos, fichas e apostilas, às vezes ultrapassadas e descontextualizadas, e focado na memorização de conteúdos aplicados de forma acrítica (Demo, 2006; Botomé, 1996). Paulo Freire, incansável defensor de práticas educacionais de natureza participante e de caráter ético e estético, assinala a importância de a pesquisa estar obrigatoriamente inserida no cotidiano dessas práticas (2000). O estudo de Zatti (2007) contribui para elucidar essa problemática e também aponta perspectivas de superação. Para além da aprendizagem de conteúdos, o autor, com base em Freire e Kant, mostra a importância da prática pedagógica que possibilita desenvolver a autonomia do aluno para a busca intencional e a percepção ética do conhecimento, além de promover a sua inserção de forma cidadã nas questões sociais. A constatação de que o aluno deseja participar de processos pedagógicos em que possa encontrar pessoas que, junto com ele, procurem o novo, é um dos aspectos dessa realidade (D’Ambrósio, 1997). O ideal seriam processos pedagógicos que promovessem situações de aprendizagem de forma reativa e que resultassem em crescimento pessoal e aquisição de conhecimentos originais e autênticos, na medida em que toda educação supõe uma intervenção sobre a vitalidade do ser humano que se educa (Droguett, 2002). Em contextos educacionais que envolvam cursos de graduação inseridos nas grandes áreas das Ciências Humanas, Ciências da Saúde e Ciências Sociais Aplicadas, a importância de sistematizar o conhecimento no decorrer do curso parece ser ainda maior. Conforme Ávila (1995), sendo a universidade um espaço de laboratório da sociedade, é de se esperar que suas atividades cotidianas de ensino, por si só, contribuam para melhorar as práticas pedagógicas e a atenção às demandas da população. 1160
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A questão é que incrementar a pesquisa na graduação de maneira ampliada, e ainda considerar a unidade ser humano, profissional e cidadão, exige outras estratégias além daquelas do TCC e de projetos de pesquisa isolados. Isso requer aperfeiçoar práticas pedagógicas que possibilitem tornar processos cotidianos de ensinoaprendizagem espaços de maior geração de conhecimentos e menos de reprodução, de maneira que professores e alunos, instrumentalizados com ferramentas de pesquisa, desenvolvam os conteúdos que precisam ensinar e aprender integrados ao contexto da vida e da profissão. Com base nessa problemática, pressupõe-se que incrementar estratégias de pesquisa no cotidiano das práticas pedagógicas do ensino de graduação torna mais acessível a aprendizagem da pesquisa e eleva a qualidade do ensino e o caráter da universidade, haja vista discussões mais contemporâneas sobre seu papel na sociedade, em especial aquelas incitadas por Santos (2005). Partindo de concepções dessa natureza e com o intuito de operacionalizar o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de graduação em Enfermagem de uma universidade de Santa Catarina, um grupo de professores desse curso criou o Projeto “Estratégias de Ensinar-Aprender Pesquisa na Graduação”. A iniciativa gerou o desenvolvimento de um conjunto de atividades pedagógicas voltado à inserção da pesquisa em todos os semestres do curso, com base na integração dos conteúdos das disciplinas. Ao final da experiência, os participantes – professores e alunos – demonstraram interesse em conhecer o conjunto das atividades realizadas nos diversos semestres, para fins de avaliação e aperfeiçoamento do trabalho. Essa expectativa desencadeou uma pesquisa de abordagem qualitativa, com o objetivo de analisar o processo de implantação dessa modalidade de ensino, desenvolvido no contexto do curso em 2008. Na fase exploratória, o levantamento dos registros relacionados ao cotidiano e às avaliações das atividades mostrou uma complexidade de situações sociais no âmbito da universidade e fora desta, envolvendo a população e outros profissionais. Essa análise inicial dos dados criou, nos pesquisadores, a necessidade de busca de um caminho metodológico próprio para orientar a análise de todo o processo, em sintonia com o PPC e com as referidas expectativas dos participantes. Decidiram, então, focar a pesquisa na sistematização das práticas pedagógicas realizadas. Com essa metodologia de pesquisa, o trabalho pedagógico foi identificado como um método, ainda em aperfeiçoamento, representado por estratégias de ensinar pesquisa e conteúdos temáticos, fazendo pesquisa no decorrer das disciplinas, cuja proposta poderia ser adaptada para aplicação em outros contextos acadêmicos.
Metodologia Caracteriza-se como pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo documental. Essa modalidade se fundamenta na apreciação de documentos, de fonte primária ou secundária. A fonte dos dados foi o conjunto dos documentos originais produzidos por alunos e docentes no decorrer das atividades pedagógicas. Foram analisados todos os registros das atividades integradas de pesquisa realizadas nos semestres do curso, a saber: atas de reuniões entre alunos e docentes e entre docentes; diário das observações participantes, realizadas pelos docentes durante as atividades pedagógicas; e avaliações da disciplina. Os dados foram analisados pela técnica de análise de conteúdo, conforme Minayo (2004) e Bardin (1977), e com foco na sistematização das práticas segundo um referencial próprio. Utilizou-se, como guia, um conjunto de categorias desenvolvidas por Botero (2001), Ghiso (2001), Jara (1996) e Barnechea, González, Morgan (1994). Adotando-se esse referencial para a comunidade acadêmica, a partir de Ghiso (2001), utiliza-se o sentido de sistematização como um processo de recuperação, tematização e apropriação de uma determinada prática. Relacionar, sistêmica e historicamente, seus componentes teórico-práticos possibilita compreender e explicar os contextos, fundamentos e sentidos, as lógicas e os aspectos problemáticos que se apresentam com a experiência, e, também, transformar e qualificar propostas educativas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1159-72, out./dez. 2011
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A sistematização assume um caráter de resgate da experiência de uma prática, da produção de conhecimentos e do empoderamento dos sujeitos sociais envolvidos na prática, e, ao mesmo tempo, constitui-se, por si só, como investigação social (Ghiso, 2001). Jara (1996) fortalece essa concepção ao afirmar que a sistematização contribui para: obter-se compreensão mais profunda das experiências que se realizam, com o fim de melhorá-las; compartilhar com outras práticas similares os ensinamentos que emergiram durante a experiência; suscitar reflexões teóricas sobre as temáticas envolvidas, incitando à construção de teorias e, também, de conhecimentos aplicados que surgem com as práticas sociais concretas. Esses referenciais estão em sintonia com as diretrizes que orientam o Projeto Pedagógico do curso em estudo e as Políticas Públicas de Educação e de Saúde, e atendem à expectativa de que práticas pedagógicas possam fortalecer o ideal da abordagem “prática social transformadora”. Nessa conformação, a sistematização do processo de ensinar pesquisa e conteúdos temáticos, fazendo pesquisa no decorrer das disciplinas, contempla as categorias orientadas por Ghiso (2001) e Barnechea, González e Morgan (1994), a saber: delimitação do objeto; tempo e contexto; objetivos e finalidades (intenções); referenciais utilizados; conteúdo das práticas, incluindo aspectos sobre etapas do processo, dinâmica das atividades, estratégias utilizadas e sentimentos gerados; resultados apontando mudanças na situação objeto do estudo e nos sujeitos participantes e em suas relações; conclusões e propostas de encaminhamentos; e a elaboração de um documento escrito. Os princípios éticos aplicados no estudo foram os seguintes: autorização da coordenação do curso e dos docentes para consulta dos registros; aprovação coletiva para a publicação em reunião de colegiado; manutenção do anonimato na descrição; e respeito à coautoria de todos os professores participantes, representados pelos respectivos coordenadores do processo pedagógico de cada semestre do curso. Cópia escrita do documento final foi enviada à Reitoria e à Coordenação do curso. As limitações identificadas na pesquisa foram decorrentes de algumas dificuldades para se encontrarem as categorias definidas, tendo em vista diferenças na qualidade dos registros elaborados pelos participantes.
Apresentação e discussão dos resultados A descrição e a discussão das atividades integradas de pesquisa são apresentadas conforme as categorias de análise referidas.
Objeto, contextualização, objetivos, finalidades (intenções) e referencial teórico-metodológico Em fevereiro de 2008, surgiu a oportunidade de se fomentar o Projeto Estratégias de EnsinarAprender Pesquisa na Graduação. Nasceu de uma demanda dos professores do terceiro semestre do curso, interessados em implementar a pesquisa no contexto da Atividade Integrada, identificada como um espaço de ensino de caráter obrigatório em todos os semestres, cujo objetivo é integrar as temáticas do ementário de cada semestre. O grupo trouxe, à professora que desempenhava o papel de assessora em pesquisa, uma proposta para a Disciplina daquele semestre. Era um projeto de pesquisa que havia sido elaborado para que os alunos o desenvolvessem com a coordenação dos professores. A análise crítica da proposta evidenciou algumas limitações relativas às condições docentes e discentes, bem como ao tempo insuficiente no semestre para a sua realização. Decidiu-se, no coletivo, por outra modalidade de trabalho: alunos e docentes aplicariam estratégias de ensinar-aprender pesquisa para desenvolver, de maneira integrada, os conteúdos das disciplinas daquele semestre. Estava nascendo a Atividade Integrada de Pesquisa (AIP). No segundo semestre de 2008, com base em avaliação participativa desse trabalho, a AIP foi validada e aperfeiçoada para os demais semestres, passando a ser desenvolvida por todos os professores e alunos. 1162
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Na perspectiva da interdisciplinaridade e participação efetiva, o primeiro desafio na implantação da proposta foi integrar os demais professores no processo, especialmente aqueles não-enfermeiros, que tinham carga horária reduzida nesse curso e atuavam em outros cursos. Em colegiado, ficou estabelecido como objetivo geral da AIP: desenvolver processos de ensinar– aprender de caráter interdisciplinar e participante, que estimulem a produção do conhecimento pelo aluno, por princípios e técnicas de pesquisa, em nível de complexidade crescente, no decorrer das disciplinas do curso. E, como objetivos específicos: a) estudar sobre temáticas relacionadas às disciplinas do curso com base na criação, no desenvolvimento e na aplicação e avaliação de estratégias de pesquisa, no âmbito de fontes bibliográficas, bancos de dados e de diversos contextos sociais, com a população e outros profissionais; b) desenvolver atividades de pesquisa, tendo como referência as diretrizes curriculares que compõem o PPC, suas linhas de pesquisa e temáticas transversais. Particularmente, no contexto do curso, as disciplinas visam o desenvolvimento do potencial dos alunos para identificarem necessidades humanas de saúde em todo o ciclo vital e em seus diversos ambientes, com vistas a criarem, manterem, aperfeiçoarem ou reprogramarem ações e processos de cuidar da vida na perspectiva da promoção da saúde e da prevenção, do tratamento e da reabilitação de problemas de saúde individuais e coletivos, considerando a unidade das dimensões biológica, socioambiental, cultural e psicoespiritual. Identificou-se, em todo o processo, a aplicação de várias diretrizes, prescritas no PCC, relacionadas ao arcabouço técnico-humanístico próprio da profissão: abordagem interdisciplinar e intersetorial; ações participantes envolvendo gestores de serviços públicos e privados, indivíduos, famílias, comunidades e a sociedade de forma geral; consideração às diversidades culturais, ambientais e afetivas relacionadas às situações identificadas; promoção de consciência crítica construtiva; e aplicação da ética profissional. A análise dos dados mostra que a estratégia de construir conhecimentos através de atividades de pesquisa científica no decorrer das disciplinas segue um conjunto de referenciais teóricos e metodológicos que se complementam e que dizem respeito ao contexto da saúde de forma geral - em especial, à Enfermagem, no que se refere ao seu arcabouço teórico e metodológico voltado ao cuidado direto e indireto, e à Saúde Coletiva, à Biologia, à Medicina, à Sociologia, à Nutrição, à Psicologia, à Filosofia e à Educação. Assim, são adotados vários autores temáticos e da metodologia da pesquisa, conforme especificidades da situação/objeto de estudo no semestre, além das particularidades relacionadas ao curso, em que se preveem, desde o segundo semestre, a aplicação e o aprimoramento de referenciais teórico-metodológicos criados na Enfermagem com foco na essência desta profissão: o Cuidado Humano Integral ao indivíduo, a grupos, à família e à comunidade (Patrício,1995; Colliére, 1986; Leininger, 1984; Horta, 1979). No âmbito da Educação, os referenciais adotados estão em sintonia com ideias de Paulo Freire (2000, 1983), D’Ambrósio (1997) e Grossi (1995), cuja essência é focada na construção do ser integral, indivíduo e coletivo, cidadão local, universal e livre, para participar e criar mediante atitudes éticas e estéticas de convivência solidária. Sustentada por essa concepção e na especificidade da profissão e do PPC, a AIP, neste contexto, considera a estratégia cuidar-pesquisando, ou pesquisar-cuidando. A expectativa é tornar o próprio processo de trabalho um espaço educativo, terapêutico e revitalizador do conhecimento e da pessoa, de maneira que seus resultados sejam satisfatórios para os participantes, para o ambiente e para a profissão (Patrício et al., 2004; Patrício, 2000, 1994, 1990). A análise dos processos e produtos das práticas desenvolvidas mostra que as finalidades da AIP vão além do incentivo à cultura da pesquisa no cotidiano das práticas pedagógicas do curso. Há, também, a expectativa de contribuir para incrementar projetos de extensão, como espaços de pesquisa participante ou pesquisa ação, e incentivar a integração docente-docente, docente-discente e discente-discente, por estratégias participantes de produção de conhecimentos. Particularmente, pelo contexto profissional onde foi gerado, o processo objetiva desenvolver estratégias para a produção de conhecimentos básicos e aplicados acerca do fenômeno saúde-adoecer humano, atualizados e contextualizados na realidade da Região e do Brasil, de maneira a subsidiar a identificação, a criação e o aperfeiçoamento de referenciais teórico-metodológicos voltados ao cuidado 1163
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integral da saúde do ser humano em todo o seu ciclo vital e nas diversas situações da vida, incluindo seu processo de morrer. Para tanto, o perfil de saúde, o potencial e a diversidade socioambiental, as tecnologias à disposição, o conjunto das políticas públicas e as tendências do mercado de trabalho são considerados no aprimoramento da competência técnico-científica e humanística da profissão, com vistas a atender expectativas e necessidades de saúde da sociedade. A análise do conjunto dos referenciais e princípios adotados na AIP, bem como de suas finalidades, indica que o processo pedagógico destina-se a estimular o empoderamento pessoal e profissional do aluno com base na integração de proposições éticas e estéticas e componentes teóricos e metodológicos de caráter participante, construtivista, interdisciplinar, dialético e solidário.
Descrição das práticas e estratégias desenvolvidas O processo da AIP se realiza no decorrer das disciplinas, mediante atividades de ensinar pesquisa fazendo pesquisa. Em cada semestre do curso, com exceção do último, os professores elegem um tema que atenda à proposta de integrar os conteúdos e os professores das disciplinas, bem como definem a operacionalização da aprendizagem do aluno, respeitando o nível de complexidade esperado no semestre e a produção do conhecimento fundamentada em movimentos individuais e coletivos de cunho sistematizado, responsável e prazeroso. O elemento motivador é o tema – ou situação-problema –, transformado em pergunta de pesquisa e definido com base na análise dos conteúdos das disciplinas, na sua importância no cenário atual e na sua pertinência frente: aos objetivos, aos princípios, às finalidades e aos elementos teóricos e metodológicos estabelecidos para orientar a AIP. As temáticas transversais do PPC são integradas ao processo da pesquisa, conforme a profundidade exigida no semestre: ética, interdisciplinaridade, administração, cidadania, políticas públicas e práticas naturais em saúde. Em cada semestre, a AIP tem seu Plano de Ensino, composto pelos seguintes itens: a) Objetivos (aqueles apresentados anteriormente); b) Objetivos Específicos, relacionados às disciplinas do semestre e ao grau de complexidade exigido para aprender a responder às questões definidas para aquele momento acadêmico; c) Atividade Proposta, com seus itens e desmembramentos; d) Método de Ensino-Aprendizagem; e) Cronograma; f) Bibliografia. Com exceção dos itens a e b, os demais podem ser alterados no semestre seguinte, em razão da diversidade e pertinência de questões de pesquisa para o momento. No primeiro semestre do curso, a AIP tem a responsabilidade de inserir o aluno no movimento participante de conhecer temas relacionados às disciplinas e à profissão por meio da pesquisa. O objetivo, nesse momento acadêmico, é desenvolver atividades que estimulem o potencial do aluno para: aprender a conhecer bancos de dados da área; aplicar normas da metodologia científica; identificar publicações científicas na área; ler essas obras; elaborar perguntas de pesquisa com base no contexto atual, e responder a elas via artigos científicos e livros didáticos indicados; e para apresentar os resultados de forma escrita e em discussão de grupo, conforme modelos de trabalhos acadêmicos. Do segundo ao sexto semestre do curso, o aluno vai, gradativamente, aprendendo sobre: princípios éticos e estéticos da pesquisa; rigor metodológico; diversidade de fontes de dados; e técnicas de pesquisa de abordagem quantitativa e qualitativa - levantamento, registro e análise de dados e devolução de resultados - incluindo adaptação e elaboração de instrumentos, conforme o objeto da pesquisa. Nesse processo, ele aprende a elaborar caminhos que levam a conhecimentos, e descobre e aperfeiçoa temas relacionados às disciplinas do semestre. Por exemplo, no contexto analisado, os temas desenvolvidos do segundo ao sexto semestres do curso foram os seguintes, respectivamente: “A ocorrência de doenças infectocontagiosas que compõem a lista de notificação compulsória na região sul de Santa Catarina”; “Identificação dos portadores de diabetes mellitus cadastrados em uma unidade do Programa Saúde da Família do Município”; “Situações de estresse vivenciadas por acadêmicos do curso de enfermagem de uma universidade de Santa Catarina e possibilidades de prevenção de ocorrências e 1164
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agravos”; “Cuidados acerca da hipertensão: percepção dos usuários atendidos em um hospital geral, unidades básicas de saúde e ambulatório-escola da universidade”; “O Processo de Enfermagem: percepção dos enfermeiros sobre a sua aplicação no cotidiano das práticas profissionais”. No sétimo semestre, como as atividades são concentradas em dois contextos de saúde - hospitalar e saúde pública - as temáticas definidas foram: “Qualidade da assistência de enfermagem no âmbito hospitalar” e “Qualidade da assistência de enfermagem na saúde coletiva”. No oitavo semestre, para integrar todas as disciplinas e aperfeiçoar as temáticas transversais do PPC, o aluno aplica seus conhecimentos na elaboração de sua própria pesquisa no TCC, conforme as linhas de pesquisa do curso, e participa da promoção de um Seminário de Controvérsias acerca de questões éticas originadas de suas atividades práticas. A consolidação da proposta de cada semestre se dá pela participação solidária entre alunos e professores no processo de responder à situação-problema estabelecida, mediante a busca de informações atualizadas em banco de dados credenciados e artigos e livros recomendados. Conforme o objetivo específico do semestre e o grau de complexidade, o professor orienta sobre como buscar dados em fontes socioambientais primárias, ou seja, nos contextos onde os fenômenos ocorrem. Inclui-se, aqui, a elaboração e a aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Por exemplo, na AIP do terceiro semestre, ficou determinado que o aluno, além de aperfeiçoar os conteúdos teóricos e as ferramentas aprendidas nos semestres anteriores – como buscar dados na literatura e em bancos de dados oficiais e elaborar registros de forma sistematizada – precisa aprender a entrar em campo de natureza mais complexa, com atitude de pesquisador social, e a produzir um banco de dados. Esse é o momento de o aluno responder a uma pergunta de pesquisa com informações identificadas em registros de atendimentos de usuários de um serviço de saúde pública. É sua primeira experiência com dados em documentos originais. Nessa fase, o aluno começa o seu aprendizado prático sobre aspectos éticos relacionados ao como entrar e sair de uma instituição e ao como tratar informações sigilosas, e, também, sobre instrumentos específicos para desenvolver a atividade. Para tanto, ele aprende: a solicitar autorização oficial por escrito para estar no ambiente de trabalho da equipe de saúde; a identificar documentos que registram o atendimento prestado à população, e a comprometer-se a devolver os resultados para a instituição. Aprende, também, a: elaborar o formulário de coleta de dados; ler e analisar registros dos profissionais da saúde; identificar os dados que responderão à pergunta da pesquisa; registrar e organizar os dados de maneira sistematizada; criar um banco de dados em planilha específica; e a elaborar a apresentação em gráficos e criar formas de devolução de resultados para a instituição. E, finalmente, aprende a discutir, com seus pares e professores, sobre os resultados, focando aspectos metodológicos e conteúdos específicos, bem como aprende a refletir criticamente sobre a realidade encontrada com base na literatura clássica e contemporânea, nas políticas públicas e nos princípios éticos inerentes à profissão. Foi identificado, também, que o terceiro semestre possibilita, ao aluno, perceber a qualidade da recepção dada aos cidadãos nos serviços de saúde e a importância dos resultados da pesquisa para o aperfeiçoamento de programas e ações de atenção à saúde da população. A análise reflexiva dos resultados dessa AIP despertou a consciência dos professores para outros âmbitos, como a necessidade de se introduzirem temas no início do curso, por exemplo, o “acolhimento”, e a validação do potencial dos bancos de dados que a AIP produz, para subsidiar outros estudos de abordagem qualitativa e quantitativa, e decisões de gestores de saúde do Município. A análise do conjunto das AIP fez também emergir categorias que ampliaram o construto dessa estratégia, como: “papel do professor”; “papel do coordenador do semestre”; e “papel do coordenador do curso”. O papel do professor é de mediador no processo de construção do conhecimento e, também, de aprendiz: orienta o trabalho em grupo respeitando o nível de compreensão dos alunos naquele momento do curso; reforça experiências anteriores; apresenta as ferramentas necessárias para a produção do conhecimento condizente com o grau de complexidade para aquele momento acadêmico; discute sobre a situação-problema escolhida; atende os alunos em suas dificuldades, para que possam 1165
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avançar nas etapas com satisfação; estimula a sua criatividade durante o processo; orienta a integração dos dados; participa de decisões do grupo sobre propostas de socialização dos resultados e de apresentação pública do trabalho final. O professor busca ser participante ativo do processo interdisciplinar e solidário com colegas, alunos e coordenação de curso, em parceria com profissionais e população envolvidos nas atividades, e, ainda, incorpora o papel de sujeito que, enquanto ensina, também se aperfeiçoa. No decorrer da AIP, o professor é estimulado, também, a criar estratégias que possibilitem ao aluno aumentar seu potencial de participação. Há mobilização de energias para aprendizagem de atitudes relacionadas à interação social de cunho humanístico e à disciplina de trabalho individual e coletivo, como: organização do tempo no dia e na semana; estabelecimento de prioridades no cronograma do semestre; liberdade de expressão; responsabilidade; criatividade; trabalho solidário e respeitoso entre colegas; e diálogo e tolerância frente às diferenças pessoais. Os dados mostram que, durante e ao final do processo, é o aluno que traz novas perguntas e reflexões para serem incorporadas aos processos de ensinar-aprender, exigindo do professor reflexões e aperfeiçoamento contínuos. Em cada semestre, além de responsável por um grupo de alunos, um dos professores também é coordenador da AIP. Seu papel é manter a unidade de compreensão e ação entre os participantes, enquanto o do coordenador do curso é garantir condições para a implementação da AIP, como providenciar adequações curriculares, alocar carga horária para os docentes e manter a coerência das atividades com o PPC.
Avaliação e encaminhamentos Na AIP/2008, foram elaborados 18 instrumentos de pesquisa; participaram do processo 264 alunos e 39 professores, além dos “sujeitos do estudo”, representados por acadêmicos do curso, equipes de enfermagem e usuários de serviços de saúde ambulatoriais e hospitalares do Município. O processo de avaliação teve caráter participativo, seguindo a rotina do curso para avaliação de disciplinas. Envolveu alunos, professores e as coordenações do curso e do projeto, e realizou-se em três momentos: no decorrer do semestre, por meio de depoimentos verbais em encontros formais e informais; na apresentação dos trabalhos finais; e em reunião de colegiado, ao final do semestre. Concluiu-se que a avaliação da AIP como um todo, considerando-se as oito fases do curso, somente será possível quando os alunos que participaram desde o início estiverem concluindo o curso. Entretanto, como avaliação de processo, pôde-se evidenciar a viabilidade da estratégia, tendo em vista o alcance dos objetivos propostos junto aos alunos e a sinalização positiva para as finalidades esperadas. A análise dos dados referentes a essa avaliação mostra três categorias: “conquistas”, “dificuldades” e “sugestões/encaminhamentos”. As conquistas foram semelhantes para todos, variando em intensidade conforme particularidades pessoais e grupais: maior integração docente-docente e docentediscente; motivação de docentes e discentes para realização de estudos, pesquisas e publicação de artigos científicos; aplicação da linguagem de pesquisa no cotidiano; descoberta e incremento do uso de diferentes bancos de dados e de bibliografias de caráter científico no preparo das aulas e dos trabalhos acadêmicos; aperfeiçoamento teórico-metodológico; e estímulo à criatividade discente e docente para o desenvolvimento de estratégias de ensino, pesquisa e socialização dos dados. Em especial, para o aluno, evidenciou-se que a AIP possibilita: a aproximação com o ambiente físico e o contexto social da saúde em fases iniciais; a associação concreta da teoria com a prática; ampliação de sua visão de mundo, o que proporciona maior compreensão sobre o processo saúde-adoecer da população; descobertas próprias sobre a construção da saúde, dos serviços e dos processos de cuidar; maior sensibilidade e criatividade; a apropriação de referenciais teóricos para análise de dados empíricos; e espaços de reflexão crítica que conduzem à elaboração de sínteses sobre responsabilidades e possíveis desafios inerentes ao exercício profissional. As dificuldades identificadas no processo foram decorrentes, em especial, da ausência de carga horária docente para essa atividade e de problemas de cunho pessoal. Houve situações que provocaram estresse e desconforto em alunos e professores. Para os primeiros, a razão foi falta de tempo para os 1166
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trabalhos coletivos. Quanto aos professores, o estresse foi maior para aqueles que necessitaram investir mais tempo para aprender o que deviam ensinar, especialmente tendo outro vínculo empregatício. Professores acostumados a levar o conteúdo pronto para a sala de aula tiveram maior dificuldade. Na AIP, o professor é estimulado a não “dar aula”; sendo assim, desenvolver processos que orientam o aluno para a construção do conhecimento temático e metodológico, partindo de uma pergunta de pesquisa, exigiu revisão total das práticas pedagógicas. Identificou-se que apontar vazios de conhecimentos, ensinar ferramentas científicas para a busca de dados, indicar as fontes desses dados, exercitar a sistematização, desenvolver processos de interação, de reflexão crítica e de elaboração de sínteses e, ainda, cobrar normas científicas e estimular a criatividade no processo, incluindo formas de apresentação dos resultados, não são tarefas fáceis para aqueles professores que assim não aprenderam. Na avaliação final, as dificuldades foram percebidas como desafios a serem trabalhados com vistas ao aperfeiçoamento da proposta, posto que alunos e professores, por unanimidade, sugeriram a continuidade da AIP no curso. Dos 264 alunos, apenas 01 considerou a AIP negativa, justificando que “aprender a pesquisar não é importante para a profissão”. Um dos aspectos evidenciados diz respeito à necessidade de se incrementar um movimento de reflexão crítica entre professores e a coordenação do curso acerca das limitações e possibilidades de cunho pessoal e coletivo existentes. A expectativa é de que essa estratégia interacional possa contribuir para o aperfeiçoamento da capacidade do professor em dialogar com seus pares e a coordenação e, também, de lidar com emoções e prioridades, a ponto de efetivar o processo pedagógico, conforme planejado, e de torná-lo gratificante para todas as pessoas envolvidas. Houve consenso em que a AIP, para atingir seus objetivos e finalidades, deve calcar-se nos componentes do cuidado que promovam o aprimoramento humano, dirigidos à integração de componentes de razão-sensibilidade e liberdade-limite, mediados pela reflexão crítica e o caráter dialético, inerente à realidade complexa e mutante. Também foi identificada a necessidade de o professor ficar mais atento aos princípios prescritos que dizem respeito à aprendizagem progressiva e à importância de gerar, no aluno, a percepção de ser sujeito do processo de produção do conhecimento e sentir prazer com esse trabalho. Nesse sentido, foi apontado o papel relevante dos professores dos primeiros semestres do curso para o sucesso das propostas pedagógicas e, também, para a manutenção dos alunos no curso e na universidade. Um dos encaminhamentos desafia os docentes ao desenvolvimento de estratégias que mobilizem o aluno à participação efetiva. Para tanto, precisam provocar a sua inserção imediata nos processos pedagógicos e nos contextos da saúde e da profissão, e respeitar sua capacidade de atendimento às demandas acadêmicas, de maneira a estimularem seu envolvimento e prevenirem situações que possam provocar riscos de estresse e evasão. Identificou-se que a AIP possibilita desenvolver o potencial do aluno para atender a uma variedade de exigências de conteúdos teóricos e metodológicos como uma unidade complexa. A visão multidimensional da saúde e a bagagem existencial e de cidadania dos participantes, quando presentes no processo, fortalecem esse aspecto e evidenciam que os questionamentos e as buscas por respostas, junto à população, a seus pares, a seus professores e outros profissionais, devem ser mediados por interações de caráter ético e estético. Com base nas teses de Briceño-León (1996), percebe-se a AIP também como estratégia pedagógica para reforçar a confiança das pessoas em si mesmas e fomentar a responsabilidade individual e a cooperação coletiva na formação acadêmica. Mediante a discussão da avaliação, alguns professores foram levados a refletir criticamente sobre o seu perfil de docente universitário e a ressignificar conceitos sobre pesquisa na graduação e práticas pedagógicas. Perceberam que certas práticas que desenvolviam não somente inibiam a participação do aluno, mas também provocavam estresse desnecessário. Exemplo disso é a quantidade elevada de trabalhos e de provas exigida no semestre, resquícios do modelo fragmentado e quantitativo que costuma gerar sobrecarga de trabalho, insatisfação e pouca aprendizagem. A estratégia AIP atendeu à expectativa dos idealizadores de caracterizá-la como uma metodologia de ensino-aprendizagem de abordagem construtivista. Nesse modelo, segundo Grossi (1995), do ponto 1167
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de vista do ensinante, a prática pedagógica deve propiciar ao aluno o embate com problemas instigantes que suscitem a necessidade de resolvê-los por meio de saídas inteligentes, que devem ser superadas gradativamente pelo próprio sujeito da aprendizagem. E, ainda, conforme a autora, embebidos na dimensão do social, essa prática deve promover conquistas pessoais que instrumentalizem os alunos para a resolução de problemas existenciais tanto na esfera profissional quanto na esfera pessoal. Finalmente, essa modalidade de ensino foi considerada apropriada para outros espaços acadêmicos que tenham a mesma expectativa, condicionada a modificações relacionadas à essência da profissão, ao PPC do curso e aos processos reflexivos e criativos que mediarão o trabalho coletivo naquele contexto.
Síntese final A sistematização da AIP mostra um processo de trabalho fundado em práticas pedagógicas orientadas por referencial teórico-metodológico próprio, sintonizado com o PPC e o contexto maior em que se insere. Partindo da proposta inicial, a AIP foi sendo construída e validada, pelos participantes, no decorrer dos processos de trabalho, e reconhecida como um método original. Nesse processo, alunos aprendem a construir o seu próprio conhecimento em nível de complexidade crescente, e professores que ensinam também aprendem para além do conteúdo que lhes cabe ministrar – ampliam sua visão como profissionais da educação superior e da saúde e, também, como cidadãos. A proposta, firmada pela sistematização de estratégias pedagógicas, representa processos de ensinaraprender a fazer pesquisa a partir da aplicação e recriação de conhecimentos e do exercício da associação sabedoria, criatividade e reflexão crítica. Conduzida por situações-problema de complexidades e de contextos variados, é mediada por processos de análise-reflexão-síntese individuais e coletivos e por componentes do cuidado humano que promovem o aperfeiçoamento das interações pessoais e profissionais. A perspectiva de aprimoramento de teorias e práticas sobre necessidades humanas, cuidado integral e processos de trabalho para promoção e prevenção de agravos à saúde em diferentes contextos, exige o desenvolvimento de conhecimentos para além daqueles previstos no semestre. Esse aspecto leva alunos e professores - sobretudo estes - à busca em fontes diversas, ao aperfeiçoamento do poder de reflexão e ao incremento de atitudes construtivistas. O estudo mostrou que o ensino da pesquisa, quando inserido em todos os semestres da graduação, desenvolvido de maneira interdisciplinar, participante, construtivista e solidária, promove o empoderamento gradativo do aluno para desenvolver suas competências e habilidades. Esse processo gera desafios constantes para o professor, o que lhe possibilita maior empoderamento como educador, pesquisador e profissional de sua área. A estratégia de avaliação da AIP, por envolver a discussão coletiva dos processos e resultados, fortalece os princípios da proposta e constitui mais um recurso para integração dos participantes, capacitação em pesquisa e aperfeiçoamento pessoal e profissional de maneira geral. Ensinar-aprender conteúdos pesquisando em livros, banco de dados e contextos sociais, e a discutir dialogando com seus pares e mestres, sintoniza-se com ideias de Ortega e Gasset apud Droguett (2002), Freire (2000, 1983), D´Ambrósio (1997) e Grossi (1995), no que se refere à importância do desenvolvimento de métodos pedagógicos que transcendam àqueles que apenas reproduzem conhecimentos. Seus princípios e estratégias possibilitam o aperfeiçoamento das habilidades e competências de discentes e docentes para identificar situações-problema no cotidiano das práticas e, também, para criar e aplicar conhecimentos básicos e tecnológicos que respondam de forma mais coerente às demandas da profissão e da sociedade. E, ainda, possibilitam, pelo seu caráter cooperativo e seus aspectos éticos e estéticos, tornar a experiência da educação formal saudável e prazerosa, tal como apregoado nas obras de Rubem Alves (2008, 2001). Embora essa modalidade possa gerar condições de estresse, promove, mesmo nas situações de conflito e grandes dificuldades, o aperfeiçoamento das interações docente-docente, discente-docente e 1168
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discente-discente, em razão de seus princípios e referenciais valorizarem o caráter dialógico e de cuidado consigo e com o outro. Tal consideração é evidenciada nos estudos de Ribeiro et al. (2010) e Silvério et al. (2010), que tratam de repercussões do processo de ensino-aprendizagem na qualidade de vida e saúde de alunos e professores. Essa tecnologia social apresenta potencial, também, para incrementar objetivos e diretrizes da educação que, transformando o ser humano, transforma a sociedade, mas com a preocupação de se constituir em prática social sustentável - em todos os sentidos que essa expressão possa representar no universo da produção e disseminação de conhecimentos científicos e saberes tradicionais. Ainda que a proposta esteja restrita a um microcontexto acadêmico da área da saúde, entende-se que essa modalidade de ensino, sob um olhar sistêmico, constitui-se subsídio para ampliação da consciência e participação social da universidade. Sob vários aspectos, a proposta apresenta ressonância com a incitação que Boaventura Santos faz à universidade do Século XXI (2005), no que tange à responsabilidade social e política, fundada por princípios democráticos e emancipatórios. Ao considerar o contexto em que foi construído esse método, à luz de concepções de Chauí (2003), relacionadas às mudanças ocorridas na universidade brasileira que ferem seu caráter de “universalidade”, é possível sonhar que práticas pedagógicas dessa natureza, em universidades cujo perfil é predominantemente de “organização social”, possam contribuir para a promoção, ou o resgate, de atributos que confiram ou restituam o caráter de “instituição social” da universidade. Particularmente, citando Soubhia, Garanhani, Dessunti (2007, p.183), ressalta-se que a realização deste estudo possibilitou-nos compreender que a competência se constitui, por ora, a nossa grande utopia, mas a caminhada está iniciada e com o trajeto sinalizado. Restam-nos, ainda, novos olhares para o fenômeno e outras avaliações do processo de ensino e aprendizagem sobre a pesquisa.
Sugere-se a realização de estudos semelhantes em outros contextos, que possam incrementar o desenvolvimento – ou mesmo validar pela sistematização – de metodologias voltadas ao ensino sistemático da pesquisa na graduação que, além de promoverem a inclusão de alunos nessa aprendizagem e sua autonomia progressiva na abordagem da realidade, também contribuam para aprimorar a profissão e o diálogo entre professores, gestores e a sociedade. Nesse âmbito, a expectativa é incrementar o aperfeiçoamento docente contínuo, a produção científica da universidade e a sua maior inserção social.
Colaboradores Zuleica Maria Patrício, Maria Regina Silvério e Ivete Maria Ribeiro trabalharam em todo o processo da pesquisa, na construção e na redação final do manuscrito; Janete Elza Felisbino participou da concepção da pesquisa, coleta de dados e redação inicial do manuscrito; Ingrid May Brodbeck, Greice Wessler Medeiros Martins, Gilmara Medeiros Vieira da Silva, Adriana Elias dos Reis, Ana Maria Henrique Martins Costa, Elvis Diene Bardini e Vera Maria Antunes da Fonseca Pinto participaram da concepção inicial da pesquisa e da coleta dos dados.
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SISTEMATIZAÇÃO DE ESTRATÉGIAS DE ENSINAR-APRENDER ...
PATRÍCIO, Z.M. et al. Sistematización de estrategias de enseñanza-aprendizaje de la pesquisa en la graduación. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1159-72, out./dez. 2011. Este estudio analiza la sistematización de prácticas pedagógicas de enseñanza y aprendizaje de la pesquisa en el cotidiano de las asignaturas de un curso de graduación del área de la salud. Los datos provienen de documentos concernientes a las actividades pedagógicas desarrolladas y analizados por la técnica de análisis de contenido, siguiendo categorías del referencial de sistematización de prácticas sociales adoptado: delimitación del objeto; tiempo y contexto; objetivos y finalidades; referenciales utilizados; contenido de las prácticas y estrategias utilizadas; dinámica de las actividades y sentimientos creados; resultados; conclusiones y propuestas de encaminamientos. Los resultados presentan un método de enseñanza y aprendizaje de la pesquisa creado en colectivo, constituido por un referencial teórico-metodológico propio que orienta, en todas las asignaturas, el desarrollo de estrategias para que se construyan conocimientos a nivel de complejidad creciente, basados en situaciones-problema de la salud y datos cualitativos y cuantitativos de diferentes frentes y contextos socio-ambientales.
Palabras clave: Enseñanza de pesquisa. Educación superior. Estrategias de enseñanza-aprendizaje. Sistematización de prácticas. Recebido em 06/06/10. Aprovado em 11/01/11.
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artigos
Simulação como estratégia de ensino em enfermagem: revisão de literatura
Ilka Nicéia D’Aquino Oliveira Teixeira1 Jorge Vinícius Cestari Felix2
TEIXEIRA, I.N.D.O.; FELIX, J.V.C. Simulation as a teaching strategy in nursing education: literature review. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1173-83, out./dez. 2011. The objective of this systematic review is to present simulation as a teaching strategy for undergraduate nursing students, as described in Brazilian studies. The search was carried out in the databases BDENF, Lilacs and Medline, using the following keywords: teaching, education, laboratory, simulation, nursing. The included studies were the scientific papers on simulation as a teaching strategy for undergraduate nursing students, published in Portuguese, between January 1999 and September 2010. Bardin’s thematic content analysis was applied to data analysis. Nine papers met the inclusion criteria, being classified into two categories: seven in “computer simulation”, and two in “nursing laboratory”. The results indicate that simulation encourages both the acquisition of psychomotor skills and self-confidence. Yet, no clinical trial was found on the efficacy of simulation for improving nursing students’ practice. Thus, there is a need for further research on the subject.
O objetivo desta revisão sistemática é apresentar a simulação como estratégia de ensino para estudantes de graduação em enfermagem, conforme estudos brasileiros. A busca foi realizada nas bases de dados BDENF, Lilacs e Medline, utilizando-se as palavras-chave: ensino, educação, laboratório, simulação e enfermagem. Foram incluídos os artigos científicos sobre simulação como estratégia de ensino para estudantes de enfermagem publicados em português, de janeiro de 1999 a setembro de 2010. Para análise dos dados, os autores aplicaram a técnica de análise temática de conteúdo, descrita por Bardin. Nove artigos foram selecionados, sendo classificados em duas categorias: sete em “Simulação por Computador” e dois em “Laboratório de Enfermagem”. Os resultados indicam que a simulação contribui para a aquisição de habilidades psicomotoras e autoconfiança. Não foram encontrados ensaios clínicos sobre a eficácia da simulação na prática dos estudantes de enfermagem. Há necessidade de mais pesquisas sobre o tema.
Keywords: Computer-assisted instruction. Nursing students. Simulation.
Palavras-chave: Instrução por computador. Estudantes de Enfermagem. Simulação.
Acadêmica, curso de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Caixa Postal 166, Curitiba, PR, Brasil. 80.011-970. ilkateixeira@netscape.net 2 Departamento de Enfermagem, Setor de Ciências da Saúde, UFPR. 1
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Introdução Nas aulas práticas, os cuidados aos pacientes são experiências que geram ansiedade nos estudantes de enfermagem. Para alguns acadêmicos, a clínica é o período mais estressante do curso de graduação, e os seguintes fatores estão relacionados à angústia: inexperiência, medo de cometer erros e condições de avaliação (Beck, Srivastava, 1999). Hart e Rotam (1994) avaliaram o nível de estresse de 94 estudantes de enfermagem, reafirmando as dificuldades emocionais encontradas nas atividades clínicas devido à insegurança na realização dos procedimentos e ao despreparo na execução das técnicas. Os problemas na prática dos alunos são fatores frequentes na educação em enfermagem, e estão relacionados à ansiedade durante a supervisão e a avaliação (Sharif, Masoumi, 2005). Alguns estudantes referem distúrbios intestinais e urinários durante as aulas práticas; outros recusam-se a realizar os procedimentos (Gomes, Germano, 2007). Essas reações são constatadas mesmo em situações simuladas no laboratório de enfermagem, sobretudo na realização de procedimentos invasivos. Os professores precisam selecionar as oportunidades de intervenções para a prática do cuidado, pois os acadêmicos são diferentes em idade, estilo de vida, experiências e talentos. Alguns estudantes estão tendo o primeiro contato com as tecnologias de curativos e a administração de medicamentos, enquanto outros são profissionais da área. A reflexão dos docentes sobre o desempenho próprio torna efetiva a transmissão das técnicas requeridas para os procedimentos, sendo considerada uma estratégia educacional (Jeffries, 2005). Outra estratégia é a simulação, que está inserida no currículo de enfermagem para o ensino de técnicas e procedimentos clínicos, incluindo diferentes objetos: jogos, modelos anatômicos, manequins, bonecos, estudos de casos e apresentações de multimídia (Tuoriniemi, Schott-Bauer, 2008). As simulações que utilizam manequins facilitam a aquisição de habilidades para os cuidados aos pacientes, propiciando a imersão dos estudantes em ambientes interativos seguros para desenvolver o processo de enfermagem (Gomes, Germano, 2007). Considerando que a segurança do paciente é imprescindível, inicialmente, os acadêmicos participam de aulas teóricas e práticas, com simulações no laboratório de enfermagem; posteriormente, desenvolvem os primeiros cuidados em instituições de saúde (Gomes, Germano, 2007). O laboratório de enfermagem é um recurso com estrutura para a aprendizagem, que dispõe de equipamentos e materiais simuladores para o desenvolvimento de habilidades profissionais, tais como: avaliação do paciente, desempenho psicomotor, pensamento crítico para a solução de problemas e colaboração interdisciplinar (Rothgeb, 2008; Coutinho, Friedlander, 2004). Os cenários de simulação oferecem experiências cognitivas, psicomotoras e afetivas, contribuindo para a transferência de conhecimento da sala de aula para os ambientes clínicos (Tuoriniemi, SchottBauer, 2008). Nessas experiências, os docentes devem reforçar os acertos nos procedimentos, corrigir os erros e explicar os pontos nos quais há necessidade de aprimoramento dos acadêmicos (Rothgeb, 2008). As simulações computacionais contribuem para a qualidade dos cuidados oferecidos aos pacientes. Há programas educativos e jogos online que permitem o treinamento de procedimentos clínicos em situações de simulação, sendo frequente o desenvolvimento de objetos digitais para esse fim (Schatkoski et al., 2007; Melo, Damasceno, 2006; Barbosa, Marin, 2000). É importante, no entanto, que a produção de software para a educação não se caracterize pelo reducionismo tecnológico, com excessiva preocupação com o design, em detrimento da finalidade pedagógica (Telles Filho, Cassiani, 1999). As ferramentas computacionais oferecem subsídios para o processo de enfermagem, com materiais educacionais que incluem arquivos de áudio e vídeo (Barbosa, Marin, 2000). A informática é um recurso em potencial para a aprendizagem de técnicas e procedimentos de risco, sendo recomendada a inserção dessa disciplina nos currículos dos cursos de bacharelado em Enfermagem (Dias et al., 2005). As práticas com simulações devem ser planejadas em uma sequência de complexidade crescente, conforme as exigências das disciplinas, possibilitando aos estudantes demonstrarem competência em cada nível do curso de Enfermagem (Medley, Horne, 2005; Nehring, Lashley, 2004). Os simuladores podem ser caracterizados pelo grau de fidelidade, como: baixa fidelidade, exemplificada por manequins 1174
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artigos
estáticos; média, permitindo alguma proximidade com a realidade; e alta fidelidade (Jeffries, 2007). Os simuladores de alta fidelidade representam o corpo humano, com semelhanças na aparência, sentimentos e respostas aos cuidados, inclusive ao oxigênio e às medicações, contribuindo para estimular o pensamento clínico (Seropian et al., 2004). Esses simuladores podem ser programados para responder às falhas na administração de medicamentos e na performance de habilidades, demonstrando, aos estudantes, as possíveis consequências dos erros (Rothgeb, 2008). A experiência de simulação promove o pensamento crítico dos estudantes, contemplando cinco fatores: objetivos, fidelidade, solução do problema, apoio e feedback (Jeffries, 2007). Os objetivos indicam as orientações para a aprendizagem. A fidelidade é o parâmetro de aproximação da realidade, cujo ambiente apresenta características específicas do cenário: clínica, quarto de hospital, enfermaria, ambulatório ou domicílio. Os papéis dos estudantes são definidos previamente à simulação, e o caso clínico do “paciente” deve ser um desafio com solução possível (Rothgeb, 2008). Os manequins são vestidos como seres humanos e podem ter lesões, feridas, incisões e drenos, sendo comandados por controle remoto e programados para perguntar e responder questões específicas. As orientações docentes podem ser sutis, permitindo que o estudante seja responsável pela tomada de decisões no processo (Rothgeb, 2008). O feedback deve acontecer imediatamente após a simulação, observando os princípios de adequação, pontualidade, frequência e interação (Beckman, Lee, 2009). A evolução dos estudantes em direção à competência resulta da participação ativa nas simulações, das observações de experiências dos colegas e do feedback dos docentes (Seropian et al., 2004). A autoavaliação também é importante; mas, quando o acadêmico reconhece a própria atuação como não satisfatória, o(a) professor(a) o orientará sobre as ações possíveis para melhorar o desempenho. As simulações humanizam o ensino e contribuem para a superação das dificuldades e para o controle do estresse emocional dos acadêmicos, reforçando a relevância da interação entre os professores e os estudantes (Gomes, Germano, 2007). A expectativa é que, a partir das experiências de simulação, haja uma redução de erros nos procedimentos em situações clínicas, em um continuum de ação e reflexão no processo de enfermagem. Os enfermeiros docentes do século 21 devem buscar estratégias inovadoras para o ensino da prática, sendo a simulação uma ferramenta efetiva na educação e no contexto moderno do cuidado à saúde (Rothgeb, 2008). No Brasil, as pesquisas sobre simulação estão na fase inicial; mas os docentes e os discentes têm demonstrado atitudes favoráveis ao uso dessa estratégia para o ensino de procedimentos e técnicas de enfermagem (Barbosa, Marin, 2000). Vários estudos sugerem que a tecnologia emergente da simulação clínica aproxima o treinamento dos procedimentos reais; mas, é necessário investigar se há evidências científicas sobre o efeito positivo das simulações na educação (Gomes, Germano, 2007; Melo, Damasceno, 2006; Barbosa, Marin, 2000). Dessa forma, duas questões orientam esta revisão da literatura: (1) Quais são os estudos brasileiros sobre o uso de simulações para o ensino de procedimentos e técnicas em enfermagem? (2) Há evidências científicas de que as simulações exercem efeito positivo na aprendizagem dos acadêmicos de graduação em enfermagem? O objetivo deste estudo é apresentar o uso de simulações no ensino de procedimentos e técnicas para os estudantes de graduação de enfermagem, conforme os artigos científicos publicados em periódicos do Brasil, no período de janeiro de 1999 a setembro de 2010.
Percurso metodológico Este é um estudo descritivo de revisão sistemática da literatura sobre o uso de simulações, como fatores contribuintes para o ensino de técnicas e procedimentos, no curso de graduação em Enfermagem. A pesquisa consistiu na busca de artigos científicos sobre o tema, publicados em periódicos nacionais, na língua portuguesa, no período de janeiro de 1999 a setembro de 2010. Os autores consultaram as bases de dados BDENF, Lilacs e Medline, sendo os parâmetros de busca e limites definidos segundo as opções disponíveis em cada base. Na Medline, aplicaram-se os termos da MeSH, (learning OR education) AND (laboratory OR simulation) AND nursing, observando os limites: humans, nursing journal articles, Portuguese. Para a busca na BDENF e Lilacs, foi utilizado o sistema da Biblioteca COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1173-83, out./dez. 2011
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Virtual em Saúde, com os termos (ensino OR educação) AND (laboratório OR simulação) AND enfermagem, observando-se os mesmos limites da Medline. A seleção da literatura seguiu três critérios de inclusão previamente estabelecidos: (1) artigo científico, com o objetivo diretamente relacionado ao uso de simulações no ensino de técnicas e procedimentos para acadêmicos de graduação em enfermagem; (2) estar publicado em periódico nacional no idioma português; (3) publicação no período de janeiro de 1999 a setembro de 2010. Dessa forma, para o presente estudo, os autores excluíram os livros, as dissertações e as teses. Inicialmente, foi realizada uma busca automática, atentando para os parâmetros supracitados. A seguir, houve uma seleção dos estudos em três etapas: (1) exclusão de artigos não pertinentes ao objetivo da presente pesquisa; (2) conferência dos títulos dos trabalhos e dos respectivos autores para se verificarem repetições em mais de uma base de dados, sendo os artigos redundantes computados apenas uma vez; (3) leitura dos resumos, com análise da relação entre os objetivos de cada estudo e o propósito desta pesquisa, para exclusão dos artigos não pertinentes. Cumpridas as três etapas descritas, procedeu-se à leitura, na íntegra, dos artigos selecionados. Na sequência, os autores aplicaram a análise de conteúdo para tratamento dos dados, adaptada da técnica de Bardin (2004). Segundo Caregnato e Mutti (2006), a análise de conteúdo pode ser realizada em textos, que são originados de transcrições de entrevistas, e em textos já existentes, como é o caso dos artigos selecionados para este estudo. Assim, essa técnica é indicada quando os dados apresentamse sob a forma de textos, e tem sido utilizada para análise em pesquisas qualitativas, compreendendo três etapas: (1) pré-análise, na qual é feita a leitura flutuante para a elaboração de hipóteses e de indicadores que fundamentam a interpretação dos dados; (2) exploração do material para a codificação dos dados, a partir das unidades de registros; (3) tratamento dos dados e alcance de inferências, que consiste na classificação dos elementos explorados, considerando-se as semelhanças e as diferenças entre eles, para posterior categorização com ênfase nas características comuns. Neste trabalho, a análise de conteúdo resultou nas duas categorias para a classificação dos artigos selecionados: Simulação por Computador e Laboratório de Enfermagem.
Resultados e discussão A busca automática gerou 25 estudos, apresentando oito na BDENF, 12 na Lilacs e cinco na Medline. Seis trabalhos estavam repetidos, sendo dois indexados nas três bases de dados consultadas e quatro contidos na BDENF e na Lilacs. Os artigos repetidos foram contados apenas uma vez, totalizando 17 estudos. Após a aplicação dos critérios estabelecidos, foram excluídos oito artigos com as seguintes justificativas: não-disponibilidade da publicação na íntegra (um); realização do estudo na cidade do México (um); educação continuada para enfermeiros gerentes (um); aplicação do modelo de educação de laboratório para ensino de técnicas de gestão em enfermagem (dois); elaboração de material educativo sem uso de simulação (um); relato de experiência para aprimoramento de monitores (um); conteúdo teórico sobre sistema de informação aplicado à enfermagem (um). De 1999 a 2003, apenas um estudo estava indexado; mas, no período de 2004 a 2010, oito artigos constaram nas bases de dados. Os estudos foram divulgados em periódicos, em quantidade indicada conforme os números entre parênteses: Revista da Escola de Enfermagem da USP (dois); Revista Gaúcha de Enfermagem (dois); Revista Latino Americana de Enfermagem (dois); Acta Paulista de Enfermagem (um); Texto e Contexto em Enfermagem (um) e Online Brazilian Journal of Nursing (um). Portanto, nesta revisão de literatura, foram incluídos nove artigos científicos sobre o uso de simulações para o ensino de técnicas e procedimentos para estudantes de graduação em enfermagem. Conforme o conteúdo, os estudos selecionados foram classificados em duas categorias, sendo sete artigos sobre Simulação por Computador e dois classificados em Laboratório de Enfermagem (Quadros 1 e 2). As amostras das pesquisas foram constituídas por acadêmicos do curso de graduação em enfermagem, com três exceções: uma amostra formada por docentes, em uma pesquisa que avaliou software para ensino de oxigenoterapia; um relato de experiência sobre a construção de software de 1176
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TEIXEIRA, I.N.D.O.; FELIX, J.V.C.
Autores
Objetivo
Amostra 44 estudantes
Schatkoski et al. (2007)
Avaliar objetos educacionais (oxigenoterapia)
Melo e Damasceno (2006)
Desenvolver software Não se aplica para ensino de ausculta pulmonar
Barbosa e Marin (2000)
Estudo/ Método
Resultados
Considerações
Quantitativo. Questionário: avaliação do material digital.
Favoráveis aos objetos educacionais.
Reforço à participação do estudante.
Descritivo. Software em 6 etapas.
Software disponível em kit.
Bibliografia escassa. Aplicação depende de parceria.
Desenvolver e avaliar 4 webdesigners Pesquisa aplicada. simulação via web em 4 docentes,4 Ambiente desenvolvido terapia intensiva enfermeiros em 6 fases. 25 estudantes
Ergonomia, pedagogia adequadas. Simulação longa. Não há valores de referência.
Validade da simulação web em terapia intensiva.
Telles Filho e Cassiani (1999)
Comparar atitudes de discentes de 2 instituições sobre ensino com computador
101 discentes
Quantitativo, descritivo. Elaboração, aplicação e análise de escalas.
Aprovação do computador no ensino de enfermagem.
Atitudes positivas sobre o computador no ensino.
Sasso e Souza (2006)
Descrever a construção e avaliar ambiente simulado em RCP
3 estudantes
Quantitativo, descritivo. 6 etapas na construção, e avaliação do programa.
Ambiente simulado para ensino de RCP.
Ambiente permite o cuidado virtual do paciente em RCP.
Cogo et al. (2009)
Investigar a opinião de docentes sobre objetos digitais (oxigenoterapia)
10 docentes
Transversal, exploratório. Avaliação Objetos Questionário para avaliar satisfatória dos educacionais 3 objetos educacionais. objetos capacitam alunos. educacionais digitais.
Silva e Cogo (2007)
Avaliar o desempenho 37 estudantes na punção venosa, com 3 objetos digitais
Exploratório, descritivo. Observação de 10 etapas no procedimento e questionário.
Material contribui para aprendizado (91,90% dos acadêmicos).
artigos
Quadro 1. Artigos da categoria Simulação por Computador
Simulação digital contribui para o aprendizado.
Quadro 2. Artigos da categoria Laboratório de Enfermagem Autores
Objetivo
Amostra
Estudo/ Método
Resultados
Considerações
Gomes e Germano (2007)
Identificar contribuições do laboratório no ensino
26 estudantes
Qualitativo, descritivo. 4 grupos focais
Importância unânime Laboratório oferece de simulações no segurança para cuidado laboratório. aos pacientes.
Coutinho e Friedlander (2004)
Avaliar desempenho psicomotor no LE* e CC**
77 estudantes
Quantitativo. Instrumento para coleta de dados.
Valores sem correlação significativa.
Melhor desempenho psicomotor no CC.
*LE: laboratório de enfermagem; **CC: centro cirúrgico.
ausculta respiratória, e, ainda, a simulação de terapia intensiva, que envolveu programadores de sistemas, professores e acadêmicos. Em relação ao delineamento dos estudos, um artigo combinou o método quantitativo e qualitativo, e seis são quantitativos de corte transversal. Um trabalho aplicou a abordagem qualitativa, e outro COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1173-83, out./dez. 2011
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caracterizou-se como relato de experiência. Nenhum estudo foi classificado como ensaio clínico aleatorizado. Isso significa que não foi encontrada evidência científica de que o uso da simulação para o ensino de técnicas e procedimentos exerce efeito positivo sobre o desempenho clínico dos estudantes de graduação em enfermagem. Na categoria Simulação por Computador, emergiram sete artigos com temas relacionados à propedêutica e aos procedimentos e técnicas que, se não forem realizados corretamente, apresentam risco para os pacientes. O pressuposto desses estudos é que o uso da tecnologia nas simulações reforça a responsabilidade do aluno referente ao desempenho próprio. Em alusão ao desafio real, o processo estimula a aprendizagem e, assim, as simulações são oportunidades para os estudantes entenderem as consequências de suas ações em um cenário virtual, que possibilita o desenvolvimento de competências reais (Sasso, Souza, 2006). Objetos educacionais digitais são ferramentas de apoio ao ensino presencial de Fundamentos de Enfermagem (Schatkoski et al., 2007). Na propedêutica de ausculta respiratória, os alunos de Semiologia têm expressado dificuldades para reconhecer os sons respiratórios, identificar as áreas de ausculta e, ainda, distinguir os sons normais e os adventícios (Melo, Damasceno, 2006). Considerando que os métodos convencionais para o ensino da ausculta dos sons respiratórios não têm sido eficientes, Melo e Damasceno (2006) desenvolveram um software como recurso na aprendizagem dessa prática. A ferramenta compreendeu: o método da ausculta, as finalidades do procedimento, a classificação dos sons e as características estetoacústicas. Os recursos tridimensionais incluíram a construção de avatares e de ambientes virtuais, e a conclusão do trabalho foi que a simulação da ausculta respiratória, proporcionada por esse software, contribuiu para o ensino e a aprendizagem em enfermagem (Melo, Damasceno, 2006). Buscando aprimorar o ensino da administração de oxigênio aos pacientes, docentes e alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desenvolveram e avaliaram o uso de objetos digitais para o treino desse procedimento, nas formas de hipertexto, jogo educativo e simulação da passagem do cateter (Schatkoski et al., 2007). Foi aplicado um questionário para 44 acadêmicos da disciplina Fundamentos do cuidado humano III, a fim de se verificar a adequação do conteúdo, apresentação visual e utilização desses objetos. As dificuldades referiram-se à visualização e à maneira de salvar o material digital; mas os resultados sugeriram que esses recursos reforçaram a participação ativa do estudante na aprendizagem. Os acadêmicos tiveram boa receptividade ao hipertexto, ao jogo educativo e à simulação sobre oxigenoterapia (Schatkoski et al., 2007). A utilização dos mesmos objetos para o treino de oxigenoterapia foi investigada também por dez docentes do curso de graduação em Enfermagem da UFRGS (Cogo et al., 2009). Foi aplicada uma escala do tipo Likert para avaliar o conteúdo, a apresentação visual e a utilização do material digital. A interatividade do estudante na aprendizagem ficou evidente com a avaliação positiva que os docentes fizeram da simulação e do jogo educativo para o ensino da oxigenoterapia (Cogo et al,. 2009). Estudar com o apoio de simulações no computador, antecipando procedimentos que serão realizados em manequins e, posteriormente em pacientes, é uma estratégia na qual o acadêmico assume uma postura ativa na aprendizagem (Schatkoski et al., 2007). Para favorecer as habilidades psicomotoras, os professores de disciplinas que iniciam o estudante na clínica precisam desenvolver sensibilidade para entender as dificuldades e os sentimentos envolvidos na execução dos primeiros procedimentos (Gomes, Germano, 2007). No ambiente clínico, os professores selecionam os pacientes, iniciando com uma abordagem de controle sobre as ações do estudante, sendo essa dependente da experiência e competência do mesmo. O continuum de aprendizagem das habilidades técnicas e o desenvolvimento da confiança do acadêmico no cuidado aos pacientes pode começar com procedimentos simulados, sob orientações que deverão ser gradualmente reduzidas, culminando na prática supervisionada nas situações reais. Nesse processo, o professor deve oferecer orientações prévias e posteriores ao atendimento, estando disponível para as dúvidas e, ainda, avaliando o desempenho do aluno. Silva e Cogo (2007) analisaram o desempenho de 37 acadêmicos de enfermagem da UFRGS, na realização da punção venosa, que foi ensinada com o recurso de objetos educacionais digitais. A coleta dos dados foi feita por observação direta durante a prática no manequim, e, na sequência, os estudantes 1178
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TEIXEIRA, I.N.D.O.; FELIX, J.V.C.
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artigos
preencheram um questionário sobre a utilização dos objetos educacionais digitais, que avaliou dez passos do procedimento no laboratório: preparação do material; lavagem das mãos; uso das luvas; procurar a veia; “garrotear” o membro; assepsia; introdução do cateter de plástico sobre agulha e retirada do garrote ao retorno do sangue; pressionar o cateter ao retirar o mandril; demonstrar a técnica de fixação do cateter; demonstrar conhecimento sobre anticoagulação do acesso ou proceder à infusão intravenosa. Dentre os estudantes que não tinham experiência prévia em punção venosa, 72,97% realizaram corretamente 50% do procedimento. Os autores entenderam que a prática no laboratório permite erros até que se alcance o acerto, gerando segurança no aluno (Silva, Cogo, 2007). Os jogos educativos e a simulação digital contribuem para que o conhecimento, adquirido em experiências virtuais, seja aplicado nas situações reais. A aprendizagem torna-se significativa quando o processo de ensino é organizado e intencional, requerendo a predisposição de educação contínua da parte dos professores (Karino, Guarient, 2001). Nessa trajetória, destaca-se a necessidade de preparação dos docentes que atuam no desenvolvimento das habilidades clínicas dos estudantes de enfermagem. A integração da teoria à prática, sob a liderança de professores com competência clínica e didática, contribui para que os acadêmicos desenvolvam segurança crescente, iniciando-se com simulação de procedimentos, seguindo para os cuidados aos pacientes durante as aulas práticas e se estendendo às atividades posteriores de estágio. Após o ensino de procedimentos, como a realização de punção venosa, a aprendizagem expande-se para ambientes assistenciais que requerem o domínio de alta tecnologia. Os cuidados intensivos com os pacientes representam desafios para os acadêmicos, que precisam aprender, também, sobre a monitorização dos equipamentos que traduzem os parâmetros clínicos. Sob essa perspectiva, os estudantes têm a responsabilidade de prestar cuidados conforme a demanda de assistência, exercitando o conhecimento previamente adquirido (Barbosa, Marin, 2000). O estudo de Barbosa e Marin (2000), realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sobre desenvolvimento e aplicação de um ambiente web de simulação clínica em terapia intensiva, apresentou dados preliminares de um paciente com lesão por arma branca em hemitórax direito, que foi admitido na unidade de terapia intensiva, evoluindo para insuficiência respiratória, com necessidade de ventilação mecânica. Os alunos do 6º período, que cursavam a disciplina Enfermagem nas intercorrências cirúrgicas e de urgência, selecionaram os dados do paciente para propor as ações de enfermagem, observando os seguintes temas: avaliação do indivíduo em estado crítico, insuficiência respiratória, ventilação mecânica e drenagem torácica. Os resultados do uso da web demonstraram boa aceitação da simulação pelos alunos, com destaque para o estímulo ao aprendizado, retenção do conteúdo e satisfação na utilização do ambiente virtual (Barbosa, Marin, 2000). O estudo ofereceu subsídios para o ensino em terapia intensiva, estimulando o pensamento crítico do estudante e o questionamento da prática. Barbosa e Marin (2000) mostraram a viabilidade de simulação na web direcionada para a educação, contribuindo para a construção de tecnologias educacionais para os cursos de graduação de Enfermagem. A simulação computadorizada reduz a distância entre a teoria e a prática, pois o computador apresenta uma situação parecida com a realidade (Sasso, Souza, 2006). Sasso e Souza (2006) descreveram a construção de um ambiente computacional para uma situação simulada de parada cardiorrespiratória, demonstrando que o software reduz o estresse para o aluno e o risco para o paciente. A experiência sugeriu que a simulação pode evitar que o paciente sofra danos decorrentes de falhas do estudante no processo decisório, contribuindo para a assistência adequada em situação real. Para conhecer a opinião de discentes do 8º período de Enfermagem, sobre a utilização dos computadores em simulações, Telles Filho e Cassiani (1999) desenvolveram escalas de Likert com itens favoráveis e desfavoráveis ao objeto de estudo, cujas respostas indicaram o nível de concordância, de indecisão ou de discordância dos estudantes, em relação às afirmações específicas. Essas afirmações foram elaboradas a partir da reunião e da seleção de frases fundamentadas na literatura, com pertinência à temática, e advindas da experiência dos investigadores e do estudo-piloto. Os resultados demonstraram que 58,4% dos 101 estudantes consideraram o computador como um recurso importante para o ensino, sendo receptivos à utilização da simulação computadorizada e à atualização de técnicas pedagógicas, com interesse na interatividade (Telles Filho, Cassiani, 1999). 1179
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Os jogos educativos e as simulações virtuais permitem que os estudantes desenvolvam habilidades para a realização de procedimentos, observando as técnicas. Os jogos online informam o desempenho; a simulação computadorizada reduz o medo de errar, aceitando as tentativas do estudante para a resolução do problema (Schatkoski et al., 2007). Embora existam vantagens na utilização de computadores para o ensino de avaliações, procedimentos e técnicas de enfermagem, há dificuldade na transferência do conteúdo das simulações para as situações reais. O teclado e o mouse do computador compõem a interface entre o estudante e o paciente virtual, uma situação que não ocorre na realidade, determinando que a prática clínica é essencial para promover a sensibilidade na assistência (Gomes, Germano, 2007; Sasso, Souza, 2006). Um fator importante sobre as simulações com computadores é a presença do professor, pois a utilização exclusiva da tecnologia não é suficiente (Sasso, Souza, 2006). A presença do docente é necessária, sendo a informática um dispositivo integrante do ensino da terapia intravenosa (Dias et al., 2005). Portanto, as tecnologias digitais oferecem suporte; mas o professor deve incentivar os acadêmicos na busca de conhecimento técnico e humano, tornando-se o elo entre as relações pessoais e o desempenho para facilitar o processo de enfermagem (Karino, Guarient, 2001). Para os estudantes que necessitam desenvolver habilidades psicomotoras, as atividades de simulação realizadas no laboratório são complementares à aprendizagem de procedimentos. Na segunda categoria, Laboratório de Enfermagem, os dois artigos selecionados acentuam a importância desse ambiente na formação do enfermeiro (Gomes, Germano, 2007; Coutinho, Friedlander, 2004). A noção subjacente a esses estudos é a de que as simulações contribuem para que os estudantes desenvolvam as habilidades necessárias aos cuidados, em situações anteriores aos atendimentos na clínica. Nas primeiras experiências com os pacientes, os estudantes sentem ansiedade, que é expressa por tremores, palidez e sudorese. Esses sintomas podem estar associados ao desmaio, choro e descontrole emocional. Quando é assegurado o tempo adequado para a aprendizagem no laboratório, a ansiedade na área clínica é atenuada (Gomes, Germano, 2007). As opiniões dos estudantes sobre o desenvolvimento de habilidades reforçam as contribuições das simulações no laboratório, consideradas recursos que facilitam o ensinar e o aprender, particularmente na execução de técnicas (Gomes, Germano, 2007). Para demonstrar a importância do laboratório na aprendizagem de procedimentos, Gomes e Germano (2007) classificaram as informações geradas por grupos focais de estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN), em três categorias: empatia que deve ser desenvolvida durante os cuidados, insegurança inicial do aluno e papel do professor. Segundo esses autores, a simulação dos procedimentos no laboratório prepara tecnicamente o estudante para oferecer cuidado com qualidade aos pacientes (Gomes, Germano, 2007). Os erros com os pacientes não podem ser tolerados, sendo fundamental a segurança para a aprendizagem dos procedimentos (Coutinho, Friedlander, 2004). No entanto, nas simulações, os acadêmicos podem errar para aprimorar as técnicas, executando os procedimentos sem temerem os danos, pois as atividades em laboratório facilitam a transição para a realidade assistencial (Silva, Cogo, 2007). Coutinho e Friedlander (2004) avaliaram as habilidades psicomotoras de 77 alunos da disciplina Enfermagem em centro cirúrgico, comparando o manuseio de material esterilizado no laboratório de enfermagem e na sala operatória. Considerando o número de erros, o desempenho motor dos acadêmicos foi melhor no centro cirúrgico; porém, a diferença nas habilidades psicomotoras nos dois ambientes não foi estatisticamente significativa. Os dois fatores que podem ter contribuído para a redução do número de erros no centro cirúrgico foram: o retorno dos estudantes ao laboratório para o treino de habilidades e o conhecimento prévio em manuseio de material esterilizado (Coutinho, Friedlander, 2004). Como recurso educacional, o laboratório de enfermagem deve ser disponibilizado ao estudante para a prática dos procedimentos, em uma transição entre a teoria e a clínica. Esse ambiente, no entanto, não se restringe às técnicas, mas proporciona uma relação entre o professor e o estudante, gerando conhecimento e reflexão (Gomes, Germano, 2007). A humanização do cuidado, essencial na prática dos estudantes de enfermagem, é desenvolvida exclusivamente nas situações reais. Porém, as inovações tecnológicas aplicadas aos simuladores têm gerado programas computacionais, modelos e manequins, 1180
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artigos
que buscam uma aproximação com a anatomia, a fisiologia e as respostas ao processo saúde-doença dos seres humanos.
Considerações finais A simulação é uma estratégia utilizada nas disciplinas de graduação do curso de Enfermagem para o ensino de técnicas e procedimentos necessários para a realização de cuidados. No Brasil, as experiências indicam que as condições simuladas têm contribuido para a prática dos estudantes, na transição de ambientes virtuais e controlados em laboratórios para a assistência aos pacientes. Os resultados desta revisão sugerem que a aplicação de estratégias educacionais no laboratório pode ser associada à tecnologia computacional, como apoio ao ensino presencial. Há disposição dos docentes e discentes para formas inovadoras no ensino, particularmente as simulações; porém, dos nove estudos selecionados nesta revisão, nenhum caracterizou-se como ensaio clínico aleatorizado, “padrão ouro” de evidências científicas. Essa informação demonstra a necessidade de realização de pesquisas nessa área, cujos resultados indicarão qual é a relação entre as simulações para o ensino de técnicas e procedimentos de enfermagem e o desempenho dos estudantes na clínica.
Colaboradores Ilka Nicéia D’Aquino Oliveira Teixeira responsabilizou-se pela concepção e planejamento do estudo, obtenção, análise e interpretação dos dados e redação do trabalho. Jorge Vinícius Cestari Félix colaborou na redação do texto e responsabilizouse pela revisão crítica técnica do trabalho. Referências BARBOSA, S.F.; MARIN, H.F. Web based simulation: a tool for teaching critical care nursing. Rev. Latino-am. Enferm., v.17, n.1, p.7-13, 2000. BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3.ed. Lisboa: Edições 70, 2004. BECK, D.; SRIVASTAVA, R. Perceived level and source of stress in baccalaureate nursing students. J. Nurs. Educ., v.30, n.3, p.127-32, 1999. BECKMAN, T.J.; LEE, M.C. Proposal for a collaborative approach to clinical teaching. Mayo Clin. Proc., v.84, n.4, p.339-44, 2009. CAREGNATO, R.C.; MUTTI, R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enferm., v.15, n.4, p.679-84, 2006. COGO, A.L. et al. Objetos educacionais digitais em enfermagem: avaliação por docentes de um curso de graduação. Rev. Esc. Enferm. USP, v.43, n.2, p.295-9, 2009. COUTINHO, R.M.; FRIEDLANDER, M.R. Manuseio de material esterilizado: processo ensino-aprendizagem em laboratório de enfermagem e em centro cirúrgico. Acta Paul. Enferm., v.17, n.4, p.419-24, 2004. DIAS, D.C. et al. Terapia intravenosa na web: um recurso didático. Cogitare Enferm., v.10, n.3, p.23-7, 2005. GOMES, C.O.; GERMANO, R.M. Processo ensino/aprendizagem no laboratório de enfermagem: visão de estudantes. Rev. Gaucha Enferm., v.28, n.3, p.401-8, 2007.
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TEIXEIRA, I.N.D.O.; FELIX, J.V.C. Simulación como estrategia de enseñanza de enfermería: revisión de literatura. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1173-83, out./dez. 2011. El objetivo de esta revisión es presentar la simulación como estrategia de enseñanza para estudiantes de graduación en Enfermería, según estudios hechos en Brasil. La búsqueda fue realizada en las bases de datos BDENF, Lilacs e Medline, utilizándose de las palabras clave: enseñanza, educación, laboratório, simulación y enfermería. Fueron inclusos los artículos científicos sobre simulación como estrategia de enseñanza, publicados en lengua portuguesa, de enero de 1999 a septiembre de 2010. Para análisis de datos, fue aplicada la tecnica de análisis de contenido, descrita por Bardin. Nueve artículos fueron selecionados, siendo clasificados en dos categorias: siete en “simulación por computador” y dos en “laboratório de enfermería”. Los resultados indican que la simulación contribuye para la adquisición de habilidades psico-motoras y auto-confianza. No fueron encontrados ensayos clínicos a respeto de la eficiencia de la simulación en la práctica de los estudiantes de enfermaría. Se necesitan más pesquisas sobre el tema.
Palabras clave: Instrucción por computador. Estudiantes de Enfermería. Simulación. Recebido em 08/11/10. Aprovado em 04/01/11.
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Responsabilidade social da Educação Superior: a metamorfose do discurso da UNESCO em foco *
Adolfo Ignacio Calderón1 Rodrigo Fornalski Pedro2 Maria Caroline Vargas3
CALDERÓN, A.I.; PEDRO, R.F.; VARGAS, M.C. Social Responsibility of Higher Education: the metamorphosis of Unesco discourse in focus. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1185-98, out./dez. 2011. The concept of Social Responsibility of Higher Education (SRHE) is discussed in the light of the World Conferences on Higher Education of 1998 and 2009, which were promoted by the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco). In 1998, Unesco was opposed to World Bank theses and defended the State’s responsibility for higher education. However, one decade later, it has incorporated and accepted neoliberal principles as valid for application to higher education. Thus, the SRHE concept has been enriched as an ethical principle that seeks to balance tensions between education as a human right and as a commercial service. While neoliberalism moves forward in the fields of hegemony and consensus, Unesco has metamorphosed to adapt to what seems to be irreversible: the victory of education as a commercial service in the molds of the World Trade Organization. A new flag has been raised: the fight against “diploma factories”.
Keywords: Unesco. Higher Education. University Management. Social Responsibility. Evaluation.
Aborda-se o conceito de Responsabilidade Social da Educação Superior (RSES) à luz das Conferências Mundiais sobre a Educação Superior de 1998 e 2009, promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Embora, em 1998, essa organização se tenha oposto às teses do Banco Mundial, defendendo a responsabilidade do Estado pelo Ensino Superior, passada uma década, a Unesco passa a incorporar e aceitar, como válidos, princípios neoliberais aplicados à Educação Superior, valorizando o conceito de RSES enquanto princípio ético que tenta equilibrar-se na tensão entre a educação como direito humano e como serviço comercial. O neoliberalismo avança no campo da hegemonia, do consenso; a Unesco se metamorfoseia, adaptando-se ao que parece ser irreversível: a vitória da educação como serviço comercial no marco da Organização Mundial do Comércio, levantando, como nova bandeira, o combate às “fábricas de diplomas”.
Palavras-chave: Unesco. Educação Superior. Gestão universitária. Responsabilidade social. Avaliação.
Elaborado com base na disciplina “Tendências e Dinâmica da Educação Superior”, do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná, e no projeto de pesquisa “Responsabilidade social da Educação Superior: levantamento, análise e avaliação do conhecimento acadêmico produzido no Brasil (2000-2010)”, desenvolvido no Programa de Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2010, mimeo). Versão preliminar discutida durante o XV Endipe (Calderón, 2010). 1 Programa de Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Rod. Dom Pedro I, Km 36, Parque das Universidades. Campinas, SP, Brasil. 13.086-900. adolfo.ignacio@ puc-campinas.edu.br 2,3 Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, Universidade Tuiuti do Paraná. *
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Observação preliminar Durante a hegemonia do Estado de bem-estar social, a universidade legitimouse enquanto instituição monopolizadora da formação em nível superior e da investigação científica. O modelo humboldtiano tornou-se ideal a ser atingido. Com a crise desse modelo estatal e o retorno avassalador dos princípios liberais, empresários da educação, gestores e intelectuais imbuídos de uma nova visão passaram a questionar valores que sustentaram a universidade durante muitas décadas no século XX, tais como: a Educação Superior como direito social fornecido, sobretudo, pelo Estado; a Educação Superior como bem público sem fins lucrativos; e a universidade como lugar específico para a pesquisa científica. O processo de mercantilização do Ensino Superior, e a consequente institucionalização do mercado de Ensino Superior, é um processo paulatino que tem gerado grandes resistências diante do questionamento das bases que sustentam o modelo de universidade de pesquisa (Calderón, 2000). A universidade de pesquisa, autônoma e financiada pelo Estado, erguida e consolidada em tempos de Estado de bem-estar, mais do que questionada, está sendo destruída diante do avanço avassalador do neoliberalismo4 e das políticas educacionais impulsionadas, no âmbito mundial, por grandes agências multilaterais, como é o caso do Banco Mundial, organização que se tornou um dos senhores da educação no mundo (Leher, 1999). Por meio dos documentos elaborados durante a Conferência Mundial de Educação Superior em 1998 (Unesco, 1998a; 1998b), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) tornou-se, na análise de importantes intelectuais (Maia, 1999; Trindade, 1999; Santos, 1998), o principal organismo internacional que fez oposição às teses do Banco Mundial, ao defender a presença e a responsabilidade do Estado pelo Ensino Superior e o acesso a ele, opondo-se a qualquer forma de mercantilização. Passados dez anos, em 2009 foi realizada, na sede da Unesco, em Paris, uma nova Conferência Mundial de Ensino Superior que, reconhecendo a relevância dos resultados da Declaração da Conferência Mundial de Ensino Superior de 1998 (CMES-1998), aprovou o documento As novas dinâmicas do Ensino Superior e pesquisas para a mudança e o desenvolvimento social (Unesco, 2009a), estabelecendo orientações para o mundo globalizado. O presente artigo aborda, especificamente, o conceito de responsabilidade social do Ensino Superior à luz da CMES-1998 e da Conferência Mundial sobre a Educação Superior de 2009 (CMES-2009), promovidas pela Unesco. Partindo de uma pesquisa bibliográfica, realiza uma análise comparativa entre a CMES-1998 e a CMES-2009, defendendo a tese de que, passada uma década, a Unesco passou a incorporar e aceitar, como naturalmente válidos, princípios neoliberais aplicados à educação, levantando uma nova bandeira global no campo ético-político (a luta contra as fábricas de diplomas), que se alicerça na valorização da RSES enquanto princípio ético que tenta equilibrar-se na tensão entre o liberalismo político (direitos humanos) e o liberalismo econômico (hipervalorização do mercado), metamorfoseando-se e adaptando-se ao que parece ser irreversível: a vitória da educação como serviço comercial no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
A responsabilidade social da Educação Superior no Brasil Tanto responsabilidade social universitária quanto responsabilidade social da Educação Superior (RSES) são termos que não possuem raízes históricas no cenário
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No presente artigo, o neoliberalismo é entendido na perspectiva de autores marxistas como Anderson (1995) e Boito Júnior (1999). Para o primeiro autor, o neoliberalismo é um fenômeno distinto do simples liberalismo clássico do século XIX, podendo ser considerado como uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. Trata-se de um ataque contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas com uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política (Anderson, 1995). Para o segundo, a ideologia neoliberal contemporânea constitui-se num liberalismo econômico que exalta o mercado, a concorrência e a liberdade da iniciativa empresarial, rejeitando, de modo agressivo, a intervenção do Estado na economia. Na ótica de Boito Júnior (1999), o discurso neoliberal procura demonstrar a superioridade do mercado frente à ação estatal. 4
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artigos
universitário brasileiro. Quando o assunto é discutir o papel social ou a função social da universidade brasileira, o termo mais comum, historicamente cunhado, é compromisso social (Calderón, 2005). Esse fato não significa que o termo RSES não tenha sido utilizado em outros países em contextos históricos diferentes. Lembre-se de que a universidade é uma instituição transecular (Morin, 2009) e que as discussões sobre sua função na sociedade têm sido, e ainda são, uma constante histórica nos cenários universitários locais e internacionais. O termo RSES surgiu no Brasil basicamente com o processo de institucionalização do mercado de Educação Superior, ganhando destaque no início da primeira década do século XXI, quando instituições de Educação Superior (IES) privadas incorporaram, em suas estratégias de marketing, o discurso da responsabilidade social empresarial ou corporativa, amplamente disseminada no Brasil pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social (Calderón, 2005). Entretanto, foi precisamente ao ser incluído como uma das dez dimensões de avaliação das IES no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído pela Lei n° 10.861, de 14 de abril de 2004, e regulamentado pela Portaria n° 2.051, de 9 de julho de 2004, que o termo em questão ganhou força no Brasil. Com o Sinaes, pode-se afirmar que o que era mera tendência do mercado de Educação Superior, adotada, sobretudo, como discurso nas propagandas das IES privadas, agora assume o caráter de obrigação institucional diante da normativa estatal (Calderón, Pessanha, Soares, 2007). Este fato gerou, inicialmente, certa confusão teórica entre o que seria a responsabilidade social da Educação Superior e a chamada extensão universitária. Trata-se de um impasse teórico que foi paulatinamente superado, na medida em que o conceito de RSES e o de compromisso social foram vinculados às discussões sobre a função social das IES. Por sua vez, a extensão universitária foi identificada como uma das três atividades universitárias, juntamente com o ensino e a pesquisa, que possibilitam que as IES cumpram sua responsabilidade social. Existem diversos entendimentos do que seria a RSES. Trata-se de uma temática essencialmente multidisciplinar, abordada por pesquisadores e intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento, os quais tornaram a universidade seu objeto de estudo e cenário de atuação profissional. Esses entendimentos, ora sistematizados, não são estanques e segmentados: em muitas situações, podem se entrecruzar e complementar; em outras, assumem um caráter dicotômico, mas possuem, como aspecto positivo, o didatismo implícito nas tipologias e taxonomias. Estudos mostram a existência de vários entendimentos do que seria a RSES na realidade brasileira (Calderón, Pedro, Vargas, 2011; Calderón, 2008), que pode ser abordada como: a) tradição universitária; b) tendência do mercado; c) normatização estatal; d) estratégia de gestão das organizações; e) valores para o desenvolvimento humano; e f) projetos sociais extensionistas. Enquanto tradição universitária, a RSES é apontada como elemento inerente à universidade, fazendo parte de suas discussões históricas no que diz respeito a sua função social. Em sua condição de tendência do mercado, destaca-se o surgimento das discussões da RSES como reflexo da mercantilização da educação e da gestão empresarial das IES, como uma estratégia de diferenciação no mercado educacional. Ao ser abordada como normatização estatal, ganha centralidade a dimensão jurídica da RSES, incorporada na legislação que regula o Sinaes, que tem, entre outras finalidades, a “promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior” (Brasil, 2004, p.1). Embora não exista na lei do Sinaes objetividade e clareza conceitual em torno do entendimento legal do que seria a RSES, a legislação sinaliza, como referenciais de avaliação da responsabilidade social das IES, “sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural” (Brasil, 2004, p.1). No enfoque da RSES como estratégia de gestão das organizações, encontram-se tentativas de se aplicarem, nas universidades, estratégias utilizadas no âmbito da gestão empresarial, discutindo-se:
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governança institucional; instrumentos de gestão estratégica como o balanço social, estratégias de marketing, imagem organizacional, gestão sustentável e indicadores de avaliação e qualidade5. Na perspectiva dos valores para o desenvolvimento humano, a universidade constitui um espaço irradiador de valores de cidadania, objetivando um novo padrão de desenvolvimento orientado para a sustentabilidade, valorizando-se a formação humana integral e a forma como são estruturados os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares6. A compreensão da RSES como projetos sociais extensionistas tem, em seu cerne, a rejeição aos projetos assistencialistas, privilegiando a contribuição da universidade para a solução dos problemas concretos da sociedade por meio de projetos de intervenção social (Silva, 2000). A esses seis entendimentos acrescentam-se, neste artigo, mais dois que englobam visões paradigmáticas, os mesmos que apresentam matizes dicotômicas e antagônicas e permitem compreender as divergências teóricas hoje existentes: a RSES como cumprimento das atividades históricas da universidade e a RSES como resistência ao mercantilismo neoliberal. A RSES entendida como cumprimento das atividades historicamente construídas da universidade (ensino, pesquisa e extensão universitária) diz respeito a uma visão pragmática, que, numa perspectiva weberiana, poderia ser considerada isenta de qualquer opção política ou juízo de valor, isto é, em prol ou contra a defesa dos interesses de determinados grupos sociais. Registre-se que, para Weber (1968), a tomada de posição política do pesquisador e a análise científica da política são duas coisas muito distintas. A política enquanto prática militante não se enquadra na atividade do docente-pesquisador, a ação política somente tem sentido enquanto objeto de pesquisa. Nesta visão, a RSES restringe-se ao cumprimento da missão da universidade, que seria produzir, sistematizar e disseminar conhecimentos, por meio do ensino, da pesquisa e da extensão, com predominância das atividades de ensino sobre todas as outras. Não seria papel da universidade assumir, como bandeira, a solução ou a contribuição direta para a solução de problemas sociais, como desigualdade e injustiça social, uma vez que, como afirma Durham (2005), essas seriam finalidades do sistema educacional como um todo, e não uma atribuição da universidade. Nesta ótica, a universidade cumpriria com sua responsabilidade social na medida em que realizasse, com qualidade, as atividades de ensino, pesquisa e extensão, devendo ser este o parâmetro de avaliação. A RSES entendida como estratégia de resistência ao mercantilismo da globalização neoliberal é uma abordagem que não discorda da tese que relaciona a RSES com a qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão, mas vai além, ao priorizar uma explícita opção político-ideológica de resistência ao avanço do neoliberalismo. Trata-se de uma abordagem que se enquadra no paradigma do conflito, dentro de uma tradição marxista e gramsciana, que pode ser compreendida a partir do conceito de intelectual orgânico às chamadas classes populares. Como afirma Gramsci (2004, p.15): Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também social e político.
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Cury, Tomiello (2009); Silva (2009); Silva, Carvalho (2009); Bolan, Motta (2008); Pinto (2008); Baldissera, Noro (2007); Ashley, Ferreira, Reis (2006); Tisott (2005); Wrasse (2004). 5
Haas (2009); Villar (2009); Dias Sobrinho (2008); Jimenez de la Jará, Fontecilla, Troncoso (2006); Vallaeys (2006); Juliatto (2004).
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Nesta perspectiva, tomando como referência as contribuições de Dias Sobrinho (2005), a RSES representa a função pública da Educação Superior, a qual não deve limitar-se a uma simples função instrumental de capacitação técnica e treinamento de profissionais para as empresas, devendo suas atividades possuir pertinência social, respondendo às demandas e às carências da sociedade. Na ótica desse autor, é preciso instaurar uma ética da responsabilidade social voltada ao atendimento das demandas das populações, e “não à legitimação do mercantilismo da globalização neoliberal” (Dias Sobrinho, 2005, p.171). Desta forma, o autor defende uma postura de intransigência intelectual em relação à expansão neoliberal, que “a universidade não dê razão ao mercado, [... e que] não seja um motor da globalização da economia de mercado, mas sim da globalização da dignidade humana” (Dias Sobrinho, 2005, p.172). Tal abordagem se enquadra dentro de uma tradição de questionamento à mercantilização da Educação Superior e à privatização do público, desenvolvida por intelectuais brasileiros na década de 1990, no contexto das reformas neoliberais (Dias Sobrinho, 1999; Ristoff, 1999; Silva Junior, Sguissardi, 1999; Trindade, 1999; Catani, 1998; Fávero, 1998; Romano, 1998; Sguissardi, 1998; Cunha, 1996; Menezes, 1996; Chauí, 1995; Gentili, Silva, 1994).
A responsabilidade social sob a ótica da Unesco Ao analisar comparativamente os documentos La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia (Banco Mundial, 1994) e Política de mudança e desenvolvimento no Ensino Superior (Unesco, 1999), ambos publicados na primeira metade da década de 1990, Dias (2004) conclui que esses documentos representavam, na realidade, duas visões absolutamente opostas sobre a função da Educação Superior com relação à sociedade. Para esse autor, as duas organizações partiam de diagnósticos semelhantes, mas chegavam a conclusões e propostas totalmente divergentes em relação à Educação Superior, “uns vendo-a como instrumento para reforçar o mercado, outros como uma entidade coletiva que deve ser considerada segundo suas especificidades sociais e culturais” (Dias, 2004, p.893). Essa tendência foi reafirmada durante a Conferência Mundial sobre Educação Superior realizada em Paris, em 5 de outubro de 1998, onde se formou uma corrente que estabeleceu uma forte crítica à mercantilização do Ensino Superior, defendendo a tese da preponderância do Estado no financiamento da Educação Superior (Calderón, Pedro, Vargas, 2011). A defesa dessa tese ganhou destaque no documento final da CMES-1998, Declaração mundial sobre a Educação Superior no século XXI: visão e ação (Unesco, 1998a, p.29), no qual constava explicitamente, como “função essencial” do Estado, o financiamento da Educação Superior. Essa postura da Unesco era oposta à tese defendida naquela época pelo Banco Mundial, o qual pregava enfaticamente a transferência dessa responsabilidade do Estado para o setor privado, bem como: a maior diferenciação das instituições, o desenvolvimento do setor privado, a diversificação das fontes de financiamento, o pagamento de mensalidades e a prioridade aos objetivos da qualidade e equidade, entre outras bandeiras (Sguissardi, 2009; Segrera, 2009; Dias, 2004). Deve-se registrar que a Unesco, embora defendesse a responsabilidade do Estado pela Educação Superior, não negava a importância do setor privado nem a implantação de algumas medidas de corte neoliberal, como a diversificação do sistema educacional. Ao se referir à Declaração mundial sobre Educação Superior no século XXI: visão e ação, Castanho (2000, p.166), afirmou: Na verdade, trata-se de um documento de compromisso entre os modelos contemporâneos, incorporando parcialmente o modelo emergente, ou seja, o neoliberal-globalista-plurimodal, também parcialmente o modelo estabelecido e em crise de hegemonia, o democráticonacional-participativo, tendo mesmo, em certas passagens, um tom que o aproxima do referencial crítico-cultural-popular. Este último, por definição, é a voz da resistência à exclusão, da promoção da inclusão, é o discurso do não, um grito que sobe dos subterrâneos da liberdade. O modelo estabelecido e em crise de hegemonia é o discurso do talvez, que
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esconde o sim ao proclamar o não. E o modelo emergente, o neoliberal, é o discurso do sim sem disfarces, da promoção ativa da exclusão em nome da eficiência capitalista.
A análise do documento final da CMES-1998 (Unesco, 1998a) permite constatar que, ao longo dele, o termo “responsabilidade social” foi utilizado várias vezes enquanto valor importante na formação dos estudantes, educando-os para uma participação ativa na sociedade democrática, para que promovam as mudanças que propiciarão a igualdade e justiça social. O termo RSES é utilizado nominalmente, de forma explícita, uma única vez, de forma indireta e tangencial, ao se afirmar que a gestão do Ensino Superior constitui uma responsabilidade social de primeira ordem. Vincula-se a RSES a uma estrutura gerencial que possibilite o cumprimento da missão institucional, por meio do diálogo e da participação da comunidade universitária. Para se compreender como foi entendida a RSES na CMES-2009, tomaram-se, como referência, os resultados dessa conferência registrados no documento As novas dinâmicas do Ensino Superior e pesquisas para a mudança e o desenvolvimento social (Unesco, 2009b), elaborado tendo em consideração resultados de seis conferências regionais prévias, realizadas ao longo de 2008 em diversos pontos do planeta: Cartagena das Índias, Macau, Dakar, Nova Deli, Bucareste e Cairo (Segrera, 2010). Ao se analisar comparativamente o documento final de uma das conferências regionais, especificamente o da Conferência Regional da Educação Superior na América Latina e no Caribe (Unesco, 2009d), realizada de 4 a 6 de junho de 2008 na cidade de Cartagena das Índias, com o documento final da CMES-2009 (Unesco, 2009b), constata-se que os referidos documentos refletem o atual cenário da Educação Superior em âmbito global, isto é, o confronto entre duas visões opostas: a Educação Superior como direito social, provida pelo Estado, versus a Educação Superior como serviço comercial, provida pelo mercado. O documento da reunião latino-americana (Unesco, 2009d) é claramente contrastante com o documento final aprovado na CMES-2009 (Unesco, 2009b), na medida em que defende explicitamente a Educação Superior como um bem público social, um direito humano e universal, um dever do Estado, apresentando uma postura de radical rejeição às teses neoliberais. A Educação Superior como bem público social enfrenta correntes que promovem sua mercantilização e privatização, assim como a redução do apoio e financiamento do Estado. É fundamental reverter esta tendência, de tal forma que os governos da América Latina e do Caribe garantam o financiamento adequado das instituições de Educação Superior pública e que estas respondam com uma gestão transparente […] Afirmamos, ainda, nosso propósito de agir para que a Educação, em geral, e a Educação Superior, em particular, não sejam consideradas como serviço comercial. (Unesco, 2009d, p.3-4)
Ao se analisar o documento final da CMES-2009 (Unesco, 2009b), constata-se a hegemonia de uma visão radicalmente contrastante com a declaração regional aprovada na América Latina (Unesco, 2009d), bem como com os resultados da CMES-1998 (Unesco, 1998a), na medida em que se visualiza a incorporação e a natural aceitação de orientações neoliberais para a Educação Superior. De acordo com Segrera (2010), durante a CMES-2009, o discurso dos participantes dos países desenvolvidos teve, em algumas situações, um acento neoliberal, diferente do discurso crítico que predominou nos participantes dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Apesar de o grupo crítico ter lutado para que, no documento final da CMES-2009, constasse que a Educação Superior é um bem público social, sendo dever dos Estados garanti-lo como prioridade das nações, após longo debate, incluiu-se a ideia da Educação Superior como bem público, e não bem público social. Contudo, deve-se destacar que, se por um lado não foi incluído o dever do Estado no seu fornecimento, por outro, não foi incluída explicitamente a Educação Superior como serviço público (Segrera, 2010). A mudança no papel do Estado é o sinalizador principal nas mudanças discursivas da Unesco: deixou de ser sua “função essencial” o financiamento da educação (Unesco, 1998a, p.29), para limitar-se a fornecer “suporte econômico” (Unesco, 2009b, p.1). Nesse contexto, o financiamento privado deveria ser estimulado, especialmente baseado “no modelo de parceria público-privado” (Unesco, 2009b, p.6). 1190
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7 Esta orientação vai contra as visões que defendem que a universidade deve centrar-se somente na pesquisa básica, enquanto a indústria e o mercado na pesquisa aplicada. Aponta para o equilíbrio entre pesquisa básica e aplicada, visando estimular uma sinergia entre a universidade e o mercado no âmbito do desenvolvimento tecnológico e científico.
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Do documento final da CMES-2009 (Unesco, 2009b), emanam orientações para a consolidação de mercados nacionais e transnacionais de Educação Superior, tais como: a) a diversificação do sistema educacional e dos meios de seu financiamento; b) o papel central da aprendizagem a distância, por meio das novas tecnologias, a fim de atender à demanda crescente pelo Ensino Superior; c) o estímulo de sistemas de avaliação de qualidade, de credenciamento e validação de diplomas; d) a flexibilidade das pesquisas objetivando o equilíbrio entre a pesquisa básica e a pesquisa aplicada ao serviço da sociedade7; e) a procura de novos meios de expandir o campo da pesquisa e inovação por meio de parcerias públicoprivadas, de multi-stakeholders, incluindo pequenas e médias empresas. Embora o clamor de América Latina estivesse direcionado para frear a expansão neoliberal na Educação Superior, defende-se, neste artigo, a tese de que o documento final da CMES-2009 sinaliza para a naturalização do mercado educacional, ou seja, o documento da Unesco está claramente afinado com a ideologia que aponta a concepção da Educação Superior como serviço comercial. Nesse sentido, pode-se afirmar que a naturalização do mercado de Educação Superior, por parte da Unesco, aponta para uma identidade ou afinamento ideológico com a visão predominante, na sociedade capitalista contemporânea, nas grandes agências multilaterais e organizações intergovernamentais que orientam as políticas educacionais em âmbito planetário. Nesta análise deve-se ressaltar que a identidade ideológica com as orientações neoliberais, consagrada no documento da CME-2009, tinha tímidos antecedentes no documento da CME-1998, que, à época, já incorporava algumas orientações, como a diversificação na Educação Superior (Castanho, 2000). Dessa forma, constata-se que, de 1998 a 2009, a Unesco se metamorfoseia, apresentando um discurso adaptado e funcional para o que parece ser irreversível: a vitória da educação como serviço comercial no marco da Organização Mundial do Comércio. Pode-se afirmar que essa metamorfose começa a se desenhar em documentos elaborados nos anos seguintes à CMES-1998, especificamente os documentos: Educación superior en los países en desarrollo: peligros y promesas (Banco Mundial, 2000), de autoria do Grupo Especial sobre Educação Superior e Sociedade, convocado conjuntamente pelo Banco Mundial e pela Unesco, e “Relatório sintético sobre as tendências e desenvolvimentos na educação superior desde a Conferência Mundial sobre a Educação Superior (1998-2003)”, elaborado pela Unesco (2003). Ao analisar os referidos documentos, Borges (2011) observa que a Unesco passou a assumir posicionamentos que se aproximam de uma concepção mais economicista de educação. Nesta ótica, a Educação Superior assumiria o papel de formar de acordo com as exigências do setor produtivo, as universidades assumiriam a tarefa de desenvolver a investigação aplicada, cujos resultados poderiam ser transformados em produtos passíveis de serem explorados pela indústria e outras empresas. Segundo Borges (2011), a Unesco passou a recomendar um sistema híbrido, em que recursos privados e estatais financiassem a Educação Superior, cabendo, ao Estado, o controle e a supervisão do sistema educacional, da qualidade acadêmica das instituições, por meio da construção de um marco regulatório, da publicização dos resultados de desempenho das instituições de Educação Superior e da responsabilização daquelas que não obtivessem desempenho adequado. Diante da constatação da naturalização das orientações neoliberais para a Educação Superior, questiona-se: se a Unesco tem-se caracterizado por apresentar bandeiras de luta e princípios ético-políticos norteadores de setores 1191
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comprometidos com a defesa dos valores democráticos e dos interesses dos setores socialmente excluídos da sociedade global, será que também existe uma metamorfose em suas bandeiras de luta, adaptadas à nova realidade de mercado educacional naturalmente aceita na CME-2009? A análise documental realizada no presente artigo sinaliza que também há uma mudança no âmbito das bandeiras de luta. Além de se encontrar alinhada ideologicamente com a visão da educação como serviço comercial, a Unesco, na CMES-2009, renova o discurso ético-político que detinha na CMES-1998, mantendo uma imagem progressista ao defender o combate às degree mills (Unesco, 2009a), isto é, as fábricas de diplomas - bandeira que consta explicitamente entre as recomendações feitas no “Plano de trabalho para os Estados membros da Unesco”8. La educación superior transfronteriza también puede generar oportunidades para prestatarios deshonestos y de poca calidad, cuya acción debe contrarrestarse. Los proveedores espurios (“fábricas de diplomas”) constituyen un grave problema. La lucha contra esas “fábricas de diplomas” exige esfuerzos multifacéticos de ámbito nacional e internacional. (Unesco, 2009c, p.5)
Se, na CMES-1998, a RSES foi abordada de forma tangencial, concebida como o cumprimento da missão institucional das IES (ensino, pesquisa e serviços comunitários), no documento final da CMES-2009 (Unesco, 2009b) ganhou papel central, na medida em que se tornou objeto do primeiro subtítulo do referido documento. Nesse subtítulo são apresentadas várias ideias que subjazem ao conceito de RSES e que complementam as ideias expostas na CMES-1998, quais sejam: a) As instituições de Ensino Superior, por meio de suas funções principais (pesquisa, ensino e serviços comunitários), estabelecidas no contexto de autonomia institucional e de liberdade acadêmica, devem aumentar o foco interdisciplinar e promover o pensamento crítico e a cidadania ativa. b) a RSES está diretamente relacionada com os problemas da humanidade; a Educação Superior é responsável por gerar conhecimentos que permitam sua compreensão e enfrentamento, possibilitando superar desafios mundiais, como: segurança alimentar, mudanças climáticas, uso consciente da água, diálogo intercultural, fontes de energia renovável, saúde pública, contribuindo, assim, para o desenvolvimento sustentável, a paz, o bem-estar e a realização dos direitos humanos, incluindo a igualdade entre os sexos. c) Como parte da RSES entende-se que a instituições de Educação Superior devem também contribuir para a educação de cidadãos éticos, comprometidos com a construção da paz, com a defesa dos direitos humanos e com os valores de democracia. Se, por um lado, mantém-se uma coerência entre os entendimentos sobre RSES que houve na CMES-1998 e na CMES-2009, por outro, pode-se afirmar que esses entendimentos ganham novos contornos dentro de um discurso que abraça os princípios neoliberais no âmbito da educação. A RSES para os novos tempos radica na relevância e pertinência social, no cumprimento das funções universitárias diante de desafios não mais locais, mas planetários. Analisando-se o conceito de RSES no documento final da CMES-2009, verifica-se que se trata de um conceito estreitamente vinculado ao conceito de qualidade, considerada como característica primordial das IES.
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Deve-se ressaltar que, no documento original da CME-2009 (Unesco, 2009a), consta o termo “degree mills”, cuja tradução mais fidedigna é “fábrica de diplomas”. A versão do documento da UNESCO em espanhol (Unesco, 2009c) incorpora o espírito desse termo, ao falar de “fábricas de diplomas”, diferentemente da versão em português (Unesco, 2009b), em que o sentido do termo original acaba se perdendo, na medida em que “degree mills” foi traduzido como falsificadora de diplomas, não incorporando a dimensão de fábrica, usina, isto é, a emissão em grande quantidade de diplomas de Educação Superior de cursos que podem até ter valor oficial, mas possuem reduzida aceitação no mercado por representarem cursos de baixa qualidade, prática denominada como “estelionato acadêmico” (Calderón, 2004).
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Garantia de qualidade é uma função fundamental na educação superior contemporânea e deve envolver investidores […] Critérios de qualidade devem refletir todos os objetivos da educação superior, notavelmente o propósito de cultivar o pensamento crítico e independente nos estudantes e a capacidade de aprender por toda a vida. Eles devem estimular a inovação e a diversidade. Garantir a qualidade do ensino superior requer o reconhecimento da importância de se atrair e reter uma equipe de ensino e pesquisa comprometida, talentosa e qualificada. (Unesco, 2009b, p.3-4)
Ora, diante da recomendação da CMES-2009 de combater as “fábricas de diplomas” nos âmbitos nacional e internacional, torna-se explícita a necessidade de combater ou lutar contra as instituições que fornecem Educação Superior de forma “fraudulenta” e de “baixa qualidade”, ou seja, instituições que não cumprem com sua responsabilidade social. A interface entre o conceito de RSES e a bandeira que propõe o combate às “fábricas de diplomas” adquire complementaridade no continuum meios/objetivos ou meta/ação, na medida em que, na ótica da racionalidade instrumental weberiana, cumprir as missões institucionais com qualidade, relevância e pertinência, isto é, cumprir com RSES, seria a grande meta ou o grande objetivo; o combate às fábricas de diplomas seria o meio, a ação que possibilitaria atingir a meta/objetivo, tendo como referência “sistemas de certificação de qualidade e estruturas regulatórias” (Unesco, 2009b, p.6).
Observações finais Embora, na CMES-2009, a Unesco tenha assumido as orientações neoliberais para a Educação Superior, deve-se destacar que seu discurso apresenta uma dimensão ética que tenta equilibrar-se entre o liberalismo econômico, hoje hegemônico no mundo, e o liberalismo político, em termos de valores democráticos de cidadania. Nessa perspectiva, se, por um lado, aceita a diversificação das instituições de Educação Superior, estimula a iniciativa privada, retira do Estado sua função essencial no financiamento; por outro, concebe a Educação Superior, por meio da RSES, como um espaço disseminador de valores para a erradicação de problemas globais, e defende a ampliação do acesso com qualidade e com condições para que as pessoas possam concluir os estudos, opondo-se às chamadas “fábricas de diplomas”, bem como, de forma contundente, às IES que não possuem, em seus objetivos, interesses públicos, ou seja, às IES voltadas somente à procura do lucro em detrimento da qualidade. Desta forma, o discurso da responsabilidade do Estado pela Educação Superior fica relegado a segundo plano, ganhando centralidade, na agenda internacional, o combate às fábricas de diplomas. Adotando-se uma visão friedmaniana, pode-se afirmar que combater as fábricas de diplomas permite retomar as discussões em torno do papel do Estado no capitalismo competitivo, que se limitaria a regular, fiscalizar e avaliar a partir da definição dos padrões mínimos de qualidade das escolas, cabendolhe inspecionar o cumprimento das regras do jogo, “da mesma forma que inspeciona presentemente os restaurantes para garantir a obediência a padrões sanitários mínimos” (Friedman, 1984, p.86) Adotando-se uma visão gramsciana, pode-se afirmar que a ideologia neoliberal atua não somente no campo da coerção, por meio das agências multilaterais, mas também, e sobretudo, no campo ideológico, por meio da construção de consensos, fato este que se reflete nas mudanças ocorridas no discurso da Unesco. Este consenso nasce, segundo Gramsci (2004, p.21), do “prestígio obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção”. Assim, por meio do consenso, cria-se a base de sustentação da nova sociedade neoliberal, que aceita e assimila as potencialidades do não-intervencionismo estatal para o florescimento dos mercados e a felicidade de todos os cidadãos (Banco Mundial, 1997). Nesse sentido, o debate travado no âmbito global entre duas visões, isto é, a educação como serviço comercial versus a educação enquanto direito social, que tem como palco a Organização Mundial do Comércio (Borges, 2009), deixará de existir quando se construir um consenso no campo ideológico, no âmbito da sociedade civil, em relação às virtudes do liberalismo econômico para a Educação Superior. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1185-98, out./dez. 2011
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Contudo, neste confronto de discursos entre essas duas visões, seria ingênuo pensar que o resultado final seria um jogo de “soma zero”, isto é, o trunfo do neoliberalismo e a plena mercantilização da Educação Superior a partir da consagração de um Estado mínimo. Adotando-se uma abordagem dialética (Demo, 1995), pode-se afirmar que a “tese”, isto é, a intervenção estatal na garantia da Educação Superior como direito social, ao ser negada pela sua antítese, ou seja, o discurso neoliberal, que prega a não-intervenção estatal, geraria, como síntese, a negação da negação, que acenaria para a prevalência do novo, que, neste caso, seria o modelo de universidade recomendada pela Unesco: as instituições públicas não estatais, baseadas nas parcerias público-privadas. Instituições universitárias que preservam seu caráter público, mas gerenciadas pela iniciativa privada. Instituições sem fins lucrativos, preocupadas com a qualidade e responsabilidade da Educação Superior.
Colaboradores Adolfo Ignacio Calderón orientou a investigação, coletou dados e redigiu a versão final do artigo. Rodrigo Fornalski Pedro e Maria Caroline Vargas coletaram dados, participaram das discussões e da redação da primeira versão do artigo. Referências ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILI, P. (Orgs.). Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.9-23. ASHLEY, P.; FERREIRA, R.; REIS, H. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior: oportunidades para a responsabilidade social na gestão estratégica de instituições de ensino superior. Rev. Gerenc., v.5, n.1, p.23-35, 2006. BALDISSERA, M.; NORO, G. Responsabilidade social universitária: uma ferramenta para a consolidação da imagem organizacional. In: SIMPÓSIO DE EXCELÊNCIA EM GESTÃO E TECNOLOGIA, 4., 2007, Santa Maria. Anais... Santa Maria, 2007. p.1-15. BANCO MUNDIAL. Educación superior en los países en desarrollo: peligros y promesas. Washington: Banco Mundial, 2000. ______. O Estado num mundo em transformação. Washington: Banco Mundial, 1997. ______. La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia. Washington: Banco Mundial, 1994. Disponível em: <http://firgoa.usc.es/drupal/files/0101344Sp.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2011. BOITO JÚNIOR, A. Políticas neoliberais e sindicalismos no Brasil. São Paulo: Xamã, 1999. BOLAN, V.; MOTTA, M. Responsabilidade social no ensino superior. Responsab. Soc., v.3, n.3, p.11-20, 2008. BORGES, M.C. A Unesco e o direito à educação superior. In: CONGRESSO IBEROAMERICANO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO, 2., 2011, São Paulo. Anais... São Paulo, 2011. p.1-15. ______. A educação superior numa perspectiva comercial: a visão da Organização Mundial do Comércio. Rev. Bras. Pol. Adm. Educ., v.25, n.1, p.83-91, 2009. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n.72, 15 abr. 2004. Seção 1, p.3-4.
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artigos
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Palabras clave: Unesco. Educación Superior. Gestión Universitaria. Responsabilidad Social. Evaluación. Recebido em 08/05/11. Aprovado em 24/08/11.
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artigos
Educação a Distância (EaD) em Física Médica
Wellington Furtado Pimenta Neves-Junior1 Cecília Maria Kalil Haddad2 Fernando Sequeira Sousa3 Ivan Torres Pisa4
NEVES-JUNIOR, W.F.P. et al. Distance education within medical physics. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1199-1206, out./dez. 2011.
Pre-service and in-service education relating to medical physics have peculiar characteristics since this is an interdisciplinary field with constant technological evolution. In countries like Brazil, several barriers exist, such as small numbers of professionals who are geographically poorly distributed, low financial resources and few options for information access, thereby hindering and delaying the incorporation and dissemination of new techniques that could have an impact on healthcare quality. This literature review evaluated the role of distance education within medical physics, and portrayed its applicability through identifying relevant experiences. Studies have shown that distance education within this field presents interesting characteristics, such as high pedagogical effectiveness and economic efficiency, which enables massive use of multimedia resources with wide geographical coverage, in a manageable way. Therefore, distance education has potential to overcome the barriers and meet the needs.
Keywords: Higher education. Pre-service education. Education continuing. Distance education. Medical Physics.
A formação inicial e continuada de profissionais de física médica possui características peculiares por ser uma área interdisciplinar, de evolução tecnológica constante. Em países como o Brasil, existem barreiras como: pequeno número de profissionais, geograficamente mal distribuídos, baixos recursos financeiros, e poucas opções em termos de acesso à informação, dificultando a incorporação e disseminação de novas técnicas que impactam na qualidade do atendimento em saúde. Esta revisão da literatura se propôs a avaliar o papel da EaD na educação de físicos médicos, retratando sua aplicabilidade mediante a identificação de experiências relevantes. Os trabalhos mostram que a EaD tem características interessantes para a área, tais como alta efetividade pedagógica e eficiência econômica, possibilitando o uso massivo de recursos multimídia, com grande abrangência geográfica e de forma gerenciável. Portanto tem potencial para superar as barreiras e suprir carências da área.
Palavras-chave: Educação Superior. Formação inicial. Educação continuada. Educação a Distância. Física Médica.
1,2 Departamento de Radioterapia, Centro de Oncologia, Hospital Sírio-Libanês. Rua Dona Adma Jafet, 91, Bela Vista. São Paulo, SP, Brasil. 01.308-050. wfjunior@hsl.org.br 3 Pós-Graduação em Informática em Saúde, Universidade Federal de São Paulo. 4 Departamento de Informática em Saúde, Universidade Federal de São Paulo.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) EM FÍSICA MÉDICA
Introdução A física médica é um ramo da física altamente especializado, interdisciplinar e que lida com tecnologias e métodos em constante evolução. Essas características fazem com que a educação tanto em nível de formação quanto de atualização profissional tenha características peculiares, sobretudo por envolver diferentes áreas do conhecimento (ciências exatas, biológicas e da saúde), e, também, necessariamente ter de acompanhar os rápidos avanços da tecnologia médica. As principais áreas de atuação da física médica são: radiologia diagnóstica e intervencionista, medicina nuclear e radioterapia (ABFM, 2011). Um dos principais desafios do ensino em física médica é a própria criação de recursos e materiais educacionais devido à alta especificidade, grande volume e necessidade de reformulação periódica (Tabakov, 2005). Tal contexto representa uma grande dificuldade para a capacitação de novos profissionais, e, especialmente, para atualização dos que já estão no mercado de trabalho. Como reflexo, a falta de profissionais atualizados, muitas vezes, impede a incorporação de técnicas mais modernas e complexas na prática clínica (Barton, Thode, 2010; Routsis et al., 2010). Essa realidade é ainda mais agravada em cenários de países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil é um exemplo. O país conta com relativamente poucos profissionais, que são geograficamente mal distribuídos num território de grandes dimensões (mais concentrados nas regiões Sul e Sudeste, e, em menor número, no Nordeste e, sobretudo, no Norte), onde os recursos financeiros também são mal distribuídos. As únicas opções disponíveis no Brasil para educação profissional continuada são: a participação em congressos, ou a realização de estágios de curta duração em centros considerados de referência – ambos naturalmente concentrados nas regiões em que existem mais profissionais trabalhando. Portanto, considerando as questões geográficas e econômicas e as opções disponíveis, verifica-se um panorama constituído de um conjunto de barreiras que não só dificultam, mas, até mesmo, impedem os profissionais de se manterem atualizados; especialmente aqueles de regiões mais carentes e distantes e os que trabalham em centros menores, com menos recursos e que, por vezes, nem têm possibilidade de se ausentar, por um período estendido, para uma atividade de estágio ou treinamento, por exemplo. Este trabalho tem por objetivo revisar o papel da Educação a Distância (EaD) aplicada à física médica frente às carências e dificuldades do ensino profissionalizante, sobretudo no âmbito da atualização profissional. São apresentados exemplos de casos publicados em literatura e, também, a experiência do Brasil, que mostram que a EaD é uma ferramenta a ser explorada para suprir as necessidades da área.
Materiais e métodos
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THOMSON REUTERS. ISI web of knowledge. Disponível em: <http:// apps.isiknowledge. com/>. Acesso em: 19 ago. 2011.
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Realizou-se uma revisão da literatura em busca de artigos descrevendo experiências de uso da EaD em Física Médica. Foram utilizadas as bases de dados Science Direct5 e ISI Web of Knowledge6, filtrando-se pelas seguintes áreas de interesse: física, oncologia, radiologia, medicina nuclear e imagens médicas, ciência e tecnologia – outros tópicos, ciências da vida e biomedicina – outros tópicos, e SciELO7. Os termos utilizados nas buscas foram: “distance learning” OU “e-learning” E “medical physics”. Não foi feita nenhuma restrição quanto à data da publicação. 1200
ELSEVIER, B.V. Science Direct. Disponível em: <http://www. sciencedirect.com>. Acesso em: 19 ago. 2011.
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SciELO - Scientific Electronic Library Online. Disponível em: <http://www.scielo. br/>. Acesso em: 19 ago. 2011.
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artigos
Os resultados obtidos por meio das buscas foram ordenados por relevância, e foram selecionados artigos que detalhavam experiências práticas de EaD nas áreas principais de física médica. Foram incluídos, também, artigos que discutem ensino em física médica, focando em metodologias à distância. Foram utilizados os seguintes critérios de exclusão: artigos não relacionados com física médica; artigos que apenas citavam EaD como opção, mas não traziam um projeto real de curso baseado em EaD; artigos que tratavam de cursos de EaD voltados especificamente para temas não diretamente relacionados com a física médica. Dos artigos identificados, foram selecionados trabalhos que apresentavam projetos de relevância continental para serem apresentados em maior detalhe.
Resultados A busca na base Science Direct resultou em 55 artigos e, após se aplicarem os critérios de seleção, 16 foram considerados relevantes. O resultado da busca na base Web of Knowledge resultou em 80 artigos, dos quais dez foram considerados relevantes (seis deles coincidiram com resultados da base Science Direct). Nenhum artigo foi encontrado a partir da busca na base SciElo. No total, foram identificados vinte artigos tratando especificamente de discussões e experiências quanto ao uso de EaD para a educação e treinamento de físicos médicos. Na busca por uma experiência brasileira, somente foi encontrado um trabalho apresentado em congresso sob forma de pôster. Destes, serão apresentadas três experiências de maior impacto e a experiência brasileira (Inca, 2010) ainda não publicada em formato de artigo. Dentre eles, destaca-se o projeto desenvolvido por um consórcio entre diversas universidades e hospitais da Europa, focado no desenvolvimento de ensino de radiologia médica, denominado EMERALD (http://www.emerald2.net) (Tabakov et al., 2005). Trata-se de um projeto privado, composto originalmente por três módulos, compreendendo os seguintes temas: Física da Radiologia Diagnóstica por Raios-X, Física da Medicina Nuclear e Física da Radioterapia. O sistema desenvolvido foi também reutilizado para a construção de mais dois módulos: Ultrassom Diagnóstico e Ressonância Magnética Nuclear. O conceito de treinamento do EMERALD baseia-se no desenvolvimento de habilidades e competências por meio da execução prática de tarefas específicas. Cada módulo contém uma série de capítulos, organizados em um calendário estruturado, onde a duração de cada elemento foi cuidadosamente selecionada, e, também, uma sequência de, aproximadamente, cinquenta tarefas que, em conjunto, gradualmente irão construir a competência necessária. Cada tarefa é apresentada com um tempo mínimo para ser completada, levando, em média, de um a dois dias de trabalho, embora algumas possam ser estendidas por períodos maiores em função de disponibilidade limitada de equipamentos. Todas as atividades precisam ser supervisionadas por um profissional da área, que também deve acompanhar todo o processo de aprendizado. No total, são necessários oitenta dias (quatro meses) para se completar cada módulo. O material didático de cada módulo de treinamento é composto por um livro do estudante (com teoria e tarefas práticas) e um cd-rom contendo uma biblioteca de imagens. Tal material também está disponível numa plataforma WEB composta por textos em PDF contendo links para a biblioteca de imagens aberta separadamente. Para exemplificar o método de ensino, em um dos capítulos do módulo Física da Radiologia Diagnóstica por Raios-X, intitulado “Tubo de Raios-X: Radiação de Fuga e Filtros”, o aluno deve: executar experimento para determinar qual é o ponto de maior fuga de radiação pela blindagem de um tubo de raios-X; medir a exposição neste ponto e determinar a taxa de dose e, também, executar experimento para avaliar a filtração total de saída do tubo de raios-X, determinando a camada semirredutora em alumínio. Outro projeto interessante a ser destacado é o denominado Curso de Ciências Aplicadas da Oncologia (ASOC) (Barton; Thode, 2010), que é patrocinado por um grupo de 17 países integrantes do Acordo Cooperativo Regional da Ásia e Pacífico para Pesquisa, Desenvolvimento e Treinamento em Ciências Nucleares e Tecnologia, com o apoio da Agência Nacional de Energia Atômica (IAEA). Este projeto é voltado para o treinamento não só de físicos médicos em radioterapia, mas, também, para médicos radioterapeutas, técnicos de radioterapia (que executam tratamentos e operam as máquinas) e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1199-1206, out./dez. 2011
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demais profissionais envolvidos na área (enfermagem, psicólogos etc.). O objetivo do ASOC é prover aprendizado à distância via CD-ROM para complementar o ensino local, sobretudo em países de baixa e média renda, onde, apesar de haver possibilidade de treinamento clínico, o acesso é muito limitado ao ensino especializado em tópicos fundamentais de Radioterapia, como Radiobiologia e Física das Radiações. Nesses países, é necessário que os profissionais façam parte do treinamento fora do país e, com o ASOC, espera-se diminuir esta necessidade. O material do curso está disponibilizado gratuitamente na internet, podendo ser feito o download pelo site: http://www.iaea.org/Publications/ Training/Aso/register.html. No total, são oitenta módulos, cada um equivalente a uma hora de ensino, agrupados em oito tópicos: Comunicação, Avaliação Crítica, Anatomia Funcional (oncologicamente relevante), Biologia Molecular, Patologia e Patogênese, Cuidados com o Paciente (Ciência Paliativa), Física e Tecnologia das Radiações, Radiobiologia, Terapia Sistêmica para Câncer (Quimioterapia, Terapia Endócrina e Imunomoduladores). De acordo com Routsis et al. (2010), o crescente número de evidências apontando para os benefícios clínicos do uso de Radioterapia de Intensidade Modulada (IMRT, uma modalidade de radioterapia de alta complexidade) fez com que a técnica passasse a ser altamente recomendada como opção de tratamento para os pacientes da Inglaterra. No entanto, a implantação clínica da nova tecnologia foi muito lenta (problema que, atualmente, também pode ser verificado no Brasil). Uma das razões identificadas para este fato foi a necessidade de se aumentar a confiança dos profissionais que compõem o corpo clínico de oncologia, melhorando a compreensão e habilidades técnicas que são requisitos para IMRT – na prática, o que se verifica é que o maior desafio à implantação deste tipo de tecnologia é o da equipe de físicos médicos, em virtude de novos conceitos, ferramentas, sistemas e mecanismos de controle de qualidade indispensáveis para IMRT. Dentre as várias soluções apontadas pelos autores, as técnicas de EaD foram destacadas como ferramenta principal pela facilidade em termos de acessibilidade e pela possibilidade de atualização rápida do material. Foram desenvolvidos um conjunto de três projetos, incluindo um ambiente virtual tridimensional, que simula uma sala de radioterapia, que permitiu aos estudantes desenvolverem aptidões práticas e físicas sem consumir tempo de recursos clínicos. No Brasil, a EaD vem sendo usada com sucesso na área da saúde (Leite et al., 2010; Paulon, Carneiro, 2009; Bernardo et al., 2004), em especial na radiologia (Pires et al., 2008; Ferreira Junior et al., 2007; Ângelo, Schiabel, 2002), e, inclusive, no desenvolvimento de ferramentas voltadas para o público leigo (Falcão et al., 2009). Apesar de não ter sido possível identificar nenhum artigo científico relatando a experiência brasileira com EaD em Física Médica, no Brasil, a EaD está sendo utilizada na formação e reciclagem de físicos médicos em radioterapia, por intermédio de uma iniciativa pioneira, na América Latina, do Programa de Qualidade em Radioterapia (PQRT) do Instituto Nacional do Câncer (INCa) (http://www.inca.gov.br/pqrt). Atualmente, são oferecidos dois cursos totalmente gratuitos: “O elétron na radioterapia” e “Braquiterapia de alta taxa de dose para físicos”, tanto em português quanto em espanhol. A metodologia dos cursos é totalmente à distância, e os alunos recebem um kit composto por um livro e um cd-rom; além disso, há um Ambiente Virtual de Aprendizagem (Moodle), com uma biblioteca digital e recursos para interação entre alunos e tutores dos cursos (profissionais de reconhecida competência na área). A proposta pedagógica do curso, segundo Souza, Alves e Araújo (2010), “fundamenta-se nos princípios básicos do construtivismo, que reconhece o indivíduo como agente ativo de seu próprio conhecimento, construindo significados e definindo sentidos e representações da realidade de acordo com suas experiências e vivências”. Portanto, ambos os cursos trabalham tanto bases teóricas quanto, sobretudo, propostas de atividades práticas e tarefas a serem desenvolvidas pelos alunos em seus respectivos serviços, que devem, inclusive, submeter seus resultados experimentais e relatórios para avaliação dos tutores. O curso “O elétron na radioterapia” tem carga horária de quarenta horas, com duração de sessenta dias, e é subdividido em três módulos de aprendizagem: “Utilização de feixes de elétrons em aceleradores clínicos (histórico, processo de produção e aplicações)”; “Os equipamentos de dosimetria e os métodos de calibração”, e “Controle de Qualidade”. Segundo dados fornecidos pelo coordenador do projeto, Roberto Solomon de Souza, através de comunicação pessoal, desde 2005, o curso vem sendo oferecido até duas vezes ao ano, totalizando, até agora, nove turmas com 158 alunos inscritos. A 1202
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artigos
oferta da versão em espanhol do curso se iniciou em 2009 e, até então, foram três turmas, com um total de 41 alunos de dez países diferentes (América Latina e Europa). Resultados observados pelo PQRT, através de avaliações em aceleradores lineares de elétrons no Brasil, apontam que, antes de o curso ser oferecido, cerca de 35% dos equipamentos estavam com seus fatores de calibração fora da tolerância especificada pelo protocolo TRS 398 (IAEA, 2000), enquanto em levantamentos atuais, foram verificados que 25% dos equipamentos ainda se encontram nesta situação. Apesar de o número de equipamentos não conformes ainda ser alto, houve uma melhora significativa durante o período em que o curso foi oferecido. O curso “Braquiterapia de alta taxa de dose para físicos” tem carga horária de vinte horas e duração de trinta dias, e é subdividido em quatro unidades: “A radioatividade e a braquiterapia: abordagem histórica”, “Aspectos clínicos da braquiterapia”, “A calibração e seus equipamentos” e “O controle de qualidade e prevenção de acidentes”. Também, de acordo com dados fornecidos por Souza, o curso, iniciado em 2009, formou quatro turmas, com um total de 77 alunos. A edição em espanhol do curso foi iniciada recentemente, em 2010, sendo que a primeira turma teve nove inscritos de quatro países diferentes.
Discussão Em vista do cenário da educação profissional em Física Médica, métodos e ferramentas de EaD têm sido aplicados e apresentam um grande potencial para superar as barreiras apresentadas (Barton, Thode, 2010; Routsis et al., 2010; Tabakov, 2005; Woo, Ng, 2003). Segundo Tabakov (2005), o uso das vantagens da EaD é quase “imperativo” para a educação e treinamento profissional em Física Médica, e as três principais razões são: a) Efetividade pedagógica (melhor aprendizado); b) Eficiência econômica; c) Aprendizado gerenciável. De acordo com Sprawls (2005), a efetividade do aprendizado pode ser definida como o resultado de uma atividade educacional em termos da habilidade demonstrada por um aluno em realizar tarefas específicas resolutivas de problemas de sua profissão ou ocupação. Nestes termos, o enriquecimento no aprendizado promovido pela EaD, especialmente quando aplicada ao ensino de ciência e tecnologia, está diretamente relacionado com a possibilidade de melhorar a qualidade dos materiais didáticos a serem disponibilizados ao aluno (Tabakov, 2005). A EaD possibilita a combinação de diferentes tipos de mídia, que vão além do tradicional discurso verbal, simbologia matemática e representações em quadronegro, tais como: a utilização de imagens, vídeos, animações, esquemas interativos que simulam experimentos e dispositivos que facilitam, em muito, a compreensão de fenômenos, aproximando-se muito mais da realidade e tornando a experiência de aprendizado muito mais efetiva. No caso do ensino em Física Médica, o benefício não está somente na possibilidade da inclusão de um grande volume de imagens, mas, especialmente, no uso de simulações para explicar e ilustrar as bases científicas e o funcionamento complexo de vários tipos de tecnologias e equipamentos utilizados na área médica, tais como: tomógrafos de ressonância magnética, tomografia por emissão de pósitrons (PET), radioterapia com modulação da intensidade do feixe, ultrassonografia etc. A EaD oferece alta eficiência econômica, uma vez que torna possível que cada professor tenha mais alunos, com uma grande abrangência geográfica que independe da distância, já que tanto professores quanto alunos não precisam se deslocar para participar das atividades, sejam elas baseadas em interações não sincronizadas (através de troca de mensagens ou fóruns) ou em tempo real (Woo, Ng, 2003). Outro fator economicamente importante é o fato de os materiais desenvolvidos para EaD serem de fácil atualização, o que é fundamental num contexto tão dinâmico quanto a Física Médica. Aliado a isto, o uso da internet como meio de entrega de conteúdo de forma quase instantânea faz com que a EaD seja uma estratégia praticamente incomparável em termos de dinamismo (Tabakov, 2005; Woo, Ng, 2003). Com relação ao gerenciamento do aprendizado, a incorporação de questionários interativos ao longo de módulos permite avaliar a compreensão do assunto por parte do aluno e, inclusive, liberar acesso a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1199-1206, out./dez. 2011
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novos conteúdos de forma gradual, à medida que notas mínimas são alcançadas. Um modelo de aplicação deste método, no gerenciamento de ensino em engenharia biomédica, foi descrito por Hutten, Stiegmarei e Rauchegher (2005). No caso de cursos de atualização profissional em Física Médica, os alunos devem ter à disposição equipamentos necessários para a rotina de trabalho e que podem ser utilizados em exercícios e experimentos práticos, cujos resultados podem ser enviados como forma de método de avaliação. As características da EaD viabilizam a disseminação efetiva do conhecimento, para, inclusive, áreas geograficamente distantes e remotas, de forma economicamente eficiente e gerenciável. Sendo assim, trata-se de uma ferramenta de impacto social, que está sendo utilizada na capacitação de profissionais de física médica com o intuito de melhorar a qualidade do atendimento em saúde – um dos exemplos é o curso ASOC, promovido pela IAEA (Barton, Thode, 2010). O Brasil, apesar de ainda carecer muito de investimentos para modernização da tecnologia em saúde, nos últimos anos, tem avançado neste processo graças à boa situação econômica e por recentes reajustes de valores da tabela do SUS, especialmente para procedimentos de radioterapia (Brasil, 2010). Apesar de não haver dados oficiais, este contexto tem levado instituições a investirem em novos equipamentos e tecnologias, como, por exemplo, a Radioterapia de Intensidade Modulada (IMRT). Sendo assim, pode ser prevista uma demanda crescente por profissionais qualificados, que deve ser suprida, sobretudo, através da atualização daqueles que já estão no mercado de trabalho. Frente a este panorama, conforme foi discutido, a EaD pode ser aplicada no Brasil, onde existem instituições e universidades com experiência em preparar cursos nos moldes de EaD. Porém, por se tratarem de assuntos específicos relacionados com tecnologias ainda pouco disseminadas, há necessidade de serem realizadas parcerias com centros de referência, que já tenham experiência com tais tecnologias. Portanto, com base em experiências e ideias relatadas em literatura, qualquer curso de EaD para Físicos Médicos no Brasil deve, idealmente, agregar pessoas com experiência em preparar cursos de EaD, Físicos Médicos especialistas e com experiência no tema; e, ainda, com incentivos e promoção de associações de classe (i.e.: ABFM, Colégio Brasileiro de Radiologia, Sociedade Brasileira de Radioterapia etc.) e, sobretudo, subsídio de órgãos governamentais nacionais e internacionais (como a IAEA).
Conclusão As experiências abordadas nesse artigo mostram que o modelo de ensino a distância foi aplicado em diferentes contextos e realidades. Especificamente no Brasil, a experiência do PQRT mostra que este tipo de modelo de ensino é válido e aplicável às realidades do Brasil e da América Latina, e, inclusive, revela uma demanda importante a ser suprida. É fundamental que outras iniciativas deste tipo sejam criadas para atender, especialmente, à preparação de profissionais de física médica para tecnologias emergentes no Brasil, tais como: radiocirurgia, IMRT, tomografia por emissão de pósitrons (PET), tomógrafos de raios-X de última geração, entre outras. A EaD é uma ferramenta que tem muito a oferecer para a educação em física médica, proporcionando vantagens únicas e, inclusive, desempenhando uma importante função social, contribuindo para a disseminação de informação e melhoria na qualidade do atendimento na área da saúde.
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Agradecimentos A Roberto Solomon de Souza, por, gentilmente, ter cedido dados atualizados sobre os cursos à distância promovidos pelo PQRT. Colaboradores Wellington Furtado Pimenta Neves-Junior foi o responsável pela idealização do trabalho, pesquisa, redação e revisão do manuscrito; Cecília Maria Kalil Haddad e Fernando Sequeira Sousa responsabilizaram-se pela revisão crítica e correção do manuscrito. Ivan Torres Pisa trabalhou na orientação, redação e revisão crítica final do manuscrito. Referências ÂNGELO, M. F.; SCHIABEL, H. Uma ferramenta para treinamento na avaliação de imagens mamográficas via Internet. Radiol. Bras., v.35, n.5, p.259-65, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FÍSICA MÉDICA - ABFM. Disponível em: <http://www.abfm.org.br/nabfm/n_home_fm.asp>. Acesso em: 19 ago. 2011. BARTON, M. B.; THODE, R. J. Distance learning in the applied sciences of oncology. Radiother. Oncol., v.95, n.1, p.129-32, 2010. BERNARDO, V. et al. Web-based learning in undergraduate medical education: development and assessment of an online course on experimental surgery. Int. J. Med. Inf., v.73, n.9-10, p.731-42, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde - SAS. Portaria n°420, de 25 de agosto de 2010. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 ago. 2010. Seção 1, p.81. FALCÃO, A.E.J. et al. InDeCS: método automatizado de classificação de páginas web de saúde usando mineração de texto e Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). J. Health Inf., v.1, n.1, p.18-24, 2009. HUTTEN, H.; STIEGMAIER, W.; RAUCHEGGER, G. KISS: a new approach to self-controlled e-learning of selected chapters in Medical Engineering and other fields at bachelor and master course level. Med. Eng. Phys., v.27, n.7, p.611-6, 2005. INCA - Programa de Qualidade em Radioterapia - PQRT. Disponível em: <http://www.inca.gov.br/pqrt/>. Acesso em: 19 ago. 2011. INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY (IAEA). TRS 398: absorbed dose determination in external beam radiotherapy: an international code of practice for dosimetry based on standards of absorbed dose to water. Vienna: International Atomic Energy Agency, 2000. Disponível em: <http://www-naweb.iaea.org/nahu/dmrp/ pdf_files/CoPV11b.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2011. FERREIRA JUNIOR, C.J. et al. Construção e avaliação de um programa educacional multimídia para o estudo da análise cefalométrica na Odontologia. Rev. Inst. Cien. Saude, v.25, n.2, p.179-85, 2007. LEITE, M. T. M. et al. Educação médica continuada online: potencial e desafios no cenário brasileiro Online continuing medical education: potential and challenges in the Brazilian context. Rev. Bras. Educ. Med., v.34, n.1, p.141-9, 2010. PAULON, S.M.; CARNEIRO, M.L.F. A educação a distância como dispositivo de fomento às redes de cuidado em saúde. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, p.747-57, 2009. PIRES, S.R.; MEDEIROS, R.B.; ELIAS, S. QualIM®: software para treinamento na interpretação de imagens médicas digitais. Radiol. Bras., v.41, n.6, p.391-5, 2008.
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EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) EM FÍSICA MÉDICA
ROUTSIS, D. et al. Education and training for Intensity-modulated radiotherapy in the UK. Clin. Oncol., v.22, n.8, p.675-80, 2010. SOUZA, R.S.; ALVES, V.G.L.; ARAÚJO, A.M.C. A contribuição dos cursos a distância do programa de qualidade em radioterapia na atualização dos físicos médicos do Brasil e da América Latina. In: CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE FÍSICA MÉDICA, 5., 2010, Cusco. Anais… Cusco, 2010. 1 cd-rom. SPRAWLS, P. Re-engineering the process of medical imaging physics and technology education and training. Med. Eng. Phys., v.27, n.7, p.625-32, 2005. TABAKOV, S. et al. Development of educational image databases and e-books for medical physics training. Med. Eng. Phys., v.27, n.7, p.591-8, 2005. TABAKOV, S. e-Learning in medical engineering and physics. Med. Eng. Phys., v.27, n.7, p.543-7, 2005. WOO, M.K.; NG, K.H. A model for online interactive remote education for medical physics using the internet. J. Med. Int. Res., v.5, n.1, p.e3, 2003.
NEVES-JUNIOR, W.F.P. et al. Educación a Distancia (EaD) en Física Médica. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.39, p.1199-1206, out./dez. 2011. La formación y la educación continua de profesionales en física médica tiene características únicas, es un campo interdisciplinario, donde la tecnología está en evolución constante. Países como Brasil, tienen barreras como: número reducido de profesionales, geográficamente distribuidos de forma desigual, escasos recursos financieros y pocas opciones en términos de acceso a información, dificultando la incorporación y difusión de nuevas técnicas que afectan la calidad de atención en salud. Esta revisión de literatura evalúa el papel de EaD en la educación de físicos médicos, retratando su aplicabilidad mediante identificación de experiencias relevantes. Artículos muestran que EaD tiene características interesantes para la física médica, como alta eficacia pedagógica y eficiencia económica, permitiendo uso masivo de recursos mediáticos, con amplia cobertura geográfica y de forma manejable. Por lo tanto, la herramienta tiene potencial para superar los obstáculos y satisfacer las necesidades del área.
Palabras clave: Educación superior. Educación continua. Educación a distancia. Física Médica.
Recebido em 23/03/11. Aprovado em 11/08/11.
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Role-playing: estratégia inovadora na capacitação docente para o processo tutorial
Ieda Francischetti1 Ana Carolina Lemos Corrêa2 Camila Mugnai Vieira3 Carlos Alberto Lazarini4 Lilian Maria Giubbina Rolin5 Márcia Oliveira Mayo Soares6
Introdução A partir de 1997, o curso de medicina da Faculdade de Medicina de Marília (Famema) passou a utilizar a Aprendizagem Baseada em Problemas - ABP (Barrows, Tamblyn, 1980). Neste método, o estudante deve: desenvolver a capacidade de construir ativamente sua aprendizagem; articular seus conhecimentos prévios com os problemas selecionados para estudo; raciocinar criticamente e desenvolver habilidades de comunicação para solução de problemas; além de compreender o valor da construção do conhecimento. As atividades acontecem em pequenos grupos de estudantes, sendo cada grupo acompanhado por um docente, denominado tutor, que é o mediador dos passos do processo tutorial. A tutoria ocorre em dois momentos: abertura e fechamento do problema. No primeiro, o tutor apresenta o problema e incentiva o grupo a discuti-lo e a levantar hipóteses para explicá-lo. São construídas questões de aprendizagem que levam a buscas individuais por informações fundamentadas em literatura e fontes pertinentes. No segundo, os estudantes compartilham as pesquisas realizadas e elaboram uma síntese do grupo de modo a responder satisfatoriamente às questões levantadas (Cyrino, Toralles-Pereira, 2004; Berbel, 1998). Atualmente, os currículos dos cursos de medicina e enfermagem contam com duas unidades educacionais estruturantes. A Unidade de Prática Profissional (UPP) caracteriza-se pela inserção do estudante no mundo do trabalho em saúde e pela utilização da problematização (Díaz-Bordenave, Pereira, 1993). Já a Unidade Educacional Sistematizada (UES), parte da discussão de casos de papel, caracterizando-se, portanto, pela ABP. No processo de formação na área da saúde, é notável o bom desempenho de profissionais formados por meio de método ativo de aprendizagem (Gomes et al., 2009), que não apenas demonstram maior capacidade afetiva, de comunicação, como, também, organizacional e técnica. Contudo, a formação tradicional e biologicista do corpo docente traz grandes dificuldades ao bom desempenho da mediação dos professores junto a estes estudantes. Para fortalecer os processos de formação, se faz necessário grande envolvimento docente, transformando a atuação pedagógica e profissional, promovendo coerência entre teoria e prática.
1 Programa de Desenvolvimento Docente, Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Rua Doutor Augusto Barreto, 440, Bairro Maria Izabel, Marília, SP, Brasil. 17.516-033. iedaf@famema.br 2,6 Unidade de Educação, Famema. 3,5 Disciplina de Psicologia, Famema. 4 Disciplina de Farmacologia, Famema.
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Considerando as novas demandas educacionais, a Famema passou a investir fortemente em seu Programa de Desenvolvimento Docente (PDD) (Francischetti, 2008). Nos primeiros cinco anos, optou-se por programas de educação continuada (EC) (Ricas, 1994), representados por módulos compulsórios de capacitação. Na sequência, estes se tornaram opcionais e deu-se maior ênfase à implementação da estratégia de educação permanente (EP) (Motta et al., 2002), tanto para docentes tutores quanto facilitadores das atividades práticas. Tradicionalmente, a EC caracteriza-se como atividade de capacitação oferecida aos profissionais, atendendo às necessidades institucionais, com duração definida e utilizando a pedagogia da transmissão. Contudo, na Famema, a EC é desenvolvida por meio de métodos ativos de aprendizagem, em formato de oficinas e módulos temáticos de trabalho. Estes são organizados ao longo do ano, em resposta a demandas específicas dos docentes, das coordenações acadêmicas e dos serviços, sendo garantidos, no mapa anual de atividades docentes, com participação voluntária (Francischetti et al., 2010). Ao longo do tempo, acompanhando o processo de capacitação docente na instituição, o PDD observa - a partir da análise dos formatos de avaliação aplicados aos docentes pelo programa fragilidades nos seguintes aspectos: baixa motivação, atitude passiva dos participantes, e pouco interesse em capacitação para o processo tutorial. Com base nestes achados, foram organizadas oficinas de EC no formato de role-playing, buscando possibilitar, ao tutor, a vivência do papel discente na atividade tutorial e, assim, não só sensibilizá-lo, mas ampliar suas percepções sobre o processo pedagógico, suas fragilidades e fortalezas. O role-playing (jogo de papéis) é uma técnica didática em que os participantes são envolvidos numa situação-problema, assumindo papéis diferentes dos vividos em seu cotidiano, devendo tomar decisões e prever suas consequências (Nestel, Tierney, 2007). Segundo Ruiz-Moreno (2004), este exercício é uma metodologia de ensino democrática e participativa, que aborda conteúdos e aprendizagens compreendendo o aprender na ação. Reitera ainda que: a espontaneidade mobilizada neste jogo de papéis é preponderante para a aprendizagem, à medida que, na perspectiva Moreniana, por meio do desenvolvimento da espontaneidade, os sujeitos encontram mais facilidades para mobilizar o já aprendido e empregá-lo em novas situações. Esses movimentos coadunam-se com a perspectiva do sujeito, à proporção que resgatam valores, crenças, projetos, inserindo-os na complexa rede de condicionantes políticos, sócio-econômicos, culturais e educativos. O processo de ensino-aprendizado é enriquecido com experiências e saberes que se articulam, seja pela complementaridade, seja pela contraposição. (Ruiz-Moreno, 2004, p.91)
Como estratégia de educação continuada, o role-playing incentiva o participante a criar empatia com a posição e sentimento do outro, e olhar para além de seus pressupostos e expectativas imediatas, encorajando uma maior reflexão. Ao atuar em um determinado papel, o indivíduo é obrigado a usar e aplicar conceitos e argumentos adequados, tal como definido pela função (Sutcliffe, 2002). Segundo Soeiro (1976, p.113): Trata-se de criar situações para o desenvolvimento de determinado papel. Esta técnica é bastante útil porque permite colocar o indivíduo frente a reações muito semelhantes àquelas reais [...]. Faz com que o indivíduo, uma vez desenvolvido o papel vivenciado numa situação mais protegida, onde serão apontados pelo grupo as suas falhas e os acertos no seu desempenho, terá oportunidade de desenvolver esse papel mais rapidamente do que na situação real.
Desta forma, buscou-se analisar o uso do role-playing enquanto instrumento pedagógico na capacitação docente. Na atividade de role-playing proposta nas oficinas, reproduziram-se sessões de tutoria cuja situaçãoproblema se remeteu à estrutura da ABP (Moust, Van Berkel, Schmidt, 2005). As oficinas foram desenvolvidas em dois dias, com duração de quatro horas diárias. Propôs-se, aos participantes, que 1208
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realizassem uma sessão de tutoria entre si, seguindo os passos previstos no processo tutorial. No segundo momento, discutiu-se, em grupo, a vivência dos diferentes papéis, com a participação de docentes facilitadores do PDD. Ao se permitir esta dinâmica oriunda do role-playing, vários tutores desempenharam o papel de estudante, enquanto alguns outros, o papel de tutor. As expectativas em relação à atividade eram de que contribuísse tanto para a construção de conhecimentos por meio dos elementos das buscas realizadas quanto para a aprendizagem relacional oportunizada pelo role-playing. Ao término das atividades, os participantes responderam questões de um formato de avaliação para análise dos discursos destes com relação ao trabalho realizado. Este formato de avaliação foi construído em categorias considerando-se os componentes da oficina: estratégia utilizada, temáticas abordadas, desempenho dos facilitadores e relevância da atividade. As questões do formato são apresentadas no Quadro 1.
Quadro 1. Questões para avaliação das oficinas Questões para avaliação das oficinas: 1. Em relação às estratégias utilizadas nesta oficina, aponte e justifique: a) Fortalezas: b) Fragilidades: 2. Em relação à temática abordada, destaque: a) Aspectos que você considera úteis para o seu trabalho. b) Aspectos que não foram/ou foram insuficientemente discutidos, e que poderiam ser úteis para o seu trabalho. 3. Destaque fortalezas e fragilidades em relação ao(s) facilitador(es): a) Fortalezas: b) Fragilidades: 4. De acordo com sua opinião, há relevância em participar do Programa de Educação Continuada? Justifique. 5. Comentários e sugestões: Conceito final: satisfatório ( ) insatisfatório ( ) As questões de número 4 e 5 também tiveram respostas objetivas que permitiram a análise quantitativa de seus subitens.
Participaram das oficinas 32 tutores da primeira à quarta série dos cursos de medicina e enfermagem, sendo que, destes, 26 responderam ao formato de avaliação. As respostas discursivas foram analisadas segundo o modelo de Análise de Conteúdo, proposto por Bardin (2003), que consiste em: [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (Bardin, 2003, p.42)
As respostas foram codificadas e agrupadas em unidades temáticas. Ainda segundo a autora, a Análise temática: “[...] consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (Bardin, 2003, p.105). A partir do formato de avaliação aplicado, destacaram-se as seguintes categorias: A. Concepções acerca das fortalezas da estratégia utilizada; COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1207-18, out./dez. 2011
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B. Concepções acerca das fragilidades da estratégia utilizada; C. Potencial de mobilização da temática; D. Aspectos insuficientemente abordados; E. Fortalezas dos facilitadores da atividade; F. Limitações dos facilitadores da atividade; G. Relevância da EC. Essas categorias e as respectivas unidades temáticas são apresentadas no Quadro 2:
Quadro 2. Categorias e unidades temáticas Categorias
Unidades temáticas
A. Fortalezas da estratégia
Espaço de reflexão
Aproximação interpessoal
Organização da atividade
Vivência do método
B. Fragilidades da estratégia
Baixa adesão
Dificuldade de entendimento da proposta
Organização da atividade
Vivência do método
Capacitação docente
Reflexão sobre o processo tutorial
D. Aspectos insuficientemente abordados
Passos do processo tutorial
Desenvolvimento curricular
E. Fortalezas dos facilitadores
Capacitação para o trabalho em grupo
Atitude ativa
F. Limitações dos facilitadores
Não foram identificadas
Administração do tempo
G. Relevância da EC
Troca de conhecimento
Manutenção e ampliação da EC
C. Potencial da temática
Baixa responsabilização
Na categoria (A), “Concepções acerca das fortalezas da estratégia utilizada” , incluíram-se as seguintes unidades temáticas:
. Espaço de reflexão: “Participação de todos no grupo, com trocas de experiências, permitindo incentivos às buscas e resgates do conhecimento. Além disso, permitiu também, a reflexão sobre o processo tutorial e de aprendizagem”; “Gostei da estratégia da “tutoria” que fizemos, pois possibilitou revermos nosso fazer, sentirmos nossas dificuldades, bem como nossas fortalezas”.
O role-playing demonstrou ser uma ferramenta mobilizadora, que deflagrou vários movimentos reflexivos. A importância de garantir um espaço para a reflexão após o uso da estratégia de role-playing foi fundamental para maior aprofundamento e construção de conhecimentos. Segundo Schön (2000), em toda vivência observa-se a confrontação com o novo, e este impacto pode ser transformado em conhecimento à medida que favorece reflexão. Este processo pode avançar em diferentes dimensões: reflexão na ação, que ocorre durante o fazer; reflexão sobre a ação, que ocorre de forma retrospectiva, como análise da contribuição e do resultado, e a reflexão sobre a reflexão na ação, que leva o profissional a desenvolver-se e a construir seu próprio aprendizado. 1210
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. Aproximação interpessoal: “Possibilidade para discussão de problemas reais que envolvem o processo tutorial, experienciar suas etapas e poder sentir o que o estudante vivencia na estruturação do conhecimento”; “Resgatar o processo tutorial, há 15 anos adormecido. Foi muito bom saber dos outros colegas suas dificuldades e como está o “perfil” deste profissional no momento atual”.
. Organização da atividade: “Local, acolhimento e horário adequados”; “Inovação na abordagem da introdução à tutoria deste ano”.
. Vivência do método: “Oficina centrada na prática do processo tutorial”; “Achei muito boa a iniciativa de “simular” uma tutoria como aluno”; “A possibilidade de vivenciar o papel do outro”.
Considerando-se o modelo sociointeracionista, no qual a aproximação interpessoal tem a potencialidade de ampliar o espaço cognitivo individual e favorecer o desenvolvimento de aprendizagem, observou-se que o role-playing permitiu que cada participante reconhecesse, nos outros, signos que modificassem seu pensamento (Laranjeira, 2000). A estratégia de role-playing foi bem recebida e desenvolvida com adequada organização, o que permitiu destacar suas potencialidades tanto na vivência de papéis, no reconhecimento do outro e de si próprio, quanto no desenvolvimento do processo tutorial. Também reforça a importância do processo reflexivo, na construção das práticas pedagógicas (Guanaes, Mattos, 2008). Na categoria (B), “Concepções acerca das fragilidades da estratégia utilizada” , incluíram-se as seguintes unidades temáticas:
. Baixa adesão: “Pouca presença dos tutores nas oficinas”; “Seria, talvez, mais produtivo e interessante se todos estivessem presentes”.
. Dificuldade de entendimento da proposta: “Pequena extensão deste processo”; “Não tem proposta de continuação”.
. Organização da atividade: “Melhor esclarecimento, no início da oficina, do verdadeiro objetivo da oficina e dos componentes do grupo”; “Tempo insuficiente”.
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. Vivência do método: “Dificuldade do tutor em conduzir a tutoria”; “Novamente, não executar o processo completo, assim como é feito no processo de EP. Se permitirmos que os docentes pulem etapas na sua capacitação, estamos dizendo implicitamente que este docente pode também autorizar seus estudantes a pularem etapas”; “É difícil se colocar na posição de estudante, na posição do outro”.
O absenteísmo apareceu como uma fragilidade importante, apontando para a necessidade de se estreitar o compromisso docente-instituição. A dificuldade de entendimento dos referenciais de EC (Ceccim, 2005; Ricas, 1994), somada à morosidade para início da atividade, demonstraram resistência ao entendimento da tarefa, inclusive tendo contribuído para a limitação de tempo experienciada por alguns grupos. Importante considerar que o tempo disponibilizado para o role-playing foi semelhante àquele habitualmente utilizado no processo tutorial. Na temática “Vivência do método”, os aspectos levantados como fragilidades demonstraram a potencialidade da estratégia em reproduzir as limitações do contexto real e permitiram a confrontação com suas maiores dificuldades (Moust, Van Berkel, Schmidt, 2005), favorecendo a reflexão e proporcionando a construção de conhecimentos. É instigante a observação de que a unidade temática “Vivência do método” apareceu tanto como fortaleza quanto como fragilidade da estratégia utilizada. Isso pode corroborar para a conclusão de que a vivência de papéis durante a atividade propiciou o impacto necessário à reflexão, sendo que, para alguns, causou maior mobilização positiva enquanto, para outros, provocou desconforto. Mitre et al. (2008) relataram que, na maioria das vezes, a dimensão relacional faz o tutor sentir-se despreparado para protagonizar a facilitação de grupos, como, também, mediar a aprendizagem significativa, uma vez que isto implica dinamismos de interação pessoal (Costa, 2007). Além de desafiar o aluno a construir conhecimentos, o processo tutorial demanda mudança de postura didático-pedagógica, o que inclui o conhecimento e realização dos passos que promovem a ABP (Venturelli, 1997). Na categoria (C), “Potencial de mobilização da temática da oficina”, incluíram-se as seguintes unidades:
. Capacitação docente: “Os temas são amplamente utilizados na prática diária”; “Os vários aspectos que se encontram no dia a dia do processo tutorial, com os quais já nos confrontamos ou nos confrontaremos”; “Extremamente relevante e apropriado ao momento”;
. Reflexão do processo tutorial: “Discutir pontos de erosão do método e refletir sobre si mesmo”; “Revisitar uma sessão de tutoria foi útil, pois os tópicos que aparecem surgem como gatilhos para que revisássemos o que fazemos como tutor”; “Resgate do papel do tutor enquanto facilitador do processo de aprendizagem”.
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Observou-se grande relevância da temática, que, ao ter como objeto o processo tutorial e tratar de um artigo científico oriundo da realidade, favoreceu o aparecimento de sentidos, reflexões e desenvolvimento de aprendizagem significativa (Pelizzari et al., 2001/2002), sobretudo com o resgate do papel docente. Na categoria (D), “Aspectos insuficientemente abordados”, incluíram-se as seguintes unidades temáticas:
. Passos do processo tutorial: “Os aspectos inerentes à formulação de hipótese e a gestão do processo tutorial”; “Problema da tutoria não é bem elaborado e o assunto não desperta o interesse do estudante. Como ser facilitador?”.
. Desenvolvimento curricular: “Uma visão geral do currículo, não só do 4º ano, mas também dos anos anteriores, seria interessante”; “Como a instituição e os docentes podem minimizar o processo de erosão do método de ensino-aprendizagem e até do currículo como um todo?”.
Nesta categoria notou-se a tomada de consciência de fragilidades e da necessidade de novos conhecimentos que possam melhorar o processo pedagógico tutorial, e, ainda, de um trabalho concreto mais visível, compartilhado entre docentes e instituição, para o desenvolvimento curricular. Assim, o role-playing promoveu criticidade e contribuiu para o desejo de maior participação na gestão acadêmica, o que, de certa forma, pode ser considerado como um fator de empoderamento individual ao permitir autoconhecimento e autoconfiança por meio do desenvolvimento de consciência crítica e do entendimento das relações que permeavam as experiências. A problematização do papel ativo e o sentimento de pertença indicaram que também houve empoderamento grupal (Kleba, Wendausen, 2009). Na categoria (E), “Fortalezas dos facilitadores da atividade”, incluíram-se as seguintes unidades temáticas:
. Capacitação para o trabalho em grupo: “Ambos têm postura e interesse pelo que estão fazendo”; “Interesse em estar no processo. Interesse nas pessoas”; “Postura continente e integradora”; “Fizeram boas colocações e questionamentos”.
. Atitude ativa: “Foram excelentes. Pontuaram bem, entraram de uma maneira adequada, principalmente no meu caso que falo demais. Tiveram a delicadeza de me cortar sem me desconsertar”; “Toleraram as colocações e exposições de idéia de cada membro do grupo, bem como, articularam as idéias e propostas”;
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“Souberam ouvir e respeitar cada pessoa em seu posicionamento”.
Observou-se que a capacitação dos facilitadores foi bastante valorizada, especialmente com relação aos aspectos atitudinais, prevalecendo uma postura continente, de mediação (Pichon-Rivière, 1991) e problematizadora (Díaz- Bordenave, Pereira, 1993) a uma postura diretiva e de transmissão de conhecimento. Na categoria (F), “Limitações dos facilitadores da atividade”, incluíram-se as seguintes unidades temáticas:
. Não foram identificadas: “Não houve”.
. Administração do tempo: “O tempo para cada atividade deveria ter sido melhor controlado”.
. Baixa responsabilização: “Baixa responsabilização dos facilitadores no processo de coordenação do grupo”.
Nas falas apresentadas, pode-se problematizar o limite na interpretação entre o respeito à autonomia do tutor, enquanto ator na oficina, e a implicação ou corresponsabilização do facilitador enquanto mediador. Partindo-se desta reflexão, é possível fazer uma analogia entre a oficina e a tutoria, e considerar a solidão sentida pelo estudante quando este não sente a implicação do tutor no processo (Hoffman, 1994). Todos os participantes concordaram que há relevância em participar no Programa de Educação Continuada (pergunta 4), sendo que 100% do total de avaliações recebidas, 26 pessoas, responderam “sim” a esta questão. Entre as justificativas, foi construída a categoria (G), “Relevância da EC”, e as seguintes unidades temáticas:
. Possibilidade de troca de conhecimento: “Discussão de novas idéias para solução de dificuldades e problemas”; “Espaço de reflexão com possibilidade de elencar prováveis soluções”; “É o momento de troca de conhecimentos e que enriquece novas atividades”.
. Manutenção e ampliação da educação continuada: “Dar continuidade a esta atividade”; “Esta atividade deve ser realizada mais vezes”; “Usar esta estratégia modificada para os grupos semanais de EP”.
Os discursos nesta temática reafirmaram a importância da EC como espaço para aprendizagem compartilhada e reflexões. Contudo, as falas manifestaram uma aprendizagem por recepção, não ancorada em movimento ativo de teorização, tendo prevalecido o sentido circunstancial da construção do conhecimento, pouco compromissado com a transformação da prática.
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Notou-se acolhimento e entusiasmo com relação à estratégia utilizada, role-playing, o que nos sinaliza para uma maior exploração desta em oficinas de EC. Já a proposição de sua utilização nas atividades de EP, nos alerta para o não-entendimento das singularidades das atividades de capacitação docente. O conceito aplicado a esta atividade de EC foi: Satisfatório (96% das respostas). Um dos participantes não respondeu à questão.
Considerações finais A análise do formato institucional de avaliação destas oficinas de capacitação docente demonstrou que o uso do role-playing foi um importante instrumento facilitador do processo de aprendizagem, à medida que colocou o tutor numa posição inédita, diretamente como protagonista do fazer, favorecendo novos olhares e percepções. Assim, a ideia do role-playing como estratégia de capacitação, sobretudo na área da saúde, onde a autoimplicação do sujeito é fortemente desejada para um cuidado ampliado e de qualidade, tem potencial de sensibilizar os docentes para o processo tutorial e para a valorização desta nova demanda na formação.
Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2003. BARROWS, H.S.; TAMBLYN, R.M. Problem-based learning: an approach to medical education. New York: Springer, 1980. BERBEL, N.A.N. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.2, n.2, p.139-54, 1998. CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.161-77, 2005. COSTA, N.M.S.C. Docência no ensino médico: por que é tão difícil mudar? Rev. Bras. Educ. Med., v.31, n.1, p.21-30, 2007. CYRINO, E.G.; TORALLES-PEREIRA, M.L. Trabalhando com estratégias de ensinoaprendizado por descoberta na área de saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad. Saude Publica, v.20, n.3, p.780-8, 2004. DÍAZ-BORDENAVE, J.E.; PEREIRA, A.M. Estratégias de ensino-aprendizagem. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
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A análise dos formatos de avaliação do Programa de Desenvolvimento Docente (PDD) da faculdade de Medicina de Marilia, SP, mostra as seguintes fragilidades: baixa motivação, atitude passiva dos participantes e pouco interesse em capacitação para o processo tutorial. Considerando a necessidade de inovação das estratégias de capacitação docente, optou-se, nas oficinas, pelo uso da técnica de role-playing, a qual possibilita a troca de papéis e o aprender na ação. Analisou-se qualitativamente o discurso docente frente ao uso do role-playing nas oficinas desenvolvidas, segundo as narrativas dos formatos de avaliação aplicados. Os núcleos de sentido das respostas foram classificados em unidades temáticas. Os resultados demonstraram a relevância das atividades e que o role-playing foi um importante instrumento facilitador do processo de aprendizagem, à medida que colocou o tutor como protagonista, no papel de estudante, favorecendo novos olhares e percepções e sensibilizando-o para o processo tutorial.
Palavras-chave: Educação superior. Educação continuada. Aprendizagem baseada em problemas. Tutoria. Role playing. Role-playing: an innovative strategy for training teachers for the tutorial process Analysis on assessment formats of the Teaching Development Program (TDP) of Marília Medical School with regard to continuing education shows the following weaknesses: poor motivation, passive attitudes among participants and little interest in training for the tutorial process. Given the need for innovative strategies for teacher training, it was decided to use role-playing techniques in workshops. This enabled exchanges of roles and learning in action. The teacher’s discourse relating to the use of role-playing in the workshops developed was qualitatively analyzed according to the narratives of the assessment formats applied. The core meanings of the responses were classified into thematic units. The results demonstrated that these activities were relevant and that role-playing was an important facilitator of the learning process insofar as the tutor was placed as a protagonist for the students’ roles, thereby encouraging new perspectives and perceptions and sensitizing students towards the tutorial process.
Keywords: Higher education. Inservice teaching education. Problem-based learning. Preceptorship. Roleplaying. “Role-playing”: estrategia innovadora en la capacitación docente para el proceso de tutoría El análisis de los formatos de evaluación del Programa de Desarrollo Docente (PDD) da facultad de medicina de la ciudad de Marília, referente a la educación continuada muestra las fragilidades siguientes: baja motivación, actitud pasiva de los participantes y poco interés en la capacitación para el proceso de tutoría. Considerando la necesidad de innovación de las estrategias de capacitación docente, en las oficinas se opta por el uso de la técnica de “role playing” que hace posible el cambio de papeles y el aprendizaje en la acción. Se ha analiza cualitativamente el discurso docente ante el uso del “role playing” en las oficinas desarrolladas según las narrativas de los formatos de avaliación aplicados. Los núcleos de sentido las respuestas se han clasificado en unidades temáticas. Los resultados demuestran la importancia de estas actividades y que el “role playing” ha sido un importante instrumento facilitador del proceso de aprendizaje a medida en que colocan al tutor como protagonista, en el papel de estudiante, favoreciendo nuevas miradas y percepciones, sensibilizándole para el proceso de tutoría.
Palabras-clave: Educación superior. Educación continuada. Aprendizaje basado en problemas. Tutoría. “Role playing”. Recebido em 08/10/10. Aprovado em 26/04/11.
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notas breves
Conhecendo pessoas – uma ciência, uma arte: breve relato de uma experiência na graduação médica da EPM-Unifesp Knowing people – a science, an art: a brief description of the experience in the Undergraduate Medical from EPM-Unifesp Conocer personas – una ciencia, un arte: una breve descripción de la experiencia en el pregrado de medicina de la EPM-Unifesp
Um dos maiores desafios da formação numa Escola Médica é integrar o ensino da parte exata (aspectos físicos e objetivos) com o ensino dos aspectos subjetivos que envolvem o estudo da pessoa. Como fazer os alunos perceberem que ser um bom médico inclui ser sensível ao sofrimento do outro? Como ensiná-los a valorizar a qualidade da comunicação e dos vínculos com o paciente? E como fazê-los perceber que estas qualidades não são acessórias, mas fundamentais para o desempenho e eficácia da tarefa médica? Finalmente, como ajudá-los a desenvolver atitudes e habilidades necessárias para a formação deste profissional? No primeiro ano da graduação em Medicina da Universidade Federal de São Paulo, como introdução a um programa que se estende por todo o curso, a disciplina de Psicologia Médica utiliza as contribuições das ciências e das artes para ampliar o conhecimento do aluno em relação às pessoas e aos dilemas humanos. Materiais pedagógicos, textos científicos, contos literários e filmes são estímulos para debates, discussões e planejamento de trabalhos (De Marco et al., 2009). A intenção é aguçar a auto-observação e a observação das pessoas; instrumentalizá-las para que tenham a flexibilidade necessária para enfrentar as situações, examinando e considerando os aspectos relevantes presentes no campo relacional e comunicacional (o que inclui o reconhecimento de seus estados e sentimentos, bem como os de seus pacientes). Nas discussões, procuramos instrumentalizá-los para reconhecerem e evoluírem suas capacidades de observação, empatia e continência. Para que esta instrumentalização seja efetiva, é nossa intenção
que o curso tenha forte cunho experiencial. Contribui para essa finalidade a discussão das vivências despertadas, bem como a própria relação professor-aluno, que pretendemos que sirva de modelo de uma relação viva e autêntica. “Conhecer pessoas” é o mote do curso que pretende (re)aproximar os alunos das diferentes áreas que historicamente têm se interessado pelo conhecimento e equacionamento dos dilemas humanos. As aulas, em pequenos grupos (vinte alunos), destinam-se a facilitar o contato entre professores e alunos e favorecer ampla participação. Por meio da discussão das contribuições das diferentes áreas de conhecimento – como mitologia, filosofia, psicologia, sociologia, antropologia, história –_bem como de produções ligadas à arte (como literatura, teatro e cinema), procuramos sensibilizar os alunos para o imenso manancial que estas áreas têm produzido para o conhecimento das pessoas, seus conflitos e dilemas. Por exemplo, por intermédio da abordagem da psicologia, acessar conhecimentos do desenvolvimento da personalidade, seus momentos críticos, progressões e regressões, demonstrando a ajuda que estes conhecimentos podem proporcionar na detecção de fatores e situações de risco que contribuem para a saúde e a doença, bem como as reações da pessoa frente ao adoecer. Estes mesmos conhecimentos podem ser muito enriquecidos por meio de contato com manifestações ligadas à arte. Buscar, nas humanidades e nas artes, uma forma de conhecimento fundamental para a
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prática médica, já era apontado por Gregório Marañón (Gallian, 2002) ao elencar o que ele definiu como as cinco fontes do saber médico. Segundo o grande endocrinologista e escritor espanhol, a literatura, a arte e a experiência extramédica da vida têm uma importância tão grande quanto as fontes cientificas, na medida em que é na fonte das humanidades onde o clínico encontra algo de fundamental para o bom exercício da prática médica: intuições sobre a vida humana. Pesquisadores brasileiros (Barros, 2011) acabam de relatar que um dos maiores escritores brasileiros do século 19, Machado de Assis, foi o primeiro a descrever um estranho distúrbio psiquiátrico, a “folie à deux”. A narrativa de Machado, no conto O Anjo Rafael [1869], combina todos os elementos que seriam descritos por Lasegue e Falret, os descobridores “científicos” da “folie à deux”, em 1887, oito anos depois da publicação do conto de Machado. Este conto ilustra como a literatura pode contribuir para o conhecimento da Psiquiatria, oferecendo uma descrição detalhada das condições psicológicas das personagens. Assim, se queremos um retrato vivo de como se sente e o que se passa com um doente e seu entorno, a leitura de “A morte de Ivan Illitch” pode ser muito enriquecedora. No texto de psicologia, vamos encontrar mais informação conceitual, na literatura (nos bons escritores) encontraremos mais a “vida como ela é”: O clínico dizia: isto e aquilo indicam que o senhor tem isto ou aquilo; mas se o exame não confirmar que o senhor tem isto ou aquilo, devemos levantar a hipótese de ter isto ou aquilo... Ivan Ilitch só se preocupava com uma coisa: o que tinha era grave ou não? O doutor, porém, não ligava para a descabida pergunta. Do seu ponto de vista, o capital era decidir entre um rim flutuante, uma bronquite crônica ou uma afecção do ceco. Não estava em pauta a vida de Ivan Ilitch, mas sim decidir pelo rim ou pelo ceco. E o facultativo, brilhantemente resolveu, segundo pareceu a Ivan Ilitch, a favor do ceco... Exatamente 1220
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o que Ivan Ilitch fizera mil vezes, e com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado. (Tolstoi, 1998, p.37)
Se quisermos conhecer mais sobre o médico, sua personalidade e as vicissitudes do exercício da medicina, podemos estudar uma série de textos (psicológicos, sociológicos, antropológicos), mas se, complementarmente, fizermos uma reflexão sobre o mito de Asclépio e seu tutor Chiron (o curador-ferido), com certeza sairemos bastante enriquecidos. Por outro lado, se desejamos saber como se sente um médico quando adoece, estes trechos são uma amostra de quão instigante é o livro “O médico doente” de Dráuzio Varela: Basta cair doente para que todos se considerem no direito de dar ordens: Já para a cama; Não saia no sereno; Vista o agasalho. O mais humilhante é obedecer com a docilidade dos cordeiros, porque a doença tem o dom de nos fazer regredir ao tempo em que nos entregávamos indefesos aos cuidados maternos. Na cadeia, vi muito assaltante de renome clamar pela mamãezinha na hora da dor. (Varela, 2007, p.19)
Durante o curso, assistimos e discutimos dois filmes: Freud Além da Alma e Os Quatro Diamantes. O primeiro desperta muito interesse dos alunos pela postura investigativa do médico recém-formado Sigmund Freud na busca de entendimento dos quadros histéricos. O filme serve como ilustração para discutir com os alunos noções básicas de Psicanálise e sua contribuição para o conhecimento das pessoas. O segundo filme, Os Quatro Diamantes, baseado numa história real (dirigido por Peter Werner, 1995), mostra a luta de um menino e sua família com uma doença grave (câncer). O menino Christopher, que costuma fantasiar ser cavaleiro da Távola Redonda, em função da descoberta de um câncer, é obrigado a fazer quimioterapia durante suas férias escolares. Ao retornar às aulas, ao invés da tradicional redação “o que fiz nas férias de verão”, é liberado pelo
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“Num dia em que fomos observar o trabalho numa Unidade Básica de Saúde, eu estava chegando – já de avental – e dois pacientes brigavam na porta para ver quem entrava primeiro. Ao me verem, pararam de brigar e abriram espaço para que eu passasse. Assim que eu passei, voltaram a discutir”.
O relato deste aluno trazia o espanto de se deparar com tanto poder para “abrir seu caminho”, mostrando, ao mesmo tempo, sua satisfação com todo o respeito que lhe era dirigido. Assim como este fato relatado, os anos de graduação médica despertam inúmeras vivências intensas, que necessitam espaços de discussão, suporte e elaboração. As aulas de Psicologia Médica favorecem que estas vivências sejam
ventiladas e o tema “conhecer pessoas” abordado durante todo o semestre, de diversas maneiras: os alunos observam os outros, a si próprios e aos pacientes. Isto foi apontado por diversos alunos em suas avaliações:
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professor para escrever uma história de ficção. Envolvendo, em suas fantasias de cavaleiro, médicos e familiares, aborda a luta que trava com sua doença. Este filme sensibiliza muito os alunos, promovendo ampla discussão sobre a comunicação da médica com seu paciente e as diversas reações ao adoecer. Na literatura, um dos textos que temos utilizado é o conto “O Espelho” (1882) de Machado de Assis (Brayner, 1981), autor conhecido pelo olhar minucioso sobre o comportamento humano. Neste conto, o personagem, ao receber um posto militar, é surpreendido pelo respeito e destaque que recebe quando está fardado. Ser visto fardado torna-se necessidade, a ponto de não conseguir ver seu reflexo no espelho quando fica sozinho por um breve período. O uniforme militar serve como metáfora para se discutir o uso do avental branco, sua interferência nos relacionamentos e o respeito a ele conferido. Numa avaliação do curso, este conto foi apontado pela maioria dos alunos como o momento mais marcante, pelo fato de ajudá-los a refletir sobre o papel que ocupam e as vivências despertadas quando em contato com os pacientes. Perceber, desde a entrada no curso médico, a responsabilidade e o poder que os pacientes lhes conferem mobiliza emoções intensas. Numa das classes, ao discutir o conto, um aluno comentou sobre o “poder” que sentia ao vestir seu avental:
“A habilidade que mais desenvolvi foi a de observar a mim mesma e refletir mais sobre isso”. “Ao longo do curso descobri muito sobre mim mesmo e isso foi algo que me assustou. Percebi que Psicologia Médica é muito importante e deve ser trabalhada durante toda a vida”.
Outra atividade marcante é o trabalho final, cujo tema é “Conhecendo pessoas: uma ciência, uma arte”. O trabalho é proposto já no início do curso, e os alunos se dividem em grupos (de seis a sete alunos), com a tarefa de elaborarem, focados no tema, uma apresentação para o resto da turma. Eles são estimulados a utilizar recursos tanto da ciência como da arte na formatação do trabalho. A forma e apresentação são muito variadas: montagem de cenas de teatro, produção de filmes, entrevistas etc. A experiência promove a aproximação a um campo de conhecimento a partir de uma abordagem pouco habitual para um estudante de medicina, envolvendo um importante componente lúdico. Também proporciona oportunidade de exercitar o trabalho em grupo e conhecer melhor seus colegas e a si mesmo. Estes trechos fornecem uma noção das repercussões do trabalho final: “Vejo que através de tudo o que passamos durante o processo de construção do trabalho final, aprendi um pouco mais o que é ser médico. Ser médico é muito mais do que aprender técnicas, é uma arte de conhecer o outro [...] E essa arte não se aprende de uma só vez, mas continuamente, num processo eterno, porque não só uma pessoa é diferente da outra como o mesmo paciente que conhecemos hoje pode ser outro amanhã. Estamos em constante mudança.” COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.39, p.1219-22, out./dez. 2011
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“Gostei muito de ter feito o trabalho final do curso. Revi e acrescentei conhecimento numa área que, repito, acredito ser de extrema importância na subjetividade médica. Pude relembrar diversos aspectos colocados em sala durante o curso e, assim, começar a finalizar a primeira de muitas etapas em meu aprendizado de psicologia médica.”
instrumentalizá-los e estimulá-los a “conhecer pessoas”: “Há muitas coisas e sentimentos atrás dos atos, atitudes e da própria identidade das pessoas.” “Conhecer pessoas é um desafio maior do que imaginávamos e um aprimoramento interminável.”
Mario Alfredo De Marco Departamento de Psiquiatria, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM/ Unifesp). Rua Borges Lagoa, 570, 1º andar. Vila Clementino, São Paulo, SP, Brasil. 04.038-020. mariodemarco@globo.com
O curso de Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo tem confirmado o enorme potencial que a utilização conjunta de recursos das ciências e das artes tem na instrumentalização do futuro profissional para uma aproximação mais integral e eficiente ao seu campo de atuação. O formato deste curso tem sido estimulante para alunos e professores. Tomamos emprestadas as palavras dos próprios alunos, para ilustrar a contribuição do curso em
Mariella Vargas Degiovani Departamento de Psiquiatria, EPM/Unifesp.
Dante Marcello Claramonte Gallian
Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde, EPM/Unifesp.
Ana Cecília Lucchese
Departamento de Psiquiatria, EPM/Unifesp.
Colaboradores
Referências
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
BARROS, D.M.; BUSATTO FILHO, G. First fictional report of folie à deux. Brit. J. Psychiatr., v.198, n.1, p.30, 2011. Doi: 10.1192/bjp.198.1.30 BRAYNER, S. (Org.) O conto de Machado de Assis: antologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. DE MARCO, M.A. et al. Semiologia Integrada- uma experiência de aproximação antecipada e integrada à prática médica. Rev. Bras. Educ. Med., v.33, n.2, p.282-90, 2009. GALLIAN, D.M.C. As humanidades e o saber médico. Notandum, v.5, n.9, p.47-50, 2002. TOLSTOI, L. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Publifolha, 1998. VARELLA, D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Recebido em 19/04/11. Aprovado em 07/07/11.
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criação
vídeo “MAS DE QUE FORMA/FÔRMA”, Renan T. Duarte, 2007
De que forma
Renan do Espírito Santo Tobias Duarte1 Erika Alvarez Inforsato2
toda gente tem que não ter cabimento para crescer Arnaldo Antunes (2003)
Películas desdobraram-se ao final de quatro meses de feitura de um diário de campo. Pele em forma de imagem filmada. Um assombro para quem acompanhou o processo; um lugar de expressão para quem o produziu. Em meio a encontros e compromissos profissionais de um dos estágios do curso de graduação em Terapia Ocupacional da USP (“T.O. e as ações na interface arte e saúde”, sob coordenação da Profa. Dra. Eliane Dias de Castro) – fez-se o salto. Em sua duração, experiências em projetos relacionados ao Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da FMUSP, por meio de seu projeto didático-assistencial – PACTO (Programa Composições Artísticas e Terapia Ocupacional), e de seus acordos de colaboração e parcerias com projetos externos à universidade, delineia-se um cenário de estágio no qual, junto aos profissionais, os estudantes tensionam e favorecem aberturas nos espaços e equipamentos de artes e cultura da cidade, para que recebam também as populações tradicionalmente restritas às redes de saúde. Com isto, vivenciam-se alguns enfrentamentos dos processos de homogeneização das diferenças e atua-se produzindo deslizamentos em relação às tendências históricas e culturais de institucionalização e desvalorização, que enfraquecem a vida de muitos. Esta proposta de trabalho, na interface da terapia ocupacional e artes potencializa o deslocamento da clínica para um campo de invenção e produção de novos agenciamentos - para técnicos, estudantes e participantes dos projetos -, numa aposta de que novas sociabilidades e formas de resistência possam ser engendradas (Lima et al., 2009). No rastro dessa paisagem, as imagens aqui apresentadas em filme e fotografias sinalizam traços de uma sensibilidade constelada nas circunstâncias cursivas da graduação, descritas acima, somadas a um evento extraordinário: a ocupação da reitoria, realizada por estudantes da USP no primeiro semestre de 2007, que atravessou de forma contundente todo o processo de estágio daquele semestre. Uma experiência comum, que envolveu docentes, técnicos, estudantes e comunidade não-acadêmica de maneiras diferentes, com distâncias e aproximações conflituosas e convergentes.
1 ,2 Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. renantduarte@gmail.com http://blogdoreds. blogspot.com/ erikainforsato@usp.br
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Vertigem é o estado intensíssimo que sentimos diante de um abismo, numa altura desmedida, quando nos defrontamos com uma distância assustadora. Vertigem é a distância traduzida em atordoamento, uma quantidade (de espaço) transformada em qualidade (intensiva), uma separação nos estirando por dentro e em direção ao exterior. (Pelbart, 1989, p.123)
Pirotécnico e espetaculoso. Talvez. E intenso, consistente e pertinente em sua proliferação e prospecção ao que pode advir. Também. Esse filme, se surpreende seu espectador, é por tratar-se de um achado igualmente inusitado para o seu próprio autor. Num momento de vertigem da experiência coletiva, em que se experimenta a força e a fragilidade em sua radicalidade: a ideia da forma. Da forma de gelo. No programa da disciplina, entregue aos estagiários, aparece pela primeira vez uma explicação do que seria o diário de campo, no item que descreve os trabalhos obrigatórios do estágio: “experiência singular do estágio – descrições, colagens, pensamentos, elaborações” (Castro, Inforsato, 2007, p.5). No mesmo programa, o item “Orientações para a preparação do Diário de Campo” oferece algumas pistas: O Diário de Campo deverá apresentar-se como um registro do período em que se dá o percurso do estágio, e as sensações serão o ponto de partida, com o objetivo de construção de um território com várias teias, suficiente para dar consistência às experiências vividas neste momento da vida de cada estagiário. Por sensações vamos considerar aquilo que está relacionado aos órgãos do sentido (visões, toques, cheiros, audições, sabores) bem como o que consiste os lugares de pensamento (espécies de habitats, aquilo que faz proliferar o pensamento, que dá condições aos achados do pensamento) em vivências diretas do estágio e outras que a elas possam associar-se de modo livre e atemporal. A proposta é de que se constituam camadas, justaposições, aquém e além das ligações de interconexão. Cada Diário de campo será desenvolvido em continuidade e nele deverão constar: descrições das situações de estágio; citações, referências, grafismos, pinturas, colagens, cópias, fotos, dobras, texturas etc que mantenham algum tipo de relação com as vivências do estágio; elaborações, associações e comentários que apresentem sua expansão e crescimento profissional na avaliação e proposição de saídas diante das vivências do estágio. (Castro, Inforsato, 2007, p. 7)
Assim os estudantes entram em contato com a proposta, acrescida de leves comentários da supervisora que os acompanha. O diário de campo deve ser entregue em quatro etapas e uma parte da carga horária do estágio reserva-se para essa produção. A cada entrega ocorrem interlocuções em que a supervisora faz uma apreciação crítica, considerando aspectos estéticos e educativos: “dificuldades”, pontos duros, e potenciais a serem intensificados em experimentações/criações. A experiência do Diário de Campo em um estágio de Terapia Ocupacional se mostrou uma estratégia capaz de conectar ética, estética e política, potencializando ações no campo da clínica, do cuidado e acompanhamento de pessoas, já que, em seu fomento à potência criadora, possibilitou inventar novos modos de intervir, de agir nas situações e com as pessoas, construção de novos territórios existenciais. A flexibilidade da proposta e das linguagens do diário permitiu uma plasticidade desse registro de vida, e portanto da própria produção da vida. O Diário de Campo se transforma em um Território Existencial, onde as marcas dos acontecimentos podem habitar, desenvolver-se e produzir novas marcas, novos modos de existir e criar. (Duarte, 2008, p.134)
Este experimento audiovisual assim surgiu. Em sua apresentação para a disciplina de estágio, era um conjunto de vídeos em que a sensibilidade ganhava expressão na convergência do estudante, seus 1226
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percursos, da matéria que se deformava na luz, do som. A experiência de processar, observar e refletir traduzia-se num filmar, gravar, enquadrar, editar. O vivido ganhava pele, epiderme, película. Pele na qual se processavam experiências, onde sangravam e cicatrizavam-se atravessamentos. Pele que respirava e transpirava afetos. Pele a ser cortada, editada, explorada, enxertada. Filmar era uma exploração cirúrgica dos territórios existenciais em que se podia, simultaneamente, mapear suas formas - conforme neles se vivia -, e deformá-los para que de outros modos nele se pudesse viver. Editando a vida numa espécie de cinemática do movimento, das posturas, dos corpos. Transposição cinematográfica do vivido. [...] quando a gente escreve ou pinta ou canta a gente transgride uma lei. Não sei se é a lei do silêncio que deve ser mantido diante das coisas sacrossantas e diabólicas. Não sei se é essa a lei que é transgredida. (Lispector, 1999, p.150)
3 Acesse o vídeo em Interface v.15, n.39, out./dez. 2011, no site da revista: www.scielo.br/icse ou www.interface.org.br
Cada vídeo continha um tema, um fio condutor, um disparador que norteava e enredava sua existência. Um deles: “MAS DE QUE FORMA/FÔRMA”3. Uma brincadeira séria, um tanto perturbadora. Jogando com a palavra “forma”, seus significados e disparamentos. Em suas incursões, as imagens aglutinam-se em explosões e transbordamentos raivosos, que indiciam a experiência de formar-se profissionalizar-se, sobretudo -, com seus constrangimentos e condenações justapostos as suas promessas e encantamentos. Quantos seres sou eu para buscar sempre de outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro do meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito mora um leão. Este passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas. (Clark apud Rolnik, 1996)
Há uma literalidade que, se num primeiro momento parece ilustrativa/ representativa, ao acompanhar seu desenrolar, uma espécie de “virar do avesso” se dá, e a crítica emerge da assunção do estereótipo, do clichê em seu extremo. Denúncia de si e do mundo, como operação clínica eficaz, em que a produção desta película é um esforço em fazer caber aquilo que transborda a capacidade de viver junto, com cada personagem que, no decorrer de um período de estágio em T.O., oferece proximidade - sejam participantes dos projetos, sejam professores, profissionais, familiares, autores, instituições etc. “Não cabe...” “Você tem que caber!” “Isso não tem cabimento!” “Durma bem” “Comer, comer, comer...”
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Como? A subjetividade humana e sua potência/capacidade de criação tornaram-se reféns do capital, moldadas e formatadas segundo seu interesse. A existência humana está aprisionada em padrões de desejo, consumo, sexualidade que ditam seus gestos e movimentos. Como pensar uma formação que não seja uma formatação, rígida, e na qual não se achatem as diferenças, o singular, permitindo ao desejo assumir formas para manifestar-se, expressar-se? Como fazer caber o estranho? O fora da norma? Como permitir a deformação numa sociedade onde é cada vez mais valorizado o cabimento e o encaixe? Como permitir que mesmo as peças que não encaixam participem da vida-quebra-cabeça? Será necessário inventar novas formas, novos moldes que contemplem a diversidade? (Criar novas peles, películas. Comer.) AUTOR. – Eu queria poder “curá-la” de si própria, Mas sua – “doença? É mais forte que meu poder, sua doença é a forma de sua vida. (Lispector, 1999, p.52)
Referências ANTUNES, A. Cabimento. 2003. (música).
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DUARTE, R.E.S.T. Criando cartografias de criação. 2008. Monografia (Conclusão de curso) - Curso de Graduação em Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de São Paulo, São Paulo. 2008. LIMA, E.M.F.A. et al. Ação e criação na interface das artes e da saúde. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.20, n.3, 2009. Disponível em: <http:// www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S141591042009000300002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 9 ago. 2011. LISPECTOR, C. Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. PELBART, P. Da clausura do fora ao fora da clausura. São Paulo: Brasiliense, 1989.
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