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Enrico Pepe

Mártires e Santos do Calendário Romano

EDITORA AVE-MARIA


© 1999 by Città Nuova Editrice (Roma) ISBN: 88-311-9246-9 (edição encadernada) 88-311-9250-7 (edição brochura) Com aprovação eclesiástica Em língua portuguesa: © 2008 by Editora Ave-Maria. All rights reserved. Rua Martim Francisco, 636 – 01226-000 São Paulo, SP – Brasil Tel.: (11) 3823-1060/3660-7950 – Fax (011) 3825-4674 Televendas: 0800-7730 456 editorial@avemaria.com.br • comercial@avemaria.com.br www.avemaria.com.br ISBN: 978-85-276-1169-5 Título original: Martiri e Santi - Del Calendario Romano Tradução: Adelino Coelho, José Joaquim Sobral e Pe. José Francisco Pires de Andrade Capa: Carlos Eduardo P. de Sousa Printed in Brazil – Impresso no Brasil 1. ed. – 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pepe, Enrico Mártires e santos do calendário romano / Enrico Pepe; [tradução Adelino Coelho, José Joaquim Sobral e José Francisco Pires de Andrade]. — São Paulo: Editora Ave-Maria, 2008. Título original: Martiri e santi del calendario romano. ISBN: 978-85-276-1169-5 1. Calendário litúrgico 2. Mártires cristãos - Biografia 3. Santos cristãos - Biografia I. Título. 08-02490 Índice para catálogo sistemático: 1. Mártires e santos do calendário romano: História da Igreja: Biografia

CDD-970.0922

970.0922

Diretor Geral: Hely Vaz Diniz, cmf Vice-Diretor: Oswair Chiozini, cmf Diretor Editorial: Luís Erlin Gomes Gordo, cmf Diretor Comercial: Maciel Messias Claro, cmf Gerente Editorial: Silvia Regina Villalta Revisão: Adelino Coelho, Marcia Alves, Isabel Ferrazoli e Vera Quintanilha Diagramação: Carlos Eduardo P. de Sousa Produção Gráfica: José Roberto P. de Sousa e Maycon Robinson de Almeida


SIGLAS

AAS

Acta Apostolicae Sedis (Atos da Sé Apostólica); Tipografia Poliglotta Vaticana AH Adversus Haereses (Contra os hereges); Obras de Santo Irineu de Lyon CCL Corpus Christianorum Latinorum (Conjunto dos Cristãos Latinos); Brepols, Turnhout CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (Conjunto dos Escritores Eclesiásticos Latinos); Viena MA Messale Ambrosiano (Missal segundo o rito ambrosiano); Ed. Piemme, 1991 MHSI Monumenta Historica Societatis Jesu (Obras literárias históricas da Companhia de Jesus); Roma MGH Monumenta Germaniae Historica (Obras literárias da história da Alemanha); Hannover PG Patrologia Graeca (Escritos dos padres gregos) PL Patrologia Latina (Escritos dos padres latinos) PLS Patrologiae Latinae Supplementum (Suplemento da Patrologia Latina) PS Patrologia Syriaca (Escritos da Patrologia Siríaca) SC Sources Chrétiennes (Fontes cristãs); du Cerf, Paris LG Lumen Gentium (Luz dos povos – Constituição dogmática sobre a Igreja)


A Chiara Lubich, que na história dos santos me mostrou o Evangelho propagado nos séculos.


Apresentação

Após os primeiros tempos do cristianismo, talvez nunca, como em nossa época, tenha crescido tão universalmente entre os cristãos convictos a consciência da necessidade de inspirar a própria existência na Palavra bíblica. A grande quantidade de textos publicados ultimamente sobre a vida dos santos, em que são feitos levantamentos sobre sua característica comum de ser evangelicamente coerentes e radicais, é prova disso. Quais são as características deste novo livro, que apresenta os santos do calendário litúrgico romano da Igreja Católica? Tendo acompanhado de perto o objetivo e as intenções do autor, proponho resumi-las. Escreveu o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988) que os santos “são o comentário mais importante do Evangelho... São a encarnação da Palavra encarnada de Deus e, portanto, realmente uma via de acesso para chegar até Jesus”. De fato, a contribuição central do texto se encontra na tentativa de demonstrar qual “a lição” evangélica que os santos apresentados oferecem para a nossa vida concreta. Depois da leitura, cada um estará em condições de poder encontrar uma resposta à pergunta: o que isso diz para minha experiência evangélica e para o meu seguimento de Jesus? Pois o ecumenismo não é outra coisa que a busca de um cristianismo mais genuíno, encontra-se aqui – juntamente com o cuidado de fazer com que a linguagem não fira os cristãos de outras tradições – um indicador da atenção ecumênica com que o texto foi escrito. Além disso, cada personagem é descrito com sobriedade e exatidão, segundo as exigências críticas do nosso tempo. Não obstante, consciente de que cada mito ou lenda contém uma mensagem, o autor procura esclarecer, por


trás do gênero literário hagiográfico das narrativas lendárias ou não confiáveis historicamente, os verdadeiros ensinamentos que contêm. Adverte-se, neste sentido, um aproximar-se com respeito, mas ao mesmo tempo com discernimento, da piedade popular católica, evidenciando aqueles valores evangélicos que esta veicula por trás de gestos e das tradições sem data e relativas. Isso é feito com uma precisa escolha pedagógica: o método de não apagar o pavio fumegante, mas eventualmente alimentá-lo para desprender nova luz e calor. Com competência histórica, procura contextualizar os acontecimentos eclesiásticos no quadro social e cultural do tempo. Basta pensar quanto a religião, a economia e a política freqüentemente condicionam os aconte­ci­ men­tos. É necessário demonstrar essas influências recíprocas para situar os acontecimentos e pessoas para sua melhor compreensão. É necessário reconhecer que o autor consegue fazê-lo com habilidade, mas evitando dois extremos: de uma parte uma apresentação clerical “edificante”, e de outra aquelas tentações (próprias da velhice e da erudição distorcidas) que são o cinismo e o desencanto. Ele supera tais obstáculos através de uma visão sapiencial dos fatos históricos. As descrições históricas são utilizadas também para dar um colorido vivaz ao relato. Isso, juntamente com o estilo conciso e simples, dá qualidade literária à obra, torna-a mais atraente e empresta fluidez à leitura. Atualmente estamos mais conscientes do que nunca de que muitas vezes os cristãos não souberam acolher as idéias válidas e a novidade do seu tempo, chegando atrasados aos momentos históricos. O texto mostra, porém, como, sobretudo através da obra dos santos, a Igreja esteve normalmente na primeira linha para dar uma resposta com amor eficaz às necessidades, às pragas e aos sofrimentos de todas as épocas, influenciando muitas vezes nas necessárias transformações sociais e estruturais. Evidenciá-lo contribui para promover aquela sensibilidade e lucidez social sem a qual não se pode ser um cristão à altura dos tempos. Segundo a fundadora do Movimento dos Focolares, Chiara Lubich (1920): “Não se deve imitar os santos simplesmente, mas fazer, como eles fizeram, a vontade de Deus. (...) nós devemos viver hoje a nossa santidade, levando em conta que ela há de florir no canteiro da Igreja, onde mil perfumes já são sentidos”. A experiência do autor no Movimento dos Focolares é percebida em certas acentuações e aspectos da aventura espiritual dos santos.


Ao mesmo tempo, apresentando os carismáticos do passado, ajuda-nos a compreender e valorizar os carismas que o Espírito Santo suscita hoje, inclusive com a vantagem de uma nova evangelização mais fecunda e adequada aos sinais de Deus na história. No dizer do filósofo francês Jean Guitton (1901-1990), os santos são “como as cores do espectro em relação à luz”. A própria diversidade deles é uma homenagem vivente à sua única riqueza, que eles compõem como as cores do arco-íris. A vida dos santos é como um catecismo em imagens, uma ilustração dos valores da vida contidos no Evangelho (...) Possam os cristãos de hoje aprender ou reaprender com seu exemplo a ler os evangelhos, a fazer deles o seu vade-mécum, a meditá-los, em seu íntimo, versículo por versículo, a traduzi-los com coragem e coerência na vida cotidiana (Cardeal Leon Joseph Suenens). Durante muitos séculos, quadros, afrescos e vitrais dos templos cristãos foram a “Bíblia dos pobres”, entendidos por todos, até mesmo pela massa dos que não sabiam ler. O presente texto quer inserir-se na mesma linha da hagiografia popular. A leitura da vida dos santos, mostrando-nos “Cristo revelado nos séculos, pode nos oferecer um novo impulso na capacidade na construção de um mundo mais humano, porque é mais imerso no divino”. Enrique Cambón



SUMÁRIO

Janeiro 2 2 7 13 17 20 20 21 22 24 25 26 27 28 31

Basílio ..................................................................................... Gregório Nazianzeno . ............................................................. Raimundo de Penyafort . ......................................................... Hilário de Poitiers ................................................................... Antão ...................................................................................... Fabiano ................................................................................... Sebastião ................................................................................. Inês ......................................................................................... Vicente . .................................................................................. Francisco de Sales .................................................................... Conversão de São Paulo .......................................................... Timóteo e Tito ........................................................................ Ângela Mérici . ........................................................................ Tomás de Aquino .................................................................... João Bosco ..............................................................................

15 21 25 28 34 39 42 44 47 48 52 59 62 66 76

Fevereiro 3 3 5 6 8 10

Brás . ....................................................................................... Ansgário (ou Oscar) ................................................................ Águeda .................................................................................... Paulo Miki e companheiros ..................................................... Jerônimo Emiliani ................................................................... Escolástica ...............................................................................

83 85 88 91 94 98


14 17 21 23

Cirilo e Metódio ..................................................................... Sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria . .......... Pedro Damião ......................................................................... Policarpo .................................................................................

101 108 113 120

Casimiro ................................................................................. Perpétua, Felicidade e companheiros ....................................... João de Deus ........................................................................... Francisca Romana ................................................................... Patrício . .................................................................................. Cirilo de Jerusalém .................................................................. José ......................................................................................... Turíbio Afonso de Mongrovejo . ..............................................

126 128 132 136 138 141 146 149

Francisco de Paula ................................................................... Isidoro de Sevilha .................................................................... Vicente Ferrer ......................................................................... João Batista de La Salle . .......................................................... Estanislau ................................................................................ Martinho I .............................................................................. Anselmo de Cantuária ............................................................. Jorge ....................................................................................... Adalberto ................................................................................ Fidélis de Sigmaringa .............................................................. Marcos .................................................................................... Pedro Chanel .......................................................................... Luís Maria Grignion de Montfort ........................................... Catarina de Sena ..................................................................... Pio V . .....................................................................................

153 159 163 167 171 173 178 183 185 190 192 196 199 211 217

Atanásio .................................................................................. Filipe e Tiago .......................................................................... Nereu e Aquiles ....................................................................... Pancrácio . ............................................................................... Matias .....................................................................................

222 230 233 233 234

Março 4 7 8 9 17 18 19 23

Abril 2 4 5 7 11 13 21 23 23 24 25 28 28 29 30

Maio 2 3 12 12 14


18 20 25 25 25 26 27

João I ...................................................................................... Bernardino de Sena ................................................................. Beda Venerável ........................................................................ Gregório VII ........................................................................... Maria Madalena de Pazzi . ....................................................... Filipe Néri . ............................................................................. Agostinho de Cantuária . .........................................................

236 238 242 246 253 258 265

Justino . ................................................................................... Marcelino e Pedro ................................................................... Carlos Lwanga e companheiros ............................................... Bonifácio . ............................................................................... Norberto ................................................................................. Efrém ...................................................................................... Barnabé . ................................................................................. Antônio de Pádua . .................................................................. Romualdo ............................................................................... Luís Gonzaga .......................................................................... Paulino de Nola ...................................................................... João Fisher .............................................................................. Tomás Moro ........................................................................... João Batista ............................................................................. Cirilo de Alexandria ................................................................ Irineu de Lyon . ....................................................................... Pedro e Paulo .......................................................................... Protomártires da Igreja de Roma .............................................

271 277 278 281 288 294 297 300 309 314 320 325 328 331 334 338 344 350

Tomé . ..................................................................................... Isabel . ..................................................................................... Antônio Maria Zaccaria .......................................................... Maria Goretti .......................................................................... Paulina do Coração Agonizante de Jesus . ................................ Bento ...................................................................................... Henrique . ............................................................................... Camilo de Lélis ....................................................................... Boaventura de Bagnoregio . .....................................................

352 354 356 359 363 366 374 377 382

Junho 1 2 3 5 6 9 11 13 19 21 22 22 22 24 27 28 29 30

Julho 3 4 5 6 9 11 13 14 15


21 22 23 25 25 29 30 31

Lourenço de Bríndisi ............................................................... Maria Madalena ...................................................................... Brígida da Suécia ..................................................................... Tiago . ..................................................................................... Joaquim e Sant’Ana ................................................................. Marta ...................................................................................... Pedro Crisólogo . ..................................................................... Inácio de Loyola ......................................................................

389 394 396 405 407 408 412 416

Agosto 1 2 2 4 7 7 8 9 10 11 13 14 16 19 20 21 23 24 25 25 27 28

Afonso Maria de Liguori ......................................................... Eusébio de Vercelli .................................................................. Pedro Julião Eymard . .............................................................. João Maria Vianney . ............................................................... Sisto II .................................................................................... Caetano de Thiene .................................................................. Domingos ............................................................................... Edith Stein .............................................................................. Lourenço . ............................................................................... Clara de Assis .......................................................................... Ponciano e Hipólito ................................................................ Maximiliano Maria Kolbe ....................................................... Estêvão . .................................................................................. João Eudes .............................................................................. Bernardo de Claraval ............................................................... Pio X . ..................................................................................... Rosa de Lima .......................................................................... Bartolomeu ............................................................................. Luís ......................................................................................... José de Calasanz ...................................................................... Mônica . .................................................................................. Agostinho . ..............................................................................

425 438 445 451 457 458 464 470 483 485 492 493 504 507 510 520 525 528 530 534 538 543

Setembro 3 9 13 16

Gregório Magno . .................................................................... Pedro Claver . .......................................................................... João Crisóstomo . .................................................................... Cornélio e Cipriano ................................................................

552 560 564 572


17 18 19 20 21 26 27 28 28 30

Roberto Belarmino . ................................................................ José de Copertino . .................................................................. Januário .................................................................................. André Kim Taegon, Paulo Chong Hasang e comp. .................. Mateus .................................................................................... Cosme e Damião . ................................................................... Vicente de Paulo...................................................................... Venceslau ................................................................................ Lourenço Ruiz e companheiros ............................................... Jerônimo .................................................................................

578 583 588 591 596 599 600 609 613 615

Outubro 1 4 6 9 9 14 15 16 16 17 18 19 19 23 24 25 28

Teresa do Menino Jesus ........................................................... Francisco de Assis .................................................................... Bruno . .................................................................................... Dionísio e companheiros . ....................................................... João Leornardi ........................................................................ Calixto .................................................................................... Teresa de Jesus . ....................................................................... Edviges . .................................................................................. Margarida Maria Alacoque ...................................................... Inácio de Antioquia . ............................................................... Lucas . ..................................................................................... João de Brébeuf, Isaac Jogues e comp. ..................................... Paulo da Cruz ......................................................................... João de Capistrano .................................................................. Antônio Maria Claret .............................................................. Antônio de Sant’Ana Galvão ................................................... Simão e Judas Tadeu . ..............................................................

623 635 644 648 649 653 657 663 666 669 674 677 683 690 695 699 705

Novembro 3 4 10 11 12 15 16

Martinho de Lima ................................................................... Carlos Borromeu . ................................................................... Leão Magno ............................................................................ Martinho de Tours .................................................................. Josafá Kuncewycz .................................................................... Alberto Magno . ...................................................................... Margarida da Escócia ..............................................................

707 712 719 724 732 735 740


16 17 22 23 23 24 30

Gertrudes ................................................................................ Isabel da Hungria .................................................................... Cecília . ................................................................................... Clemente ................................................................................ Columbano ............................................................................. André Dung-Lac e comp. ........................................................ André ......................................................................................

744 748 751 755 758 766 771

Dezembro 3 4 6 7 10 11 13 14 21 23 26 27 29 31

Francisco Xavier ...................................................................... João Damasceno . .................................................................... Nicolau ................................................................................... Ambrósio ................................................................................ Joana Francisca de Chantal . .................................................... Dâmaso . ................................................................................. Luzia ....................................................................................... João da Cruz ........................................................................... Pedro Canísio . ........................................................................ João Câncio . ........................................................................... Estêvão . .................................................................................. João . ....................................................................................... Tomás Becket .......................................................................... Silvestre . .................................................................................

773 780 784 786 793 798 802 805 810 816 818 821 825 828

Índice alfabético dos santos ................................................................. 833


JANEIRO

2 de janeiro São Basílio bispo, padre e doutor da Igreja (330-379) “Perdi um belo pedaço de tempo indo atrás das vaidades; gastei toda a minha juventude com ocupações inúteis, enquanto me voltava totalmente para o aprendizado das doutrinas próprias de uma sabedoria que Deus tinha definido como insensatez. Depois, um belo dia, tive a impressão de ter despertado de um sono profundo. Assim que volvi meus olhos para a maravilhosa verdade evangélica, compreendi a inutilidade da sabedoria dos mestres deste mundo, feita de nada. Lamento agora amargamente minha vida miserável e fiz uma prece: pedi que me fosse mostrado o caminho que me fizesse chegar à vida interior.” 1

É desta forma que Basílio conta sua conversão. Quando, aos 26 anos, decidiu receber o batismo, do seu passado de negativo havia bem pouco, talvez um pouco apegado ao estudo. Por outro lado, vinha de uma família afortunada, rica de valores humanos da cultura e da riqueza bem administrada, e de uma genuína fé cristã. Os avós gozavam da auréola do martírio pois, durante a perseguição do imperador romano Maximino, durante sete anos, tiveram que ficar escondidos nos montes, no meio dos matos, vivendo de caça e correndo o risco de perder a propriedade 1. Ep. 223,2.


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rural. Os pais, Basílio e Emmelia, tinham o mesmo temperamento e a comunidade cristã de Cesaréia colocou-os entre os seus santos. A irmã mais velha, Macrina, era virgem consagrada e chefiava uma comunidade de companheiras num mosteiro construído em uma propriedade paterna, tinha uma grande ascendência também sobre o próprio Basílio por sua santidade. Os outros dois irmãos não ficavam atrás: Gregório, bispo de Nissa, brilhava pela sabedoria e Pedro, bispo de Sebaste, cumpria, com honra, seu trabalho.

Desde criança dedicado aos estudos Basílio nasceu em Cesaréia, na Capadócia, em 329 ou 330. Ainda em tenra idade, devendo seu pai transferir-se para Ponto, foi entregue à avó paterna, que se chamava Macrina, como sua irmã. Uma mulher nobre e uma cristã considerada de peso. Foi discípula de são Gregório, o Taumaturgo, e soube instilar no coração do pequeno Basílio toda a riqueza do Evangelho, não como uma norma para ser observada, mas como um compromisso de vida. Dela, o santo doutor conservou sempre uma lembrança cheia de afeto e admiração. Ficou órfão de pai quando tinha 13 ou 14 anos, mas pela convivência numa família numerosa este fato não influiu negativamente sobre sua pessoa. Continuou os estudos primeiro em Cesaréia, depois em Constantinopla e finalmente em Atenas. Lá esperava-o Gregório, amigo de coração desde os tempos de estudos em Cesaréia. Os dois amigos porfiavam na busca da verdadeira sabedoria, e despertavam a admiração dos companheiros. Por fim, fundaram um círculo de amigos com as mesmas intenções: deixar-se guiar não pelos interesses materiais passageiros, mas pelos valores superiores, como haviam feito os sábios da Antigüidade, e como faziam agora os ascetas do deserto. Tiveram contatos também com o futuro imperador Juliano, que depois se tornou o apóstata. Segundo o testemunho de Gregório, já desde então, como estudante não era boa “peça”, embora demonstrasse estima pelos dois capadócios, não lhes seguia absolutamente o exemplo. Depois de cinco anos de estudos na capital da sabedoria grega, Basílio retornou à sua pátria, escutando o chamado da irmã Macrina e de Eustázio, bispo de Sebaste. Macrina lhe fazia compreender que já era hora de ser batizado e de deixar de lado a vaidade da ciência humana para se dedicar somente a Deus, da mesma forma que ela já havia feito há muito tempo; Eustázio o convidava a ajudá-lo a implantar a vida monástica na sua região.


São Basílio

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Uma viagem, uma luz Nesse período duas realidades amadureceram no coração e na mente de Basílio, tinha uma grande admiração pela vida dos monges. Assim ele se expressava na carta endereçada ao amigo Gregório: “Admirei a dureza da vida deles, a constância que têm na ascese... Como se vivessem numa carne não própria, por seu modo de fazer compreender o que significa ser peregrino nesta vida e ter a própria cidadania no céu. Fiquei muito admirado e compreendi que a vida deles estava no paraíso, pois demonstravam com o próprio comportamento que traziam no próprio corpo a morte de Jesus. Então comecei a orar como um louco para ter a graça de me tornar como um deles”.2 E se tornou monge. Percebia, porém, uma coisa. Se, de um lado, os ascetas do deserto demonstravam claramente a radicalidade do amor a Deus, não tinham contem­ po­raneamente a possibilidade de vivê-la no amor ao próximo, isolados uns dos outros, até mesmo quando estavam fisicamente vizinhos. Ao contrário, a experiência que ele havia feito com Gregório, quando este o recebeu na sua ermida às margens do Íris, era bem diferente e mais profunda. Um certo Gregório presbítero deixou escrito que Basílio e Gregório, “tendo cursado juntos os estudos humanísticos e permanecido separados por pouco tempo, um do outro, correram novamente um para perto do outro... desta forma se cumpriam neles aquelas palavras: Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no meio deles. Ainda mais, permanecendo ali juntos, cresciam na virtude estimulando-se um ao outro e elaboravam as leis da vida monástica para homens religiosos e consagrados a Deus retirados do mundo”.3 Não havia dito Jesus que os dois mandamentos, o amor a Deus e ao próximo, são inseparáveis? Se os monges, além disso, quisessem viver como vivia a primeira comunidade de Jerusalém, deviam ir ao encontro também das necessidades das igrejas locais, oferecendo não só as orações e os exemplos, mas dedicando-se também à instrução e às obras de caridade. Deste modo, os valores evangélicos da vida ascética podiam ser vividos também pelo clero e pelos leigos, segundo a vocação de cada um.

2. Ibid., 223, 4. 3. PG 35,259.


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Basílio concebeu o cenóbio (habitação de monges), onde, sob a guia do abade, reina entre os monges o amor fraterno, e os clérigos e leigos vão aprender como encarnar o Evangelho no mundo. O cenóbio torna-se, então, uma escola de vida, onde todos estão a serviço uns dos outros. Para Basílio “a própria oração, sem a vida comunitária, é muito menos eficaz do quanto poderia ser; o Senhor prometeu que estaria no meio de dois ou três que o invocassem em comunhão de espírito...”.4 Por essas suas intuições, que depois transmitiu-nos nas Regras, torna-se o pai do monaquismo oriental, e são Bento o considera também, de certo modo, o pai, no ocidente, denominando-o como o “beato pai são Basílio”.

Apóstolo e monge A luz que tinha recebido foi logo colocada à prova na sua própria pessoa. Precisou deixar os numerosos monges que o seguiam, pois o bispo Eusébio de Cesaréia, em 364, quis ordená-lo presbítero e tê-lo como colaborador no governo da diocese. Basílio obedeceu, mas, depois de um certo tempo, o bispo ficou com inveja da estima que ele gozava junto ao povo e o transferiu. Chamou-o mais tarde para pacificar o povo dividido pela heresia ariana, e Basílio novamente obedeceu, até que, com a morte do bispo, foi eleito para sucedê-lo. Tinha 40 anos e era rico de experiência e de santidade. Governar a comunidade de Cesaréia sob o constante controle do imperador com a difusão da heresia ariana não era nada fácil. O imperador ariano Valente usou de todos os meios para que ele escrevesse uma declaração a favor do arianismo, mas sem resultado. Basílio conhecia bem a verdadeira teologia e não tinha nenhum interesse humano pela carreira. Quando o governador Modesto criticou o seu comportamento rebelde contra as orientações do imperador, pois nunca alguém tinha agido assim, ele respondeu: “Talvez, porque até agora nunca se deparou com um bispo” e acrescentou: “E agora depois do que eu te disse, ainda que sejam injúrias, ameaças, usa do poder que tens; mas transmite ao imperador que não conseguirá fazer-me aceitar a impiedade nem com a violência nem com a persuasão, mesmo que tuas ameaças pesem sobre mim”.5 O imperador entendeu muito bem, e não mais perturbou aquele gigante que com sua palavra e com o seu prestígio era capaz de esmagá-lo. Antes, pelo 4. Ep. 97. 5. Or. 43,50.


São Basílio

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contrário, mais tarde acabou pedindo ajuda para pacificar as igrejas e, segundo o testemunho de Teodoreto, “deu-lhe grandes propriedades que possuía em Cesaréia em favor dos pobres leprosos dos quais Basílio cuidava”.

Romano entre os gregos Basílio foi genial na organização dos cenóbios, e também o foi no governo de sua vasta jurisdição. Movido pelo amor ao próximo, sobretudo para com os excluídos, os pobres, os doentes e particularmente os leprosos, em cada circunscrição eclesiástica construiu uma casa grande para atendê-los. Nos arredores de Cesaréia construiu uma verdadeira cidadezinha, batizada pelo povo com o nome de Basilíade, e que se impunha à admiração de todos. Era um grandioso complexo com várias repartições, segundo as diversas doenças para poder tratá-las bem e para evitar o contágio. Uma atenção especial para com os doentes de lepra, normalmente abandonados também pelos seus próprios parentes. Essa obra causava admiração não somente pela sua grandiosidade e modernidade, mas também porque Basílio tinha organizado tão bem a caridade que não lhe faltavam jamais nem pessoas nem recursos econômicos. Juliano, o Apóstata, irritava-se com seus governadores que, cheios de dinheiro e ricos em escravos, não conseguiam realizar nada igual, enquanto que um monge sem um só centavo no bolso e sem um escravo às suas ordens fazia prodígios! Por outro lado, quem poderia resistir a seus apelos nas homilias? “Com quem sou injusto – tu dizes – conservando aquilo que é meu? Dize-me sinceramente, o que te pertence? De quem recebestes aquilo que tens? Se cada um ficasse satisfeito com o necessário e doasse aos pobres o supérfluo, não haveria nem ricos e nem pobres.” E acrescentava: “A roupa que tu tens no guarda-roupa daria para vestir todos os que estão com frio”. Aos usurários recordava: “Tu tiras dinheiro das lágrimas, tu esganas quem ficou nu e espancas quem tem fome”.6 Podia falar assim porque vivia como pobre, e depois de ter colocado a serviço dos pobres toda a sua vasta riqueza. E o fez com tal capacidade de organização que passou à história como o homem mais romano entre os gregos. Quem jamais tinha imaginado que o reitor de Atenas, o asceta do Íris, fosse também um hábil administrador? 6. Cf. Omelie 6, em diversas passagens da obra citada.


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A maior dor No coração desse pastor da igreja ardia também uma outra paixão. Sonhava com uma igreja harmoniosa na unidade, e laboriosa nas obras santas, como um autêntico cenóbio. Infelizmente, teve que assistir a brigas doutrinais que freqüentemente afundavam as suas raízes em invejas pessoais dos próprios bispos. Alguns deles, para fugir da sua jurisdição, conseguiram a divisão da Capadócia em duas partes. Basílio respondeu com energia, e pôs seu irmão Gregório como bispo em Nissa e o amigo Gregório Nazianzeno, em Sasima. Pena que este último, não se sentindo à vontade num ambiente tão politizado e assim pouco evangélico, depois de algum tempo preferiu renunciar. Também um outro grande amigo e mestre, Eustázio, bispo de Sebaste, que lhe havia indicado o caminho da ascese monástica, passou para a heresia, não por convicção mas por conveniência, como lhe diria pessoalmente no fim da vida. Um outro espinho em seu coração foi a situação da igreja de Antioquia, antiga e gloriosa sede apostólica. Há anos que já perdurava a luta insensata não só com o bispo ariano, mas também entre os dois bispos católicos que brigavam por aquela cátedra: Paulino e Melézio. Basílio fez de tudo para acabar com aquele escândalo. Escreveu ao amigo Atanásio de Alexandria, que gozava da plena confiança do papa, pedindo seu apoio junto a Roma, mas não foi ouvido. Atanásio não confiava na ortodoxia de Melézio e apoiava Paulino. Basílio escreveu então mais vezes diretamente ao papa e aos bispos do Ocidente, para que mandassem uma embaixada para “unir os dissidentes e renovar a amizade entre as igrejas de Deus”.7 Foi tudo inútil, pois o medo do arianismo era tal que ninguém apoiado por Basílio confiava em Melézio. Só depois da morte do imperador Valente, partidário dos arianos, uma esperança de paz começou a surgir nas igrejas do Oriente, mas Basílio não viu dela a não ser a aurora, pois a saúde debilitada não lhe permitiu ir além de 1º de janeiro de 379. Deixava à Igreja um riquíssimo patrimônio de tesouros espirituais: o monarquismo que ele havia renovado e as famosas Regras que, por séculos, os escritos teológicos, cheios de sabedoria, que lhe fez merecer o título de grande e de doutor; e ainda a solene liturgia, chamada justamente brasiliana, que ainda hoje é celebrada no rito bizantino, pelo menos dez dias ao ano. 7. Ep. 70.


São Gregório Nazianzeno

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2 de janeiro São Gregório Nazianzeno bispo e doutor da Igreja (329/30-389/90) “Ó Cristo, fortifica-me! O teu servo está exausto, à beira da morte. A minha voz que cantou para ti, está calada.Como posso suportá-lo? Dá-me força, não abandones o teu sacerdote. Eu quero curar-me, e assim cantar o teu louvor e purificar o teu povo. Imploro-te, com toda a minha força, jamais me deixes. Se na dificuldade eu te traí, quero retornar a ti.” 8

Com estes versos, Gregório de Nazianzeno exprime toda sua perso­ nalidade voltada para Deus e quase incapaz de se adaptar às adversidades e às surpresas da vida. Sua alma de poeta não encontrava paz num mundo distante da harmonia com que tanto sonhava. Entendia que devia enfrentar as circunstâncias adversas e mergulhar na solução dos problemas concretos, mas, diferente de seu amigo Basílio, de fato ele não conseguia. Restava-lhe, porém, uma porta sempre aberta, a oração a seu Deus, para quem se voltava com a ingenuidade de uma criança.

O mais belo período Nasceu em Arianzo, uma aldeia perto de Nazianzo, na Capadócia, aproximadamente em 330. Seu pai, que possuía o mesmo nome, quatro anos depois de sua conversão ao cristianismo, foi escolhido para bispo da cidade. Sua mãe, a nobre Nona, foi cristã sempre e era estimada por todos por sua fidelidade ao evangelho. Gregório nasceu quando os pais já pensavam que não podiam mais ter filhos e foi acolhido como um grande dom de Deus. A avó, em seguida, o consagrou ao Senhor sem consciência da criança, pois ainda não possuía o uso da razão. Conforme o costume da época e para dar-lhe a possibilidade de uma escolha pessoal, o batismo foi ministrado na idade adulta. Nesse ínterim estava sendo formado para a vida cristã pelo clima que se respirava em casa. 8. Do Inno a Dio, atribuído a Gregório Nazianzeno. Cit. in P. Manns, I Santi, I Jaca Book, Milão 1989, p. 192.


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Para seu crescimento cultural, os pais escolheram a melhor escola sem se preocupar com as despesas. Começou o seu estudo em Cesaréia junto com Basílio, que daquele momento em diante se tornaria o seu mais querido amigo. Prosseguiu em Cesaréia da Palestina, depois em Alexandria na escola onde ainda ressoava a voz de Orígines, e por fim foi para Atenas, capital da cultura grega. Lá se uniu ao amigo Basílio e passaram anos tranqüilos de convivência fraterna. Em Atenas, conheceu Juliano, o futuro imperador apóstata, do qual desde criança não previa nada de bom. Por sua capacidade oratória, parece que Nazianzeno nos últimos anos de permanência naquela capital do saber tenha ensinado eloqüência.

Entre a paz do mosteiro e a luta pela igreja Aproximadamente no ano de 355, talvez ainda pelas informações recebidas de seu amigo Basílio que se fez batizar e se retirou para a vida monástica no monte de Íris, retornou à sua pátria, recebeu o batismo e se dedicou ao ensino na cidade de Nazianzo. Não permaneceu lá muito tempo. Era muito forte a atração pela vida contemplativa e foi até Basílio no mosteiro que ele tinha fundado perto da Neocesaréia. “Nada” – escreveu – “me parece mais maravilhoso que conseguir calar todos os sentidos e, levado para longe deles, da carne e do mundo, penetrar em mim mesmo e permanecer em diálogo com Deus bem além das coisas visíveis”. Os dois trabalharam juntos na composição da Filocalia, uma antologia de textos escolhidos de Orígines para uso dos monges. Mais uma vez a paz foi interrompida diante do pedido do pai que, no ano 361, o quis a seu lado no governo da diocese de Nazianzo. Contra sua vontade, aceitou ser ordenado sacerdote, mas apenas lhe foi possível retornar ao mosteiro. O seu pai, porém, já de idade avançada e também sem preparo para as controvérsias teológicas, teve a ingenuidade de assinar uma fórmula ariana, provocando um cisma na sua igreja. O filho teve que correr novamente em seu auxílio e, depois de ter feito assinar publicamente uma profissão de fé ortodoxa, conseguiu que a paz voltasse à comunidade. Nesse ínterim, Basílio tornou-se bispo de Cesaréia e, devendo combater os bispos arianos, pensou em nomeá-lo bispo de Sasima. Levado pela pressão do pai e do amigo, aceitou ser sagrado bispo, mas permaneceu em Nazianzo e nunca foi a Sasima, que no fundo era um pequeno lugarejo de poucos cidadãos, que não precisavam de bispo. Por este motivo, com a morte do pai no ano de 374, pensou que era a oportunidade para se retirar para o mosteiro de santa Tecla, em Saleucia de Isauria, pensando dar adeus para sempre ao castigo do episcopado.


São Gregório Nazianzeno

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Na sede mais importante e mais cobiçada Estava tranqüilo em seu retiro, quando no ano de 378 foi visitado pela delegação de Constantinopla. Depois de quarenta anos de cisma ariano, os poucos católicos com apoio do imperador Teodósio vinham procurar um verdadeiro bispo. O que fazer? Podia negar-se a socorrer aqueles que queriam professar a verdadeira fé? Basílio o exortou veementemente a não titubear, porque estava em jogo a ortodoxia da fé. Gregório, também desta vez, disse um sim convicto, mas contra a sua vontade. Quando, no ano de 379, chegou à cidade imperial, não recebeu nenhuma acolhida triunfal, ao contrário, foi impedido de entrar na catedral de santa Sofia. Teve que se contentar com uma pequena capela, construída numa habitação particular, que chamou de Anastasis, isto é, Ressurreição, onde começou a reunir os poucos cristãos que tinham permanecido fiéis à fé nicena e para eles pronunciou os famosos cinco sermões sobre a Trindade. Pouco a pouco, porém, a situação se inverteu e o mesmo imperador quis acompanhálo solenemente até santa Sofia com uma multidão que o aclamava. No ano 381, aconteceu um concílio em Constantinopla e Gregório, sabendo que alguns bispos colocavam em dúvida a legitimidade de sua transferência para a nova sede, submeteu-se humildemente ao parecer dos padres conciliares que unanimemente o confirmaram como bispo legítimo da capital do império e, logo depois, com a morte do bispo Melézio de Antioquia, elegeram-no presidente do próprio concílio. Mas, no decorrer do concílio, com a chegada de outros bispos, alguns levantaram novamente a questão sobre a legitimidade de sua transferência para Constantinopla. Neste ponto não suportou mais o suceder-se de intrigas e brigas. Cansado de ver que até mesmo no concílio “os mais jovens chilreavam como um bando de pardais e se encarniçavam como um enxame de vespas” e “os velhos se abstinham de moderá-los”, espontaneamente renunciou ao seu cargo, deu um solene adeus aos bispos e ao povo de Constantinopla, “onde havia dado vida nova ao credo de Nicéia”. Retornou a Nazianzo e num momento de abatimento deixou escapar esta queixa que revela uma alma profundamente dilacerada pela maldade humana: “Há um só caminho para sair de meus males: a morte; mas, também a outra vida me causa medo, se tiver de julgar os deste mundo”. Mas teve força de aceitar o governo daquela diocese que já fora do seu pai e que tinha permanecido vacante à espera de que o povo encontrasse logo um novo bispo. Depois de dois anos pôde retirar-se definitivamente à vida particular em sua terra natal, em Arianzo, onde morreu no ano de 389 ou 390.


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Construiu a igreja com o coração e com a escrita Gregório não era feito para a política e para o governo num ambiente em que as intrigas e os interesses pessoais superavam muito o empenho pastoral para o verdadeiro bem da Igreja. Para ele os monges tinham razão ao se retirarem do mundo: era o único modo de levar uma vida verdadeiramente evangélica e anunciar com firmeza a todos de que lado estava o bom Deus. Mas se ele não conseguiu como o amigo Basílio ser um homem de governo, no entanto, deixou à Igreja uma riqueza incalculável com os seus escritos, tornando-se um dos mestres mais lidos e amados no Oriente e no Ocidente. Foi o grande defensor da divindade do Espírito Santo e descreveu os efeitos produzidos na vida daqueles que acreditam nele. Foi também um cantor da virgindade, que ele praticou durante toda a sua vida. Escreveu em relação a isso: “Não é pouca coisa ser virgem: é ser contado entre os anjos, entre os de natureza simples; antes, pelo contrário, ousarei afirmar com Cristo que, também quis nascer para se assemelhar a nós que nascemos, mas nasceu de uma virgem, e assim sancionou a lei da virgindade para nos arrastar consigo, longe desta vida, para dar um basta sem rodeios ao mundo e, mais ainda, para nos transferir a partir de agora de um mundo ao outro, da vida presente à futura”.9 Tinha também em altíssimo conceito o sacerdócio e aceitou ser ordenado somente para ir ao encontro das necessidades urgentes da Igreja e seguindo os conselhos insistentes dos amigos, fugindo de todo sentimento de vanglória ou de poder. Por si mesmo, considerava-se indigno, porque o sacerdócio exige pureza de coração e entrega total. Por isso, ele escreveu: “Ninguém é digno da grandeza de Deus, da Vítima e do Sacerdote, a não ser que já se tenha oferecido a si mesmo a Deus como hóstia viva e santa... a menos que já se tenha imolado a Deus em sacrifício de louvor e com espírito humilde, as únicas coisas que o autor de todos os dons pede que lhe ofertemos”.10 Toda a vida de Nazianzeno foi um sacrifício de louvor, expresso no clamor de uma oração sincera, na solenidade de suas maravilhosas homilias ao povo, em seus pungentes cantos poéticos e em todos os outros numerosos escritos. Foi também um espírito inquieto em contínua busca da paz, dividido entre as aspirações à solidão e obediência ao Espírito que o impulsionava a sair em socorro de uma Igreja igualmente atribulada. 9. Or. 43,62. 10. PG 35,497A.


São Raimundo de Penyafort

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O Hino a Deus, atribuído a ele, mesmo que não tenha sido dele, exprime muito bem a sua contínua busca que o levou a contemplar a natureza e a estudar a Escritura, a amar a Igreja e a defender a verdadeira fé e enfim a dizer, com palavras diferentes das de Agostinho, que o coração do homem é feito para Deus: “O desejo intenso e o suspiro de cada criatura voltam-se para ti; tudo aquilo que existe te dirige uma prece; cada ser que consegue interpretar a tua criação canta um silencioso hino”.

7 de janeiro São Raimundo de Penyafort dominicano (1175/80-1275) “Com o esplendor da doutrina, iluminou os que se encontravam nas trevas; com o ardor de sua caridade, libertou os escravos da miséria e das correntes... e libertou os pobres das mãos dos prepotentes.” 11

No século XIII, enquanto o espírito de são Francisco e o carisma de são Domingos reanimavam a vida evangélica no meio do povo cristão, emergiam figuras eminentes de doutores em teologia como Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio, a Providência suscitava com Raimundo de Penyafort, um insigne canonista que, unificando e harmonizando as leis eclesiásticas, agiu de tal modo que não criassem obstáculos, mas favorecessem o despertar da espiritualidade. Raimundo nasceu em Barcelona, de uma família nobre entre 1175 e 1180. Estudou na escola da catedral de sua cidade e lá permaneceu como professor de Filosofia e de Retórica até 1210, quando se mudou para Bolonha para estudar Direito sob a orientação de mestres famosos como Accursio, Pier delle Vigne, Sinibaldo Fieschi e Orlando da Cremona. Conseguido o grau de doutor, continuou em Bolonha ensinando gratuitamente e se mantendo com um subsídio da prefeitura daquela cidade. Seu ensinamento era muito apreciado e, para descer até os alunos, escreveu a Summa Juris, um manual de Direito apreciadíssimo que se difundiu em muitíssimas escolas. 11. Do Responsório da Liturgia das Horas.


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Fascinado pelo carisma dominicano Mas a experiência mais forte pela qual passou em Bolonha foi em contato com os dominicanos, os primeiros companheiros de são Domingos, que o fundador tinha mandado para aquela cidade para estudar. O carisma do fundador, encarnado tão bem por eles, e seu amor à sabedoria fez descobrir em Raimundo uma nova dimensão do estudo, aquela que parte da vida e da comunhão entre irmãos. Por este motivo, em 1220, quando seu bispo veio a Bolonha e obteve de são Domingos um grupo de frades como professores do seminário de Barcelona, Raimundo aceitou unir-se a eles e fazer parte de sua vida. Depois de dois anos de convivência, aderiu definitivamente à ordem com a profissão solene. Naquele período, ajudou são Pedro Nolasco a transformar a Companhia de Santa Eulália na ordem religiosa dos mercedários com a finalidade de libertar os cristãos caídos prisioneiros nas mãos dos mouros. Em seguida, ele próprio obteve de Roma a aprovação da nova ordem segundo uma regra por ele formulada no espírito da agostiniana. Ensinando no seminário, escreveu a Summa Casuum (Resumo de casos), um sumário para atendimento no confessionário, de grande utilidade pas­ toral. Nele eram tratados casos concretos que os confessores e os párocos eram chamados a resolver e que exigiam deles um bom conhecimento das leis morais e jurídicas. Em 1229, o cardeal João Abbeville, enviado do papa para ir à Espanha a fim de resolver questões muito delicadas, escolheu frei Raimundo como colaborador e conselheiro.

A serviço da Igreja O religioso acompanhou o legado pontifício em todas as suas viagens pela Espanha e não somente conseguiu a estima do cardeal, mas também a dos seus concidadãos, tendo evitado assim que se produzisse entre as regiões da Espanha uma cisão insanável após a declaração de nulidade do matrimônio entre João I de Aragão e Eleonora de Castela. Frei Raimundo, viajando por toda a Espanha e penetrando nos meandros da política eclesiástica e civil, pôde conhecer por dentro a situação real da Igreja no seu país. Quando a cardeal, cumprida a sua missão, retornou a Roma, falou ao papa Gregório IX sobre o extraordinário religioso catalão, eminente jurista e


São Raimundo de Penyafort

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conselheiro prudente. O pontífice então lhe confiou imediatamente o doloroso encargo de obter naquele lugar ajuda em apoio à cruzada de Tiago I de Aragão contra os mouros das ilhas Baleari. Raimundo obedeceu e os mouros tiveram que abandonar a ilha de Maiorca. Naquela ocasião, ele foi nomeado confessor do rei, a quem censurou por causa do comportamento escandaloso durante a expedição. Foi nesse acontecimento que se baseou a lenda, representada numa célebre tela da Basílica de Santa Sabina em Roma em que o santo, para se afastar do rei e retornar ao convento, atravessa o mar colocando os pés sobre seu próprio manto que se ergue em forma de vela, impelida pelo vento. A experiência da cruzada – embora Raimundo nunca tenha colocado os pés num campo de batalha – levou-o a refletir e a duvidar da eficácia do método militar usado até aquele momento contra judeus e muçulmanos.

O direito a serviço da paz No ano de 1230, o Papa o chamou a Roma a fim de ser seu confessor e conselheiro. A sua presença na cúria romana foi logo percebida e pelos numerosos casos complicados resolvidos pacificamente e pelas excomunhões anuladas sem dolorosos processos, mas, sobretudo, porque ele, por vontade do Papa, recolheu com grande competência toda a legislação eclesiástica numa única obra, aquela que hoje se chamaria de Código de Direito Canônico. Aquela compilação foi aprovada pelo Papa com uma bula e publicada como texto oficial em 1234. Dois anos depois, o papa Gregório IX, reconhecido profundamente pela obra desenvolvida, lhe propôs a nomeação para bispo de Tarragona. Frei Raimundo ficou de tal modo consternado que adoeceu e no limite de suas forças pelas muitas incumbências, e desejoso de uma autêntica vida comum com os seus irmãos, conseguiu retirar-se para Barcelona. O repouso não durou muito tempo porque o Papa lhe pedia continuamente o seu conselho em relação às questões relativas à Igreja da Espanha, mas, sobretudo, porque em 1238 o capítulo dos dominicanos elegeu-o geral da ordem. Uma escolha dirigida, porque todos esperavam que ele pusesse em ordem, em sintonia com as leis canônicas, mas numa forma simples e acessível a todos os irmãos, as numerosas e variadas normas que desde Domingos regiam suas vidas. Para esta missão foram dois anos de trabalho e conseguiu satisfazer a todos, sem descuidar do governo da ordem; depois pediu demissão e se retirou


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novamente para Barcelona, submetendo-se em tudo à vida comum e dando exemplo de grande humildade aos irmãos da ordem. Embora agora fosse um simples irmão com os achaques da idade avançada, pela experiência adquirida, continuou a exercer uma grande influência na vida da Igreja da Espanha, porque a Santa Sé e o rei da Espanha recorriam ao seu conselho na designação de bispos dignos e no afastamento dos inaptos ou indignos. Frei Raimundo nunca foi conselheiro frio. Precisamente para ajudar os bispos na sua difícil missão escreveu a Summa Pastoralis (Resumo Pastoral), um precioso diretório para sua ação pastoral.

Promotor do diálogo com judeus e muçulmanos Também se deve a ele a promoção da escola de hebraico, em Múrcia, para o diálogo com os judeus, e a escola de línguas orientais em Túnis, para o diálogo com os muçulmanos. Com a mesma finalidade, incentivou o seu irmão, Tomás de Aquino, a escrever a Summa Contra Gentiles (Resumo teológico sobre os pagãos). Frei Raimundo – este era o único título que ele quis conservar quando circulava no meio das altas autoridades eclesiásticas, no âmbito da política e das cátedras universitárias – faleceu em Barcelona a 6 de janeiro de 1275. Os seus funerais foram grandiosos com a participação do povo, a presença dos reis de Castela, de Aragão e dos prelados. Todos tinham para com ele um reconhecimento e o consideravam um santo. Quatro anos mais tarde, o Concílio de Tarragona pediu por unanimidade sua canonização, mas por causa dos acontecimentos políticos isso só iria acontecer em 1601, embora sua fama de santidade sempre fosse muito viva.

13 de janeiro Santo Hilário de Poitiers bispo e padre da Igreja (315-367) “Eu estou bem consciente de que tu, Deus Pai todo-poderoso, deves ser o fim principal de minha vida, de modo que cada palavra, cada sentimento meu, exprime a ti. O exercício da palavra, de que me fizeste possuidor, não pode receber recompensa maior que a de servir fazendo-te conhecido, mostrar a este


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mundo que te ignora ou ao herege que te nega, que és Pai, isto é, Pai do unigênito (Filho de) Deus. Somente isto é o objetivo a que me proponho.” 12

Hilário tinha feito um longo caminho, também no sentido material, antes de escrever estas linhas no início dos seus doze livros Sobre a Trindade em defesa da verdadeira fé. Encontrava-se desterrado na Ásia Menor por ordem do imperador Constâncio, mas, como se percebe, não perdia tempo. Aquele exílio foi um parêntese precioso, porque pôde conhecer a Igreja do Oriente com todos os seus problemas, aprofundar o estudo da Teologia, mas, sobretudo, crescer no conhecimento amoroso de Deus e defender, com a palavra e a pena, a divindade de Cristo. Mas vamos por ordem.

Nos confins do império Nasceu aproximadamente em 315 em Poitiers na Aquitânia nos confins do império. Sendo rico de terras e de escravos, tinha podido dedicar-se desde sua juventude aos estudos e a aumentar sua cultura com a leitura dos mais famosos autores latinos. Casou-se com uma mulher de sua classe, verdadeiramente capaz, e teve com ela uma filha, chamada Abra. O clima de família lhe permitia continuar seus estudos e dividir com a esposa uma preocupação que amiúde lhe tirava o gosto de viver. Com efeito, perguntava-se por que a vida devia terminar de modo tão triste com a morte. Tinha conhecido na sua cidade todo tipo de pessoas, dentre eles cristãos, em geral de pouca cultura, que lhe diziam com ingenuidade que existia um só Deus e que os esperava no limiar da morte para lhes dar uma vida sem fim. Não lhe era fácil acreditar no que eles diziam: “Eu poderei receber de Deus essa recompensa, se a morte anula em mim toda a esperança e todo o elemento vital?” Passou-se um tempo e continuou mantendo contato com eles, até que um dia brilhou na sua mente uma luz: “Deus jamais me teria chamado à vida com a possibilidade de pensar e de adquirir a sabedoria, se depois quisesse conceder-me somente como resultado uma inevitável decadência e uma morte eterna”. Inscreveu-se no catecumenato e numa noite de Páscoa recebeu o batismo com a esposa e a filha, porque eles três eram verdadeiramente uma coisa só, não somente no afeto mas, também, no sentimento.

12. PL 10,48.


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A leitura do prólogo do Evangelho de João foi determinante para a sua conversão, sobretudo estas palavras: A todos que o receberam, (o Verbo feito carne) deu poder de se tornar filhos de Deus. Depois do batismo continuou a ler este texto com paixão e em seguida iniciou a leitura do evangelho de Mateus. E ia descobrindo paulatinamente um mundo de luz que jamais havia pensado que pudesse existir. Sua conversão suscitou alvoroço na cidade e foi motivo de orgulho para os cristãos. Mas ele não se tinha aproximado do cristianismo para agradar a alguém: não era do seu caráter, alheio ao carreirismo e amante da vida tranqüila na sua casa. Freqüentava a comunidade e, se convidado, relatava suas descobertas, e todos o ouviam com admiração, porque aquilo que ele dizia sobre Deus era tão luminoso e atraente que se lhes imprimia no coração para sempre.

Bispo, sem querer Foi por isso que após a morte do bispo, em 350, foi escolhido unani­ memente pelo povo para substituí-lo. Ele não opôs resistência, ao se dar conta de que qualquer resistência seria inútil. Naquela época, a escolha de padre ou bispo era manifestada pela comunidade, e quando não se metia no meio a política imperial acertava em cheio. Mais tarde, relembrando aquele dia, diria que aquela missão lhe fora imposta, como o foi a cruz sobre os ombros de Cristo. Num primeiro momento, o exercício do ministério de bispado foi relativamente fácil, embora tivesse que dizer adeus à tranqüilidade a que estava acostumado. A mulher lhe deu liberdade para ocupar-se das coisas da Igreja, e só o via no altar quando ele celebrava a eucaristia. Tinha entendido que de agora em diante não lhe pertencia mais e o ofereceu com alegria àquele Deus que tinha entrado de modo inesperado e profundo na vida deles. Jamais tinham pensado em viver como monges, mas naquele momento tinha a possibilidade de fazê-lo e os dois concordaram que era uma verdadeira sorte. Abra, entretanto, crescia com a mãe e compartilhava dos mesmos sentimentos. O trabalho de Hilário era o de todos os bispos: administrar os bens que os fiéis doavam para os pobres e as viúvas, celebrar o culto, preparar os catecúmenos para o batismo, instruir os fiéis com a pregação e, sobretudo, manter a harmonia na comunidade. As coisas transcorriam tão bem que a sua fama se espalhou por toda a Gália, atraindo também o jovem Martinho (316-


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397), logo depois da sua conversão. Os dois se entrosaram maravilhosamente e Hilário, depois de ter procurado unir este novo soldado de Cristo à sua Igreja, reconheceu que Martinho nascera para a vida monástica e lhe deu todo o apoio. Até 350, ninguém na Gália conhecia a existência do arianismo, menos ainda os de Poitiers. Hilário confessou candidamente que, embora fosse bispo, “nunca ouvira falar do credo de Nicéia antes de ser exilado”. Quando a heresia começou a se espalhar rapidamente – não porque as pessoas quisessem, mas porque as autoridades do império, reunindo os bispos ao seu bel-prazer em sínodos e concílios, o impunham – Hilário não aderiu. Não somente se recusou a participar do concílio de Arles em 353 e do de Milão em 355, mas no momento oportuno fez sentir a sua voz, organizando uma reunião dos bispos em Paris sem pedir autorização ao imperador. Naquele sínodo, todos os bispos da Gália, com aquela liberdade que convinha à Igreja, condenaram os bispos Ursacio e Valente da Panonia e Saturnino de Arles, que tinham procurado introduzir o arianismo no Ocidente. Reafirmada a verdadeira fé, Hilário obteve também que fosse anulada a condenação de santo Atanásio de Alexandria, pronunciada em Arles e reiterada em Milão por desejo do imperador.

Um exílio doloroso, mas fecundo O imperador Constâncio, que até aquele momento tinha ignorado a existência do bispo de Poitiers, enviou-o diretamente para o exílio na Ásia Menor. Este em sua condição de exilado lhe respondeu com veemência: “Sou católico, não quero ser herege; sou cristão, não quero ser ariano; antes morrer do que ceder ao poder de um homem e manchar a integridade de minha fé”.13 Na Frígia, onde ele estava desterrado, Hilário gozava de relativa liberdade de movimento e teve a possibilidade de constatar com os próprios olhos a que lastimável estado as igrejas no Oriente tinham ficado reduzidas. Não havia mais o antigo fervor entre os irmãos e muitos pastores estavam completamente sujeitos ao poder político. Ele anotava com tristeza: “A duras penas encontram-se aqui bispos e fiéis que admitem a fé de Nicéia. O erro

13. Ad Const. I,1.


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tomou pé e se agigantou graças à perversidade de alguns... As dez províncias da Ásia, onde me encontro, verdadeiramente não conhecem mais a Deus”.14 A sua fé na Trindade era cristalina e, depois de a ter apresentado por escrito no seu livro Sulla Trinità (Sobre a Trindade), começou uma nova obra, Sui Sinodi (Sobre os Sínodos), na tentativa de colocar em acordo os bispos das duas partes do império. No fundo, ele estava convencido de que muitas controvérsias doutrinais poderiam ser resolvidas pondo-se de acordo em dar às palavras o mesmo significado. Nesse intento, procurou aproximar todos, explicar e convidar à compreensão: “Não considerei um delito ter conversado com eles... ter entrado em suas casas de oração e ter confiado naquilo que se devia esperar deles para o bem da paz”.15 Infelizmente o senso prático do romano não conseguiu contentar o espírito sutil dos gregos. Concluía o seu livro Sui Sinodi (Sobre os Sínodos) com esta saudação aos bispos da Gália: “Estive convosco: agindo em unidade e previdência, conservai na vossa consciência pura e sem mancha a fé que tendes mantido até este momento intacta. Lembrai-vos de mim nas vossas orações. Agora que expus a minha fé, não sei nem eu se me convenha morrer, mais do que experimentar alegria ao regressar novamente ao meio de vós”. Se em Poitiers não tinham permitido que nenhum outro ocupasse o seu lugar e ele através de cartas continuava a guiar a sua igreja por meio dos presbíteros e diáconos, no Oriente sua intensa atividade e sua palavra convincente começaram a alarmar os bispos arianos. Ao imperador que, cansado com as brigas religiosas, queria pôr fim em tudo aquilo com um concílio universal, eles, no entanto, sugeriram dois concílios distintos: um em Rimini para os ocidentais e um outro em Salêucia para os orientais. Hilário foi para Selêucia, mas lá nada resolveu e o imperador convocou o concílio de Constantinopla; em Rimini, ao contrário, sob a pressão imperial, os padres – muitos sem perceber – assinaram uma fórmula ariana. A notícia repercutiu no Oriente e deu nova força aos inimigos de Hilário. Mesmo os ocidentais, que Hilário tinha sempre apresentado como defensores da sã doutrina, agora tinham assinado ao contrário, afastando-se da posição da grande maioria do episcopado do Oriente. Portanto, o bispo de Poitiers, – concluíram seus adversários – cantava fora do coro e, para não o ouvir, valia a 14. De Synodis, 63. 15. Adv. Const. 2.


Santo Hilário de Poitiers

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pena enviá-lo de volta à sua sede. Lá os companheiros tentaram fazê-lo calar para sempre. Foi reenviado para a França com a “acusação de perturbador da paz no Oriente”.

Retorno à pátria Hilário observou que os seus companheiros em Rimini não tinham tido a coragem do martírio. Quando conseguiu obter notícias mais precisas sobre o desenrolar daquela reunião, escreveu uma veemente carta ao imperador: “Tu combates contra Deus, destróis a Igreja, persegues os santos, aniquilas a religião..., finges-te de cristão e, ao contrário, és um novo inimigo de Cristo; distribuis as sedes episcopais entre teus seguidores e colocas maus bispos no lugar de bons; convocas concílios e constranges os bispos ocidentais, os trancastes em Rimini, aterrorizando-os com tuas ameaças; enfraquecidos pela fome, sofrendo com o frio intenso, aturdidos por tuas mentiras, abandonam a fé”.16 Não obstante o regresso a Poitiers ter sido um verdadeiro triunfo, Hilário atravessou um período particularmente difícil. Valia a pena defender a fé diante de bispos que nada tinham conservado da vida evangélica? Para que serve uma Igreja sujeita ao império? Nesse período recebeu a visita de são Martinho e sentiu renascer para uma nova vida. Embora as notícias sobre a situação do norte da Itália não fossem consoladoras, pois o imperador tinha conseguido nomear um bispo ariano para a sede de Milão e para muitas outras sedes secundárias, a santidade de Martinho monge e seus projetos de vida evangélica lhe transmitiram esperança. Hilário retomou o seu lugar de combate com renovado vigor, merecendo até elogio do historiador cristão Sulpício Severo (360-420): “Todos devem reconhecer que a nossa pátria gálica foi libertada do pecado da heresia pela intervenção do bispo Hilário”. E não foi somente a Gália a ser iluminada pela luz que brotava da mente e do coração do bispo de Poitiers, porque este, junto com santo Eusébio de Vercelli (300-371), fez sentir sua influência também sobre a Itália. Hilário passou os últimos anos em relativa tranqüilidade. Com a morte de Constâncio, a Igreja readquiriu a liberdade e a heresia começou a perder força, enquanto Martinho, sagrado bispo de Tours, evangelizava os pobres e organizava os monges e o clero, fazendo reflorescer em toda parte e vida evangélica. 16. Contra Const. 7.


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Aproximava-se o momento de se encontrar com aquele Deus Uno e Trino que tanto tinha amado pelo qual igualmente tinha sofrido. Ele, agora, o esperava onde, como ele mesmo tinha escrito, “não existe mais sofrimento que possa vir de um tirano, nenhum engodo de honra, nenhuma inútil fama, nenhuma dor nem fadiga; o corpo não tem mais necessidade de alimento nem de sono. Mas a luz eterna será nossa e iluminará para sempre a nossa vida. Possuímos o maior de todos os bens. Todos ouviremos a palavra de Deus e num eterno coro, junto com os anjos, cantaremos a grandeza de nosso Deus e Senhor”. Imerso nesta contemplação, partiu para o céu no dia 1º de novembro de 367. De seus familiares ainda permanecia viva a filha Abra que tinha optado pela virgindade. Seu pai lhe tinha enviado do exílio uma belíssima carta na qual cantava a beleza do estado virginal.

17 de janeiro Santo Antão abade (251-356) “O abade santo Antão, inflamado do teu amor, soube acolher o convite do Evangelho com zelo total e com profunda alegria. Impelido por tua graça a seguir Cristo com o coração livre e puro, doou aos pobres todos os seus bens. Superando com força de espírito a debilidade do corpo, viveu em perfeita comunhão contigo, ó Pai, na áspera solidão do deserto.” 17

Com estas breves pinceladas, a liturgia ambrosiana reassume o caminho espiritual daquele que se tornou o patriarca dos eremitas. Foi uma verdadeira senda de santidade que ocupou o lugar do martírio cruento, tão freqüente no período das perseguições, mas que se havia tornado bastante raro, depois da paz de Constantino. As etapas desta nova via de santidade foram descritas magistralmente por santo Atanásio (295-373), bispo de Alexandria, conhecedor profundo da experiência espiritual de Antão. 17. MA II, 1028 (MA = Missal Ambrosiano. As citações a seguir com a sigla MA são do Missal Ambrosiano Quotidiano, editado pelo Centro Ambrosiano e Piemme em 1991).


Santo Antão

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O chamado Antão nasceu aproximadamente em 251, de uma rica família de agricultores na aldeia de Coma, atualmente Qemans, perto de Eracleópolis, no médio Egito. Entre os 18 e 20 anos, ficou órfão dos pais com um rico patrimônio de terras para administrar e uma irmã menor para educar. Certo dia, assistindo a uma cerimônia litúrgica, foi profundamente tocado pelas palavras do evangelho: Se querer ser perfeito, vai vende os teus bens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!18 Tinha ouvido muitas outras vezes este convite de Jesus, mas agora sentiao dirigido a ele pessoalmente. Pediu conselho às pessoas conhecedoras das coisas de Deus, vendeu os seus bens, reservando o indispensável para manterse com o próprio trabalho e para cuidar da irmã, e retirou-se para o campo num casebre. Desta forma, iniciava a vida de asceta, feita de separação do mundo, de trabalho e de oração. Antão desejava simplesmente colocar em prática o Evangelho como tinham feito os apóstolos e os primeiros cristãos. A experiência ia muito bem: experimentava luz e alegria interior, sentiase livre dos impulsos da carne e as palavras da Escritura – agora tinha todo o tempo para meditá-las – lhe revelavam uma profundidade inesperada. O trabalho não o distraía e a oração era contínua. Passaram-se alguns anos e vieram as primeiras provas. Aquele estilo de vida solitária não seria no fundo uma esquisitice, uma vez que a maior parte dos homens e até os eclesiásticos não o seguiam? Não teria sido egoísmo seu deixar a irmã aos cuidados de outros, embora se tratasse de uma comunidade de virgens? E, ainda mais, por que viver sozinho por toda a vida, se o bom Deus nos dá a possibilidade de formar uma família? Observava com surpresa que, enquanto no primeiro período o apego aos bens materiais e o instinto da carne tinham não só adormecido, mas até desaparecido, agora tornavam a se fazer sentir fortes e quase incontroláveis. Até aquele momento, o Mestre divino tinha-o conduzido pela mão e feito saborear os bens celestes, mas agora com esta prova convidava-o a uma nova maturidade: o jovem Antão, com aquela liberdade que cada pessoa humana recebe do Criador para poder amar, devia escolher Deus como o único bem de sua vida. 18. Mateus 19,21.


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A difícil luta Pediu ajuda aos outros ascetas e estes lhe disseram para não se assustar, mas prosseguir com confiança, porque Deus estava com ele. Precisava dar um passo adiante: desfazer-se das últimas coisas que ainda possuía e retirar-se para um lugar ainda mais solitário. Antão vendeu a sua casinha e o pequeno terreno, distribuiu o que tinha recebido aos pobres e, nu como Deus o tinha feito, revestido apenas de um rude pano, foi habitar numa antiga gruta escavada na rocha de uma colina, não muito longe da sua aldeia. Um amigo seu de vez em quando lhe levava um pedaço de pão, fora isso tinha de alimentar-se com ervas dos campos e frutos silvestres. A ascese se tornou mais exigente e a união com Deus mais profunda. Antão, para não perder tempo, concentrava-se no momento presente. Assim Atanásio o descreveu: “Ele mesmo não se recordava do tempo transcorrido, mas, todos os dias, como um iniciante na ascese, esforçava-se sempre mais para progredir, repetindo continuamente o que disse são Paulo: Prescindindo do passado e atirando-me ao que resta para a frente, persigo o alvo.19 Recordavase também da palavra de Elias: Pela vida do Senhor dos exércitos, em cuja presença estou, hoje mesmo me apresentarei a ele.20 Ele observava que, ao dizer hoje, Elias não contava o tempo passado. Portanto, como se fosse sempre no início de cada dia, se esforçava para mostrar-se como se fosse aparecer diante de Deus: puro de coração disponível para obedecer à sua vontade e a mais ninguém”.21 Depois de certo tempo de permanência na gruta, Antão foi acometido por uma terrível crise espiritual e teve a impressão de ser um pobre desiludido, abandonado por Deus. Conseguiu perseverar, alimentando-se por pura fé na palavra de Deus e cumprindo dia por dia a vontade divina como lhe tinham ensinado os seus mestres. Quando afinal Cristo o inundou de luz, ele lhe perguntou: “Onde estavas? Por que não apareceste desde o início para acabar com os meus sofrimentos?” Ouviu responder: “Antão, eu estavas aqui contigo e assistia a tua luta...”22 19. Filipenses 3,14. 20. 1o Livro dos Reis 18,15. 21. Vita, 7. 22. Vita, 10


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O chamamento para o deserto O lugar de seu refúgio foi descoberto por seus concidadãos e Antão foi para mais longe ainda, perto do Mar Vermelho. Sobre as montanhas do Pispir havia uma fortaleza abandonada, habitada somente por serpentes, mas em compensação havia uma boa fonte de água. Antão se transferiu para lá em 285 e lá permaneceu por vinte anos. Mas por que ele fugia assim para tão longe de todos para lugares sempre mais semelhantes ao deserto? Desejava uma vida tranqüila, longe das preocupações humanas e das inúmeras preocupações que as multidões dos doentes e dos curiosos dão a quem goza da fama de santidade? O motivo profundo era um outro. Os anacoretas sentiam-se chamados a reviver a página evangélica de Jesus que, guiado pelo Espírito, se retirou para o deserto para ser tentado pelo demônio. Era convicção comum de que somente a solidão permitiria à criatura humana purificar-se de todas as tendências ruins, personificadas pela figura bíblica do demônio e assim se tornar um novo homem, Jesus. “A solidão – explica o teólogo católico francês Louis Bouyer (1913-2004) – “é uma prova terrível porque desgasta, quebra em pedaços o verniz das nossas seguranças superficiais: ela revela os abismos desconhecidos que todos nós carregamos em nós mesmos e nos mostra que esses abismos estão infestados: não é somente a profundidade da nossa alma, ignorada por nós mesmos, que descobrimos, mas também as potências obscuras que nos são escondidas e das quais ficaremos fatalmente escravos até o momento em que deles tomarmos consciência. E, para dizer a verdade, esta consciência nos esmagaria se não fosse iluminada pela luz da fé. Somente Cristo pode impunemente nos descobrir o mistério da iniqüidade, porque somente ele, hoje em nós como uma vez por nós, pode enfrentá-lo com sucesso”.23 Sob esta luz, as lutas dos anacoretas querem apresentar plasticamente uma verdade evangélica: a atuação das promessas batismais, a escolha pessoal de Deus. Com certeza, somente pessoas psiquicamente sãs podiam enfrentar uma ascese assim tão austera como a dos anacoretas e não foram raros os casos dos que não resistiram ou enlouqueceram, mudando por iluminações divinas ou por diabólicas tentações as próprias fantasias.

23. La spiritualità dei Padri 3/B, EDB, Bolonha 1986, p. 31.


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Não era o caso de Antão. De fato, depois de muitos anos de vida escondida, alguns monges descobriram o seu esconderijo. “Então, pela primeira vez, foi visto fora da fortaleza os que foram até ele. Ficaram maravilhados ao constatar que as suas condições físicas eram sempre as mesmas, nem gordo pela falta de movimento, nem magro pelos jejuns e pelas lutas com os demônios: estava da mesma forma que o tinham visto antes de se enclausurar no seu retiro. Espiritualmente puro, ele não estava nem oprimido pela dor nem enlevado pelo prazer; nele não havia riso nem tristeza; a multidão não o perturbava, muitas pessoas o saudavam e isto não lhe dava alegria excessiva: sempre igual a si mesmo, governando pela razão, segundo a natureza.”24 A expressão “governado pela razão, segundo a natureza” significava que ele tinha adquirido até aquele momento uma natureza “lógica”, isto é, conforme o “Logos”, o Verbo; tornou-se semelhante a Cristo e podia dizer também ele com são Paulo: Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.25 Antão era, sem dúvida, um santo com os pés no chão e podia guiar não só a si mesmo, mas também os numerosos discípulos que iam a ele para pedir conselhos. Depois de alguns anos, de fato, formaram-se dois grupos de monges que deram origem aos dois mosteiros: um ao oriente do Nilo e o outro sobre a margem esquerda do rio. Cada monge tinha a sua gruta solitária, mas obedeciam a um irmão mais sábio na vida espiritual. Aproximar-se e falar com Antão era um grande privilégio, mas também um sério compromisso. E ele, tratando-se de ajudar os irmãos no caminho para Deus, não se subtraía a esse trabalho. Em 307, o monge santo Hilário veio visitá-lo e trocaram suas experiências sobre a vida eremítica. Em 311, Antão não hesitou em deixar o seu querido refúgio e ir a Alexandria, onde crescia a perseguição de Maximino, para encorajar os irmãos com a sua palavra e também na esperança de poder enfrentar o martírio. Estas suas saídas para a vida pública se multiplicaram, mas sempre para servir à comunidade cristã, para apoiar santo Atanásio contra os difamadores e para professar publicamente a sua fé católica. Ninguém deu um basta tão decisivo à heresia ariana como ele, com a sua simples presença ao lado do amigo Atanásio. Na defesa de seu bispo escreveu também uma carta a Constantino e, se o imperador não a levou a sério, entre os cristãos foi mais eficaz que todos os decretos imperiais. Quando Antão percebeu que sua permanência na fortaleza do Mar Vermelho atraía muitos curiosos, perturbando a vida dos monges, mudou novamente de 24. Vita, 14. 25. Gálatas 2, 20.


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lugar e foi para Tebaide. Alguns de seus discípulos com uma provisão de víveres se puseram a caminho e quando o encontraram fizeram uma festa: ofereceram-lhe os alimentos que levavam e Antão foi colher os frutos no seu jardim. A presença do santo atraiu também para lá muitas pessoas desejosas de uma vida espiritual: “Ele levou muitos a abraçarem a vida solitária e foi assim que entre os montes surgiram muitos mosteiros, e o deserto foi povoado de monges, de homens que tinham renunciado a todos os seus bens para se inscreverem na cidade dos céus”.26 Antão, no dia 17 de janeiro de 356, atingia a meta de seu caminho, aquele que gerações de monges tanto no Oriente como no Ocidente tinham percorrido, ampliando-o e adaptando-o às exigências dos tempos, sem porém renunciar à genuína inspiração que tinha guiado o seu grande mestre. Deixava à Igreja sua sabedoria, resumida por seus discípulos em cento e vinte sentenças e vinte cartas. Aos seus, escreveu: “Pedi com coração sincero aquele grande Espírito de fogo que eu mesmo recebi, e vo-lo será dado” (Carta 8).

20 de janeiro São Fabiano papa e mártir (+ cerca de 250) “Alegro-me muitíssimo convosco, porque honrais a sua memória com um testemunho solene e esplêndido, fazendo-nos conhecer também a memória gloriosa que conservais do vosso bispo e oferecendo-nos um exemplo de fé e fortaleza.” 27

Tão logo o subdiácono Clemêncio (250), enviado pela comunidade romana, tinha posto a par a igreja de Cartago sobre o martírio do papa Fabiano, o bispo Cipriano (258) pegou a pena e escreveu uma belíssima carta de congratulações à igreja irmã. De fato, era costume trocar entre as igrejas as atas dos mártires para edificação recíproca. Esse costume será retomado mais tarde pelos mosteiros por ocasião da morte de seus abades. 26. Vita, 14. 27. Da Lettera de são Cipriano à Igreja de Roma.


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Mas quem foi este papa Fabiano, de quem Cipriano, à notícia de seu martírio, disse: “Exultai porque à integridade do seu governo seguiu-se um nobre fim”? Isso foi revelado pelo bispo Eusébio de Cesaréia (265-339), em sua História Eclesiástica.28 Fabiano pertencia à comunidade de Roma e certamente não pensava em ser papa. Com a morte de Antero, papa de origem grega, a comunidade se reuniu para eleger o sucessor e unanimemente escolheu Fabiano, um cristão autêntico e estimado por todos. Até aquele momento, ele se tinha ocupado com a administração de seu campo; de agora em diante devia cuidar do campo de Deus.

Bispo de Roma Era ainda um simples leigo quando foi sagrado bispo de Roma no dia 10 de janeiro de 236. Os cristãos até o ano de 249 tinham vivido um período de paz sob o imperador Giordano antes e Filipo Arabo depois. O novo papa, bom administrador, valeu-se disso para reorganizar a comunidade que – sempre segundo as indicações de Eusébio – era composta por quarenta e seis presbíteros, sete diáconos, sete subdiáconos, quarenta e dois acólitos, cinqüenta e dois entre exorcistas, leitores e ostiários, e havia aproximadamente entre viúvas e outros cristãos mil e quinhentos necessitados de ajuda. Fabiano com seu conselho de presbíteros percebeu que era o momento de subdividir a cidade de Roma em sete regiões eclesiásticas, confiando o governo de cada uma a um diácono, coadjuvado por um subdiácono. Seu trabalho era administrar abrigos para os doentes, conservar ou construir capelas para o culto e estar em contato com o presbítero, encarregado pelo papa de prover permanentemente o serviço litúrgico. Aqueles presbíteros, incardinados numa igreja, distinguiam-se dos demais que, embora fazendo parte do conselho, recebiam somente tarefas temporárias ou ocasionais. Os incardinados, como diz o nome, construíram o início do que no futuro seria o colégio dos cardeais.

O cuidado das outras igrejas Fabiano, enquanto se ocupava da comunidade de Roma, também cuidou de outras igrejas irmãs, ordenando onze bispos para diversas localidades, 28. Eusébio de Cesaréia, Storia ecclesiastica, VI, 29.


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enviando missionários para a Gália, tomando a defesa do grande Orígines de Alexandria do Egito e preocupando-se com os problemas dos lapsi. Neste novo clima de paz que existia no império, muitos cristãos, que durante as perseguições tinham sacrificado aos ídolos para não perder os bens e a vida, agora pediam para voltar à comunhão da Igreja. Eram chamados lapsi, isto é, aqueles que caíram. A Igreja de Roma já na época de Calisto vinha usando de muita liberalidade para com eles; ao passo que as igrejas africanas eram mais severas. Cipriano se lamentava escrevendo, talvez com um pouco de exagero, que na sua região os cristãos, depois das perseguições, eram todos “tentados a acumular bens e esquecer daquilo que tinham feito os cristãos na época dos apóstolos; e em vez de imitar seu exemplo, ardiam num desejo insaciável de riquezas e só pensavam em acumulá-las cada vez mais. A piedade religiosa tinha desaparecido nos sacerdotes, e nos ministros do culto, a fidelidade e a integridade; não existia mais caridade na vida dos cristãos, nem disciplina nos costumes”. Diante dessa permissividade, Cipriano considerou um castigo de Deus a repentina explosão das perseguições de Décio em 249. Este imperador, percebendo o esfacelamento político e moral do estado, atribuiu a culpa aos cristãos porque se tinham negado a participar dos sacrifícios nacionais para implorar o fim de uma epidemia. Estabeleceu então que todos os súditos deviam apresentar-se para o sacrifício e obter um libelo que certificasse sua participação. Foram muitos os mártires, mas também não faltaram aqueles que abjuraram ou pagaram para obter o libelo sem oferecer o sacrifício. Fabiano, muito conhecido em Roma, foi preso, particularmente visado pelo próprio imperador, que havia decidido eliminar primeiro os bispos para depois dobrar de modo mais fácil os outros cristãos. Foi detido e martirizado em 20 de janeiro de 250. O seu corpo foi sepultado na cripta dos papas no cemitério de são Calisto, onde ele havia depositado as relíquias de seus predecessores.

A alma de um bom pastor Antes de sua morte ou logo em seguida, a igreja de Roma tinha enviado uma carta a Cipriano para explicar ao severo bispo de Cartago a praxe da romana em relação ao lapsi. Talvez em Roma a situação não fosse assim tão ruim como aquela que Cipriano tinha encontrado na África. A carta de qualquer maneira espelhava o estilo de Fabiano e é uma verdadeira obra-prima de caridade pastoral. Eis o texto:


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A Igreja resiste firme na fé. É verdade que alguns, ou porque ficaram impressionados com a repercussão suscitada por serem pessoas ilustres, ou por causa da fragilidade humana, cederam. No entanto, nós não os abandonamos, embora se tenham separado de nós. Não os abandonamos em sua queda, mas os ajudamos e lhes estamos próximos para que se reabilitem mediante a penitência e recebam o perdão daquele que o pode conceder. Pois, de fato, se os deixamos entregues a si mesmos, a sua queda se tornará irreparável. Procurai fazer, também vós, outro tanto, irmãos caríssimos, estendendo a mão àqueles que caíram para que se levantem. Assim, se tiverem que sofrer a prisão, se sentirão fortalecidos para confessar, desta vez, a fé e remediarem o erro anterior. Permiti-me lembrar-vos ainda qual é a linha a seguir a respeito de um outro problema. Aqueles que fraquejaram na hora da provação, se estiverem enfermos, e desde que estejam arrependidos e desejosos da comunhão com à igreja, devem ser socorridos. As viúvas e outros impossibilitados de se apresentarem espontaneamente, como também os encarcerados ou os que estão longe de suas casas, devem ter quem os ajude. Tampouco os catecúmenos atingidos pela doença devem se sentir decepcionados na sua esperança de ajuda.

Saúdam-vos os irmãos que estão presos, os presbíteros e toda a igreja que, com a maior solicitude, vela sobre todos os que invocam o nome do Senhor. E também pedimos que vos lembreis de nós. Fabiano, compreensivo para com os fracos, tinha deixado um exemplo admirável de fortaleza, adotada por Cipriano com uma carta dirigida a todas as igrejas da África, escrevendo: “Como é prejudicial a queda de quem está na chefia, entretanto, ao contrário, é certamente útil e salutar um bispo que se oferece aos irmãos como exemplo de firmeza na fé”.

20 de janeiro São Sebastião mártir (+ 288?) “Não há maior amor que doar a vida pelos irmãos. Sebastião, verdadeiro discípulo fiel desta escola, por seu martírio, deu diante dos homens a suprema prova de amor.” 29 29. MA II, 1031.


São Sebastião

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O imperador Galieno em 260 tinha revogado todos os editos de perseguição contra os cristãos. Seguiu-se um período de paz, durante o qual os cristãos, embora não sendo oficialmente reconhecidos, eram, porém, estimados e alguns deles ocupavam postos de destaque junto à administração pública. Este clima favoreceu enormemente o desenvolvimento e a organização da Igreja. Diocleciano, que governou de 284 a 305, desejava levar adiante esta linha de paz, mas dezoito anos mais tarde, sob a insistência de seu césar, Galério, abriu caminho para uma das perseguições mais cruéis em todo o império.

As informações historicamente corretas Sebastião, segundo o testemunho de santo Ambrósio, nasceu e cresceu em Milão, de pai narbonês e mãe milanesa. Foi educado na fé cristã naquela cidade e seguiu a carreira militar com grande sucesso em torno de 283, até tornar-se chefe da primeira corte da guarda imperial de Roma. Quando estourou a perseguição de Diocleciano, ele pôde ajudar muitos cristãos, até ser descoberto, condenado ao martírio e sepultado na via Appia, nas catacumbas que mais tarde vieram a ser chamadas com o seu nome.

Os relatos de Arnóbio Estas são as poucas informações historicamente seguras, mas sua passio (martírio), descrita pelo monge Arnóbio, o Jovem, nos apresenta outras informações que embelezam a pura história. Sebastião, por sua bravura militar, recebeu honras do imperador que o premiou com a chefia da tropa principal. Ao mesmo tempo, o papa Caio chamou-o de “defensor da Igreja” pela assistência que dava aos cristãos perseguidos. Seu zelo em socorrer os cristãos prisioneiros e exortá-los a se manterem fiéis a Cristo até o martírio não passou despercebido e alguém, talvez por inveja, contou tudo ao imperador. Chamado a dar explicações, ouviu do imperador em pessoa: “Eu te coloquei entre os grandes, dando-te pleno acesso ao meu palácio, e tu tramas contra a minha segurança e proferes injúrias contra os deuses do estado?” Sebastião teria respondido: “Eu sempre pedi a Cristo por tua saúde e pela segurança do estado. Em todo o império sempre adorei o Deus que está nos céus”.


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Diocleciano condenou-o à morte, determinando a um grupo de arqueiros que executassem a sentença fora de Roma, em campo aberto. Amarrado a uma árvore e transpassado por numerosas flechas, foi abandonado para servir de alimento aos animais selvagens. Irene, uma senhora cristã, foi com as criadas recolher os restos mortais, mas tendo encontrado Sebastião ainda vivo, levou-o para casa e cuidou dele. Recuperada a saúde, Sebastião foi ao palácio imperial e se apresentou ao imperador Diocleciano. O imperador, tomado de surpresa, ouviu do redivivo o que lhe mostrava o grave erro e a grande injustiça que ele estava cometendo contra os cristãos, fiéis servidores de Cristo, e também do império. Diocleciano, desta vez, não confiou mais aos arqueiros, mas aos açoita­ dores que o flagelaram até a morte e o jogaram numa fossa da cidade. Uma outra senhora, Lucina, recuperou o corpo e lhe rendeu as homenagens de uma sepultura cristã. Para além da credibilidade ou pelo menos pela narrativa, se entrevê a práxis cristã daquela época. A comunidade colocava à disposição os seus recursos para sustentar os irmãos perseguidos, visitando-os no cárcere, assistindo-os nos tribunais, providenciando a sepultura e venerando sua memória. É também admirável como personalidades do mais alto nível arriscavam sua posição e até mesmo a vida para socorrer os candidatos ao martírio, mesmo que estes fossem simples escravos.

21 de janeiro Santa Inês virgem mártir (+ 304?) “Estou prometida a Cristo, mais belo que o sol e a lua, Senhor dos anjos. Com o seu anel estou comprometida; ele colocou sobre minha cabeça a coroa de esposa. Alegrai-vos, festejai comigo. Agora vivo perto dele na esplêndida habitação dos santos. Procurei-te muito, e neste momento contemplo o teu rosto; tão esperado, e agora sois meu na terra, te amei sem medida e agora sou tua para sempre.” 30

30. Da Liturgia das Horas.


Santa Inês

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Esta menina ainda não tinha completado 12 anos e impressionou mui­ tís­simo seus contemporâneos, deixando uma lembrança inesquecível. Dela, falam os martirológicos mais antigos, os padres da Igreja como Ambrósio, Agostinho, Jerônimo, o poeta Prudêncio que lhe dedica um hino, e também o papa Dâmaso. Na via Nomentana, o lugar de seu martírio, Constantina, filha do imperador Constantino, o Grande, construiu uma basílica e ao seu lado mandou construir o seu mausoléu, querendo ser sepultada perto de Inês. Não há dúvida sobre sua historicidade, embora não saibamos quase nada de sua família e não possamos jurar que os pormenores de seu martírio devam ser tomados ao pé da letra. Foi martirizada no século III ou no início do século IV. O seu nome de origem oriental – Inês quer dizer casta – não deve causar admiração, porque a cultura grega era comum em Roma. Depois das perseguições, a sua história animava bastante os cristãos jovens a seguir o exemplo de sua virgindade e isto explica também porque o seu nome entrou na liturgia da missa e a sua festa se espalhou por toda parte, também na África e em Constantinopla. O elogio que lhe fez santo Ambrósio por ocasião da festa exprime o encanto daquele doutor da Igreja diante daquela figura feminina que com sua tenra idade testemunhou a fé com a dupla coroa, da virgindade e do martírio.

O elogio de Ambrósio “É o dia do nascimento para o céu de uma virgem: imitemos a sua integridade. É o dia natalício de uma mártir: ofereçamos exemplo dela, o nosso sacrifício. É o aniversário de santa Inês!.” Conta-se que sofreu o martírio aos 12 anos. Como é detestável aquela crueldade que não poupou sequer tão tenra idade. Maior, porém, foi a força da fé que encontrou testemunho numa vida ainda no início. Um corpo tão pequeno poderia talvez oferecer espaço aos golpes da espada? Contudo, ela que parecia inacessível ao ferro, eis que teve força para vencer a espada. Em sua idade, as meninas tremem diante do olhar severo dos pais, choram e gritam por pequenas picadas como se tivessem sido feridas. Inês, ao invés, permaneceu impávida diante das mãos dos carrascos, tintas com seu sangue. Sob o peso das correntes fica imóvel e oferece o corpo inteiro à espada do algoz sem saber que fosse morrer, mas já


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pronta para a morte. Levada a toda força até os altares dos ídolos e posta entre as brasas, estende as mãos para Cristo e sobre os próprios altares sacrílegos ergue o troféu do Senhor vitorioso. Introduz o pescoço e as mãos nos cepos de ferro, embora nenhuma cadeia pudesse prender membros tão finos. Novo tipo de martírio! Ainda não era capaz de suportar as torturas e, no entanto, estava já madura para a vitória. A luta foi difícil, mas fácil a coroa. A tenra idade deu uma lição de fortaleza. Uma noiva não andaria tão depressa para o casamento como aquela virgem correu para o lugar do suplício, alegre, ágil, com a cabeça enfeitada não de coroa, mas de Cristo, não de flores, mas de nobres virtudes. Todos choravam, ela não. E mais se admiravam que entregasse uma vida que ainda não gozara e a doasse como se a tivesse vivido plenamente. Todos ficavam espantados que já se levantasse como testemunha de Deus aquela que, por causa da idade, não podia ainda dar testemunho por si. Finalmente, conseguiu sim que se acreditasse em seu testemunho em favor de Deus, ela a quem ainda não se dava crédito, se testemunhasse em favor dos homens. Na verdade, o que está acima da natureza é do Autor da natureza. A quantas terríveis ameaças não recorreu o magistrado, para assustá-la. A quantas doces adulações para persuadi-la, e de quantos pretendentes à sua mão não lhe falou para fazê-la retroceder de seu propósito! Mas sua resposta foi esta: “É uma injúria ao esposo dar atenção ao amante. Aquele que primeiro me escolheu para si, esse é que me receberá. Por que demoras, carrasco? Pereça este corpo: este pode ser amado e desejado, mas eu não o quero”. Ficou imóvel, rezou, inclinou a cabeça. Ter-se-ia podido ver o carrasco sobressaltar-se como se fosse ele o condenado, tremer a mão do verdugo, empalidecer-se o rosto de quem temia o perigo alheio, enquanto a menina não temia o próprio. Eis, pois, numa única vítima um duplo martírio, da castidade e da fé. “Permaneci virgem e alcancei a palma do martírio.”31

O relato de seu sofrimento Mas interessa-nos conhecer também o que está nos escritos sobre seu sacrifício. Neles se conta que Inês, acusada de ser cristã porque não queria se submeter aos desejos do filho do governador, confessou não somente a sua adesão a Cristo, mas também de pertencer a ele para sempre. Ofereceram-lhe, então, a possibilidade de escolher: ou fazer parte das vestais para guardar com elas o fogo, pertencente aos deuses, ou passar a 31. PL 16,189-191.


São Vicente

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viver numa casa de prostituição. A menina recusou ambas as propostas, tendo horror tanto à idolatria quanto à impureza. Foi levada a custo para um prostíbulo, mas ninguém ousou se aproximar dela e o único homem que se atreveu caiu morto a seus pés antes de tocá-la. Tinham-lhe tirado as vestes e ela se cobria como podia com as suas mãos e com os seus longos cabelos. Conduzida ao tribunal, o juiz lhe disse: “Acreditarei em ti e no teu Deus, se tu ressuscitares este homem morto por tua causa”. Inês orou ao seu esposo e o defunto tornou a viver para admiração dos presentes. “Grande é o Deus dos cristãos!” – exclamou o juiz. E parecia que de agora em diante a menina, que tinha restituído a vida, podia continuar viva. Mas depois de alguns dias foi acusada de feitiçaria e condenada definitivamente. Nada sabemos sobre o tipo de morte a que a submeteram. Conforme o papa Damaso e a tradição grega, ela teria sido queimada viva; conforme o poeta Prudêncio e a tradição latina, teria sido decapitada. O famoso escritor italiano Pedro Bergellini (1897-1982) comenta que no início da liturgia ambrosiana “o poeta imagina a menina degolada, como uma verdadeira ovelha, mansa e imaculada. E do Cordeiro divino, a menina mártir, branca e vermelha, tornou-se a esposa mais tenra e comovente”.32 Todos os anos, na liturgia de sua festa, são bentas duas ovelhas brancas, a lã destas ovelhas é usada para confeccionar os pálios que o Papa doa aos arcebispos para significar que também, eles, como Inês, devem estar preparados para dar a vida pela Igreja, esposa de Cristo.

22 de janeiro São Vicente diácono e mártir (+ 304) “O mundo arma uma dupla batalha contra os soldados de Cristo: bajula para enganar, assusta para abater. Não nos detenha o nosso prazer, não nos amedronte a crueldade alheia, e desta forma, triunfaremos sobre o mundo.” 33 32. BARGELLINI, Piero. Mille santi del giorno, Vallecchi, Firenze 1977, p. 43. 33. Santo Agostinho, Discorsi: PL 38,1256.


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Essas eram palavras do santo bispo de Hipona. Todos os anos, sua comunidade prestava homenagem ao mártir espanhol com uma festa e, depois da leitura das Atas do seu martírio, Agostinho fazia uma esplêndida homilia. Vicente nasceu na Península Ibérica (Espanha), em Huesca, de uma família consular. Seu pai Eutíquio e sua mãe Enola destinaram-no aos estudos, confiando-o aos cuidados de Valério, bispo de Saragoça. Crescido na escola daquele santo pastor, tornou-se arquidiácono e desenvolveu com competência e caridade os dois trabalhos característicos do ministério diaconal: administração dos bens da comunidade e a pregação do Evangelho. Era admirado até pelos pagãos pelo seu zelo em ir ao encontro das necessidades dos pobres e muitos se deixavam conquistar por sua palavra convincente, aderindo à fé cristã. O bispo, já velho, encontrou nele o seu braço direito e conjeturava tê-lo como sucessor. Quando se desencadeou a perseguição de Diocleciano, as autoridades não se voltaram tanto contra o bispo, já fraco, mas passaram a visar ao seu diácono. Vicente foi preso e levado para Valência junto com o bispo, mas lá foi separado dele, interrogado, torturado e recluso numa horrível prisão. Depois de um certo tempo, o juiz procurou dobrá-lo com outros meios. Tirou-o da prisão e o manteve preso numa casa de nobres com todos os confortos que estes gozavam, para mostrar-lhe que tipo de vida o esperaria se negasse o cristianismo. Foi-lhe prometido iniciar, então, a carreira de cônsul a serviço do imperador conforme as tradições de sua família. Mas tudo isto foi inútil, e foi decapitado. A fama de seu martírio, conforme Agostinho, logo foi difundida “até os limites do império romano ou onde havia um nome cristão”. Sobre seu martírio escreveram também são Paulino de Nola e o poeta Prudêncio, sem mencionar os numerosos relatos embelezados pela fantasia de seus autores.

24 de janeiro São Francisco de Sales bispo e doutor da Igreja (1567-1622) “Viver no mundo, nesta vida mortal, contra todas as opiniões e máximas do mundo e contra as correntes com uma vida de renúncia, abandono e abnegação


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comuns: isto não é viver uma vida puramente humana, mas, sobretudo, sobrenatural... Ninguém pode viver neste mundo se não for atraído pelo Pai eterno: tal vida um enlevo contínuo e um êxtase perpétuo de ações e obras..” 34

Não eram tempos felizes para a Igreja Católica dos meados do final do século XVI, sobretudo nos países onde as idéias da Reforma se tinham difundido rapidamente, conquistando muitos seguidores e acentuando a dolorosa cisão entre os cristãos. No ducato de Sabóia manifestava-se forte influência de Calvino e de Zwinglio. As severas críticas contra a Igreja que permanecera unida a Roma eram muito pesadas e, no campo moral, muitas vezes tinham fundamento. Por que – dizia-se – permanecer unidos a um modelo de Igreja em que a maioria dos bispos ocupava seus cargos não para servir o Evangelho, mas apegados aos bens da Igreja, levando uma vida de aristocratas, mundanos, sem interessar-se pelo rebanho de Cristo? E numerosos padres não eram do mesmo jeito, além de serem tão ignorantes que não sabiam nem ensinar o catecismo? Os adeptos dos reformadores, ao contrário, voltavam à Igreja das origens e se empenhavam numa vida cristã mais severa. Não era melhor aderir àquela Igreja e não a essa, e assim assegurar-se a salvação? Nesse contexto histórico de 1567, nasceu Francisco, filho de Boisy, do antigo castelo de Sales, um homem de grande importância, fiel à Igreja Católica segundo as tradições de sua nobre linhagem e ducado. Francisco foi educado cristãmente no ambiente nobre da família. Quando chegou o momento de deixar a casa para seguir os estudos superiores, o endereço obrigatório foi Paris.

“Quero te amar agora” e voltar à luz... Lá, no meio do pulular de tantas novidades, muitas vezes particularmente atraentes, mas nem sempre claramente ortodoxas, o jovem saboiano quis escolher os jesuítas para mestres. Estes, conhecidos então por sua competência no campo dos estudos e por sua comunhão com o papa, puderam com toda a certeza ajudá-lo a discernir que nem ‘tudo era ouro’ naquilo que brilhava quer na cultura profana quer na teológica. As coisas, porém, não andaram assim tão bem como ele esperava. Aos 16 anos, viu-se envolvido numa discussão, então muito acesa, sobre a 34. Francesco de Sales, Teotimo, C. 6. Cit. In. E. Harvey, I mistici e la mistica, Libreria Editrice Vaticana, 1995, p. 531.


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predestinação e chegou a convencer-se de estar no número dos predestinados ao inferno. Uma nuvem negra envolveu sua alma e um escuro pessimismo lhe tirou a vontade de viver, mergulhando-o no desespero. A sua sorte foi que a educação recebida no âmbito familiar, em ambiente sereno e otimista, lhe propiciou amadurecer uma sábia decisão: “Se não poderei amar a Deus na eternidade – disse – quero, pelo menos, amá-lo com todas as minhas forças aqui neste mundo”. Este ato heróico de vontade lhe foi confirmado com uma consoladora iluminação enquanto rezava, um dia, diante da imagem de Nossa Senhora. A experiência de luz naquela ocasião esteve na base de sua personalidade serena e alegre e lhe permitiria desenvolver uma espiritualidade caracterizada pelo abandono à vontade amorosa de Deus. Reencontrada a tranqüilidade, Francisco não teve mais dúvidas sobre a fé e se empenhou a fundo em seus estudos. De Paris, foi para Pádua, onde se laureou brilhantemente em Direito. Assim que regressou à sua pátria, o duque o nomeou advogado do Senado de Chambéry. Descortinava-se diante dele uma brilhante carreira com grande satisfação de sua família, mas ele, vendo o estado de abandono em que se encontravam, sobretudo os cristãos da região de Chablais, aos 26 anos, foi ordenado sacerdote, colocando-se à disposição do duque e do bispo para evangelizar novamente a região da Sabóia.

Apóstolo da sua região Seus pais, conhecedores da difícil situação religiosa daquela região, opuseram-se de todos os meios, temendo por sua integridade física. Francisco, conhecido até aquele momento como um homem tranqüilo e submisso, revelou um outro aspecto de seu caráter, a firmeza, não se deixando amedrontar pelos outros diante do chamado de Deus. Apelando para o exemplo de seu fundador, são Francisco de Assis que, para seguir a Cristo não hesitou em abandonar a casa paterna, prosseguiu firmemente em sua decisão. Na Sabóia, a região de Chablais havia-se passado quase toda para o calvinismo e o duque não se conformava. Tinha o direito de fazer respeitar, também com meios enérgicos, o princípio: Cuius regio, eius religio, segundo o qual, cada um devia seguir a religião do próprio príncipe ou sair de seus domínios. Para que não rebentasse uma guerra de religiões, como tinha acontecido na vizinha França, Francisco expôs ao duque um plano bem diferente. Em se tratando de religião, as pessoas não se convertem pela força,


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mas pelo convencimento, instruindo-o com perseverança, esclarecendo-o com paciência e, sobretudo, mostrando-lhe o rosto amoroso de Deus. Convenceu o duque a deixá-lo livre para agir, pedindo-lhe somente que o ajudasse com a oração. Foi atendido. Pôs-se logo ao trabalho com todo o ardor juvenil, viajando e pregando em todas as igrejas com seus dotes de inteligência, conhecimentos teológicos e o tratamento doce e suave. Mas o ambiente hostil não permitia que as pessoas se reunissem para ouvir um pregador católico. Diante dessa primeira dificuldade, não perdeu o ânimo, mas inventou um novo estilo de evangelização: imprimia suas pregações em folhetos volantes com uma linguagem simples e cativante, e os colocava debaixo das portas das casas. Essa forma de divulgação, que no futuro lhe mereceria o título de patrono dos jornalistas, naqueles anos, suscitou o ódio de seus adversários que procuraram até tirar-lhe a vida. Mas ele não se deixou envolver nos espirais da violência e muitos, atraídos por suas palavras simples e profundas e por sua personalidade calma e compreensiva, reencontraram a tranqüilidade na fé de seus pais.

Bispo: “ser para os outros” Sua fama já era conhecida por todos na sua região e mais longe, quando o bispo de Genebra, já de idade avançada, quis que ele fosse seu coadjutor. Por esse motivo, foi chamado a Roma e teve a felicidade de se encontrar com são Filipe Néri, cuja espiritualidade se aproximava muito da sua. Para Francisco, foi motivo de conforto e de encorajamento. Aceitou o episcopado não como uma honra, mas como uma missão: “No dia de minha consagração episcopal, Deus me tirou de mim mesmo e me prendeu a ele; pois me consagrou para o povo, por assim dizer, converteu-me: deixando eu de me pertencer, para ser dos outros”. Tinha apenas 32 anos e, após dois anos, pela morte do bispo titular, passou a dirigir a diocese de Annecy. Não obstante as pesadas atividades pastorais, sobretudo da renovação do clero, e das visitas às paróquias, continuou a escrever e a dirigir espiritualmente pessoas fora do comum como Maria da Encarnação, Vicente de Paula e Joana Francisca de Chantal. Com Chantal, o santo bispo cultivou uma amizade profunda e fundou a Ordem da Visitação. Conforme seus planos, não se tratava de uma ordem religiosa tradicional, mas de um grupo de leigas consagradas a Deus no meio


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do mundo para servir mais ativamente à Igreja, conforme as necessidades atuais dos homens e das mulheres. No entanto, os tempos não foram favoráveis para tal inovação no campo feminino e no final ele teve de aceitar que sua fundação se tornasse uma ordem religiosa de contemplativas.

Uma vida de santidade para todos Mas agora a espiritualidade que Francisco tinha elaborado para as pessoas de cada classe social e o numeroso grupo de discípulos, homens e mulheres, eclesiásticos e leigos, que o seguiam fazia com que a santidade não pudesse mais ser tratada somente dentro dos muros dos mosteiros. Ele mesmo, no prefácio de sua obra, Filotéia, escreve: “Quase todos aqueles que trataram da santidade tiveram como meta instruir pessoas muito afastadas da engrenagem do mundo, ou ao menos ensinaram uma santidade que conduz a uma fuga do mundo. É, no entanto, minha intenção instruir os que vivem na cidade, na família, na corte...”. E, no capítulo terceiro da primeira parte do mesmo livro, diz: “As abelhas extraem seu mel das flores sem lhes causar dano algum, deixando-as intactas e frescas como as encontraram. A verdadeira santidade age melhor ainda, porque não somente não prejudica a qualquer espécie de vocação ou de tarefa, mas, ao contrário, acrescenta-lhes beleza e prestígio. É um erro, senão até mesmo uma heresia, querer excluir do exercício da santidade o ambiente militar, as lojas dos artesãos, a corte dos príncipes, os lares das pessoas casadas. Onde quer que nos encontremos, podemos e devemos aspirar à vida perfeita”. Francisco terminou sua vida terrena aos 28 de dezembro de 1622, em Lyon, onde fora para um encontro com Chantal. Apenas trinta e três anos depois de sua morte, foi proclamado santo. Logo depois, com a difusão de seus escritos e sua influência na vida de tanta gente, foi-lhe dado também o título de doutor da Igreja. A sua festa é celebrada no dia 24 de janeiro, data da transladação de seus restos mortais para Annecy.

25 de janeiro Conversão de São Paulo apóstolo e mártir (século I) “Sobre o túmulo deste incansável missionário, que percorreu milhares de quilômetros para pregar por toda parte Jesus crucificado, sofrendo muito, os antigos colocaram


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a mais simples, mas também a mais significativa das inscrições: Ao apóstolo Paulo, mártir. Estes são os dois títulos que resumem toda a sua vida.” 35

Presume-se que Paulo tenha nascido aproximadamente entre os anos 5 e 10 d.C., na cidade cosmopolita de Tarso, de pais fabricantes de tendas e tinham adquirido o título de cidadãos romanos. Possuía duplo nome: Saulo para os hebreus e Paulo para os gregos e romanos. Conhecia muito bem a cultura grega e também aprendeu esta língua, mas permaneceu sempre fiel às tradições dos pais. Na sua juventude, foi enviado para Jerusalém onde completou sua formação junto a Gamaliel, o mais famoso e sábio mestre daquela época no mundo hebraico. Ele mesmo, ao mencionar sua origem, dizia: Sou judeu nascido em Tarso, da Cilícia, uma cidade sem importância (Atos dos Apóstolos 22,39). E, na carta aos Filipenses (3,5-6) escreve: Circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu e filho de hebreus. Quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça legal, declaradamente irrepreensível! Em Jerusalém, conheceu os cristãos como uma seita perigosa dentro do judaísmo, que deveria ser extirpada por todos os meios. Ainda jovem, assistiu ao apedrejamento de Estêvão, guardando os mantos dos apedrejadores e, quando atingiu a idade adulta, obteve a autorização para procurar e perseguir os cristãos. Em Jerusalém, era seu grande terror.

A caminho de Damasco Convicto de estar fazendo a vontade de Deus, Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote e lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de poder trazer presos para Jerusalém, homens e mulheres, seguidores da doutrina de Cristo que encontrasse (Atos dos Apóstolos 9,1-2). Ao se aproximar da cidade, subitamente foi envolvido por uma luz do céu que caiu por terra e ouviu uma voz: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Ele perguntou: “Quem és Senhor?”, e ouviu a resposta: “Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo” e o exortou para que se dirigisse a Ananias que lhe diria 35. Cit. de um artigo de A. Penna, in Bibliotheca Sanctorum, X, Città Nuova, Roma 1990, 184.


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o que fazer (Atos dos Apóstolos 9,4-9). Erguendo-se do chão percebeu que tinha ficado cego, mas com uma grande luz no coração. Os seus companheiros conduziram-no pela mão na cidade e ele permaneceu por três dias à espera de Ananias. Quando Ananias se apresentou e lhe deu o batismo, Saulo recuperou a vista, apresentou-se à sinagoga e relatou o que lhe tinha acontecido. A comunidade cristã se alegrou enquanto a hebraica permaneceu desconcertada e pensou que Paulo tivesse enlouquecido. No entanto, Paulo pensou retirar-se para o deserto para colocar em ordem sua mente e compreender mais a fundo o dom que tinha recebido. Passou de três a quatro anos numa localidade por nós desconhecida. Talvez tenha acontecido nesse período, ou logo em seguida, o que ele relata na segunda carta aos Coríntios (12,2-4): Conheço um homem em Cristo que há quatorze anos foi arrebatado ao terceiro céu – se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem pronunciar.

Saulo, como os outros apóstolos, tinha encontrado o Ressuscitado e podia testemunhá-lo; mas de maneira diferente da dos outros apóstolos, pois não tinha convivido com Jesus nem recebido gradualmente toda a formação necessária para o ministério. A isso, o Mestre supria agora em forma extraordinária, levando-o ao paraíso e fazendo-o contemplar a realidade divina. Sem esse acontecimento, o apóstolo não teria podido fazer e ensinar como os outros fizeram e ensinaram. Reanimado por esta luz, retornou a Damasco e pregou com maior entusiasmo até suscitar a ira dos adversários e ser obrigado a fugir de noite, descendo o muro da cidade numa cesta. Foi para Jerusalém e permaneceu quinze dias com Pedro e Tiago, pondo-os a par de sua nova vida. Os apóstolos o compreenderam, mas a comunidade cristã tinha dúvida sobre sua conversão até o momento em que Barnabé foi em sua defesa. Saulo não se sentia bem e foi para Tarso, sua cidade natal, retornando ao seu serviço de tecelão. Barnabé, enviado pelos apóstolos de Antioquia, valorizando os dons que Deus tinha colocado em Saulo, foi para Tarso e o convenceu a segui-lo para Antioquia. Daí em diante, Saulo foi chamado Paulo, para sempre, porque já experimentava que o seu campo missionário não seria tanto entre os judeus, mas principalmente entre outros povos, aqueles que os hebreus chamavam de “gentios” ou pagãos.


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Aproximadamente pelo ano 43, Paulo e Barnabé retornaram a Jerusalém para levar uma ajuda econômica àquela comunidade. Ao retornarem, trouxeram consigo João Marcos, sobrinho de Barnabé, um jovem desejoso de dedicar-se ao apostolado.

A primeira viagem apostólica (45/46-49) Depois das inspirações de um profeta, Paulo e Barnabé organizaram a primeira viagem apostólica para levar o Evangelho a outras cidades do mundo grego. Primeiro dirigiram-se a Chipre, depois a Perge e dali se dirigiram para Antioquia da Pisídia. De lá Marcos, não acostumado ao grande esforço físico exigido por semelhantes viagens, retornou a Jerusalém. Os outros dois, ao contrário, prosseguiram com empenho a sua missão fundando igrejas cristãs em cada cidade que visitavam. Não faltaram perseguições e tiveram de enfrentar também um fato tragicômico, quando em Listra os habitantes os confundiram com Júpiter e Mercúrio, e queriam oferecer-lhes um sacrifício. Regressaram a Antioquia, muito felizes pelos frutos recolhidos entre os pagãos, mas encontraram a comunidade agitada. Alguns, vindos de Jerusalém, tinham afirmado que para nada serviria o batismo sem a circuncisão. Para esclarecer essa questão, Paulo e Barnabé foram novamente a Jerusalém, provocando o que veio a ser considerado o primeiro concílio da Igreja. Pedro, depois de uma longa discussão, repetiu o seu pensamento a respeito: Irmãos, vós sabeis que, já há muito tempo, Deus me escolheu dentre vós para que da minha boca os pagãos ouvissem a palavra do Evangelho e cressem. (...) Nem fez distinção alguma entre nós e eles purificando pela fé os seus corações... Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos, exatamente como eles. (Atos dos Apóstolos 15,1-35)

Então, passou a palavra a Paulo e Barnabé, para que relatassem as maravilhas realizadas por intermédio deles junto aos gentios. No fim, pela intervenção de Tiago que muito se importava com os judeus da diáspora, chegou-se a um compromisso, apresentando normas pastorais (abster-se das carnes oferecidas aos ídolos, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas, para não escandalizar ou colocar em dificuldade os cristãos que provinham do judaísmo e que, segundo a tradição hebraica (cf. Gênesis 2,4), consideravam “impuros” esses alimentos. Assim, permanecia firme o princípio fundamental, defendido por Pedro, de que o Evangelho era para todos porque Deus não faz acepção de pessoas


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e, portanto, “não se deve impor nenhuma outra obrigação além das coisas necessárias” (cf. Atos dos Apóstolos 15,27-29). A questão parecia resolvida, mas os cristãos judaizantes não cederam, provocando o famoso incidente de Antioquia, narrado por Paulo na Carta aos Gálatas (2,11-16). Pedro se encontrava em Antioquia e comia junto com os cristãos provenientes do paganismo. Chegaram à cidade os discípulos de Tiago e se escandalizaram com aquela convivência. Pedro e Barnabé, para não contrariá-los, começaram a evitar esses contatos. Quando Paulo retornou a Antioquia, percebeu a confusão que estava surgindo, chamou a atenção de Pedro sobre o que ele mesmo tinha afirmado no concílio de Jerusalém. O texto deixa entrever que Pedro reconheceu as razões adotadas por Paulo. A polêmica continuou, porém entre os cristãos das duas proveniências, até o momento em que a Igreja, já bem presente no mundo greco-romano, se tornou autônoma da sinagoga.

A segunda viagem apostólica (50-53) Retornando a Antioquia, também Marcos veio com eles. Paulo e Barnabé, depois de terem posto a par a comunidade, organizaram uma outra viagem apostólica para reforçar a fé da jovem Igreja da Ásia. Marcos queria ir com eles, mas Paulo se opôs decididamente: não queria que criasse problemas durante esta nova viagem como tinha acontecido na primeira. Entraram num acordo: Barnabé e Marcos retornariam a Chipre, e Paulo e Silas iriam às outras comunidades de terra firme. Durante a viagem, abriram-se novos horizontes para Paulo e, impulsionado pelo Espírito, atravessou o mar, foi para a Macedônia e evangelizou Filipos. Lá converteu Lídia de Tiatira, mulher muito respeitada naquela cidade, e curou uma menina que se entregava à arte adivinhatória e era boa fonte de renda para seus patrões. Isso provocou a ira dos cidadãos e Paulo e Silas foram flagelados e encarcerados. Durante a noite aconteceu um terremoto e o carcereiro, temendo que os prisioneiros tivessem aproveitado para fugir, queria se matar. Paulo, depois de o ter tranqüilizado, falou-lhe do Senhor Jesus morto e ressuscitado. O carcereiro e toda a sua família, naquela noite, quiseram receber o batismo. Ao amanhecer, as autoridades da cidade queriam que os dois prisioneiros fossem embora, mas Paulo fez observar que eles tinham flagelado dois cidadãos romanos e, então, se não quisessem ser conduzidos ao tribunal, deveriam


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deixá-los em paz e permitir que partissem quando quisessem. Eles tiveram que concordar e Paulo pôde confortar a comunidade cristã e depois partir para continuar o programa que o Espírito lhe tinha preparado. De Filipos, foi para Tessalônica e também lá nasceu uma comunidade. Depois, foi para Beréia e finalmente para Atenas. Na capital mais sofisticada do Oriente, Paulo procurou falar numa linguagem que pudesse ser aceita pelas pessoas que amavam a filosofia, mas o seu elegante discurso do Areópago diante daqueles homens cultos e analíticos foi um fracasso, embora tenha convertido Dionísio, Damaris e mais uns poucos. De Atenas, foi para Corinto. Naquela cidade cosmopolita, cujo comércio favorecia todos os tipos de vícios, Paulo obteve um sucesso inesperado. Depois de ter pregado na sinagoga, sem muito sucesso, anunciou o Evangelho aos pagãos e fez nascer uma das comunidades cristãs mais vivas. Foram-lhe de grande ajuda pessoas como a diaconisa Febe, Áquila e Priscila (cf. Romanos 16,1-4), dois casais de judeus convertidos ao Evangelho. Eles o acolheram em sua casa, dando-lhe também a possibilidade de ganhar o pão como fabricador de tendas. Permaneceu ali aproximadamente um ano e meio. Então, retomou seu caminho para Jerusalém, onde queria se libertar do voto de nazireato36 que tinha feito.

A terceira viagem apostólica (53/54-58) De lá, iniciou a terceira viagem apostólica, visitando as comunidades do Continente e detendo-se em Éfeso por três anos. Naquela grande cidade, com o crescimento da comunidade cristã, diminuiu o culto no templo da deusa Ártemis e o comércio “sagrado” teve um grande prejuízo. Deu-se uma revolta popular, provocada pelos fabricantes e vendedores das estátuas da deusa, não tanto por motivos religiosos, mas pelos interesses em jogo, mas Paulo saiu ileso. Confiou a Timóteo a comunidade para que levasse a termo sua evangelização. De Éfeso, foi novamente para a Macedônia e soube que na comunidade dos coríntios existiam divisões e desordens morais. Ficou profundamente triste e lhes escreveu a sua primeira carta. Por sorte, Corinto aceitou bem a 36. O nazireato junto aos hebreus era uma prática religiosa, uma promessa feita a Deus, que implicava em determinadas abstinências e obrigações rituais a serem realizadas no templo de Jerusalém.


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chamada à ordem do Apóstolo, como aparece bem claro na segunda carta, e Paulo foi acolhido por eles com muito amor, conseguindo também uma boa soma em dinheiro para os irmãos pobres de Jerusalém. Permaneceu três meses em Corinto e depois novamente se dirigiu para Jerusalém para lhes levar as ofertas recolhidas naquela viagem. Nas diversas comunidades da Ásia Menor, que Paulo conseguiu visitar, já convencido de que via pela última vez aqueles seus filhos, os encontros foram particularmente comoventes.

A primeira prisão Em Jerusalém, foi acolhido com grande alegria pelos irmãos. Entregoulhes as ofertas dos cristãos de suas igrejas. Tiago, porém, fez, observar-lhe que circulavam a seu respeito acusações graves junto aos judeus, segundo os quais ele pregava o abandono de Moisés e da circuncisão em todas as sinagogas da diáspora. Para fazer calar aquelas acusações, aconselhou-o a se unir a alguns irmãos que deveriam fazer o voto de nazireato, pagando ele próprio as despesas. Paulo seguiu o conselho, mas entre o povo surgiu assim mesmo um tumulto, acusando falsamente Paulo de haver introduzido no templo um não-judeu... Paulo acabou no tribunal e, depois de alternadas vicissitudes, teve que apelar para César para escapar da morte pelas mãos dos judeus. De Jerusalém, foi para Cesaréia como prisioneiro e, de lá, foi conduzido para Roma, depois de ter enfrentado o famoso naufrágio, que por três meses lhe permitiu anunciar o Evangelho numa ilha, tradicionalmente identificada como Malta. Em Roma, enquanto esperava o julgamento, permaneceu em prisão domiciliar por dois anos, evangelizando todos aqueles que o procuravam.

A quarta viagem apostólica e o martírio (63-67) Posto em liberdade, parece que Paulo aproveitou para ir até a Espanha, como nos testemunha o Fragmento muratoriano e são Clemente Romano. Isso parece ter fundamento porque tal viagem estava na programação do apóstolo (Romanos 15, 24), e também porque ele não se encontrava em Roma durante a perseguição de Nero. Depois da Espanha, parece que Paulo voltou a visitar as diversas comunidades do Oriente, deixando Tito em Creta e Timóteo em Éfeso, para que completassem a obra evangelizadora naquelas cidades. Em 66 ou no ano seguinte Paulo foi novamente preso, conduzido para Roma e submetido a uma prisão duríssima, abandonado por todos e sem


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nenhum conforto dos cristãos locais. Ele mandou um apelo comovente a Timóteo: Quanto a mim, meu sangue já está para ser derramado em libação, momento de recolher as velas... Procura vir-me encontrar, o mais depressa possível, pois Demas me abandonou..., Crescente foi para a Galácia, Tito para a Dalmácia. Somente Lucas está comigo. Toma contigo a Marcos e traze-o, pois me será útil para o ministério...Traze-me, quando vieres, o manto que eu deixei em Trôade, na casa de Carpo, e também os livros, especialmente os pergaminhos (2a Carta a Timóteo 4,6.9-13). O tribunal romano condenou-o à decapitação porque era cristão. A tradição indica como lugar da decapitação a localidade Tre Fontane perto de Roma, e o cemitério ao longo da via Ostiense como lugar de sua sepultura, onde agora está a belíssima basílica, construída em sua honra.

O pensamento de Paulo Querer apresentar uma síntese do pensamento de Paulo vai além da nossa capacidade, mas gostaria de citar uma frase muito significativa, tirada da carta aos Gálatas (1,11-12): Eu vos faço saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado não foi segundo os homens; pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por revelação de Jesus Cristo. É suficiente abrir uma das cartas paulinas para perceber o significado de tudo isso. Não se pode esquecer, além disso, de que ele, com a sua pregação e seus escritos, realizou o primeiro e maior anúncio do Evangelho na história.

26 de janeiro São Timóteo e São Tito bispos (século I) “O desígnio de tua sabedoria, cujo segredo não nos é conhecível, foi-nos revelado pelo Evangelho da salvação, do qual os santos Timóteo e Tito foram anunciadores e mestres.” 37 37. MA II, 1045.


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Timóteo e Tito estão entre os fidelíssimos discípulos de são Paulo, e gastaram toda a sua vida na difusão do Evangelho seguindo o Apóstolo e colocando em prática as suas orientações. Reportemo-nos brevemente ao que sabemos sobre eles, fundamentando-nos, sobretudo, nas cartas paulinas e no livro dos Atos dos Apóstolos. Timóteo era ainda muito jovem quando Paulo e Barnabé chegaram à sua cidade de Listra, na Lacônia (Ásia Menor). A sua avó Lóide e a sua mãe Eunice, hebréia de nascimento e fiéis à sua tradição religiosa, embora sua mãe tivesse casado com um grego, acolheu logo a Boa-Nova trazida por Paulo. Também Timóteo seguiu com profunda convicção o exemplo das duas mulheres que o tinham educado no culto das Sagradas Escrituras, ainda que não o tivessem circuncidado. Quando Paulo retornou a Listra na sua segunda viagem, falaram-lhe muito bem dele e o Apóstolo prestou atenção naquele jovem de coração puro e de mente aberta e lhe propôs que o seguisse no ministério da evangelização. Os seus familiares concordaram e a alegria foi enorme na fervorosa comunidade cristã. Sendo filho de mãe hebréia, fez-se circuncidar não porque isso fosse necessário à nova fé, mas para encontrar livre acesso às comunidades hebraicas da diáspora. A partir daquele momento “toda a sua vida de juventude de homem será associada à de Paulo, de quem se tornou filho, colaborador, companheiro de viagem, confidente, amigo, herdeiro”38. Ia continuamente à comunidade a que Paulo o enviava para levar notícias atualizadas ao Apóstolo. Permaneceu aproximadamente um ano e meio em Éfeso com Paulo. Encontramo-lo em Jerusalém, onde precedeu Paulo para trazer o fruto dos donativos recolhidos na comunidade cristã dos gentios para os pobres da comunidade jerosolimitana. Lá, Paulo foi preso e Timóteo o acompanhou, primeiro em Cesaréia e, depois, em Roma, assistindo-o em todas as suas necessidades e assumindo com ele as cartas aos Colossenses, aos Filipenses e a Filêmon. Depois dessa primeira prisão romana, Paulo confiou a Timóteo a importante comunidade de Éfeso e naquele período lhe escreveu duas cartas, nas quais transparece a profunda união que fora estabelecida entre os dois. Particularmente tocante é o apelo que Paulo faz na sua segunda e definitiva prisão romana: Quanto a mim, o meu sangue está para ser oferecido em libação, e chegou o tempo de recolher as velas... Procura vir me encontrar o mais depressa possível, pois Dema me abandonou... 38. C. Spicq, Saint Paul. Les Epîtres Pastorales, Paris 1947, p. 33.


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Crescente partiu para Galácia, Tito para Dalmácia. Somente Lucas está comigo. Toma contigo a Marcos, e traze-o, pois me é útil no ministério... Traze-me, quando vieres, o manto que eu deixei em Trôade, na casa de Carpo, e também os livros, especialmente os pergaminhos” (2Timóteo 4,6.9-13). Não sabemos se Timóteo conseguiu alcançar Roma e ver o Apóstolo antes do martírio. Pensa-se que seus últimos dias foram em Éfeso, onde foi sempre e de uma maneira particular venerado pelos cristãos. Mas o mais bonito elogio dele se encontra nas mesmas cartas paulinas, onde é chamado meu filho caríssimo e fiel no Senhor (1Coríntios 4,17), meu colaborador (Romanos 16,21), meu filho genuíno na fé (1Timóteo 1,1), nosso irmão e ministro de Deus na pregação do Evangelho de Cristo (1Tessalonicenses 3,2). Tito era de origem grega por parte de pai e mãe e abraçou o cristianismo na primeira viagem apostólica de Paulo e Barnabé. Não tendo uma formação religiosa fundada sobre a lei mosaica como Timóteo, mas a do, assim chamado, mundo dos gentios, sua conversão foi inserida na cultura grega e e o resultado foi um cristão autêntico que nada tinha a invejar de quem procedesse do judaísmo. Por esse motivo, Paulo e Barnabé o levaram consigo e o conduziram à comunidade de Jerusalém (Atos dos Apóstolos 15) para mostrar aos céticos os frutos que o Evangelho produzira entre os não-circuncidados. Paulo, na carta aos Gálatas, fazia observar com orgulho que naquela ocasião que nem Tito que estava comigo, foi obrigado a circuncidar-se (Gálatas 2,3). A liberdade do Evangelho tinha triunfado sobre as prescrições legais e cada um podia finalmente adorar a Deus em espírito e verdade. Como Timóteo, também Tito seguiu Paulo como fiel colaborador. Junto com ele permaneceu um pouco de tempo em Corinto, conquistando a estima daquela comunidade, onde em seguida desenvolveu o trabalho de mediador diante dos mal-entendidos surgidos sobre Paulo, alcançando-o mais tarde na Macedônia com a boa notícia do arrependimento da comunidade de Corinto. Naquela ocasião, Paulo escreveu a sua segunda carta e encarregou Tito de ser o portador, assim como organizador da coleta naquela cidade para os pobres de Jerusalém. Cumprida aquela missão, seguiu Paulo para Creta e, por vontade de Paulo, lá permaneceu para consolidar a comunidade: Eu te deixei em Creta para cuidares da organização e ao mesmo tempo para que constituas presbíteros em cada cidade, conforme as instruções que te dei (Tito 1,5). Tendo, pois, Creta


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como base, foi chamado por Paulo a Nicópolis no Épiro e, depois, enviado para a Dalmácia. Segundo o testemunho de são Jerônimo, permaneceu virgem durante toda a sua vida para poder dedicar-se totalmente à sua missão e teria sido morto em Creta. No século VIII, santo André de Jerusalém, arcebispo de Creta, no panegírico por ocasião da festa expressou com eloqüência tipicamente oriental toda a veneração dos cretenses por aquele que sempre foi reconhecido como seu pai na fé: “Tito, companheiro de viagem do ‘vaso de eleição’ (Paulo), fundamento e pedra da fé, torre de proteção construída por Deus para a Igreja de Creta... alegre sol no firmamento da Igreja, protetor de seus filhos, chama da piedade, coluna de virtude, lira eloqüente da verdade, pai da pátria”.39 As relíquias de Tito foram conservadas em Creta até 823, quando a ilha foi tomada pelos turcos que destruíram a catedral. Os venezianos conseguiram levar para a sua cidade somente a sua cabeça, que no ano de 1966, em sinal de comunhão ecumênica, foi solenemente restituída à igreja metropolitana de Eraclea, confiando a Tito, que tinha reconciliado os dissidentes dos coríntios, a missão de reconstruir a plena unidade entre os cristãos do Oriente e do Ocidente.

27 de janeiro Santa Ângela Mérici fundadora das ursulinas (1474-1540) “Segui o antigo caminho e a tradição da Igreja, ordenada e confirmada por muitos santos por meio da inspiração do Espírito Santo. E vivei a vida nova... mas rezai e fazei rezar para que Deus não abandone a sua Igreja, mas a queira reformar como lhe aprouver e como ele vir melhor para nós e para a sua maior honra e glória.” 40

39. PG 97,1141ss. 40. A. Merici. Ricordi, 7. Cit. in E. Lodi, I Santi del calendario romano, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo 1990, pp. 79-80.


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Fidelidade à sã tradição e a reforma corajosa da Igreja sob a guia do Espírito Santo são as duas características de Ângela, que com justiça foi definida como “mulher sábia e corajosa”. Com estes dois adjetivos, de fato, a Igreja Católica apresenta na liturgia a figura de Ângela Mérici, fundadora das ursulinas. Uma definição apropriada se imaginarmos que ela viveu no século XVI, num período de trabalho e de reforma interior da cristandade, quando nasceram no mundo católico numerosas congregações religiosas, mas quase todas elas voltadas para a formação masculina. Mérici, no entanto, soube criar uma obra com muitas ramificações, onde havia um trabalho particular pela formação sistemática das jovens, não somente no campo moral – como sempre se tinha feito pelo menos nas famílias – nem tampouco no campo espiritual – como acontecia sempre nos mosteiros –, mas também no intelectual. Sua iniciativa teve grande sucesso, primeiramente na Itália, durante a sua vida, e depois pelo mundo, onde quer que cheguem suas filhas espirituais, as ursulinas. Se na atualidade a mulher pode fazer ouvir sua voz e agir no mundo num diálogo de reciprocidade com o homem, deve-o, também, a mulheres como Ângela Mérici.

A enamorada de Deus Nasceu em Desenzano del Garda (Itália), aos 21 de março de 1470 ou 1474. Aos 15 anos, ficou órfã de pai e mãe e passou a viver com uma irmã em Salò na casa de um tio. Lá aprofundou sua vida cristã, fazendo-se terciária franciscana e consagrando-se pessoalmente à virgindade. Aos 20 anos, com a morte do tio, regressou a Desenzano e se pôs o problema do que fazer para fazer frutificar seu casamento com Cristo. Ingressar numa ordem religiosa? Ela admirava as mulheres consagradas nos mosteiros, mas entendia que não era ali o seu lugar. Para reconhecer o desejo divino começou – como era costume naquela época – uma série de peregrinações e foi até mesmo à Terra Santa. Lá, acometida por uma doença nos olhos e não podendo ver fisicamente os lugares santos, viu-se obrigada a uma contemplação interior. Ao regressar à Itália ficou melhor dos olhos e entendeu, em uma visão, qual estrada devia percorrer. Viu uma escada, como aquela bíblica de Jacó, pela qual subia para o céu uma fileira de meninas, cada uma delas acompanhada por um anjo. Reconheceu numa daquelas jovens uma companheira sua falecida há pouco tempo, a qual lhe disse que fundasse uma “companhia” para a formação das meninas.


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“Companhia” era o nome usado naquela época para indicar qualquer associação religiosa de leigos ou leigas, e também de sacerdotes que, sem ingressar numa ordem religiosa, se uniam entre si empenhando-se em viver integralmente o Evangelho e a servir o próximo numa especial obra de caridade.

A fundadora Ângela, sem perder tempo, começou logo sua atividade, na paróquia, dedicando-se ao catecismo, à assistência aos doentes e a outras necessidades da comunidade. Em 1529, transferiu-se para Brescia onde revelou a outras senhoras e moças, colaboradoras, a sua união secreta com Jesus – o voto de virgindade – e seu empenho em servi-lo em cada pessoa que lhe fosse próxima, principalmente nas meninas mais necessitadas. Doze daquelas colaboradoras, pertencentes a diversas classes sociais, quiseram seguir seu exemplo e se consagraram a Cristo sem usar qualquer hábito religioso e permanecendo cada uma na sua própria casa para poder estar sempre, dia e noite, disponíveis às mais diversas necessidades, como assistir a um doente, ajudar a uma viúva nos afazeres domésticos, socorrer as moças órfãs, ensinar o catecismo às crianças, fazer limpeza na igreja... Corria o ano de 1533. Foi fundada a “Companhia das pobres de santa Úrsula”. Chamavam-se pobres porque não usavam o nobre hábito das monjas, e “de santa Úrsula”, porque, não tendo elas a proteção dos muros de um mosteiro, deviam viver no mundo e permanecer fiéis a Cristo como santa Úrsula que soube enfrentar o martírio junto com suas onze companheiras. Numa época em que os homens se consideravam os únicos protagonistas da história e a instrução, privilégio das famílias ricas, era reservada normalmente somente a eles, Ângela e suas primeiras companheiras fundaram uma obra específica para a formação das meninas, especialmente para as mais pobres. As ursulinas foram chamadas “colegiais”, porque eram especializadas na fundação e direção de internatos e colégios para meninas. Ângela vendo crescer ao seu redor uma família tão numerosa e tendo um grande desejo de servir a Cristo em todas as necessidades, durante a sua vida fundou vinte e quatro ramos de ursulinas que, depois de sua morte, se agruparam somente em três setores: as ursulinas seculares que vivem em suas famílias e se dedicam às diversas obras de misericórdia nas


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paróquias em que vivem, as ursulinas colegiais em vida comum que se dedicam à instrução da juventude e as ursulinas enclausuradas, de vida contemplativa. Para todas, vale a Regra composta por Ângela em doze simples artigos, onde emerge um amor ilimitado a Cristo que se concretiza cotidianamente em servir o próximo em qualquer necessidade material, intelectual ou espiritual.

A educadora Ângela quis dedicar os seus últimos anos à formação das suas filhas. Para elas ditou, além da Regra, também as Lembranças e o Testamento Espiritual. Na Regra, depois da obediência à Igreja, depositária e garantia da verdade do Evangelho, recomenda às suas irmãs a obediência à voz do Espírito para se adaptar às necessidades da humanidade sem se deixar prender pelas tradições dos homens. Este princípio foi muito precioso para a vida das ursulinas, que souberam efetuar sem traumas muitas mudanças no transcorrer de sua história sem trair seu genuíno carisma. Já em sua época, Mérici pressentiu aquilo que nós chamamos hoje de discernimento dos sinais dos tempos. No Testamento espiritual, traçou as linhas essenciais do seu método educativo, todo fundamentado sobre a relação de sincero amor entre educador e educando e sobre o mais pleno respeito à liberdade dos outros. Desta forma, deixou escrito, às suas ursulinas: “Suplico-vos que lembreis e tenhais presente em vossa mente e no coração todas as vossas filhas, uma a uma; e não somente os seus nomes, mas também a condição, a índole e a situação de cada uma delas. Isto não vos será difícil, se as abraçardes com viva caridade... Empenhai-vos em levantar o seu ânimo com amor, mão suave e doce e não com soberba e rispidez, mas em tudo procurai ser afáveis... Sobretudo, guardai-vos de querer obter alguma coisa pela força: pois Deus deu a cada um o livre-arbítrio e não quer obrigar ninguém, mas apenas propõe, convida, aconselha. Não digo, porém, que às vezes não se deva repreender com severidade, mas a tempo e lugar... mesmo assim, somente devemos ser levadas a isso pela caridade...”.41

41. Id., Testamento spirituale. Cit. in Liturgia delle ore.


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28 de janeiro Santo Tomás de Aquino doutor angélico (1226-1274) “Deus onipotente e eterno, eis que me aproximo do sacramento do teu Filho unigênito, nosso Senhor Jesus Cristo: me aproximo como um doente do médico, que lhe devolve a vida, como o pecador à fonte da misericórdia, como o cego à luz do esplendor eterno, como o pobre e o necessitado ao Senhor do céu e da terra.” 42

Com esta oração Tomás de Aquino iniciava sua preparação à celebração eucarística, profundamente consciente do próprio nada, e totalmente abandonado ao amor do Pai. Talvez sua grandeza fosse proporcional à sua humildade. Nasceu no castelo de Roccasecca próximo de Caserta, no sul da Itália, em 1225 ou 1226 da nobre família dos Aquinos. O pai Landolfo era de origem longobarda, e a mãe Teodora era uma napolitana de origem normanda. Teve outros três irmãos e cinco irmãs, sem contar os três nascidos de um matrimônio anterior do pai.

Destinado à carreira eclesiástica Sendo Tomás o filho mais novo dos homens, os pais pensaram no seu futuro oferecendo-o como oblato aos 5 anos à abadia de Montecassino. A oblatura – como se costumavava chamar – não pressupunha que o rapaz, quando atingisse a maturidade, tivesse necessariamente de fazer os votos religiosos; era apenas uma preparação que tornava os candidatos idôneos a tal escolha. Tomás se deu muito bem no mosteiro e sempre manteve ótimo rela­ cionamento com seus mestres. O abade o estimava muitíssimo, seja pelos dons intelectuais seja pelo amor que demonstrava à disciplina monástica, embora, Tomás, já crescido, não pensasse em ser monge. A rica abadia de Montecassino naquele período era motivo de controvérsia entre o papa e o imperador Federico II. O imperador em 1239 ocupou-a 42. Oração atribuída a santo Tomás de Aquino e impressa no Missal Romano em preparação à santa Missa.


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militarmente, e expulsou todos os monges que não tinham nascido nos territórios de sua jurisdição. Lá ficaram somente oito. Era impossível naquelas condições manter uma escola para os oblatos. O abade acompanhou pessoalmente Tomás para seus pais e recomendou-lhes que fizessem continuar os estudos em Nápoles, embora a universidade não fosse papal, mas do imperador. Em Nápoles, Tomás fez o curso das artes liberais e teve a felicidade de conhecer a tradução de alguns escritos de Aristóteles. As obras do filósofo grego, utilizadas pelos mestres muçulmanos para combater a fé cristã, eram proibidas nas faculdades eclesiásticas. Tomás percebeu que elas eram valiosas.

Preferiu o carisma de Domingos Mas em Nápoles aconteceu um fato muito importante. Tomás conheceu os frades pregadores do Convento de São Domingos, talvez por tê-los escutado nas pregações, ou por terem sido seus companheiros de estudos, e ficou fascinado pelo estilo de sua vida. Ele conhecia a vida do mundo e da igreja. Nos anos que passou em Montecasino descobriu a beleza do cristianismo, mas viu também como os monges sempre estavam envolvidos em interesses mundanos por causa da riqueza que possuíam. Na família, havia experimentado o amor verdadeiro dos pais e dos irmãos, mas havia também visto tantas tramas políticas para ele incompreensíveis. Sobretudo não aceitava que homens de igreja se envolvessem nos afazeres temporais e ficassem competindo para obter por todos os meios cargos economicamente rentáveis. Àquela situação nada evangélica, Tomás quis dar uma resposta bem concreta com a sua vida e resolveu se tornar mendicante dominicano. Tinha aproximadamente 20 anos e a sua decisão deixou os parentes boquiabertos, sobretudo a mãe, viúva, que contava com ele para levar adiante a gestão dos negócios da família. Usufruindo, de fato, dos favores do imperador a quem seguiam seus filhos, tinha a possibilidade de torná-lo rapidamente abade de Montecassino, segundo um antigo desejo paterno. Quando a castelã de Roccasecca soube que Tomás estava viajando para Paris, pediu aos filhos para trazê-lo de volta para casa, usando, se necessário, também a força. Estes obtiveram uma escolta armada da parte do imperador, que se encontrava na Toscana, para combater contra as cidades fiéis ao papa, prenderam-no e enviaram-no de volta, fazendo uma parada no castelo de São João, que lhes pertencia.


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A paciência tem seus limites... Na cela onde Tomás estava preso, foi levada à noite uma belíssima jovem com a desculpa de servi-lo, mas na realidade era para tentar seduzi-lo. Tomás, que normalmente era muito paciente, depois de um dia cheio de aventuras e agitado, perdeu a paciência e com um tição aceso ameaçou-a, obrigando-a a fugir. O acontecimento pode parecer lendário, mas além de seus biógrafos daquele tempo, como também os historiadores modernos, consideram-no autêntico. O amor de Tomás pela castidade, de fato, era proverbial; não é por nada que ele é chamado doutor angélico. Não se trata de uma castidade miraculosa, mas de um dom conquistado com luta, no dia-a-dia, como testemunha esta oração escrita por ele: Ó meu bom Jesus, sei bem que todo dom perfeito, mais do que qualquer outro, o da castidade, depende da poderosa influência da vossa providência, e que sem vós, o homem não pode fazer nada. Peço-vos que me protejais com a vossa graça, a castidade e a pureza da minha alma e do meu corpo. E se receber contra a minha vontade qualquer impressão sensual, que possa manchar a castidade, e a pureza, eu vos peço que a retireis de mim, vós que sois o supremo senhor de todos os sentidos, para que eu possa com o coração imaculado avançar no vosso amor, e serviço, oferecendome casto, todos os dias de minha vida, sobre o altar da vossa divindade. 43

No dia seguinte foi conduzido a Roccasecca e entregue à mãe que o amava com muita ternura, mesmo que não conseguisse aceitar que um de seus filhos se tornasse um mendicante. Procurou convencê-lo com todos os argumentos, mas foi inútil. Ele tentou influenciar a irmã Marotta para que ficasse do seu lado e também abandonasse o mundo. De fato, ela também se tornou monja e, depois, abadessa de santa Maria de Cápua. A mãe nada mais podia fazer que aceitar a decisão do filho. Começou por permitir aos dominicanos de Nápoles que visitassem o filho, e depois de um ano deixou-o partir com sua bênção. Neste meio de tempo, a nobre castelã normanda viu caírem por terra os seus planos, pois o imperador, depois de acontecimentos desagradáveis, já não tinha mais a mesma força. Naquela confusão de lutas entre o papa e o imperador, entre poder temporal e espiritual, Tomás expressou com clareza seu pensamento num 43. Tomás de Aquino, Orações, p. 39.


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escrito44. Assim o resume James A. Weisheipl, seu biógrafo atualmente mais qualificado: Tomás afirma que o papa, em virtude de seu ofício canônico, é o chefe espiritual da Igreja e nenhum outro; todo atributo político ou mundano que se sobreponha a esta autoridade essencialmente espiritual é um elemento acidental, cuja presença ou ausência não modifica de modo algum a natureza espiritual intrínseca na Igreja. 45

É de admirar a lucidez desta visão, quando se pensa que naquele tempo a grande maioria dos eclesiásticos raciocinava de modo diferente. Mas Tomás, antes de assumir uma posição teórica, tinha rejeitado, como diz Weisheipl, “qualquer posição na Igreja que pudesse envolvê-lo nos negócios temporais”. De volta ao convento podia finalmente preparar-se para fazer sua profissão na Ordem dos Pregadores. O superior-geral, João, o Teutônico, também desta vez achou oportuno mandá-lo para o estrangeiro para evitar posteriores reconsiderações e conseqüentes complicações por parte dos parentes.

Entre Colônia e Paris Não se sabe com certeza se Tomás permaneceu por três anos em Paris antes de ir a Colônia, mas certamente passou todos aqueles anos sob a direção de santo Alberto Magno, homem de cultura enciclopédica e conhecedor do pensamento de Aristóteles. Com ele, Tomás se sentiu à vontade e vice-versa. Aquela convivência fecunda entre dois gênios da cultura durou de 1248 a 1252. No início daquele período, depois da morte do abade Estêvão II, que o papa Inocêncio IV ofereceu a Tomás o cargo de abade de Montecassino e, sabendo da sua relutância em deixar a Ordem Dominicana, concedia-lhe o privilégio de conservar o hábito e o vínculo. Mas, o jovem dominicano rejeitou a oferta de forma decidida. Em Colônia teria acontecido aquela famosa anedota a seu respeito. Os companheiros brincavam com Tomás por causa de seu comportamento silencioso e por sua corpulência, chamando-o de o boi mudo da Sicília. Sobre isto, Alberto teria feito este comentário: “Nós o chamamos de boi mudo, mas ele com sua doutrina emitirá um mugido que ressoará no mundo todo”.

44. Id., Scriptum super Sententias, II, dist. 44. 45. J. A. Weisheipl. Tommaso d’ Aquino. Vita, pensiero, opere, Jaca Book, Milão 1988, p. 12.


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Não sabemos se o fato aconteceu realmente como se conta, mas certamente a estima de Alberto pelo aluno era tão grande que quando o superior-geral lhe pediu para indicar alguém para mandar a Paris para se preparar e assumir a cátedra de doutor da ordem, Alberto logo indicou Tomás. O superior ficou um pouco indeciso, talvez pelo fato de Tomás ainda ser muito jovem, mas interveio a seu favor o cardeal e legado pontifício Hugo de são Caro, da mesma ordem, e a proposta de Alberto foi aceita. Tomás, ordenado sacerdote há pouco, tendo apenas 26 anos, foi a Paris para ensinar como bacharel a Sagrada Escritura, sob a orientação do mestre Elia Brunet e se preparar para o doutorado. Cada uma das Ordens religiosas tinha o direito a duas cátedras, uma para os alunos da província francesa e outra para os de todas as outras províncias. Tomás foi nomeado mestre dos estrangeiros. Mas o ambiente acadêmico não era fácil, porque havia uma disputa entre os mestres do clero secular e os do clero regular, sobretudo dos mendicantes. Os mestres seculares até aquele momento haviam tido tudo nas mãos, e viam os mendicantes como intrusos não só por causa da divisão do poder universitário, mas também porque levavam um estilo de vida contrário à tradição do mundo estudantil de Paris. Não se deve esquecer que mestres eminentes haviam passado do clero secular para o religioso, atraídos pela vida evangélica dos mendicantes, franciscanos e dominicanos. Foram necessárias diversas intervenções do papa para que se aceitasse como normal a presença dos religiosos no corpo docente da faculdade parisiense. Em abril de 1256, Tomás tornou-se doutor em Teologia. Tinha 31 anos, enquanto a idade mínima exigida era de 35 anos, mas, para ele, o papa tinha aberto uma exceção. Em outubro do mesmo ano, Tomás, escrevendo em defesa dos religiosos perseguidos pelo mestre Guilherme de Saint-Amour, procurou explicar a novidade do carisma dos mendicantes, uma novidade que não podia ser fechada dentro das categorias monásticas, impedindo aos frades de estudar, pregar e confessar. Antes mesmo de comentar as Sentenças de Pedro Lombardo, já havia adquirido a estima de seus alunos. Seu biógrafo, Bernardo Gui, afirma que “os estudantes começaram a receber aquela influência de modo extraordinário. Pois tudo parecia novo: o modo de organizar os temas, os métodos de prova, os argumentos adotados para chegar à conclusão”. Tomás era um espírito aberto e livre, fiel à doutrina da Igreja e inovador ao mesmo tempo. Já então ele dividia seu ensinamento segundo seu esquema fundamental que contemplava toda a criação que, saída das mãos de Deus, agora retornava para mergulhar no seu amor. O novo papel de Tomás como doutor era o de ensinar teologia e consistia essencialmente em oferecer aos alunos a compreensão da palavra de Deus. De


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fato, o título que se dava aos professores não era o de “Doutor em Sagrada Teologia”, que é muito posterior, mas o de “Mestre em Sagrada Página”, isto é professor em Sagrada Escritura. Tomás ficou naquela cátedra por três anos e comentou Isaías e Mateus. Conta-se que um dia, enquanto contemplava admirado a cidade de Paris, um estudante perguntou se ele não estava contente de possuí-la. Ele teria respondido que não sabia o que fazer, porquanto teria preferido possuir as “Homilias de Crisóstomo sobre o evangelho de Mateus”. Tomás não conhecia bem o idioma grego e procurou por todos os modos encontrar boas traduções dos padres gregos, de Aristóteles e de outros filósofos. Em Paris, após o convite de são Raimundo de Penyafort, já geral da Ordem dos Pregadores, Tomás tinha começado a escrever um tratado teológico, intitulado Summa Contra Gentiles, para ajudar os missionários que se preparavam para pregar em ambientes, onde era muito viva a presença e a influência cultural dos judeus e dos muçulmanos.46

A serviço da Igreja universal Depois de três anos ensinando em Paris, Tomás foi chamado para a província romana, onde terminou a obra. Na Itália permaneceu por dez anos, primeiramente em Nápoles no convento onde havia desabrochado sua vocação, depois em Orvieto onde o papa tinha estabelecido a própria residência. Os contínuos deslocamentos a que Tomás era submetido e sua dedicação aos estudos podiam-lhe trazer uma série de dificuldades quanto a viver o carisma de são Domingos, pois lhe impediam a vida comum do convento. Os superiores então deram- lhe como companheiro um frade de grande valor, frei Reginaldo da Piperno, leitor em teologia e sacerdote. Ele “foi destinado a passar boa parte da vida ao serviço de Tomás, seguindo-o aonde fosse, ajudando-lhe na missa, atendendo-o em confissão e assistindo-o de todos os modos”.47 Dessa maneira lhe ficava assegurada a vida comunitária com um confrade com quem podia se comunicar diariamente. Enquanto estava em Orvieto, a pedido do papa Urbano IV, Tomás escreveu dois tratados: um sobre a procedência do Espírito Santo do Pai e 46. Ibid., p. 136. 47. Ibid., p. 151.


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do Filho e um comentário contínuo aos quatro evangelhos. Esta última obra foi muito apreciada e passou a ser chamada Catena áurea (Encadeamento de ouro). Ainda no século XIX, professores de Oxford fizeram dela uma tradução cuidadosa em inglês e no prefácio escreveram: “É impossível ler a Catena de santo Tomás, sem se admirar a magistral capacidade estrutural com que foi elaborada. Uma cultura de altíssima qualidade, não um simples conhecimento livresco”. Na apresentação o próprio Tomás escreveu: É minha intenção nesta obra expor não só sentido literal da passagem (evangélica), mas também o sentido místico; e de vez em quando também para desfazer erros e confirmar a verdadeira doutrina católica. Isto parece particularmente necessário, pois, sobretudo do evangelho, tiramos as normas da fé católica e as regras de toda a vida cristã.

Parece que naquele período Tomás havia descoberto e aprofundado o conhecimento da teologia grega e tinha feito de tudo para continuar a providenciar as traduções dos padres gregos. Também durante o período orvietano, Tomás escreveu por ordem do papa a liturgia da festa de Corpus Christi, onde esbanjou a sua inspiração poética e mística de um autêntico cantor da eucaristia. Em 1265, foi enviado a Roma para abrir um estudo de Teologia para a província romana. Durante aquela temporada, tendo percebido que nem todos os alunos estavam preparados para um curso teológico muito exigente, começou a escrever para eles uma Summa Teologica para “apresentar as coisas que se referem à religião cristã de modo que fosse mais adaptado à instrução dos principiantes”. Retomando um esquema a ele muito caro, dividiu a obra em três partes. A primeira trata de Deus uno e trino e da “processão de todas as suas criaturas”; a segunda fala do “movimento das criaturas racionais para Deus”; e a terceira apresenta Jesus “que como homem é o caminho através do qual retornamos a Deus”. A obra foi iniciada em Roma e continuada por sete anos: foi interrompida inesperadamente no dia 6 de dezembro de 1273 em Nápoles. Entre o papa Clemente IV e Tomás havia uma amizade muito sincera e o pontífice, também em sinal de gratidão pelos serviços inestimáveis prestados à Igreja, enviou-lhe a nomeação de arcebispo de Nápoles. Tomás não aceitou, pedindo ao seu amigo que “não o promovesse mais a semelhantes coisas”. No entanto, na Universidade de Paris havia sido reacendida a discussão contra os mendicantes. Os superiores decidiram enviar novamente Tomás


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que recolheu suas coisas e iniciou, a pé, a longa viagem, acompanhado do inseparável Reginaldo de Piperno e de um ou dois outros frades. Chegaram ao seu destino no início de 1269. Nos escritos deste terceiro e último período em Paris, Tomás abranda profundamente o seu intelectualismo, segundo alguns por ter tido uma experiência mística, segundo outros para ajudar os estudantes, mas talvez pelos dois motivos. Entre todos os escritos daquela época, recordemos a lectura (leitura) sobre o Evangelho de João, sobretudo o comentário ao testamento de Jesus, verdadeira obra-prima que em boa parte ainda permanece atual. Depois que a luta contra os mendicantes havia cessado, Tomás foi chamado à pátria para fundar uma casa de estudos em Nápoles. Viajando para aquela cidade com Reginaldo, quis parar no castelo de Molara, perto de Roca di Papa, para visitar o querido amigo, o cardeal Annibaldo Annibaldi, que fora já seu aluno e era sucessor em Paris. Lá os dois frades ficaram doentes e Reginaldo quase morreu. Superado o perigo, continuaram a viagem com breves paradas no castelo de Ceccano em Frosinone para visitar a sobrinha Francisca, e depois talvez em Roccasecca em Montecassino.

A escola teológica Em Nápoles, começou imediatamente a organizar a escola de teologia. Dedicava-se também à pregação ao povo que o escutava com veneração, pois a sua palavra era simples e profunda, satisfazia os sábios e era compreendida pelos iletrados. Tomás tinha sempre gozado de ótima saúde e de uma capacidade de trabalho excepcional. Levantava-se cedo, confessava-se antes da missa com o frei Reginaldo; depois ajudava-o na celebração da missa. Pelas seis horas dava as aulas, depois se retirava para estudar ou para ditar a muitos secretários ao mesmo tempo até a hora do almoço. Depois da refeição se retirava para orar, para depois retomar o estudo ou ditar até o jantar. À noite, continuava a estudar. Depois, antes do amanhecer, ia para a igreja para rezar, tendo o cuidado de retornar ao leito um pouco antes do despertar para que os irmãos não percebessem.

A grande prova Mas no dia 6 de dezembro de 1273 aconteceu um fato estranho. En­ quanto celebrava a eucaristia alguma coisa tocou-o profundamente e daquele


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dia em diante Tomás mudou o ritmo da vida e não escreveu nem ditou mais nada. Reginaldo lhe perguntou: “Pai, por que deixou de lado um trabalho tão grandioso iniciado para louvar a Deus e instruir o mundo?”. E Tomás respondeu: “Reginaldo, não posso”. Este mais tarde voltou à carga, propondolhe retomar o trabalho com um ritmo mais lento, mas a resposta negativa foi acompanhada de uma motivação: “Reginaldo, não posso, pois tudo aquilo que eu escrevi é como palha para mim”. Algum tempo depois, Tomás, para sair do seu ambiente que lhe recordava continuamente estudos e livros – toda uma vida para produzir palha – expressou o desejo de fazer uma visita a uma sua irmã, a condessa Teodora de São Severino. Reginaldo de boa vontade acompanhou-o. O encontro com a irmã foi desconcertante, pois ele “quase não falou uma palavra”, tanto que a condessa pensou que estivesse louco. Pemaneceu três dias junto dela, cercado de carinhosos cuidados. Reginaldo voltou à carga. Talvez ajudasse o ambiente mais descontraído ou a necessidade de abrir sua alma a quem entre outras coisas era seu confessor. Tomás cedeu e lhe disse: “Prometes-me” – disse a Reginaldo – “em nome do Deus vivo e onipotente e por tua fidelidade à nossa ordem, e pelo amor que tens por mim, que não revelarás jamais, enquanto eu for vivo, o que eu te direi? Tudo isto que escrevi é como palha para mim em comparação àquilo que agora me foi revelado”. E acrescentou: “A única coisa que agora desejo é que Deus, depois de ter posto fim à minha obra de escritor, possa logo pôr também fim à minha vida”.48 O que tinha acontecido durante aquela celebração eucarística de 6 de dezembro tinha ferido profundamente também o físico de Tomás. Daquele dia em diante, ele não só parou de escrever, mas só conseguia orar e fazer as atividades físicas mais elementares. Mas não podia ter sido somente um fenômeno físico: alguma coisa mais profunda havia acontecido em sua alma. Os seus primeiros biógrafos49 contam que pouco tempo antes, num dos colóquios à noite diante do crucifixo, Jesus lhe disse: “Tomás, escreveste bem a meu respeito. Que recompensa tu queres?” Tomás respondeu: “Nada, somente a ti, Senhor”. Foi na manhã de 6 de dezembro que o Senhor crucificado atendeu a seu pedido, assimilando-o a si. Como Jesus, divina Sabedoria, sobre a cruz sentiu-se reduzido à ignorância, também o boi mudo da Sicília que até aquele dia havia assombrado o mundo com o mugido de sua inteligência,

48. Ibid., pp. 325-326. 49. Guilherme di Tocco, História, c. 34 (Fontes, p. 108). Cf J. A. Weisheipl, Tomás de Aquino. Vida, pensamento, obras, Jaca Book, Milão 1988, pp. 318-319.


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achava-se o último dos homens, um servo inútil que havia transcorrido a vida ajuntando palha. Tomás, tornado tabula rasa (quadro sem nada escrito) diante de seu Deus, sentiu-se também o último dos frades, ainda capaz, por pura graça, de gemer implorando a divina misericórdia. Mas como o papa Gregório X não estava sabendo dessas coisas que estavam acontecendo com Tomás, da França convidou-o para participar do Concílio de Lyon. Ele, embora consciente de sua incapacidade, mas sempre sensível à obediência, logo se pôs a caminho. Reginaldo o acompanhava com alguns frades, com o coração repleto de secreta esperança de que o mestre retornasse a ser aquilo que era antes. Tomás já vivia em outra dimensão e Reginaldo na tentativa de lhe despertar ainda o interesse pelas coisas deste mundo, disse- lhe que em Lyon o papa o nomearia cardeal. Tomás respondeu simplesmente: “Posso servir melhor à ordem assim como sou” e, como Reginaldo desse a coisa como certa, ele replicou: “Reginaldo, pode ficar seguro de que eu continuarei exatamente assim como sou agora”. Para complicar ainda mais sua saúde aconteceu um incidente durante a viagem. Talvez por distração Tomás bateu a cabeça contra um galho de árvore ao longo do caminho. Chegados perto do Castelo de Maenza, onde estava a sobrinha Francisca, Tomás pediu para parar ali para recobrar as forças. Todos os cuidados foram inúteis. Ele, vendo se aproximar a morte, quis ser levado para a vizinha abadia de Fossanova, onde foi recebido com muita hospitalidade. Três dias antes de morrer, Tomás quis receber os últimos sacramentos: fez a confissão geral a Reginaldo e, quando chegou o abade Teobaldo levandolhe a comunhão, vendo-se cercado de todos os monges e de numerosíssimos amigos, vindos dos arredores, pareceu recobrar o vigor e disse “belíssimas coisas” sobre sua fé na presença real de Jesus na eucaristia, concluindo com estas palavras: “Escrevi muito e ensinei a respeito deste corpo sacratíssimo e sobre os outros sacramentos, segundo minha fé em Cristo e na Igreja santa romana, a cujo juízo submeto toda a minha doutrina”.50 No dia seguinte, recebeu com total lucidez a unção dos enfermos, respondendo com devoção a todas as orações. Na manhã de 7 de março de 1274 deixava este mundo. Tinha 49 anos e havia escrito mais de quarenta volumes. A última parte da Suma Teológica, permaneceu incompleta, foi concluída sob a orientação de Reginaldo com o método de cortar e colar, isto é, pegar argumentos de outros escritos de Tomás ou de apontamentos tomados durantes as aulas. 50. Proc. Canonização Neapoli, no 49 (Fontes, p. 332).


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Em 1323 foi solenemente canonizado em Avinhão pelo papa João XXII e no século XV recebeu o título de doutor da igreja, com o que se quis destacar o esplendor da sua doutrina.

O mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios Tomás não foi só um grande pensador, mas também um homem de oração. Por isso foi chamado “o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios”, e a influência do seu pensamento sobre a Igreja do Ocidente foi determinante e durante séculos profundamente benéfica. Hoje ele pode servir de ajuda, entre outros coisas, também no diálogo ecumênico. “Ninguém anunciou de maneira mais clara a fundamental doutrina religiosa do cristianismo, pela qual tudo quanto se refere à salvação vem pela graça. Tal doutrina encontra-se já na explicação do famoso texto da Carta aos Romanos 3,28, ao qual Lutero no texto da sua tradução acrescentou mais tarde a palavra só. Na maravilhosa oração de agradecimento depois da missa: Gratias tibi ago (Graças te dou), revela-se ricamente a confissão católico-evangélica do peccator simul et justus (pecador e ao mesmo tempo justo) que não deixa mais nada à justiça das obras e ao próprio querer segundo a lei”.51 Nela, de fato, o santo diz: “Eu te agradeço, ó Senhor santo, Pai onipotente, eterno Deus, que certamente não por meus méritos, mas somente por efeito da tua misericórdia te dignaste saciar-me com o precioso Corpo e com o Sangue do teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, a mim pecador e teu servo indigno”.52

31 de janeiro São João Bosco fundador da família salesiana (1815-1888) “A educação é coisa do coração e só Deus é o dono dele, e não poderemos conseguir nada, se Deus não nos puser na mão a chave dos corações.” 53 51. J. Lortz, História da Igreja, I, Edições Paulinas, Cisinello Balsamo 1987, p. 546. 52. Oração atribuída a santo Tomás e colocada no Missal Romano para ação de graças após a santa Missa. 53. G. Bosco. Epistolário, ElleDiCi, Torino 1959, 4, p. 204.


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Corria o ano de 1858 e dom Bosco, já conhecido nos ambientes eclesiásticos e políticos italianos, estava em audiência com o papa Pio IX para lhe apresentar seu projeto de fundação de uma congregação moderna que se dedicasse à educação da juventude. O papa ouviu-o por um longo tempo e com muito interesse. Quis saber como ele tinha chegado àquela decisão, e no fim, depois de ter dado o seu pleno consentimento, exortou-o a escrever tudo o que lhe havia contado. Alguns anos se passaram e em 1867 dom Bosco foi novamente falar com o papa, e quando o papa lhe perguntou se ele já havia escrito a autobiografia, teve de responder que não, por causa do muito trabalho. “Bem!” – disse o Papa – “se é assim, deixe todas as outras ocupações e comece a escrevê-la. Pois agora não se trata somente de um conselho, é uma ordem”.54 E dom Bosco finalmente resolveu escrever as suas “Memórias”, uma autobiografia que vai até a idade de 40 anos, pois não conseguiu terminá-la como era seu desejo, diante do pedido do Papa. Mas temos o suficiente para compreender como ele se deixou guiar por Deus na construção de sua obra. Nasceu aos 16 de agosto de 1815 em Becchi, Castelnuovo d’Asti. O pai Francisco era casado em segundas núpcias com Margarida Occhiena e deixouo órfão com a idade de 2 anos. Mesmo entre dificuldades econômicas, a mãe viúva com três rapazes, dentre os quais um era do primeiro casamento do marido, não quis casar novamente para poder se dedicar a eles inteiramente.

Um sonho inesquecível O pequeno João tinha apenas 9 anos quando viu em sonho, no campo em frente da casa, uma turma de rapazes que estavam brigando entre gritos e blasfêmias. Horrorizado, atirou-se sobre eles, dando murros naqueles que podia alcançar. De repente, apareceu-lhe um homem de um semblante brilhante que lhe disse: “Deverás torná-los amigos com bondade e caridade, não batendo neles...”. Perguntou-lhe quem era ele. Ao que o homem respondeu: “Eu sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia”. “Naquele momento” – conta dom Bosco – “vi, próxima dele, uma senhora majestosa, vestida com um manto que brilhava em todas as direções, como se cada ponto fosse uma estrela muito brilhante”. A senhora fez sinal

54. Todas as citações são tratadas por: G. Bosco, Memórias, ElleDiCi, Torino 1989.


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para que ele se aproximasse, pegou-o pela mão e convidou-o a olhar para o jardim. Então, ele não viu mais os rapazes de antes, mas, em seu lugar, uma quantidade enorme de cabritos, cães, gatos, ursos e muitos outros animais. “Eis o teu campo” – disse a senhora – “o lugar onde deves trabalhar. Cresce humilde, forte e robusto, e isto que vês acontecer a estes animais, tu o deverás fazer pelos meus filhos”. “Olhei ainda” – conta dom Bosco – “e eis que no lugar dos animais ferozes apareceram outros tantos cordeiros mansos, que saltavam, corriam, baliam, faziam festa ao redor daquele homem e daquela senhora. Naquele ponto, no sonho, comecei a chorar. Falei com a senhora que não entendia todas aquelas coisas. Então, ela colocou a sua mão sobre a minha cabeça e me disse: ‘No tempo certo, compreenderás tudo’. Tinha apenas dito estas palavras e um barulho me acordou. Tudo havia desaparecido”. Foi preciso um bonito sonho para imprimir na mente de uma criança algo inesquecível. Ele logo foi contar aos irmãos, mas foi motivo de gozação, contou-o à mãe que entreviu um sinal da sua futura vocação ao sacerdócio, e quis também saber o parecer da avó. Ela comentou sabiamente que não havia necessidade de acreditar em sonhos. João não pensou mais naquilo. No entanto não perdia tempo: reunia no campo colegas e para eles improvisava como um prestidigitador e saltimbanco e, depois de tê-los divertido, repetia-lhes o sermão que havia escutado na igreja no domingo. E não eram só os pequenos que acorriam, muitas vezes vinham também os pais e as mães encantados em ver as piadas, as brincadeiras e mais ainda em escutar as suas palavras. Mesmo quando precisava distanciar-se de casa para trabalhar como ajudante no sítio Moglie, continuou a reunir ao seu redor os jovens do lugar. O seu interesse pelas coisas da fé e seu talento chamaram a atenção de um sacerdote, dom Calosso, que lhe custeou os estudos, mas sua morte repentina deixou-o novamente sozinho e sem ajuda. Precisou voltar ao trabalho, abandonando os estudos, que retomou somente aos 16 anos, mas, com sua vontade persistente e a inteligência brilhante, conseguiu completar em quatro anos o ensino fundamental. Agora já podia iniciar os estudos no Seminário.

Sacerdote ou missionário? Mas era esta a sua vocação? Ele desejava tornar-se sacerdote, mas queria ser também missionário. Não era melhor tornar-se franciscano? Diante dessa


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indecisão, o pároco pensou em obter a colaboração decisiva da mãe, mostrandolhe que um filho padre lhe seria uma ajuda também econômica. A mamãe Margarida ouviu com respeito as palavras do sacerdote, como era seu costume, mas depois tomou a decisão, como sempre fazia, sozinha diante de Deus. Foi até o filho e lhe disse: “Tu não deverás te preocupar comigo... Eu nasci pobre, vivi como pobre e quero morrer pobre... Se tu te tornares um padre secular e por desgraça ficares rico, não colocarei os pés na tua casa nem que seja somente uma vez. Não te esqueças disso”. Após ter orado e meditado longamente, e ter pedido conselho aos mais velhos, João, aos 20 anos, entrou como externo no Seminário. Para pagar a pensão foi preciso trabalhar todas as noites como ajudante em diversas profissões: alfaiate, padeiro, carpinteiro, ferreiro, sapateiro, conforme as oportunidades se apresentavam. Deus assim o preparava para fundar um dia as escolas profissionais para os jovens. Nos dias festivos se ocupava com os jovens. Para eles fundou a “Sociedade da Alegria”, quase um prelúdio do Oratório, colocando as bases de um dos eixos do seu método educativo: o ambiente de alegria. O estudo lhe agradava e ele aproveitou para adquirir uma sólida cultura. Sua paixão era ouvir os professores, ler os livros de teologia, e logo imaginava como traduzir estas riquezas doutrinais numa linguagem à altura dos jovens e como lhes tornar agradável. Para ele foi importante o encontro com são José Cafasso que se tornou seu mestre e confessor quando, terminados os estudos do Seminário e ordenado sacerdote em 1841, por ele foi levado ao Colégio eclesiástico de Turim para aprimorar a formação com os estudos de teologia moral. Lá, dom Bosco conheceu a fundo a espiritualidade de são Francisco de Sales e de santo Afonso Maria de Liguori. Os dois santos lhe forneceram os elementos inspiradores de sua espiritualidade.

O oratório e as primeiras oposições Durante aquele período, exatamente aos 8 de dezembro de 1841, dom Bosco iniciou oficialmente o Oratório. A balbúrdia que os jovens faziam não foi bem aceita pelos “bem comportados”, por isso ele teve continuamente de ir de um lugar para o outro, à procura de uma sede, até que em Valdocco pôde aos poucos, em meio a dificuldades, implantar a sua obra: o oratório festivo, o internato para estudantes e artesãos, a igreja, etc.... Mas antes de chegar a este ponto é bom conhecer algumas das dificuldades pelas quais passou.


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O governo liberal-maçônico do Piemonte não via com bons olhos aquele sacerdote rodeado de mais de quatrocentos jovens, quase todos eles de condição humilde, que o seguiam com entusiasmo e obedeciam prontamente a cada aceno seu. Pessoas influentes procuraram convencê-lo a dissolver o Oratório, mas foi em vão. Outros usaram métodos mais desumanos organizando emboscadas anônimas e espancando-o. Tudo em vão. Então interveio o chefe da polícia, um certo Michel, pai do famoso Camillo Benso, conde de Cavour, para emitir ordem de fechamento do Oratório por motivos de ordem pública. Mas também desta vez a Providência veio em sua ajuda através do próprio rei Carlos Alberto que, conhecendo pessoalmente dom Bosco e estimando-o pelo que fazia entre os jovens, não o permitiu. Os adversários não se renderam: passaram a intimidar os jovens, con­ trolando suas atividades dentro e fora da igreja, mas o resultado foi que os guardas faziam também fila entre os jovens para se confessar com dom Bosco. As dificuldades mais dolorosas lhe vieram dos párocos de Turim, que o culparam de lhes tirar os jovens das paróquias. Dom Bosco respondeu: “A maior parte destes jovens que recolho são forasteiros. Seus pais vieram para a cidade à procura de trabalho. Não o tendo encontrado, foram embora, e os deixaram aqui. Ou então são jovens, vindos sozinhos para a cidade à procura de ocupação. São saboianos, suíços, voldostanos, biellesos, novareses, lombardos”. A situação da época era triste. O desenvolvimento industrial de Turim atraía muita gente da zona rural, mas muitas vezes o sonho de um lucro fácil se transformava numa amarga experiência de miséria e de fome. Os jovens, na maioria analfabetos e sem emprego definido, sempre caíam nas mãos de patrões desumanos, quando a desgraça não os deixava a vagar pelas estradas levando-os ao latrocínio para sobreviver e depois terminando nas prisões. Sobretudo para eles, dom Bosco havia fundado a sua obra, mas muitos não o compreendiam. Para os homens do governo, era um líder perigoso de uma massa explosiva “que podia ser usada para rebelião e revolução”; para muitos pastores da Igreja, ele era um concorrente desleal. Por sorte, dom Bosco encontrou o apoio de alguns sacerdotes mais abertos à novidade do Espírito, como Cafasso e Borel, e sobretudo teve o apoio decisivo do arcebispo Fransoni. Ele aprovou o Oratório como a paróquia dos jovens sem paróquia. Num momento de grande perseguição, quando todas as portas se fechavam diante de dom Bosco, que não conseguia encontrar nem mesmo um palmo de


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terra para reunir os jovens, até dom Borel o convidou a fechar o Oratório, pelo menos por um ano, a fim de que fosse aplacada a ira dos adversários. Dom Bosco lhe respondeu decididamente que não: “Nós já temos uma sede: um pátio amplo e espaçoso, uma casa pronta para muitos jovens, com igreja e fachada. E há padres e religiosos prontos para trabalhar conosco”. “Mas onde estão estas coisas?”, interrompeu dom Borel. “Não o sei. Mas sei que existem e estão à nossa disposição.” Então, dom Borel prorrompeu em prantos e exclamou: “Pobre dom Bosco”, e foi-se embora!. A notícia de que dom Bosco, devido ao excesso de trabalho, tivesse perdido o juízo, fez com que dois sacerdotes amigos quisessem levá-lo para um manicômio para se curar. Ele mesmo relata o divertido episódio: “Logo percebi a brincadeira que queriam fazer comigo e, fingindo que nada sabia, acompanhei-os até a carruagem. Insisti para que eles entrassem primeiro. Quando entraram, em vez de segui-los, fechei rapidamente a porta e disse ao cocheiro: Toca depressa para o manicômio. Lá estão esperando por estes dois padres”.

Um outro sonho profético Mas quem garantia a dom Bosco a certeza de que sua obra era destinada a continuar e que ele teria numerosos colaboradores? Tinha visto, num outro famoso sonho, que entre os rapazes “muitos cordeiros transformavam-se em pequenos pastores que, crescendo, tomavam conta do rebanho”. Deus fará nascer então uma numerosa multidão de sacerdotes com o seu mesmo ideal e não de sacerdotes somente, mas também de leigos cooperadores e de freiras. Uma família espiritual que, das antigas Ordens religiosas, conservará só a totalidade da doação a Deus, pois quanto às realizações práticas deverá ser de acordo com as necessidades dos jovens e responder às exigências do mundo moderno. Por isso ele, ao colocar as bases da espiritualidade, escolheu como modelo são Francisco de Sales que nos seus escritos propõe um modelo de santidade adaptado a todos e especialmente para quem vive em meio das ocupações temporais. Uma outra característica daquele santo que atraía dom Bosco era a mansidão, uma virtude indispensável para quem quer levar os jovens a Deus. Dom Bosco também se inspirou na espiritualidade de santo Afonso de Liguori. Da escola de Cafasso, apreciou a profunda humanidade deste


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santo napolitano que tanto o ajudou na confissão e na direção espiritual dos jovens.

Aspectos de uma espiritualidade moderna Então escolheu para si e para os jovens uma espiritualidade moderna e a completou com algumas características próprias. Antes de tudo, a convicção de que todo trabalho, feito de acordo com a vontade de Deus e para o bem do próximo, por si é uma oração. O dito dos antigos monges: ora et labora (reza e trabalha), foi substituído pelo seu: o trabalho é oração. Abria assim um novo caminho para a santidade de todos os leigos, também daqueles que exercem profissões consideradas mais humildes. Uma segunda característica é a alegria. Ele colheu o aspecto alegre da fé e dele fez o ambiente normal para formar seus rapazes e jovens. A alegria se exprimia também na festa exterior com tudo aquilo que esta comporta, sobretudo num ambiente juvenil, mas para dom Bosco era algo mais profundo: era a alegria espontânea e genuína que jorra do interior de quem está com Deus e com o coração puro. Por isso inculcava a seus jovens a confissão e a comunhão freqüente e uma profunda devoção a Maria. Uma terceira característica era a fidelidade ao Papa. Num tempo de grandes agitações sociopolíticas, nas quais, juntamente com a queda do poder temporal do Papa, se anunciava também a extinção do próprio papado, dom Bosco deixou aos seus filhos o compromisso de fidelidade a toda prova ao carisma de Pedro. Sobre essas bases, a família salesiana foi tomando consistência e crescendo. Em 1859, nasceu oficialmente a Pia Sociedade Salesiana, o ramo masculino de sua obra; e, em 1872, nasceu também o das Filhas de Maria Auxiliadora; em 1875, começavam as Missões salesianas na América Latina; e, no ano seguinte, constituía-se a Pia União dos Cooperadores salesianos; e, em 1877, iniciava a impressão do Boletim Salesiano. Dom Bosco havia impresso muitos livros e alguns destes, como a A História Sagrada, foi por muito tempo verdadeiro best-seller. Fundou também uma tipografia e uma editora que se tornaram depois famosas. Quando, em 1887, inaugurou em Roma a basílica do Sagrado Coração, construída por vontade do Papa, encheu-se de alegria, pois todos os seus sonhos tinham sido realizados. No dia 31 de janeiro do ano seguinte, faleceu, mas agora sua obra já havia sido difundida.


FEVEREIRO

3 de fevereiro São Brás bispo e mártir (= 316) “Ouviu o Senhor dizer-lhe: ‘Apascenta as minha ovelhas’, isto é, sacrifica-te por minhas ovelhas.” 1

Com estas palavras Agostinho relembrava que o exercício do ministério episcopal é, antes de tudo, participar da Paixão do Senhor Jesus. E assim o foi também para Brás de Sebaste. Deste santo da Armênia, a única informação historicamente certa que chegou até nós é que foi martirizado quando era bispo de Sebaste. No demais, devemos nos contentar com o relato de sua belíssima paixão historicamente pouco verídica, mas mesmo assim interessante. Brás, pela santidade de sua vida, foi escolhido para ser bispo da comunidade cristã de sua cidade. Aceitar aquela missão na época não era uma honra, mas significava ser um candidato ao martírio. Não era prudente viver na cidade abertamente por causa das perseguições. Brás, então, passou a viver numa gruta escondida no mato, fora de Sebaste. 1. Agostino. Discorsi. Cit. In Liturgia delle ore.


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Mas o vaivém das pessoas que o procuravam para receber seus conselhos e suas orientações tornou conhecido seu esconderijo. Quando o governador Agrícola (governador da Capadócia) percebeu que Brás convertia as pessoas com a fama de sua santidade e de seus milagres mais do que se pregasse na praça o Evangelho de Cristo, decidiu expulsá-lo. O bispo não opôs nenhuma resistência aos guardas que vieram buscá-lo na gruta. Apresentou-se tranqüilo ao governador e confirmou que era cristão e dirigente da comunidade, e que não tinha nenhuma intenção de renegar sua fé. Depois da condenação, foi conduzido à prisão à espera da morte, mas também lá iniciou-se uma procissão de pessoas que desejavam ver e ouvir o santo. Uma mãe levou o seu filho que estava morrendo, sufocado por ter engolido uma espinha de peixe. O prisioneiro abençoou a criança e ela ficou curada. A mãe não sabia como agradecer e lhe ofereceu uma vela para iluminar à noite a prisão e um pedaço de pão e carne para se alimentar. Daí brotou a tradição de abençoar com duas velas cruzadas a garganta dos fiéis no dia de sua festa. Agrícola quis acabar com aquela procissão do povo e ordenou que o santo fosse afogado num lago perto de onde morava. A notícia espalhou-se por toda a cidade e as margens do lago foram tomadas pelos curiosos. Brás, caminhando sobre as águas, chegou ao centro do lago e convidou os funcionários do império a fazer a mesma coisa que tinha feito com a procissão de seus deuses, mas eles não conseguiram. Ele retornou à margem e se entregou a seus algozes. Conduzido de volta ao cárcere e acusado de magia, foi condenado à decapitação em fevereiro de 316. O edito de Milão, com que o imperador Constantino tinha dado plena liberdade àqueles que professavam a fé cristã, ainda não tinha chegado à Armênia, onde governava Licínio. Estes, embora tivessem assinado o edito, preferiram ignorá-lo e, por rivalidade contra o imperador, desencadearam nos territórios sob seu comando uma forte perseguição contra os cristãos. O culto de são Brás foi difundido amplamente no Oriente e no Ocidente, tendo atingido o maior esplendor durante a Idade Média. Brás permaneceu vivo na tradição do cristianismo, não somente pelo testemunho de seu martírio, mas também porque relembra o aspecto materno da Igreja, que se preocupa particularmente com o cuidado dos pobres e dos doentes.


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3 de fevereiro Santo Ansgário (ou Oscar) bispo, apóstolo dos países do norte da Europa (801-865) “Com o anúncio da palavra de Deus, procurou com todas as suas forças ajudar a todos. De quando em quando, todavia, gostava também da solidão para dedicar-se ao estudo da Sabedoria divina. A própria comodidade e o gosto pela solidão, porém, nunca lhe foram mais importantes do que o bem do rebanho a ele confiado. Quis ser os olhos dos cegos, os pés para os coxos, e verdadeiramente o pai dos pobres.” 2

Ansgário foi o tipo do monge ideal da época carolíngia, quando Carlos Magno confiava aos mosteiros não somente a reevangelização e a reorganização da Europa, conturbada pelas precedentes migrações dos povos do norte e do leste, mas também a conversão de todas aquelas regiões que aos poucos passavam para o domínio do Sacro Império Romano. A respeito de Ansgário, dizia-se que era “monge dentro do mosteiro e apóstolo fora dele”, tendo feito brilhar na sua vida o carisma monástico de são Bento e o dom apostólico de são Patrício. Nasceu em Corbie na Picardia, ao sul da França, em 801 (um ano depois da coroação imperial de Carlos Magno), de uma família de emigrantes saxões. Perdeu a mãe ainda pequeno e foi educado por monges da abadia de Corbie, onde o douto abade Adelardo, parente do imperador, tinha a tarefa de preparar jovens saxões para a evangelização de seus patrícios. Ansgário ia muito bem nos estudos e seguia com zelo a disciplina monástica. As pessoas pensavam que, se ele não fosse monge, poderia iniciar a carreira dos “mensageiros imperiais”, homens de confiança do imperador que controlavam o comportamento dos bispos e dos príncipes das várias províncias.

Rumar mais para o alto Quando estava saindo da adolescência deu-se um fato inesperado que o fez refletir bastante. Seu biógrafo Rimberto conta que a morte repentina de Carlos Magno o tocou profundamente. O imperador de fato era conhecido 2. Cit. da Vita, escrita pelo bispo Rimberto, seu discípulo e sucessor.


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como “o maior de todos os senhores” e o próprio Ansgário o tinha visto “no auge de seu poder” e ouvido que havia obtido o cetro do reino com muita sagacidade e era famosíssimo. Por isso a morte de Carlos Magno lhe foi um choque e o fez pensar. Diante da morte, de fato, também os grandes personagens reduzem-se àquilo que de fato são: pobres mortais. Valeria a pena gastar a vida com os grandes ou fixar uma meta mais elevada? Ansgário tinha somente 13 anos, mas daquele momento em diante “começou a pensar em entregar-se totalmente a Deus” e, quando ficou adulto, entrou para um mosteiro. Lecionou na escola do mosteiro de Corbie. Depois, em 823, foi pregador na Nova Corbie, em Korvey, no Weser, no norte ocidental da Alemanha. O trono de Carlos Magno, depois de dolorosas e sanguinolentas disputas entre os membros da família real, foi ocupado por Ludovico, o Pio, que levou à frente ardorosamente o programa de dilatar e consolidar os limites do império. O que – para a mentalidade da época – significava também obrigar os povos conquistados a abraçar a fé católica.

A aventura dinamarquesa Em 826, o rei Haroldo da Dinamarca solicitou ajuda ao imperador a fim de serenar as lutas internas que o impediam de reinar em paz. O pedido foi acolhido com a condição de que o rei e seus súditos aceitassem o cristianismo. Haroldo recebeu o batismo com outros quatrocentos homens em santo Albano, perto de Magonza, e requisitou um grupo de missionários, com os quais voltou para sua terra. Os dinamarqueses eram famosos pela valentia e zelo com que defendiam sua independência. Outros missionários haviam tentado antes evangelizá-los, mas tinham sido obrigados a desistir da idéia. Valia a pena tentar outra vez? O imperador pediu ao abade Wala de Korvey “um homem consagrado a Deus que estivesse preparado para enfrentar por amor a Cristo, uma tarefa tão perigosa”. O abade escolheu Ansgário, que mais de uma vez tinha manifestado o desejo de ser missionário. O abade tinha pensado em mandar com ele um grupo de monges, mas somente um, Autberto, teve a coragem de acompanhá-lo. Entraram na Dinamarca e começaram a pregar Cristo. Mas aconteceu que, depois de um ano, o rei Haroldo morreu e os dois missionários foram expulsos.


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A primeira igreja na Suécia Sem desanimar, dois anos depois, Ansgário tentou um outro caminho, aceitando o convite do rei Björn da Suécia e levando consigo Witmar no lugar de Autberto que tinha falecido. Em 830, surgia a Birka, a oeste de Estocolmo, o primeiro templo cristão. Como a evangelização se tornasse cada vez mais fecunda, pensou num programa mais articulado, cujos detalhes apresentou à corte imperial. Segundo seu modo de pensar, se desejasse levar o cristianismo aos países escandinavos, não era suficiente enviar a esmo missionários isolados, mas era preciso dar-lhes uma base de apoio dentro do território do império, na fronteira com aqueles países. A proposta foi acolhida e ele foi designado bispo missionário com sede em Hamburgo. Para que tudo aquilo não fosse em vão, correu a Roma para ter a aprovação papal. Gregório IV não somente confirmou a escolha, como o fez arcebispo e também legado seu pessoal para todos os países escandinavos. Voltando para Hamburgo, começou logo a trabalhar, organizando a base missionária. Enviou à Suécia um outro monge, Gautberto, depois de o ter sagrado bispo, enquanto se dedicava à missão mais difícil, a dinamarquesa.

No pranto e na alegria Tudo ia de vento em popa. Com a ajuda dos seus confrades tinha conseguido criar um mosteiro destinado à formação dos jovens daqueles novos países, quando a invasão dos normandos, em 845, destruiu todas as suas obras em Hamburgo. Os dinamarqueses se rebelaram e os suecos expulsaram Gautberto de seus domínios. Também daquela vez, embora abandonado até por seus monges, não perdeu o ânimo. Continuou a dar assistência aos cristãos dinamarqueses e suecos, e aceitou o convite do rei Olavo para ir a Sigtuna. Lá deixou como bispo seu amigo e discípulo Rimberto e partiu para Brema, como arcebispo de Brema-Hamburgo, a fim de reorganizar nova base missionária. Morreu aos 3 de fevereiro de 865 e Rimberto, que lhe sucedeu em Brema, foi quem deixou escritos sobre sua vida.

Homem de Deus e do seu tempo Rimberto conhecia de perto seu mestre e destacou algumas características muito interessantes. Ansgário, profundo conhecedor de seu tempo, soube


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transitar habilmente nos meandros da política imperial sem jamais renunciar à sua liberdade de homem de igreja. Por isso agiu sempre em sintonia com o papa Gregório IV e, depois, com o papa Nicolau I. Em seu planos pastorais, era muito prudente, mas, sobretudo, ficava atento às inspirações do Espírito Santo: “ele tinha tempo” – escreve Rimberto – “para todas as decisões importantes; nada dispunha sem ter meditado muito, sem primeiro saber, iluminado pela graça de Deus, aquilo que era justo fazer. Quando estava seguro do valor ultraterreno da sua causa, predispunha-se sem nenhuma hesitação a executar o que era preciso”. Não era raro os missionários enfrentarem o martírio junto àqueles novos povos. Ansgário nunca renunciou à pregação por medo da morte. Ao contrário, sempre aspirou pelo martírio. Rimberto, em sua narrativa, observa: “É sabido que há dois tipos de martírio: o escondido, em tempos pacíficos para a Igreja, e o manifesto, em época de perseguição; não obstante ter ele estado pronto para ambos, tocou-lhe só o primeiro. Mas a um homem que se consumiu no serviço do Senhor com tão graves sofrimentos físicos e agitações espirituais, pode-se atribuir com justeza a honra do martírio”. O papa Nicolau I, que o tinha nomeado arcebispo de Brema, teve também a alegria de canonizá-lo como apóstolo do Norte.

5 de fevereiro Santa Águeda virgem e mártir (+250) “(A virgem) só com sua vida é testemunha de um equilíbrio restabelecido pelo cristianismo: a igualdade entre o homem e a mulher. Porque se ser virgem já é grande coisa, na virgem cristã a beleza é redobrada, porquanto a mulher naturalmente é levada a se apoiar no homem. Como a flor que, ao desabrochar, é colhida e ofertada no altar, a virgem consagrada canta a grandeza da alma humana, feita para o céu, no qual não seremos mais como homem e mulher, mas como anjos.” 3

3. C. Lubich, Escritos Espirituais /1, Ec. Cidade Nova Roma 1978, p. 129.


Santa Águeda

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Se isso é verdade ainda hoje, quando se admira nas virgens mais as obras sociais que seu testemunho evangélico, tal fato era ainda mais apreciado nos albores do cristianismo, quando com seu novíssimo estilo de vida constituía uma revolução com o aparecimento do amor divino num mundo decadente. Não há muitas notícias históricas seguras a respeito de santa Águeda. Ela nasceu em Catânia (também Palermo se apresenta como lugar de seu nascimento), de família nobre, e foi martirizada a 5 de fevereiro de 250 durante a perseguição de Décio. De resto, temos somente três relatos da segunda metade do século V, dois gregos e um latino, talvez originados de um texto mais antigo que se perdeu.

O que narra a tradição Segundo essa tradição, Águeda, nome grego que significa “bondade”, consagrou-se a Deus, ainda menina, e rejeitou reiteradas propostas de casa­men­ to. O governador da cidade, Quintiano, apaixonou-se por ela e lançou mão de todos os recursos para convencê-la a casar-se com ele, mas não conseguiu. Lançou então mão de outros meios, mandando prendê-la pelo fato de ser cristã. Obrigou-a a conviver com uma bruxa que com suas artes mágicas deveria dobrar a jovem às vontades do governador. Mas também essa tentativa foi inútil. Águeda estava firme em seu propósito e afirmava que jamais se subme­ teria aos desejos daquele homem. Quintiano, então, fê-la comparecer a seu tribunal. O colóquio, relatado nas atas de seu martírio, mesmo não sendo lite­ ralmente histórico, reflete o pensamento comum entre os cristãos do primeiro século, e também possui sua beleza literária. Assim perguntou o juiz: – De que condição és? Águeda lhe respondeu: – Sou livre e nobre de nascimento, como demonstram todos os meus parentes. – Se és livre e nobre, porque levas a vida de uma escrava? – Eu sou serva de Cristo e somente por isto é que sou de condição servil. – Se tu fosses livre e nobre verdadeiramente, não te humilharias tanto a ponto de usar o título de escrava.


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– É nobreza suprema ser escrava de Cristo. Esse foi o primeiro interrogatório. Quintiano queria ganhar tempo porque, no fundo, tinha esperança de fazê-la mudar de opinião. Alguns dias depois, chamou-a novamente e, constatando que nada havia mudado, ordenou que fosse torturada. Foi esticada em um cavalete e flagelada. Mesmo no meio de tormentos atrozes não quis renegar o seu Esposo. Enfurecido, o governador ordenou que lhe fossem arrancados os seios. Ao saber disso a jovem voltou-se para o governador com estas palavras ardentes: “Cruel tirano, tu não te envergonhas de mutilar assim uma mulher retirandolhe aquilo em que, um dia, quando pequeno, te alimentou?”. Assim mutilada foi levada ao cárcere, mas durante a noite lhe apareceu um homem – era são Pedro – e curou-a. “Quem é você” – perguntou Águeda – “que veio aqui para curar as minhas feridas?” Ele respondeu: “Não tenhas medo, minha filhinha, porque eu sou o apóstolo do teu Senhor”. Ela abrindo os braços, e voltando teu rosto para o céu, assim orou: “Senhor Jesus Cristo, mestre bom, eu te agradeço, pois me fizeste vencer os tormentos dos algozes, ordena que eu te encontre alegremente na tua glória eterna”. Curada, ela retornou ao tribunal. Quintiano não sabia se ficava feliz ao vê-la ainda mais bonita, ou se queimava de raiva pela serenidade e decisão que transpareciam em seu semblante. Tentou ir por bem, prometendo-lhe bens terrenos e muitas honras, mas quando percebeu que cada uma de suas propostas caía no desprezo, resolveu acabar com ela, uma vez que não conseguia o que queria. Ordenou que fossem espalhadas por terra cacos de louça e carvões em brasa, e sobre eles fez rolar o corpo nu de sua vítima. Águeda não se lamentava, como se já estivesse entrando na glória, dei­ xando lá seus despojos, mas neste meio de tempo um terremoto pôs em confusão a cidade e de repente fez desmoronar uma ala do edifício e sepultou dois algozes. Foi um corre-corre, enquanto os cristãos recolhiam sua mártir e a depositavam num caixão novo para lhe honrar a virgindade. Na cidade não se falava de outra coisa, e todos até mesmo os não-cristãos, condenavam a crueldade de Quintiano e refletiam sobre o poder sobre-humano do cristianismo, que dava tanta força a uma frágil jovem. No ano seguinte, o monte Etna abriu com violência a cratera de fogo, lançando ameaçador um enorme rio de lava sobre a cidade. Os cataneses, cristãos ou não, correram até o túmulo de Águeda, e pegaram o manto que cobria a sua cabeça e o levaram em procissão, diante do rio de lava que interrompeu o seu avanço.


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O culto a santa Águeda se difundiu rapidamente quer na Igreja do Ocidente, quer na do Oriente, e até na África ocidental. Ela é invocada pela religiosidade popular como protetora contra o fogo dos vulcões, e de outros incêndios, e contra as doenças dos seios.

6 de fevereiro São Paulo Miki e Companheiros mártires japoneses “Sobre o rosto de todos aparecia uma especial alegria.” 4

São poucas as igrejas surgidas na idade moderna que têm um número tão extraordinário de mártires, como a do Japão, porque depois dos primeiros vinte e seis de 1597 seguiram-se ao menos outros duzentos e cinco no espaço de tempo que vai de 1617 a 1632. A evangelização do Japão foi iniciada por são Francisco Xavier (15491551) e levada muito bem por seus confrades jesuítas tanto que, em 1587, os cristãos espalhados por várias cidades, mas sobretudo em Nagasaki, eram mais de 250 mil. Os missionários pregavam o Evangelho abertamente, e iam de um lugar para o outro, de acordo com a autoridade local, convertendo até pessoas da alta sociedade. No ano de 1587, o imperador Hideyoshi, que anteriormente tinha favorecido os missionários, e que em pouco tempo reuniu sob o seu comando todas as ilhas do arquipélago nipônico, baixou um decreto de expulsão de todos os missionários jesuítas. Embora um grande número de missionários jesuítas tivesse conseguido permanecer, não podiam aparecer em público. Em 1593, inexplicavelmente, o próprio Hideyoshi autorizou a entrada de um grupo de franciscanos espanhóis, provenientes das Filipinas. Mas assim que eles começaram, entusiasmados, a difundir a fé publicamente, começaram novamente os problemas. Tendo sobrevindo complicações políticas entre espanhóis e japoneses, Hideyoshi suspeitou que novos missionários eram emissários do governo espanhol e desencadeou contra eles uma perseguição de extermínio. 4. História do martírio de são Paulo Miki e Companheiros, 4,109-110. Cit. in Acta Sanctorum, fevereiro, I, 769.


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A cruel repressão Em dezembro de 1596, prendeu em Osaka seis franciscanos espanhóis e três jesuítas japoneses, transportando-os para Meaco onde já tinha preso outros quinze cristãos leigos. Lá os prisioneiros foram intimados a abjurar a fé, e como eles se recusassem a fazê-lo, foi cortado um pedaço da orelha esquerda de cada um. Assim maltratados e ensangüentados foram colocados em uma carroça e expostos ao escárnio público pelas ruas da cidade. No início de 1597, foram conduzidos a pé até Nagasaki, durante o percurso foram-se repetindo as cenas de escárnio público em cada povoado por onde passavam. Os guardas tendo percebido que eram cristãos dois jovens que acompanhavam e ajudavam os prisioneiros, acorrentaram-nos e juntaram-nos ao grupo dos condenados que dessa maneira chegaram ao número de vinte e seis. Em Nagasaki, depois da habitual intimação de abjuração da fé e desfile de escárnios, foram conduzidos até àquela que passou a ser chamada de “colina santa”. Lá, com as mãos e os pés amarrados e guindados sobre suas cruzes, tiveram seus corações transpassados com um golpe de espada. A cena, contada por testemunhas oculares, não causa inveja aos “sofrimentos” dos mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Vale a pena conhecer a última exortação de Paulo Miki do alto de sua cruz, contada por um de seus contemporâneos. Paulo, vendo-se elevado sobre o púlpito mais honroso que jamais pudesse ter, declarou em primeiro lugar aos presentes ser japonês, pertencer à Companhia de Jesus, morrer por ter anunciado o Evangelho e agradecer a Deus por um benefício tão precioso. Em seguida, acrescentou: “Neste momento, penso que nenhum dentre vós quer calar a verdade. Declaro-vos, portanto, que não há melhor caminho de salvação do que aquele seguido pelos cristãos. Pois este me ensina a perdoar os inimigos e a todos aqueles que me ofenderam, eu de boa vontade perdôo ao imperador e a todos os responsáveis pela minha morte, e lhes peço que procurem se instruir a respeito do batismo cristão”. Voltou-se para os companheiros, juntos agora na última batalha, e começou a lhes dirigir palavras de encorajamento”.5 Fazer aqui um relato da vida de cada um destes mártires seria muito longo, mas diremos alguma coisa ao menos de dois deles: Paulo Miki e João Soan, ambos japoneses. 5. Ibid.


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Paulo Miki nasceu em Kyoto em 1556. Pertencia a uma família rica, e com 5 anos foi batizado. Entrou bem cedo para o Seminário, tornou-se jesuíta e, mais tarde, ordenou-se sacerdote. Teve que esperar para ser ordenado sacerdote, porque a única diocese, então existente, estava sem bispo há muito tempo. Os responsáveis pela Companhia de Jesus incentivaram-no a aprofundar o conhecimento da cultura de seu povo, para poder dialogar com as pessoas cultas do seu tempo, e traduzir o cristianismo para a cultura do lugar. Paulo estava indo muito bem, ganhando a estima e o respeito da classe culta, e obtendo muitas conversões. Era bom pregador que conquistava os ouvintes mais pela delicadeza dos sentimentos, típica de seu povo, do que com as argumentações em uso entre os ocidentais. Quando foi preso e levado a Meaco, em breve se tornou ponto de referência para os outros cristãos que estavam presos e com sua conduta correta fortaleceu a fé de todos e ajudou-os a caminhar ao encontro do martírio com alegria no coração. João Soan nasceu numa pequena ilha do arquipélago de Goto, em 1578. Pertencia a uma família cristã, e tendo estudado com os jesuítas pediu para entrar na Companhia de Jesus. Aos 15 anos, foi colocado à prova como catequista auxiliar de um sacerdote jesuíta. Tendo cumprido muito bem a tarefa, foi enviado ao noviciado onde encontrou Paulo Miki, com o qual iria dividir o destino. Preso e levado a Meaco, sofreu os mesmos tormentos que os outros mártires. Quando chegou a Nagasaki, ainda não tinha feito os votos, foi-lhe concedido o direito de fazê-los na vigília do martírio. Nesse ínterim, sua família, com o recrudescimento da perseguição no arquipélago de Goto, refugiou-se em Nagasaki, pensando passar despercebida. O pai, quando soube que seu filho estava condenado, rapidamente subiu a “santa montanha” para lhe dar a última saudação. João estava amarrado na cruz e vendo seu pai perto disse-lhe: “Veja bem papai, a salvação da alma em primeiro lugar, antes de tudo. Esteja atento, e não descuide de nada para assegurá-la. O pai disse: “Meu filho, eu te agradeço pelo teu conselho. E tu, também, neste momento, suporta com alegria a morte, porque tu a sofrerás por causa de nossa santa fé. Quanto a mim e a tua mãe estamos prontos a morrer pela mesma causa”.6 6. Ibid.


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Depois disto, entregou como recordação ao pai o rosário e, retirando o pano que lhe enfaixava a cabeça, pediu ao pai para entregá-lo à sua mãe. Ele tinha apenas 19 anos.

Nas catacumbas no século XIX As perseguições não impediram o aumento dos cristãos que em 1625 chegaram a 600 mil. Porém, no ano de 1637 alguns dentre eles se rebelaram, e como conseqüência foram tremendamente perseguidos. As autoridades japonesas proibiram não só o culto cristão, mas qualquer contato com o mundo europeu, exceto com alguns comerciantes, que antes de pisarem em terras nipônicas estavam dispostos a ultrajar e pisar publicamente o crucifixo e a imagem de Maria. Os cristãos foram submetidos a perseguições constantes e humilhações de toda espécie, e diminuíram de número; os missionários aos poucos desapareceram e a fé cristã foi transmitida de pai para filho sem a ajuda de nenhuma estrutura eclesiástica. No século XIX, o Japão reabriu as portas ao Ocidente, e os novos missionários, com surpresa, ainda encontraram cristãos naquela terra.

8 de fevereiro São Jerônimo Emiliani fundador dos somascos (1486-1537) “O vosso pobre padre vos saúda e vos exorta a perseverardes no amor de Cristo e na fiel observância da lei cristã, como eu vos mostrei com palavras e ações quando estive no meio de vós.” 7

Não foi difícil ao general Palisse apoderar-se do castelo de Castelnuovo de Quero sobre o rio Piave, não obstante a defesa valorosa do comandante Jerônimo Emiliano ou Miani, que o governava em nome da República de Veneza. Jerônimo teve que se render e foi encarcerado em seu próprio castelo. 7. Das Cartas a seus confrades. Cit. na Liturgia das Horas.


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Enquanto esperava que os venezianos viessem libertá-lo, ou pelo menos tentassem resgatá-lo, os dias se arrastavam tão lentamente que lhe pareciam eternos. Na época, tinha 25 anos. Seu pai era senador da Sereníssima e sua mãe descendente dos doges. Tinha outros dois irmãos, que também foram adestrados para a arte da guerra, e instruídos para a carreira política. Para eles, e particularmente para Jerônimo, tudo estava indo muito bem até que, no famoso dia 27 de agosto de 1511, de uma hora para outra foi preso como se fosse um perigoso delinqüente. Recordava sua vida passada: vida amorosa, sempre a cavalgar, comandando e se divertindo.

Se eu sair vivo deste inferno... Era cristão, pois esta era a fé de seus pais, mas, até aquele momento presente, o Evangelho ainda não lhe tinha despertado nenhum interesse. Pela primeira vez, surgiram na sua consciência perguntas como estas: “Por que passar a vida fazendo guerra, disseminando a miséria e a morte? Por que aumentar estupidamente o número de órfãos e de viúvas?” Em seu coração tomou uma decisão: “Se eu sair vivo deste inferno, minha vida tomará outro rumo!”. Tinha apenas amadurecido em si estes pensamentos, quando no começo da noite de 27 de setembro conseguiu enganar a vigilância dos guardas; em seguida passou desapercebido pelos soldados inimigos e continuou a percorrer por caminhos ocultos, mas bem conhecidos deles, distanciou-se do castelo, e se dirigiu a Treviso. Lá, na Igreja de Santa Maria Maior, prometeu à mãe de Jesus gastar o resto de sua vida não mais para fazer as pessoas sofrerem, mas para ajudá-las a viver melhor. Não lhe passava pela cabeça nem de longe entrar para uma ordem religiosa, nem mesmo tornar-se sacerdote, mas queria somente fazer o bem, ficando como era: um simples leigo. A guerra no entanto continuava. Veneza recuperou o castelo e Jerônimo foi reconhecido como administrador. Em 1519, depois da morte de seu irmão Lucas, teve que ir para Veneza e se responsabilizar pela família e pelos três sobrinhos que tinham ficado órfãos. Retornando a Castelnuovo, lá permaneceu até 1527 quando, pela morte de outro irmão, Marcos, retornou definitivamente a Veneza para administrar somente os bens da família, e para cuidar de outros três sobrinhos. Enquanto realizava com empenho seus deveres familiares, amadureceu em seu coração a decisão de se dedicar totalmente ao serviço dos pobres. Começou a


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colocar à disposição dos pobres os seus bens e a própria moradia. Intensificou esta atividade caritativa nos anos de 1528-29, por ocasião de uma grave carestia.

A escolha pelos pobres Freqüentemente naquele período, enquanto cuidava dos doentes inter­nados nos dois famosos hospitais venezianos, o dos Incuráveis e o outro de Bersaglio, deparava-se com crianças órfãs e abandonadas que andavam pelas ruas da cidade como os cachorros vira-latas à procura de comida. Decidiu acolhê-los em uma casa chamada São Basílio, e se empenhou não só em alimentá-los, mas também a dar-lhes educação religiosa e ensinar-lhes uma profissão. Em 1529, tendo contato com os doentes de peste, contraiu também a enfermidade. Logo que se curou abandonou definitivamente a responsabilidade assumida para com seus sobrinhos já adultos. Passou para eles, com registro em cartório, a propriedade e os bens da família, destinou aos pobres a parte de que podia dispor e, pobre entre os pobres, com uma iluminada confiança na Providência, deu início àquela que seria a sua divina aventura. O bispo Carafa – futuro papa Paulo IV, que em Veneza apoiava são Caetano de Thiene na fundação dos clérigos teatinos, aconselhou-o a se tornar religioso teatino, mas ele, mesmo tendo estima por aqueles seus amigos, compreendeu que seu caminho era outro, e foi morar em São Basílio com os seus órfãos.

Três santos, três caminhos diversos Naquele período, em Veneza, viviam três grandes santos que com seus carismas particulares deram uma contribuição, até certo ponto determinante, à renovação da Igreja e da sociedade de seu tempo. Caetano de Thiene, como já dissemos, fundou a Ordem dos Teatinos que, conservando os valores tradicionais da vida monástica, procurava formar sacerdotes capazes de evangelizar as massas populares. Inácio de Loyola ainda estava lançando as bases da Companhia de Jesus que difundiu a luz do Evangelho, sobretudo no mundo das pessoas cultas. Enfim, o nosso Jerônimo, aparentemente o mais humilde, que sem nenhuma pretensão cultural, e sem se sentir chamado a pregar em público, se imiscuía nas misérias do povo, particularmente dos órfãos, para dar a todos uma família e um futuro digno do ser humano. Em linguagem atual, dir-se-ia que Jerônimo fazia a opção preferencial pelos pobres.


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A obra se desenvolve Após a experiência positiva em Veneza, os bispos de várias dioceses do Veneto e da Lombardia convidaram Jerônimo para criar novas fundações caritativas nos seus territórios ou para revitalizar as que já existiam. Em março de 1532, Jerônimo iniciou o seu “itinerarium caritatis” (caminho da caridade) em Verona, Brescia, Bergamo, Como, Milão e Pavia. Não se ocupou somente com os órfãos, com toda espécie de pobreza, mas também com os idosos abandonados, as mulheres obrigadas à prostituirse por causa da fome ou por outras situações vexatórias. Onde Jerônimo abria uma casa, encontrava colaboradores e colaboradoras, que ele sabia organizar de modo admirável, mas sabia, sobretudo, transmitir a todos a sua fé na presença de Jesus em cada pobre. O trabalho, porém, a que ele mais se dedicou, e a que deram continuidade depois de sua morte, foi o dos órfãos. Ele queria que aqueles rapazes e moças encontrassem nas suas casas o amor materno e paterno de Deus, como se pode experimentar numa verdadeira família cristã. A experiência lhe dizia que isso era possível. Em 1532, mais uma vez reunindo os fiéis colaboradores em Merone, deu-lhes o nome de “Companhia dos servos dos pobres” e dois anos depois, em Somasca, um povoado perto de Bérgamo, formulou a estrutura jurídica da sua obra. Esta tomou o aspecto de uma congregação de clérigos regulares, não sendo ainda possível, pela mentalidade da época, aceitar uma forma leiga de consagração a Deus. Por causa do nome da cidade Somasca, “os servos dos pobres” foram em seguida chamados popularmente como “os padres somascos”.

Evangelização e promoção humana A característica deste fundador está na novidade por ele introduzida na formação dos jovens: não se preocupou somente em lhes oferecer uma residência, dando alimento e ensinando o catecismo, mas se empenhou em prepará-los profissionalmente, a fim de que pudessem enfrentar a vida com dignidade. Em seu sistema pedagógico, não separava nunca a formação cristã da humana: a promoção humana era evangelização, pois a prática do Evangelho deveria abrir-lhes ao mesmo tempo as portas do céu e as do mundo. Daí se explica a expansão que teve a sua congregação. A morte surpreendeu Jerônimo no dia 8 de fevereiro de 1537, em Somasca, tendo contraído novamente a doença da peste enquanto socorria os enfermos daquela cidade.


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10 de fevereiro Santa Escolástica virgem (480-547) “Para revestir a sua Igreja de nova beleza virginal, ele adornou santa Escolástica com as jóias da inocência e para ti a tornou mais aceita com a amável simplicidade da pomba. Irmã do glorioso pai são Bento, esteve unida a ele também na santidade, e sob sua orientação, procurando a ti somente, acima de todas as coisas, produziu abundantes frutos da graça e mereceu gozar para sempre do teu amor.” 8

É muito comum encontrarmos ao lado de um grande homem carismático a presença feminina, e vice-versa – por exemplo, Francisco de Sales e Chantal, Teresa d’Ávila e João da Cruz – para recordar que o homem e a mulher são chamados à reciprocidade que constitui mútuo enriquecimento, e também na encarnação dos mais altos carismas. E se ao lado de são Francisco de Sales podia estar uma figura feminina nobre, inteligente e fisicamente bonita, isso não poderia acontecer com são Bento pela mentalidade da época; e, então, o bom Deus deu-lhe como virgem companheira a irmã segundo a carne, elevando-a à sua altura. Pouco ou quase nada sabemos de sua vida terrena. Provavelmente, nasceu em Núrsia e parece que desde criança quis se consagrar toda a Deus, vivendo recolhida em sua casa. Não era incomum naquela época e o ambiente de Núrsia era favorável.

A virgindade conquistada A aventura do irmão tocou-a profundamente e foi a primeira em casa a compreender que não se tratava de uma loucura, mas de um chamado de Deus. Respirou aliviada quando em família se soube que vivia em Subiaco com outros monges. Conseguiu segui-lo naquele lugar? Não o sabemos, mas certamente foi procurá-lo. Ela terá admirado aqueles jovens todos de Deus, espalhados nos doze pequenos mosteiros. “Que diferença” – terão dito os monges – “entre esta virgem e as mulheres que nos rodeavam na casa de 8. Do Prefácio, suplemento monástico ao Missal Romano 1980, 153.


Santa Escolástica

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Florêncio!” Referiam-se às moças pouco recomendáveis que o padre do lugar chamava à sua casa para incomodar os jovens monges alojados nos arredores. Bento aperfeiçoou, pois, seu projeto e também para libertar-se dos incômodos de Florêncio mudou-se para Montecassino. E lá também en­con­ tramos Escolástica naquela localidade chamada de Piumarola ou em outro local chamado depois Colloquio, não distante seja como for da acrópole do santuário onde o irmão havia construído o mosteiro. Não estava sozinha, mas com outras virgens atraídas pelo ideal de Bento. E não ficavam devendo nada aos homens na escola do serviço divino. Escolástica conduzia suas filhas ao longo do árduo caminho da perfeição, caminhando na primeira fila e mantendo-se em estreito contato com seu irmão. E para realizar isso, não tinha necessidade de ficar presa a ele freqüentemente, mas bastava-lhe encontrá-lo uma vez ao ano para se atualizar e por sua vez informá-lo a respeito de tudo o que o Senhor andava lhe inspirando.

A noite do dilúvio É de autoria de são Gregório Magno o relato que se tornou famoso do último encontro acontecido entre os dois santos, três dias antes de Escolástica partir para o céu. A narrativa tem o encanto dos fioretti (de são Francisco de Assis), mas, fora as licenças poéticas que Gregório pode ter usado para não fazer uma fria crônica dos fatos, o conteúdo tem a solidez da história dos grandes personagens. Bento costumava receber sua irmã em uma pequena casa, distante aproximadamente 200 metros abaixo do mosteiro, depois de uma descida íngreme. Era chamada a foresteria, porque servia para acomodar os visitantes e parentes dos monges que não podiam ser hospedados dentro da clausura. Como todos os anos, também desta vez – era 7 de fevereiro de 547, na quinta-feira anterior ao primeiro domingo da Quaresma, antes de se iniciar o grande jejum – Escolástica com o costumeiro grupo de suas coirmãs se apresentou para o encontro. Os monges do alto da sua abadia viram-na chegar e avisaram o abade. Esse dia era sempre um motivo de alegria para Bento, como também de reflexão para os outros monges, porque Escolástica de algum modo também fazia parte da sua família. Na cozinha, caprichavam para preparar uma refeição que lhes causasse boa impressão.


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Bento fazia-se acompanhar por outro santo monge, capaz de tomar parte naquele encontro – tinha o sabor de uma sagrada liturgia! – sem se deixar distrair pela curiosidade e pela presença feminina, tão rara naqueles lugares. Os seus filhos deviam ajudá-lo a descer, pois seu coração já não estava tão forte como antes, e as suas pernas às vezes tremiam. O encontro foi mais festivo do que de costume e a conversa, espontânea. Os outros assistiam e não só a presença delas não os perturbava, mas tornava ainda mais luminoso tudo o que os dois diziam. “O místico colóquio durou todo o dia. Parecia que Escolástica bebia fogo dos lábios do irmão. Quanto mais Bento falava de Deus e da beleza do paraíso, mais crescia no coração da virgem o incêndio do divino amor”.9 O dia passou rapidamente, e logo chegou a noite. Bento fez preparar a mesa e jantaram sem pressa. O convento não era muito distante, e as mulheres podiam dormir na hospedaria e retomar o caminho no dia seguinte. Num certo momento, quando Escolástica percebeu que seu irmão queria se despedir, ela lhe disse: “Eu te peço que não me deixes aqui sozinha esta noite; continua a falar-me da vida que não tem fim, até que desponte a aurora, e eu, após ter participado da missa e da santa comunhão possa retornar para minha cela”. Aquilo era coisa inaudita para Bento: “Nunca me falaste assim, minha irmã? Não me é permitido passar a noite fora da clausura”. Escolástica compreendeu que seria inútil continuar a pedir ao irmão, então ela pôs a cabeça entre as mãos e rezou para quem a podia compreender. E lá fora parecia que o mundo estava acabando: do céu a água caía aos cântaros e a ventania na colina parecia que queria despedaçar até a própria hospedaria. Bento não conseguia entender e olhava para a irmã em oração e quando esta levantou os olhos, disse-lhe: “Está bem, meu irmão, retorna se tu assim o achares ao convento e me deixa sozinha aqui esta noite”. Mesmo que ele quisesse simplesmente pôr o nariz fora da porta eralhe impossível, pois a tempestade recrudescia. Da boca de Bento, saiu uma exclamação de surpresa: “O que fizeste minha irmã?” E ela rapidamente respondeu: “Pois bem, eu te supliquei e tu não me quiseste ouvir. Então eu pedi ao Senhor, e ele, menos rigoroso do que tu, me atendeu!”. Só mesmo a irmã 9. Cf. PL 66. As outras citações são tiradas de A. I. Schuster, História de São Bento e de seu tempo, Ed. Abbazia di Viboldone, Milão 1965, pp. 365-373.


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poderia repreender o patriarca famoso pela sua doçura, fazendo-o entender que a santa disciplina, ao menos alguma vez, deve dar lugar às justas exigências do amor. E, num tom brincalhão, Escolástica continuou: “Vai, podes ir, e me deixa aqui, volta para tua clausura”. Ninguém se moveu. Depois de terem recitado os salmos da noite, retomaram a conversa e a noite passou num piscar de olhos. Gregório, a esta altura, faz um breve, mas interessante comentário, dizendo que Escolástica “foi mais poderosa, porque era mais forte no amor”. Ao amanhecer, lá fora resplandecia o sol. Depois da celebração eucarística, as monjas retomaram o caminho e Escolástica chegou à casa, cansada da viagem, mas feliz pelo extraordinário encontro que lhe tinha acendido no coração um forte desejo do paraíso, do qual o irmão já lhe tinha dado uma antecipação. No dia seguinte, não pôde fazer outra coisa que repousar e contemplar, mas no terceiro dia, o seu coração parou de bater.

A pomba volta para o ninho Da janela da torre, onde tinha a sua cela, Bento viu uma pomba que voava em direção ao céu. Mandou que buscassem o corpo da irmã e o fez depositar na igreja do mosteiro. Pouco depois, também ele se juntou a ela à espera da ressurreição. “A sepultura não podia manter separado os corpos daqueles que, em vida, tinham sempre permanecido unidos com Deus no mesmo sentimento.” Esse é o comentário lapidar de são Gregório.

14 de fevereiro São Cirilo (monge) e São Metódio (bispo) co-padroeiros da Europa (827-869) (815-885) “Ao lado de um grande respeito pelas pessoas e uma solicitude desinteressada pelo seu verdadeiro bem, os dois santos irmãos tiveram adequadas fontes de energia, de prudência, de zelo e de caridade, indispensáveis para levar aos futuros crentes a luz, e para lhes indicar, ao mesmo tempo, o bem, oferecendo uma ajuda concreta para alcançá-los. Para tal objetivo, desejaram tornar-se semelhantes sob


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cada aspecto àqueles aos quais anunciavam o Evangelho, quiseram fazer parte daqueles povos e dividir com eles a mesma sorte.” 10

Só o amor – um amor que tinha as suas raízes em Deus – poderia ter dado àqueles dois irmãos de Salônica, imersos desde a infância na refinada cultura bizantina, a coragem de deixar a própria pátria e, enfrentando inúmeras dificuldades, colocar-se a serviço dos povos eslavos para evangelizá-los sem destruir sua cultura, mas reconhecendo-lhe a mesma dignidade da grega e latina. Foram considerados os pais das várias culturas eslavas, tendo inventado a escrita da língua paleoeslava.

Sua origem Seus nomes de batismo eram Constantino e Miguel, mas ficaram conhe­ cidos como Cirilo e Metódio, nomes assumidos ao se tornarem monges. Nasceram em Tessalônica, atual Salônica, naquele tempo um centro de comércio importante do império do Oriente. Metódio nasceu entre os anos 815-816 e Cirilo nos de 827-828. Seu pai, de nome Leão, era um alto oficial da região, mas também um cristão convicto. A mãe, Maria, era apaixonada por Deus e conduzia a numerosa família com a sabedoria das mulheres bíblicas. Dos sete filhos, parece que o primeiro foi Metódio e o último Cirilo. Os pais cuidaram da educação dos filhos não só no campo religioso, mas, pertencendo a uma classe social abastada, prepararam-nos para a carreira diplomática, fazendo-os freqüentar a escola superior do império na capital. Metódio fez logo carreira e, ainda jovem, foi nomeado arconte, ou seja, alto magistrado imperial, da província eslava de Estruma. Na realidade, não era aquilo o estilo de vida com que sonhava, tendo em mente um outro projeto que esteve guardado até 840, quando abandonou o mundo e se retirou para Tessaglia sobre o monte Olimpo, outrora habitado por deuses belicosos e agora povoado de monges orantes. A notícia repercutiu em Constantinopla e causou grande impressão, embora alguns se alegrassem, pois com isso havia uma possibilidade a mais de ser promovido ao cargo que ele havia abandonado. Quem mais ficou pensativo foi seu irmão mais novo, Cirilo. Este, depois da morte do pai, não tinha 10. João Paulo II, Slavorum apostoli, nº 9.


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mais meios de continuar os estudos, mas Teoctisto, chanceler da imperatriz Teodora, admirando suas qualidades morais e intelectuais, tinha feito com que fosse admitido na respeitada escola imperial com a esperança de torná-lo um alto funcionário. O jovem ia muito bem nos estudos, mas o ambiente da corte não lhe agradava: ali reinavam a intriga e a vaidade. Era uma vida muito distante dos ideais vividos em família. Tendo à disposição a rica biblioteca, entrou em contato com os escritos dos Santos Padres e, lendo a obra de são Gregório Nazianzeno, escolheu-o como exemplo e passou a procurar a sabedoria. Terminados os estudos brilhantemente, seu protetor aconselhou-o a se casar e logo ir trabalhar na cúria imperial. Do mais, ele já havia cuidado com sua influência. Cirilo, não querendo desgostar a quem tanto lhe havia ajudado, encontrou um meio-termo: permaneceria no ambiente da corte mas como sacerdote e bibliotecário do patriarcado, esperando encontrar no mundo eclesiástico um ambiente mais de acordo com o Evangelho. Infelizmente se desiludiu, pois também sob as vestes sagradas se escondiam clérigos, que não tendo feito uma autêntica conversão ao evangelho, tinham os mesmos vícios dos leigos. Depois de alguns anos, seguiu o exemplo do irmão mais velho retirando-se para um mosteiro às margens do rio do Mar Negro. A corte não se conformou com aquela perda e pôs-se à sua procura, e finalmente o trouxeram de volta para Constantinopla, onde ele aceitou ensinar filosofia. Desempenhava-se daquela função com tanta competência que foi chamado de o filósofo. Naquele meio tempo, as autoridades imperiais, preocupadas com o avanço dos árabes na Sicília e outros lugares, o escolheram como chefe da missão entre os serracenos de Samarra, atual Bagdá. Ele aceitou aquele trabalho perigoso: “Vou com alegria” – disse – “por causa da fé cristã. Existe neste mundo alguma coisa mais doce que viver e morrer pela Santíssima Trindade?”11

Da santa Montanha à difícil missão Executada a missão, da qual aliás não sabemos o resultado, e retornando a Constantinopla, pediu demissão de maneira irrevogável e se retirou para o convento onde estava o seu irmão Metódio. Os dois viveram tranqüilos 11. Cf. PETTINATO, G. Os santos canonizados do dia/ II, Ed. Segno, Udine 1991, p. 170.


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até 860, quando foram novamente requisitados pela corte para dirigir uma delegação bizantina de especialistas no campo cultural e religioso junto aos czares da Rússia meridional. Foi uma experiência importante para os dois irmãos. Enquanto eles estavam em Cherson na Criméia, encontraram numa antiga igreja os restos mortais que se dizia terem sido do papa são Clemente, que tinha sido exilado e martirizado. Recuperado o precioso tesouro, os dois irmãos levaram-no sempre com eles como sinal de devoção ao santo mártir e bispo de Roma.

O caloroso apelo dos eslavos No entanto, um outro campo de evangelização bem mais exigente estava para ser aberto na Europa central. Rostislav, príncipe da Grande Morávia, havia levado este triste apelo ao imperador de Bizâncio, Miguel III: “Chegaram aqui muitos mestres cristãos da Itália, da Grécia e da Alemanha, que nos instruíram de diversos modos. Mas nós eslavos.... não temos ninguém que nos leve até a verdade e nos instrua de modo compreensível... Então, senhor, mandai-nos um tal bispo e mestre”.12 Na região já havia missionários franceses e bávaros que se esforçavam para falar a língua eslava, embora continuassem a celebrar em latim. Eles tinham sido bem recebidos pelo príncipe, porque aceitar o rito latino significava se submeter à política germânica. “Era melhor” – pensava Rostislav – “colocarse sob a proteção de um imperador distante do que sofrer o controle de um limítrofe”. Na realidade, antes de dirigir-se a Bizâncio, tinha requisitado missionários diretamente ao papa, como havia feito santo Estêvão da Hungria. Mas, de Roma, não havia vindo nenhuma resposta. O imperador e o patriarca de Constantinopla acolheram favoravelmente o pedido do príncipe moravo e encarregaram Cirilo, que falava eslavo, de levar adiante tal missão. Ele se colocou imediatamente a trabalhar e, com a ajuda de amigos competentes, preparou 38 grandes caracteres do alfabeto, chamado depois de cirílicos, capazes de reproduzir os vários sons da língua eslava. Em seguida, começou a traduzir o evangelho de João e os livros litúrgicos, convencido de que pregar a fé sem deixar nada por escrito seria como que “escrever por sobre água”. 12. Vida de Metódio, V, 2.


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“Pega teu irmão Metódio e vai....” Quando enfim tudo já estava pronto, o imperador lhe disse: “Leva contigo teu irmão abade Metódio e vai à Moravia; pois te darei tudo de que precisares”. Rostislav recebeu com festa os dois missionários e ainda maior foi a alegria de todos quando celebraram diante do povo a liturgia na língua que todos compreendiam. Cirilo, homem culto mas também bom organizador, pensou logo na formação do clero local, preparando intelectualmente e espiritualmente um bom grupo de jovens, enquanto que o irmão Metódio com muito zelo pregava ao povo. A fama dos dois missionários que falavam eslavo se espalhou rapidamente também na vizinha Panônia, cujo príncipe, Kocel, convidou-os para vir à sua terra e lhes confiou a formação de cinqüenta jovens. Se os eslavos exultavam, os missionários alemães temiam perder terreno e, da aversão pelos dois irmãos, passaram à acusação. Segundo eles, não era permitido celebrar a sagrada liturgia na língua eslava, pois a santa tradição reconhecia somente três línguas consagradas com esta finalidade, aquela que Pilatos fez escrever sobre a cruz de Cristo: a hebraica, a grega e a latina. Por isso os missionários alemães foram chamados de trilingüistas ou pilatistas.

O primeiro encontro com o papa de Roma Cirilo e Metódio, quando julgaram que um grupo de jovens moravos e panônios estavam suficientemente preparados, encaminharam-nos a Cons­tan­ tinopla para serem ordenados sacerdotes, mas quando chegaram a Veneza, re­ ce­beram ordens de se apresentar ao papa em Roma para responder a algumas acusações contra eles, feitas pelos missionários latinos. Os dois irmãos obedeceram e, levando com eles as relíquias de são Clemente, dirigiram-se a Roma, onde o papa Adriano II os recebeu com todas as honras indo ao encontro deles em procissão. Ele aprovou a liturgia deles, ordenou sacerdote a Metódio e, dos jovens que acompanhavam os dois missionários, ordenou três presbíteros e alguns outros diáconos. Quis que a liturgia eslava fosse celebrada solenemente na sua presença em Santa Maria Maior e depois nos dias seguintes nas basílicas de São Pedro, Santa Petronila, Santo André e São Paulo fora dos Muros.


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A Sé apostólica de Roma reconhecia a obra missionária dos dois irmãos e considerava que as regiões por eles evangelizadas ou para serem evangelizadas pertencessem ao patrimônio de São Pedro, ficando então sob a jurisdição do império do Ocidente e do Oriente. Enquanto em Roma os dois irmãos viviam dias de glória, Cirilo adoeceu gra­vemente e prevendo o seu fim disse ao irmão: “Eis que partilhamos a mes­ma sorte e passamos o arado sobre o mesmo sulco: agora eu caio sobre o campo no fim de minha jornada. Eu sei que tu amas muito a tua Montanha (a vida monástica), mas não abandones – por causa da Montanha – a tua obra de ensinamento. Em verdade, onde que tu poderás encontrar mais facilmente a salvação?”.

Metódio bispo e legado papal Foi um duro golpe para Metódio que até aquele momento havia vivido a missão à sombra do irmão, mais novo pela idade, mas maior pela cultura. Nas últimas palavras de Cirilo, ele viu expressa claramente a vontade de Deus, e aceitou ser consagrado bispo e nomeado legado papal para Panônia e Morávia. Voltou com os seus discípulos, agora seus colaboradores, e com uma carta do Papa que confirmava junto aos príncipes eslavos e bispos alemães tudo o que o Papa havia estabelecido. Infelizmente, ao retornar, encontrou uma situação política complicada: Rostislav da Grande Morávia tinha sido traído por Svatopluk, príncipe da Eslováquia, e por este foi entregue às autoridades alemãs que haviam aceitado e depois relegado a um convento. Metódio, tendo perdido agora esse grande amigo, não achou prudente retornar à Morávia; ficou na Panônia à espera de melhores dias. Em seguida, os bispos de Passau, de Salisburgo e de Frisinga impuseram a Metódio que renunciasse a seus direitos de arcebispo e de legado pontifício, dizendo que não era autêntica a carta do Papa. Diante de seu enérgico protesto, foi preso e conduzido a Ratisbona para ser julgado. Defendeu-se com dignidade, mostrando a carta do papa e concluindo: “Se soubesse que este território (confiado a mim pelo Papa) era vosso, iria espontaneamente embora; mas este pertence a São Pedro”. O tribunal não ouviu a sua defesa, levou-o para a prisão e por fim o exilou na abadia de Ellwangen na Suécia. Depois de dois anos de prisão, o papa João VIII, vindo a saber daqueles tristes acontecimentos, enviou à Alemanha, como seu legado, Paulo, bispo de


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Ancona (Itália), que anulou a sentença do tribunal e reintegrou Metódio em suas funções, pedindo-lhe – para facilitar a obtenção da paz com os alemães – que usasse a língua eslava só na pregação e não na liturgia. Uma disposição impossível de ser realizada, pois o povo não a aceitava.

A segunda viagem a Roma Metódio foi antes à Panônia para reavivar aquela jovem igreja e depois foi outra vez para a Morávia. Mas a oposição dos latinos continuava, enviando a Roma graves acusações de heresia contra ele. João VIII convocouo urgentemente para que comparecesse à sua presença. Depois de tê-lo ouvido, confirmou a liturgia eslava e o sábio comportamento do santo, e escreveu uma carta em junho de 882 ao príncipe Svatopluk, que tanto se opunha a Metódio, nestes termos: “Do ponto de vista da fé e da doutrina nada se opõe a que a missa seja cantada na língua eslava... e que as leituras sagradas do Antigo e do Novo Testamento sejam feitas em boa tradução (eslava)..., pois aquele que instituiu as três línguas principais, o hebraico, o grego e o latim, criou também todas as outras línguas para sua glória e seu conhecimento...”. E para contentar o príncipe que apoiava – só por motivos políticos – a liturgia latina, a carta continuava diplomaticamente: “Se a ti e aos teus juízes agradar ouvir a missa em língua latina, nós ordenamos que para ti a missa seja celebrada em tal língua”. O papa deu também um sufragâneo a Metódio, ordenando bispo de Nitra o padre Vihing, que fazia parte da comitiva.

Os últimos anos Retornando à sua sede, Metódio trabalhou em paz até a morte, organi­ zando o clero e evangelizando o povo. Quis fazer também uma viagem a Constantinopla para agradecer a igreja que o tinha enviado. O novo imperador Basílio II, o macedônio, e o patriarca Fócio, ainda em comunhão com o papa, acolheram-no com amor e cobriram-no de presentes. Em uma fase muito delicada para a unidade da Igreja, Metódio soube manter o justo relacionamento seja com a igreja que o havia oficialmente enviado entre os eslavos, seja com a Igreja de Roma que “preside a caridade”, não obstante os enormes sofrimentos injustamente impostos a ele pelos latinos.


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Morreu aos 8 de abril de 885 em Velehrad, onde tinha estabelecido a sua sede e fundado uma escola. Antes de morrer, Metódio tinha indicado seu sucessor Gorazd, um bispo muito preparado e seu fiel discípulo, mas as intrigas políticas tornaram a aparecer. O papa Estevão V pensou em pôr fim a toda a controvérsia e, acolhendo o pedido de Svatopluk, não reconheceu Gorazd como sucessor de Metódio e impôs o rito latino. Os discípulos de Metódio emigraram então para a Bulgária e a Croácia, continuando sua missão naquelas terras. Só depois da morte de Svatopluk, o seu sucessor, o rei Mojmir, pediu e obteve do papa a autorização para que fosse restabelecido o rito eslavo. Os dois irmãos foram logo venerados como santos pelo povo. Em 1880, Leão XII estendeu seu culto também à igreja latina e, no ano de 1980, o papa João Paulo II declarou-os padroeiros da Europa juntamente com são Bento, por causa da influência que eles tiveram na cultura cristã da parte eslava da Europa. Mas seu destaque é devido também a um outro fator de capital importância aos nossos dias: “Cirilo e Metódio, com sua personalidade e suas obras, são figuras que despertam em todos os cristãos uma grande “saudade da união” e da “unidade entre as duas igrejas irmãs do Oriente e do Ocidente”.13

17 de fevereiro Os sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria (1245-1310) “És tu quem admiravelmente os chamaste ao serviço da gloriosa mãe de Deus... Tu ainda, ó Pai, pela sublime caridade que os unia, enviaste-os como apóstolos da unidade e da paz entre o povo cristão, a fim de que, desfeita toda a divergência, reconduzissem os ânimos em fraterna concórdia.” 14

Estamos na Florença do século XIII, rica de cultura e de dinheiro, encruzilhada de idéias e de lutas entre as duas maiores autoridades do mundo 13. João Paulo II, Slavorum apostoli, no 27. 14. Prefácio próprio dos Servos de Maria, 6.


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medieval: o Papa e o imperador. Guelfos e gibelinos disputavam a supremacia política e econômica e deixavam correr o sangue até nas igrejas. Mas ao lado dos ávidos do poder e do dinheiro não faltaram homens e mulheres que praticaram uma vida evangélica como os primeiros cristãos de Jerusalém. Não é por nada que na cidade e aos arredores, além dos conventos das ordens mendicantes, havia numerosos grupos de Humildes e de Penitentes, fiéis à Igreja, enquanto faziam sentir sua forte presença, os Patarinos e os Albigenses que não eram nada gentis com a hierarquia eclesiástica, muitas vezes comprometida com as riquezas deste mundo.

Até os comerciantes podem fazer milagres Os nossos sete fundadores não são conhecidos individualmente, mas pelo que realizaram como grupo. Eles eram todos leigos, alguns ainda solteiros quando começaram aquela experiência espiritual e como tais permaneceram, outros eram pais de família ou viúvos. Eram comerciantes de lã, manuseavam muito dinheiro e tinham contato com outros comerciantes de outras cidades também; podiam se permitir um certo luxo e na escala social vinham logo depois dos nobres. Como se encontraram? Como bons cristãos, como tantos outros, desejavam a reforma da Igreja. Na cidade, ainda estava muito vivo o ideal de são Francisco e de são Domingos, como se pode ler em seu Livro das origens: “Cristo, luz da humanidade, começou a resplandecer e a aquecer mais forte por meio desses dois luminares, e irradiando e reaquecendo o mundo com a palavra da pregação de um (Domingos) e com o exemplo de humildade do outro (Francisco), fez retroceder o gelo da infidelidade e retornar o calor da caridade quase extinta. Então, o coração humano, como em uma primavera espiritual, começou a enternecer-se e a ceder sob a condução destes dois grandes amantes de Deus e perscrutadores dos corações. Suas Ordens, estando eles ainda vivos, cresceram como árvores gigantescas e produziram flores e frutos que dissiparam todas as heresias”.15 Os setes comerciantes faziam parte do grupo dos “irmãos e das irmãs da Penitência”. Estes, mesmo permanecendo cada um na sua casa e cuidando dos negócios da família, empenhavam-se particularmente nas obras de assistência 15. Sobre a origem da Ordem dos Irmãos dos Servos, no 22.


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aos pobres, aos doentes e na participação da vida litúrgica. Admiravam as Ordens mendicantes, mas não pensavam entrar nelas, uma vez que muitos deles tinham família. Lentamente se delineou entre eles, pelo fervor espiritual e pelo empenho social, o pequeno grupo dos sete. Estes eram, segundo a tradição mais comum, Bonfiglio, Bonagiunta, Manetto, Sostegno, Amadio, Uguccione e Aleixo. Como explicou o bispo da cidade, Ardingo, e também o célebre pregador são Pedro de Verona, ambos incentivaram os sete a seguir a inspiração que sentiam arder em seus corações.

E deixando tudo, seguiram a Jesus Enquanto em Florença ficava mais acesa a luta entre Frederico II e o Papa, os sete, depois de terem cuidado das necessidades dos filhos, libertaramse de seus estabelecimentos de comércio e, de acordo com suas respectivas esposas, retiraram-se para uma casa nos arredores de Florença, numa localidade chamada Cafaggio. Também as esposas aceitaram viver o mesmo ideal, retirando-se para conventos femininos, tão numerosos e estimados na cidade. Um fato raro naqueles tempos. Os sete se uniram entre si com o compromisso de plena comunhão fraterna, extrema pobreza não só pessoal mas também coletiva, vestiram o hábito cinzento dos penitentes e continuaram no serviço aos pobres. Não havia entre eles nenhuma aspiração de se tornarem sacerdotes e pregadores. Quando estourou a luta entre os guelfos e gibelinos, estes últimos estavam em supremacia e os sete corriam o risco de ver desfeito seu grupo religioso, e de serem mandados cada um de volta para sua casa e à antiga ocupação. O bispo Ardingo lhes doou um terreno no monte Senario e eles para lá se transferiram e construíram uma pequena casa. Lá não estavam sob a jurisdição da cidade e podiam se dedicar ainda mais à contemplação. Mas tinham a necessidade de um sacerdote e por isso foi ordenado Bonfiglio. Já agora adquiriram a fisionomia de uma ordem religiosa e adotaram também a regra de santo Agostinho, que os chamava de volta à vida apostólica, a famosa Apostolica vivendi forma. Nesta altura outros batiam à porta da pobre casa no monte Senario e, em 7 de outubro de 1251, mais dezenove irmãos se uniam ao primeiro grupo e faziam votos, nas mãos de Bonfiglio, de partilhar na mais absoluta pobreza o ideal da nova família religiosa.


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Como os primeiros cristãos Sua espiritualidade foi-se delineando com características sempre mais claras. Antes de tudo, o retorno à vida cristã primitiva através da prática da pobreza até ao heroísmo: não possuir nada nem pessoalmente, nem como comunidade. O apego à riqueza havia viciado também os homens da igreja, provocando muitos movimentos religiosos amiúde em luta aberta contra os bispos e o Papa, até a separação da igreja institucional considerada agora como indigna. Os Servos de Maria, como outras ordens religiosas, davam uma resposta diferente: não se irritavam contra aqueles que não viviam o Evangelho, mas escolhiam um estilo de vida, o mais próximo possível do dos apóstolos, mas permanecendo no seio da Igreja. A pobreza era vivida como meio de redescobrir o Evangelho e voltar à origem da comunidade cristã, quando esta ainda era um só coração, uma só alma e tinha tudo em comum, até mesmo os bens materiais. Mais tarde são Filippo Benizi, geral da ordem, mesmo reafirmando o valor da pobreza evangélica, deveria atenuar a rigidez de alguns pontos da regra para permitir aos seus frades atenderem melhor às necessidades do ministério. A segunda característica era a fraternidade. Em um mundo no qual a rivalidade entre as cidades e, mesmo na própria cidade, entre as famílias mais poderosas, semeavam ódio e discórdias com conseqüências catastróficas, onde os pobres pagavam sempre o preço mais alto, os sete fundadores redescobriram e colocaram às claras o valor social da fraternidade humana: todos iguais, filhos de um único Pai, irmãos entre si. A redescoberta da fraternidade cristã os levou à prática da solidariedade e por isso os servos de Maria se tornavam também servos dos mais necessitados, sobretudo dos doentes e dos pobres que recolhiam em hospitais e albergues. O exemplo dado por eles impressionava os contemporâneos que muitas vezes recorriam a eles, pedindo ajuda e amiúde chamando-os para pacificar as controvérsias e pôr fim a lutas fratricidas. A terceira característica era a devoção à Maria. A pregação dos Patarinos e dos Albigenses, agora muito difundida também nas regiões da Itália central, minimizava os mistérios fundamentais do cristianismo – a encarnação, a paixão e a ressurreição de Jesus, mistérios tão caros aos medievais. Por reação, não só os religiosos mas até mesmo os leigos mais fervorosos desenvolveram um amor todo particular à mãe de Deus, que foi testemunha fiel e co-participante em pessoa daqueles acontecimentos da nossa salvação. Contemplava-se Maria,


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sobretudo, na anunciação e na paixão como o tipo do cristão que acolhe a palavra de Deus e a põe em prática. Os sete assumiram esta visão da figura de Maria e se chamaram por isso mesmo seus servos, decididos a seguir-lhe o exemplo até aos pés da cruz. Não se tratava de uma devoção sentimental para com a mãe de Deus, mas de tê-la diante deles como modelo de serviço a Deus e ao próximo.

Uma obra nascida da harmonia dos sete Nos documentos das origens eles são reconhecidos como “os nossos progenitores” ou “os nossos pais”. Mesmo que Bonfiglio até um certo momento tenha sido o elemento principal do grupo, não é o fundador, pois a ordem nasceu de uma experiência de fraternidade que só foi possível com o consenso de todos os sete. Talvez por isso não tenha sido transmitido quase nada sobre a vida de cada um, exceto de Aleixo, que viveu até a idade de 110 anos, como testemunha fiel da primeira fundamental inspiração. A respeito dos últimos anos de sua vida há esta página estupenda que transcrevemos: Ele, embora com idade avançada, pela fraqueza do corpo e pelo longo tempo no qual tinha suportado na Ordem ‘o peso do dia e do calor’, devesse naturalmente desejar o sossego e procurar alimentos adequados a seu estado de saúde, como vestir roupas que o esquentassem e deitar sobre colchão macio para o alívio do corpo enfraquecido, ao contrário, demonstrando nisto a sua perfeição e religiosidade, procurava todo o oposto. Jamais pedia alimentos particularmente leves, mas queria sempre comer no refeitório comum, satisfeito com o alimento da comunidade.... ou, no máximo, colhendo algumas ervas da horta costumava fazer chá para aliviar o frio do enfermo e velho corpo sem procurar um alimento mais farto. Deixando de lado roupas mais finas... usava outras nem muito usadas nem luxuosas. O leito, pois, não só não o queria adaptar à sua enfermidade e à fraqueza do corpo... mas... usava uma tábua em lugar de colchão e uma coberta áspera em vez de lençóis. Não só não evitava os trabalhos manuais, como é costume nessa idade, mas sempre se sujeitava a fazê-los. Embora vivesse com tão grande perfeição e fosse tratado com grande honra e reverência pelos irmãos como um dos primeiros sete irmãos por meio dos quais Nossa Senhora tinha querido iniciar a sua Ordem, nunca se apoiava nisso para deixar de lado alguma de suas obrigações...


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Assim, até quando pôde, na sua vez, saía para pedir esmolas, suportando o cansaço como qualquer outro irmão sadio... demonstrando assim o amor que nutria pelos outros e a humildade que tinha no coração. 16

Se bem que a veneração por esses santos homens fosse viva no meio do povo desde o início, sua canonização só se deu em 1888 por obra de Leão XIII, porque nessa longa tradição seus nomes não tinham sido transmitidos com exatidão, como para recordar-nos a máxima evangélica de que o importante é que nossos nomes estejam escritos no céu.17 Atualmente, depois de numerosos reconhecimentos de seus corpos, repousam em uma única urna para significar aquele único amor que os uniu em vida e que eles deixaram como herança à humanidade de todos os tempos.

21 de fevereiro São Pedro Damião bispo e doutor (1007-1072) “Caríssimo e dulcíssimo irmão, enquanto fores cercado de provações, enquanto fores castigado pelos golpes e pela correção de Deus, não desesperes em teu coração nem te escape o lamento da murmuração. A amargura da tristeza não te envolva completamente, a pusilanimidade não te deixe nervoso. Reine sempre a serenidade em teu semblante e a alegria em teu coração, e ressoe em tua boca o agradecimento. É preciso louvar, de fato, o desígnio divino que golpeia momentaneamente os seus com a finalidade de subtraí-los dos flagelos eternos. Ele abate para elevar, corta para curar, humilha para levantar.” 18

É o auto-retrato de Pedro Damião que, imerso até o pescoço nas controvérsias do século XI, se esforçava para conservar a serenidade dentro de si e em promovê-la fora, mesmo quando seu caráter impetuoso o tornava um obstinado crítico dos vícios de seu tempo.

16. Ibid. 17. Cf. Lc 10,20. 18. Pedro Damião, Cartas, livro 8,6. Cf. PL 144,473-476.


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A Igreja, procurando ser independente do poder imperial, continuava a pagar um preço alto pela proteção que teve no passado. As famílias nobres, para não dividir o patrimônio, destinavam-no ao primogênito; quanto aos outros filhos, eles deveriam escolher a carreira militar ou eclesiástica. Para obter a designação de bispo ou abade, freqüentemente pagavam grande quantidade de dinheiro à autoridade civil que tinha o privilégio de indicar os candidatos àqueles cargos eclesiásticos. Os eleitos, por sua vez, se mantinham lá, pois a concessão dos postos dependia deles mesmos. A vida dos pastores da Igreja, mais que cumprimento de uma missão, era exercício de comércio ilícito. São Pedro Damião e Gregório VII reivindicaram o direito da Igreja de escolher os próprios pastores, promovendo uma luta a ferro e fogo contra os abusos vigentes. Ao bispo Wide de Milão, que tinha comprado a sua nomeação ao episcopado, Pedro Damião lhe impôs uma penitência de cem anos, comutando-a depois para uma grande soma de dinheiro para ser distribuída todo ano aos pobres.19 E não era fácil mudar um tal costume, pois a maioria dos bispos e dos abades eram também governadores dos próprios súditos, com todas as responsabilidades civis e políticas diante do rei ou do imperador. Os bens eclesiásticos, por outro lado, haviam crescido excessivamente, seja pelos legados dos fiéis seja pela boa administração dos monges. E sabe-se que, onde estão os bens materiais, muitos acorrem para se apoderar deles por todos os meios. Uma outra praga que afligia a Igreja era a vida moral do clero. Se por um lado havia bispos, sacerdotes e monges exemplares, grande também era o número daqueles que tinham abraçado a vida eclesiástica sem vocação e uma grande parte do baixo clero juntava à imoralidade também a ignorância. Muitas vezes o apostolado daqueles padres se reduzia ao exercício de um culto que mais se assemelhava à superstição do que à religião. A vida e a atividade de Pedro Damião se desenvolveram nessas circunstâncias dolorosas e difíceis.

Uma infância sacrificada Nasceu em Ravena em 1007 de família numerosa. Desde a infância, conheceu o sofrimento, ficando órfão de pai e mãe. Fez-lhe às vezes de mãe a irmã Roselinda e foi adotado como filho por seu irmão mais velho, Damião, por quem foi chamado Pedro Damião. 19. PL 145,97


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Mesmo reconhecido a Rosalinda e a Damião, ele sentia profundamente a falta dos pais e conta-se que, quando ainda era criança e muito pobre, ao ter encontrado uma moeda, não a gastou para suas próprias necessidades, mas a deu a um sacerdote para que celebrasse uma missa pelo pai e pela mãe. Muito cedo revelou uma inteligência extraordinária e o irmão o ajudou a desenvolvê-la com os estudos em Ravena, Faenza, Pádua e Parma. Aos 25 anos, já ensinava na Universidade.

Uma escolha corajosa Tornou-se um homem importante, e já tinha assegurado o próprio sustento para toda a vida. Certo dia, enquanto se alimentava, aproximou-se dele um pobre, e ele se negou a ajudá-lo. Depois disso, não teve mais paz, caindo na conta de que ele também já se tinha encontrado em tal situação; se não fosse a caridade alheia, ainda então estaria pelas ruas pedindo esmolas. Se até aquele instante ele tinha estado imerso nos livros e se tinha esquecido da miséria que estava ao seu redor, a partir daquele momento, ele não mais o poderia fazer, pois Deus lhe tinha aberto os olhos. Via os ricos e os poderosos preocupados somente em acumular riquezas espezinhando os mais fracos, e o que mais o fazia sofrer era constatar que aquela lei antievangélica era seguida servilmente também por muitos homens da Igreja. Queria evitar aquela situação e quis fazer alguma coisa para mudar a sociedade, deveria adotar uma escolha radical pelo Evangelho: deixar tudo e seguir a Jesus. Mas para onde ir? “A disciplina monástica estava frouxa e tinha-se distanciado de sua habitual perfeição; a maioria dos clérigos vivia de maneira mundana e os seculares se agrediam e destruíam reciprocamente.”20 Julgou que a via mestra para realizar o chamado de Jesus fosse o ere­ mitério e escolheu o de Fonte Avelã, pequeno, mas já muito famoso por sua austeridade. Era por volta de 1035. Lá ele pôs seus talentos a serviço dos monges, aprofundou a espiritualidade do fundador, são Romualdo, escreveu sua vida e comunicou sua sabedoria aos irmãos. Outras comunidades quiseram ouvir sua palavra e serem instruídas sobre como viver o carisma dos eremitas. Em 1043, foi eleito prior e se sentiu no dever de escrever opúsculos para os seus monges, recolhendo e ordenando tudo aquilo que são Romualdo tinha escrito 20. Id., Liber Gomorhianus.


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ou deixado como simples tradição. O convento de Fonte Avelã se tornou famoso. Surgiram outros eremitérios nos moldes do seu: nos Abruzzi, em Marche, na Umbria e em Romagna, e se uniram entre si na congregação eremita de Santa Colomba. Pedro Damião foi um apaixonado pela vida eremita, como se pode perceber ao ler o seu opúsculo Dominus vobiscum. O ermo é a meta última e deve constituir a aspiração mais profunda de cada monge. A cela é a comunidade que o exercita e o conduz à solidão, onde ele pode alcançar o grau mais alto de contemplação e testemunhar ao mundo que só Deus pode tornar feliz o ser humano. Embora as circunstâncias o levassem continuamente para fora do eremitério, aceitava tal sacrifício só por amor à Igreja, retornando a ele logo, assim que havia cumprido a sua tarefa.

Apaixonado pela Igreja Embora recluso em seu eremitério e distante de olhares humanos, ele se sentia Igreja: “A Igreja de Cristo” – escrevia – “é unida nos seus membros por um laço de amor tão forte que é una em muitos e toda em cada um... E o é a tal ponto que a Igreja universal aparece como se fosse uma só pessoa, como a única esposa de Cristo, e cada alma... é considerada como a Igreja inteira (...) Por isto, reunidos em comunidade, dizemos com justeza: ‘Senhor, escutaime e respondei-me’. E, quando sozinhos, não estamos errados se cantarmos: ‘Exultai em Deus nossa força, aclamai o Deus de Jacó’. Pois, de uma parte, o isolamento de uma pessoa que se encontra só não é um obstáculo às expressões no plural e, de outra parte, a multidão dos fiéis não se separa do indivíduo, pois pela virtude do Espírito Santo, que se encontra em cada um e que sacia a todos, a solidão deve ser compreendida no plural e a multidão no singular”.21 Está aqui o sentido eclesial do eremitério. Não é uma simples fuga do mundo e da Igreja-instituição para refúgio em um lugar puro, reservado aos eleitos, mas é fuga do mal, a fim de entrar e operar no próprio coração da Igreja e abraçar plenamente a vida evangélica. Com este espírito, Pedro Damião escreveu Sobre a ordem de vida dos eremitas e a Regra eremita.

Promotor da reforma da Igreja Pedro Damião foi juntamente com Hildebrando, depois papa Gregório VII, um dos mais atuantes colaboradores do papado na reforma da Igreja. 21. Id., Dominus Vobiscum, cc. 5-6


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Influenciado pela mentalidade de seu tempo e inspirando-se no exemplo de são Romualdo, desejava que “a suprema instância sacerdotal e o supremo poder temporal (um do lado do outro e em colaboração) trabalhassem para o bem da cristandade, “pois o sacerdócio goza da proteção do estado e o reino tem proteção da santidade do ministério sacerdotal”. Entre ambos, existem cargos específicos e diferentes: “o rei possui as armas temporais; e os sacerdotes, a espada do espírito que é a Palavra de Deus. A situação ideal é quando a espada temporal se une à espiritual”.22 Agora podemos compreender como Pedro Damião, para levar adiante a reforma da Igreja, entrou em contato direto ou indireto com um grande número de pessoas influentes no campo civil e eclesiástico, expresso em outro escrito tirado de seu riquíssimo epistolário. Tornou-se amigo do imperador Henrique III, que lhe pediu para colaborar com o papa Clemente II que ele tinha feito eleger. Após a morte de Henrique III, tornou-se guia espiritual da viúva, a imperatriz Inês; e procurou exercer influência sobre o filho da imperatriz, Henrique IV, mas sem sucesso.

Mestre espiritual Desejoso de renovar a Igreja, empenhou-se em estimular à santidade, leigos, monges e sacerdotes. Entre seus discípulos, encontramos, além da imperatriz Inês, outras figuras femininas de destaque, como as duquesas Beatriz da Toscana, Adelaide de Turim, a esposa do marquês Ranieri, a condessa Bianca, etc. Também na direção espiritual daquelas pessoas era muito exigente. À duquesa Beatriz, aconselhava separar-se dos bens terrenos: “Doai a terra e ganhai o céu”23; e à marquesa Ranieri da Toscana, recomendava pôr-se, o mais breve possível, a caminho de Jerusalém, para cumprir uma penitência recebida em confissão: “Aqueles que estão no mundo, como se estivessem em um lamaçal ou aqueles que assumiram um compromisso espiritual e não observam mais as regras, nós os exortamos a tomar a via do exílio, para aplacar o terrível Juiz abandonando sua pátria”.24

22. LORTZ, J. Storia della chiesa, I, Edições Paulinas 1987, p. 422. 23. Pedro Damião, Epist. 7,14. 24. Id., Epist. 7,17.


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Aos sacerdotes, recordava que a palavra: “clero” quer dizer “a parte e a porção de Deus”: quem escolhe este estado de vida deve renunciar aos bens terrenos para se dedicar somente ao serviço da Igreja e viver como os apóstolos na primeira comunidade cristã. Diante do desastre moral do clero que não conseguia guardar o celibato, ele oferecia como remédio a vida comum e a ruminação da palavra de Deus. Escrevia a um bispo: “Quando vos deslocardes de um lugar a outro, ou estiverdes em viagem, ou qualquer coisa que devais fazer, os vossos lábios devem proferir sempre alguma palavra da Escritura, repassando sempre os salmos como num pilão, para poder a cada momento emanar um perfume igual àquele das plantas aromáticas”.25 Dos monges, para os quais tanto escreveu, exigia a perfeita observância da própria regra, até mesmo com alguma penitência a mais. Quando se encontrou em Cluny como enviado do Papa, aconselhou o abade a introduzir a flagelação e os jejuns suplementares, mas o abade Hugo sabia e diplomaticamente convidou-o a viver por uma semana segundo a disciplina de Cluny: “primeiro experimentai a nossa cozinha e depois direis se falta algum sabor”.26 Não há dúvida, porém, de que sua palavra, pregada e escrita, teve uma enorme influência também na vida dos monges.

Bispo e cardeal Pedro Damião encontrou o seu melhor amigo no monge Hildebrando, mesmo que o seu pensamento a respeito do modo de exercer a autoridade papal fosse diferente. Hildebrando de fato afirmava a supremacia absoluta do papa sobre cada autoridade eclesiástica e civil, enquanto que Pedro Damião não admitia a ingerência do papa nas questões temporais. Mesmo admirando o seu amigo, às vezes a astúcia e as decisões dele o deixavam um pouco perplexo, mas em seguida compreendia que em política nunca se pode ser ingênuo e o seguia. Feito cardeal e bispo de Óstia pelo papa Estêvão IX, teve que deixar a abadia e se transferir para Roma para organizar a reforma da Igreja ao lado de Hildebrando. Foram dez anos (1057-1067) de muito empenho, seja no cuidado pastoral da diocese seja no governo da Igreja. Realizou várias missões em nome do 25. LECLERQ, J. Inéditos de são Pedro Damião, em RBén, 67 (1957), p. 158. 26. Miracula s. Hugonis, 15.


São Pedro Damião

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Papa: em Cluny, para defender aquela gloriosa abadia contra as acusações do bispo do lugar que queria se apossar dela e submetê-la à sua autoridade (lá nasceu uma profunda amizade com o abade Hugo); em seguida, em Florença, onde o arcebispo estava sendo processado por simonia e Pedro Damião, mesmo sendo o inimigo número um da simonia, o absolveu por falta de provas. Em 1067, obteve finalmente a permissão para retornar à Fonte Avelã, renunciando à diocese. O cardinalato não tinha apagado nele a alma de eremita. Mas a tão desejada quietude durou pouco. Em 1068, foi enviado a Frankfurt na tentativa de evitar o divórcio de Henrique IV de sua mulher Berta; em 1071, foi chamado a Montecassino para a consagração da igreja abacial e para se encontrar com o seu caríssimo amigo, o abade Desidério, com o qual partilhava os planos da reforma da Igreja e que se tornaria o papa Vítor III; em 1072, foi enviado a Ravena para reconciliar com o papa o arcebispo que tinha apoiado o antipapa, provocando o interdito sobre a cidade. Tendo voltado à paz em sua cidade natal, colocou-se a caminho de seu convento; mas, por uma doença inesperada, precisou parar em Faenza, como hóspede dos monges beneditinos de santa Maria fora dos muros.

Proclamado santo pelo povo Lá, no dia 23 de fevereiro de 1072, morria o cantor do eremitério, pai e filho daquela Igreja que tanto amava, censurando sem piedade os vícios e os desvios. O povo proclamou-o rapidamente santo e a Igreja aprovou. Leão XII, em 1828, declarou-o doutor da Igreja. Sua popularidade foi tão grande que suscitou o interesse de famosos escritores italianos como Boccaccio e Petrarca. Este último escreveu sua vida. Mas quem mais o tornou brilhante foi certamente Dante Alighieri. No Paraíso da Divina Comédia, Pedro Damião está entre os contemplativos e continua sua pregação fustigante, descrevendo assim os maus pastores do seu tempo: Agora querem e depois... quem os persiga os modernos pastores precisam de quem os conduza são tão graves!, e quem pode levantá-los. Cobrem com um manto a língua desenfreada como se dois animais estivessem sob uma única pele... (XXI, 130-134) Esta linguagem do magnífico poeta se harmoniza perfeitamente com a pregação muitas vezes mordaz do santo.


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Como escritor, Pedro Damião revelou um conhecimento profundo da Sagrada Escritura e dos padres da Igreja. Sob este conhecimento ele construiu sua teologia, que por um lado o eleva à contemplação da vida trinitária e por outro o põe em êxtase diante da humanidade de Cristo e da figura de Maria. Ele é considerado, de fato, o precursor da devoção à humanidade de Jesus e chamado de camareiro de Maria. Eis a descrição de alguns momentos da sua contemplação sobre a humanidade de nosso santíssimo Salvador ou sobre a inefável visão da glória celeste: “Muitas vezes, eu o considerava presente no olhar do meu espírito, Jesus Cristo transpassado pelos pregos, suspenso na cruz e aproximando os meus lábios, ávidos para receber o sangue que caía gota a gota”.27 “Deixando para os outros mais favorecidos, a majestade de sua divindade, fiquemos contentes em contemplar somente a cruz.”28 Há uma expressão de ternura no contemplar Maria que amamenta o menino: “Felizes os seios que vertem um leite delicado nos lábios do menino: nutrem aquele que é o alimento dos anjos e dos homens! É líquido muito simples, mas dá força ao Criador. Aquele a cujo poder é dominada a tempestade, espera do seio virginal alguma gota de leite”.29

23 de fevereiro São Policarpo bispo e mártir (75/82-155) “Das coisas daquela época, recordo melhor das recentes; poderei descrever o lugar no qual o bem-aventurado Policarpo se levantava para falar, como exortava e como discorria sobre os assuntos, o seu modo de viver, o aspecto da sua pessoa, os discursos que fazia diante do povo, como falava de seu relacionamento com João e com os outros que tinham visto o Senhor, dos quais relembrava as palavras ouvidas a respeito do Senhor, de seus milagres e da sua doutrina.” 30

27. Pedro Damião, Opusc. 19,c.5. 28. Id., Opusc. 32,c.8 29. Id., Serm. 45. 30. Carta de Irineu a Florino, em: Eusébio, História Eclesiástica, V, 20,5-6.


São Policarpo

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Este testemunho de Irineu de Leão, discípulo de são Policarpo, bastaria por si só para delinear a figura de nosso santo, como um homem apostólico, isto é, discípulo direto de João e dos outros apóstolos. Mas a este se ajunta também a de santo Inácio de Antioquia que, depois de tê-lo encontrado em Esmirna enquanto viajava para Roma, escrevia-lhe de Troade: “Considero-me feliz de ter visto o teu rosto sincero, e é disto que eu me alegro no Senhor”.

O discípulo dos apóstolos De fato, Policarpo foi profundamente marcado pelo encontro que teve com os apóstolos, sobretudo com João. As palavras dos apóstolos ficaram impressas em seu coração como se ele tivesse ouvido com o próprio ouvido as palavras de Jesus e tivesse acompanhado pessoalmente os acontecimentos de sua vida terrena. Além daquela proximidade com os apóstolos, nada sabemos de sua infância e da sua juventude. Acredita-se que nasceu por volta do ano 75 de uma família cristã. Segundo a tradição, confirmada por Irineu, Tertuliano e Jerônimo, foi feito bispo de Esmirna pelo próprio são João em torno do ano 100. Santo Irineu diz que “ele foi discípulo dos apóstolos e familiar de muitos que tinham visto o Senhor, e foi pelos próprios apóstolos designado bispo para a Ásia, na Igreja de Esmirna”.31 De qualquer modo, sua ordenação aconteceu certamente porque todos viam nele a fiel testemunha da tradição joanina e isso lhe possibilitou exercer uma forte influência não só na cidade de Esmirna, mas também nas cidades vizinhas. O mesmo Inácio, estando para ser martirizado, recomendava-lhe que cuidasse da Igreja de Antioquia que estava sem pastor.

O pastor fiel à tradição Levar adiante as comunidades cristãs da Ásia naquele tempo não era fácil. Mesmo quando os apóstolos estavam ali presentes, surgiam algumas heresias, mas suas intervenções esclarecedoras foram, para a grande maioria, decisivas: a palavra do apóstolo era a palavra de Jesus. Agora, nem sempre a palavra do bispo era reconhecida como autorizada. Tinham proliferado os profetas que freqüentemente reivindicavam sua autonomia e não participavam da eucaristia 31. AH, III, 3,4.


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celebrada por Policarpo, criando igrejinhas pessoais de fiéis que professavam um certo rigorismo moral, chegavam a negar que Jesus tivesse tido um corpo humano real e que o Antigo Testamento houvesse sido inspirado por Deus. Irineu nos testemunha que Policarpo durante toda a sua vida praticou a caridade, assim com havia aprendido de João, para conduzir ao redil as ovelhas que se tinham deixado enganar pelas falsas doutrinas, pregando, porém, com firmeza “sempre as mesmas coisas como tinha aprendido dos apóstolos e a Igreja tinha transmitido e que constituíam a única verdade”.32 Por essa fidelidade à tradição joanina, muitas igrejas recorriam a ele para serem iluminadas e dirimir controvérsias doutrinais, como testemunha Eusébio: “Policarpo enviou cartas às igrejas vizinhas para confirmá-las ou a alguns irmãos para repreendê-los ou para estimulá-los”.33 Temos somente a carta que ele escreveu aos Filipenses, atendendo aos seus pedidos. Depois de os ter louvado pela assistência que haviam dado aos santos mártires Inácio, Zósimo e Rufo quando eles foram para Roma e depois de ter recordado que eram filhos do apóstolo Paulo, Policarpo os exortava a permanecerem fiéis ao verdadeiro ensinamento dos apóstolos, insistindo no fato de que Jesus verdadeiramente sofreu sobre a cruz por nós em sua carne: “Ele carregou sobre a cruz em seu corpo os nossos pecados através da Paixão suportada por sua vontade”.

O homem da comunhão Um ano antes do martírio, Policarpo foi a Roma a fim de resolver com o papa Aniceto a então espinhosa questão da data da celebração da Páscoa. A tradição da Igreja de Roma e da maior parte das outras igrejas celebrava a maior festa cristã no domingo depois do dia 14 de Nisã; a tradição das Igrejas da Ásia Menor, ao contrário, influenciada pela práxis joanina, celebrava-a como os judeus sempre no dia 14 de Nisã. Policarpo soube explicar bem as coisas para Aniceto: no fundo não se tratava de uma questão doutrinal, mas de uma questão puramente disciplinar e, portanto, cada um poderia permanecer com a própria tradição. Aniceto ficou admirado pela santidade do bispo de Esmirna e, em sinal de comunhão 32. AH, III, 4. 33. Eusébio, História Eclesiástica, V, 20,8.


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e honra, quis que ele presidisse a celebração eucarística na igreja de Roma. Porém, mais tarde, reacendeu-se o desentendimento e Irineu, escrevendo ao papa Vitório, recordará a passagem de Policarpo por Roma e o acordo alcançado com o seu predecessor. Quando Policarpo estava em Roma, encontrou-se com o herético Marcião, rico comerciante, dono de um navio, que tinha vindo ao papa para buscar apoio às suas idéias, oferecendo dinheiro para propagação da fé. Vendo a boa acolhida a Policarpo, tentou ganhar também sua estima e se apresentou a ele, pedindo-lhe que o recomendasse. O bispo de Esmirna, que estava a par de suas idéias pouco ortodoxas, deu-lhe uma resposta precisa e cortante: “Oh, sim! Eu reconheço o primogênito de Satanás”. E, em Roma, a doutrina de Marcião não foi adiante.

O mártir Tendo retornado a Esmirna, logo se deu conta de que continuariam os ventos da perseguição. Seus fiéis o convenceram a se retirar e a se esconder em uma casa de campo para evitar complicações; mas um pobre cristão, capturado pelos guardas e submetido a torturas, não conseguiu resistir e revelou o refúgio do seu pastor. Uma longa carta da Igreja de Esmirna nos informa sobre o martírio de Policarpo.34 Os guardas chegaram à noite e encontraram Policarpo em oração. Ele os acolheu com amor, “ofereceu-lhes alimento e bebida à vontade”, e, enquanto se fartavam, Policarpo orou, durante duas horas, “por todas as pessoas que ele tinha encontrado, pequenas e grandes, de alta ou baixa condição, por toda a Igreja Católica na terra”. Os guardas não tiveram coragem de prender um homem assim tão santo e resolveram convidá-lo para sair montado em um asno para levá-lo à cidade. No caminho, Herodes, chefe dos guardas, e Nicete, pai deste, fizeram Policarpo subir na sua carroça, tentando convencê-lo a obedecer ao governador para evitar a morte. Foi uma conversa perfeitamente inútil que acabou irritando os dois funcionários que, ao se aproximarem da cidade, não quiseram mais carregá-lo na carroça e fizeram-no descer e ir a pé. 34. As citações em seguida foram tiradas dos Atti dei martiri, vol. I, a cura di C. Allegro. Cidade Nova, Roma 1974, pp. 74-77.


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No dia seguinte, quando entrou no circo, onde era esperado pela multidão, ansiosa por divertimentos e pelo governador Estácio Quadrato, um grito geral se levantou das escadarias. O governador quis interrogar o ancião. Pediu-lhe para gritar diante de todos: “Abaixo os falsos deuses”. Policarpo concordou de boa vontade, mas quando lhe pediu para renegar a fé cristã e sacrificar ao imperador recusou-se com firmeza. Ao segundo convite do governador para pensar na sua idade avançada e se decidir a renegar a Cristo, ele respondeu: “Eu o servi durante oitenta e seis anos e jamais ele me fez mal. Por que deveria trair agora o meu rei e o meu salvador?”. Quando o mensageiro anunciou à multidão: “Policarpo confessou que era cristão”, ouviam-se gritos de todos os lados que diziam: “Policarpo é o mestre de toda a Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses!”. E pediam que ele fosse atirado aos animais. Como já era tarde, não foi mais possível realizar o espetáculo das feras e o povo teve que se contentar com a fogueira. Rapidamente, foi ajuntada a lenha e os guardas se aproximaram de Policarpo para prendê-lo com correntes. Ele pediu-lhes que não o amarrassem e, retirando a túnica e as sandálias, subiu na pira e aproximou-se da estaca. Quando os algozes chegaram para pregá-lo ao poste, ele lhes disse: “Deixai-me assim: aquele que me dá forças para suportar o fogo, me concederá também sem necessidade de pregos, de permanecer imóvel sobre o fogo”. Os guardas limitaram-se a amarrá-lo. O martírio foi descrito como uma grande e solene liturgia nos Atos dos Mártires: “Preso com as mãos atrás das costas, como um cordeiro retirado de um grande rebanho para ser sacrificado, holocausto aceito por Deus, levantando os olhos ao céu”, Policarpo diante da multidão repentinamente emudecida, como se estivesse no altar a celebrar a sua última eucaristia, fez a grande oração: Senhor Deus onipotente, Pai do teu amado e bendito servo Jesus Cristo, eu te bendigo, porque me fizeste digno deste dia e desta hora, para poder participar, no número dos mártires, do cálice do teu Cristo pela ressurreição para a vida eterna, alma e corpo na incorruptibilidade do Espírito Santo. Que hoje eu possa ser acolhido à tua presença, como sacrifício aceito e agradável, como predispuseste e revelaste e agora estás cumprindo tu, infalível e verdadeiro Deus. Amém!


São Policarpo

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Quando Policarpo ainda era um bispo jovem, santo Inácio lhe escreveu: “Permanece firme como uma bigorna sendo golpeada”.35 Ele mesmo tinha exortado aos Filipenses: “Estejamos continuamente presos à esperança e ao penhor de nossa justiça, Cristo Jesus... Ele sofreu por nós, a fim de que nós vivêssemos nele. Devemos, portanto, imitar sua paciência (sua força de sofrer)... Ele nos deixou um exemplo na sua pessoa”.36 Tudo estava consumado e os cristãos podiam recolher com veneração o que restou de seu corpo e escrever a história de seu martírio, enviando cartas às igrejas irmãs, a fim de que todos pudessem se alegrar com os exemplos de quem tinha sido e permanecia para sempre pai e mestre. Santo Irineu escreveu primorosamente: “Policarpo teve uma vida muito longa e morreu já ancião em meio a um gloriosíssimo e nobilíssimo martírio”.

35. Inácio de Antioquia, Pol. 3,1. 36. Policarpo, Filip. 8,12.


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Março

4 de março São Casimiro padroeiro da Lituânia e da Polônia (1458-1484) “Quis sempre ser considerado entre os humildes e os pobres de espírito, mais do que entre os nobres e os poderosos deste mundo.” 1

É difícil distinguir entre história e lenda quando se trata de personagens famosos que viveram na corte e elevados às honras dos altares pelo seu povo, às vezes, mais pelo amor pátrio do que pela santidade vivida. Mas no caso de são Casimiro não é assim. Apenas trinta e seis anos depois da sua morte, um legado pontifício, Zacarias Ferreri, foi até os locais onde ele havia passado a vida e instaurou um processo regular de beatificação, interrogando pessoas que o tinham conhecido e escrevendo depois, ele mesmo, a biografia de Casimiro nas suas linhas essenciais.

Sob as vestes de um príncipe, o coração de um santo Casimiro nasceu em Cracóvia aos 3 de outubro de 1458, filho de Casimiro IV, rei da Polônia e grão-duque da Lituânia, de onde sua família 1. Vida de São Casimiro, escrita por um autor quase seu contemporâneo. Cit em: Liturgia das Horas.


São Casimiro

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provinha, e de Isabel da Áustria. Foi o terceiro dos treze filhos do casal. Aos 13 anos, por uma trama feita pela corte, recebeu a designação de rei da Hungria, mas os seus concidadãos tiveram de renunciar àquele plano depois de uma derrota militar. O ambiente familiar, profundamente religioso e moralmente sadio, e o trabalho cuidadoso de seus mestres tinham-lhe aberto horizontes bem mais vastos do que as ambições por um trono. Uma influência muito benéfica teve sobre ele o cônego Jon Dlugosz, renomado historiador polonês e fino educador. Por seu testemunho, sabemos que Casimiro era dotado de uma inteligência fora do comum, demonstrada não só nos estudos, mas também no cumprimento dos difíceis serviços que lhe confiou seu pai. Tinha grande devoção à eucaristia e um amor especial a Nossa Senhora, à qual dirigia todos os dias a belíssima oração atribuída a são Bernardo (Todos os dias eu dirigi-vos a Maria), mas que o povo lituano e polonês acreditavam ter sido composta pelo próprio príncipe, tendo-a encontrado escrito de seu próprio punho em um pergaminho colocado debaixo de sua cabeça no sepulcro em Vilnius.

Queriam que ele se casasse, mas ele já estava comprometido Em 1481, as cortes da Polônia e da Alemanha enviaram uma proposta de matrimônio entre Casimiro e uma filha do imperador Frederico III, mas o príncipe não quis nem saber, pois tinha consagrado a sua vida a Deus, mesmo sem ter entrado em um mosteiro. Na sua carreira política, primeiro foi regente do reino da Polônia, enquanto o seu pai residia em Vilnius, depois tornou-se vice-chanceler da Lituânia.

Defensor dos pobres No exercício de suas funções se distinguiu pelo cuidado com os pobres, que naquele tempo eram muitos e encontravam ajuda só nas obras de beneficência. Cuidou também para que na sua terra da Polônia e da Lituânia não faltassem à Igreja bons pastores nas dioceses e nas paróquias. Adoecendo de tuberculose na Lituânia, morreu em Gradno em 1484. Poloneses e lituanos imediatamente o veneraram como santo, símbolo sagrado de sua fé e da independência política de seus países. Em 1520, o concílio de Lateranense V confirmou oficialmente a santidade heróica de Casimiro.


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7 de março Santa Perpétua, Felicidade e companheiros mártires africanos (= 202/203) “Despontou o dia da vitória dos mártires e do cárcere foram conduzidos ao anfiteatro, como se fossem para o céu, de rosto radiante e sereno, dignos, sobressaltados mais pela alegria que pelo medo (...) Ó valorosos e beatíssimos mártires! Vós sois verdadeiramente os chamados e os eleitos à glória de Jesus Cristo, nosso Senhor.” 2

Nos primeiros séculos do cristianismo, o martírio foi considerado a maior perfeição a que poderia aspirar um seguidor de Cristo. Nos Atos dos Mártires se lêem histórias estupendas de coragem de bispos e leigos, de virgens e casadas. Às vezes toda uma comunidade ficou na mira do olhar do poder civil com a intenção de erradicar a fé que se espalhava como uma mancha de óleo entre as pessoas. Não faltaram obviamente aqueles que, para salvar a própria pele, fizeram sacrifícios para ídolos sem acreditar neles realmente, e pedindo depois para serem readmitidos na comunidade assim que desaparecia o perigo da perseguição.

Ainda catecúmenos e já dignos de dar testemunho A narração do martírio de Perpétua, de Felicidade e dos outros com­ panheiros é também uma autêntica jóia porque nos faz conhecer o profundo relacionamento de fraternidade que existia entre os cristãos daquele tempo, e como naquele clima também as mulheres casadas tinham a coragem de enfrentar o martírio. Perpétua era uma mulher jovem, mãe de família, e com um menino ainda pequeno. Por sua condição social e inteligência era também uma pessoa beminstruída, como se percebe por suas cartas. Sua família era cristã, exceto o pai. Felicidade era a criada de Perpétua e de sua patroa recebeu a fé. Também ela era casada e estava no oitavo mês de sua primeira gravidez. Entre as duas mulheres, uma patroa e outra escrava, a sintonia era perfeita, pois a fé cristã tornou-as irmãs, até mais do que se fossem nascidas da mesma mãe terrena. 2. Da Narração do martírio dos mártires cartaginenses. Cit. na Liturgia das Horas.


Santa Perpétua, Felicidade e companheiros

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Ao lado das duas, havia alguns personagens masculinos: Saturnino, Secondulo e Revocato. Este último era um escravo. As duas mulheres e os três homens ainda eram catecúmenos, quando foram presos e reclusos no cárcere. Pertenciam a uma pequena cidade vizinha a Cartago de nome Thuburbo minus. O responsável pela comunidade era o catequista Saturo que, não estando presente na cidade no dia da prisão e não querendo deixar a sua obra incompleta, se apresentou espontaneamente às autoridades declarando-se cristão. Desta forma juntou-se ao grupo que estava no cárcere em Cartago. Dois diáconos da comunidade se interessaram pelo caso e com o dinheiro da própria comunidade conseguiram que os prisioneiros ficassem em cárcere privado e pudessem receber visitas dos parentes e amigos. Perpétua pôde assim alimentar o seu filhinho. Naquele período, receberam o batismo das mãos de Saturo como preparação ao martírio. Perpétua no seu diário escreveu: “O Espírito me sugeriu pedir na hora de receber a água (do batismo) nada mais que a constância na vida”. A nobre senhora falou por si e por todos: com o batismo, não pediram a libertação da prisão, mas a força para confessar Cristo. O pai de Perpétua foi visitar a filha. Ele a amava imensamente, e foi ele quem a tinha criado e instruído, como não acontecia com nenhuma outra mulher, e não podia permitir que agora ela terminasse miseravelmente por causa daquela nova crença religiosa. Suplicou à filha, de todos os modos, para que voltasse sob seus passos, mas foi inútil.

O relato de Perpétua Após um primeiro período de prisão privada, eles foram trancafiados em um subterrâneo fétido, frio e sem luz. Assim o descreve Perpétua: “Eu me encolhi aterrorizada, pois nunca tinha vivido em tal escuridão. Dia terrível! Que calor sufocante naquela massa de pessoas! Que situação penosa pelas vexatórias tentativas de chantagem da parte dos soldados!”. Naquela nova situação, não tendo mais consigo o filho, ela se lamenta: “Além disso, estava em grande aflição pelo meu filho que estava longe de mim... Mas depois eu consegui tê-lo em meus braços, na prisão; e rapidamente me senti mais forte, tendo que cuidar dele. Sim, o cárcere se tornou para mim um palácio, de tal modo que podia preferir estar lá, mais do que em qualquer outro lugar”. Antes, podia-se esperar também que fosse poupada por causa da influência de seu pai que gozava de respeito na capital entre as pessoas influentes, mas


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agora que tinham sido postos em semelhante cárcere, sem dúvida se aproximava a coroa do martírio. Perpétua teve um sonho. Tinha visto, como Jacó, uma escada alta que ia até o céu. Em cima, estava Saturo rodeado de anjos que a convidava para subir dizendo-lhe: “Perpétua, eu te espero; mas presta atenção para que o dragão não te devore!”. “Eu” – assim contava Perpétua – “respondi: ‘Ele não me fará mal! Em nome de Jesus Cristo!’ Eu subi sobre sua cabeça, como se fosse o primeiro degrau da escada. Assim ficamos sabendo que o martírio nos esperava. De agora em diante, abandonamos toda a esperança neste mundo”. Também o filho foi novamente retirado de seus braços; desta vez, para sempre. Uma manhã, os prisioneiros foram “arrastados, imediatamente após a primeira refeição, para o interrogatório no fórum da cidade”. Os juízes permitiram que o pai se aproximasse novamente de Perpétua. Este, lhe mostrando o filho que trazia consigo, gritava desesperado: “Tem piedade de teu filhinho!” E o governador Ilariano acrescentou: “Tem então respeito pelos cabelos brancos de teu pai e um pouco de consideração para com o teu filho! Oferece o sacrifício pela saúde do imperador!”. Perpétua simplesmente respondeu com um seco não. Em seguida, foi feita a pergunta fatal: “Tu és cristã?”. “Sim” – respondeu ela –, “sou cristã”. Então o juiz a condenou às feras. Perpétua anotou em seu diário: “Depois disto, retornamos alegres ao cárcere”. Agora, tratava-se somente de uns poucos dias de espera, o tempo necessário para organizar o espetáculo no anfiteatro da cidade. A condenação valia não só para Perpétua, mas para todos, pois todos se haviam declarado cristãos.

A preparação imediata ao martírio Aqueles dias de espera deveriam ser dias de festa, mas Felicidade estava triste. Ela seria excluída da luta no anfiteatro, ao menos por ora, pois a lei romana proibia que fosse levada para a arena uma mulher grávida. O autor que teve entre suas mãos as folhas do diário de Perpétua nos informa sobre os últimos dias dos nossos mártires. Ele diz: “Quanto a Felicidade, também esta foi agraciada pelo Senhor, precisamente deste modo: ela estava no oitavo mês de gravidez, enquanto se aproximava o dia dos jogos, temia enormemente que lhe fosse suspenso o martírio. Não é lícito, de fato, matar mulheres grávidas...”.


Santa Perpétua, Felicidade e companheiros

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Mas também seus companheiros estavam muito preocupados por ter de abandonar na estrada da mesma esperança uma tão virtuosa companheira, que estivera com eles desde o início. Com esse desejo comum, dois dias antes do espetáculo, rezaram juntos ao Senhor e logo após a oração Felicidade começou a sentir as dores do parto. E depois, como é natural em um parto ao oitavo mês, ela se lamentava, sofrendo fortes dores. Então um dos carcereiros lhe disse: “Se você grita assim agora, imagina o que você irá fazer quando for atirada aos animais ferozes?” – Ela lhe respondeu: “O que eu estou sofrendo agora sou eu que sofro; mas lá será em mim outro quem sofrerá por mim; de fato, eu irei sofrer também por ele”. Segundo Perpétua em seu diário, “assim deu à luz uma menina, que uma de nossas irmãs tomou consigo e a criará como filha”. Como podiam aquelas mães separar-se de seus filhos ainda pequenos? Só uma profunda experiência de fé pode explicar uma conduta tão heróica. Além do mais, se elas partiam, restava a família da comunidade. Aos filhos era melhor deixar a recordação de uma mãe corajosa diante dos algozes do que uma cristã medrosa que havia renegado a fé. Não havia dito o Senhor: “Aquele que não deixa, pai, mãe, filho...”? Eles se sentiam chamados a testemunhar a validade do evangelho.

O dia da festa Era costume oferecer aos prisioneiros um lauto banquete antes de conduzilos à arena. Eles aceitaram e fizeram a festa. Depois foram apresentados ao povo. De um lado estavam os homens: tinham restado apenas três, pois Secondulo não tinha resistido aos maus-tratos no cárcere e já tinha ido para o céu. O anfiteatro estava apinhado, pois o povo gostava de semelhantes espetáculos que geralmente eram feitos com delinqüentes comuns e escravos. Desta vez a curiosidade era maior, pois os condenados eram “os lavados”, como eram chamados os primeiros cristãos por causa do rito com a água do batismo, e entre estes uma nobre matrona com a sua criada. Entraram no anfiteatro entre duas filas dos algozes encarregados de lhes bater com chicote de couro tendo na extremidade um gancho de metal. O sangue que escorria dos corpos havia aguçado o instinto dos animais ferozes. Saturo, Revocato e Saturnino foram amarrados aos postes, em um palco, bem visíveis à multidão, para serem primeiro atacados por um leopardo e depois por um urso. As mulheres ao contrário: foram conduzidas ao centro da arena e abandonadas aos chifres de uma vaca enfurecida.


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O espetáculo começou com as mulheres, o animal mais de uma vez as lançou aos ares com os chifres até se cansar, enquanto a multidão aos urros se divertia. Perpétua quando se levantou cobriu-se por pudor os joelhos com os trapos que ainda restaram sobre o corpo e correu para levantar Felicidade. Depois ambas foram conduzidas à porta de entrada para assistir ao segundo espetáculo. As duas mulheres se abraçavam e se consolavam e trocavam palavras de encorajamento aos irmãos presos nos postes. Um leopardo e depois um urso morderam os mártires, e quando foram re­ tirados pelos domadores se via o sangue escorrendo de toda parte e se escutava a multidão a gritar: “Os lavados agora estão bem purificados”. A multidão, no entanto, gritava para conduzir os condenados ao meio da arena e lhes vibrar à vista deles todos os golpes de misericórdia. Saturo achou um modo de retirar o anel, mergulhá-lo no próprio sangue e doá-lo a um soldado. Os mártires, pela última vez, trocaram o beijo da paz e se submeteram ao último ato daquele terrível cerimonial. A igreja de Cartago tinha as suas primeiras testemunhas. Sobre o local onde foram enterrados foi levantada uma basílica, onde o próprio Agostinho muitas vezes teve a oportunidade de lhes exaltar as virtudes. A narrativa de seu martírio percorreu o império e seu culto se difundiu não só na tradição da Igreja latina, mas também na grega e siríaca.

8 de março São João de Deus (1495-1550) “Fazei o bem, irmãos, a vós mesmos.” 3 Chamava-se João Cidade e nasceu de uma boa família operária em Montemor-o-Novo, em Portugal, em 1495, três anos após a chegada de Cristóvão Colombo à América. Tinha no sangue o gosto pela aventura, como os portugueses de seu tempo, a tal ponto que com a idade de 8 anos desapareceu de casa e não foi mais encontrado. A mãe morreu de desgosto e o pai, viúvo, se tornou um leigo franciscano.

3. Era a frase que o santo repetia pelas estradas de Granada, quando pedia ajuda para os pobres.


São João de Deus

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À procura de aventura Tendo ultrapassado os limites de sua pátria, não se sabe como, chegou a Oropesa na Espanha à casa de Francisco Cid, procurador do conde Francisco Alvarez de Toledo. Para sua sorte, foi acolhido como um filho e adquiriu boa instrução básica. Ele correspondeu a tanta confiança, fazendo toda espécie de trabalhos segundo as necessidades da família: pastor, soldado, supervisor do pessoal da propriedade do conde. As coisas estavam indo bem, até que seu benfeitor resolveu lhe oferecer a mão de sua filha. Teria sido um ótimo partido, mas inesperadamente despertouse em João o espírito aventureiro e ele se alistou no exército espanhol que partia em guerra contra os franceses para a reconquista de Fuenterrabia. Os companheiros estimavam-no por sua coragem e honestidade e lhe confiaram a guarda dos ricos despojos conquistados dos franceses. Não se sabe como o cofre foi roubado e ele foi expulso do exército e condenado à forca. Só a intervenção de um personagem influente lhe salvou a vida. Retornou a Oropesa e retomou seu trabalho, mas o matrimônio ficou esquecido. Esperava pela oportunidade propícia para retornar ao exército e o conseguiu no ano de 1532 quando tomou parte na defesa de Viena contra Solimano II.

Um pouco mais ajuizado Quando retornou à Espanha, alguma coisa havia mudado dentro dele. Fez uma peregrinação a Compostela, depois visitou sua cidade natal e finalmente se dirigiu a Sevilha, onde por alguns anos trabalhou como pastor, até que no ano de 1535 novamente saiu perambulando pelo mundo. Foi para Ceuta na África e lá trabalhou como servente de pedreiro nas fortificações daquela cidade portuguesa. Lá, realizou uma obra humanitária, pois com o seu dinheiro ajudou uma nobre família portuguesa exilada naquelas terras e sem nenhum recurso econômico. Depois de três anos trabalhando como pedreiro, partiu para uma nova meta: Gibraltar. Com o dinheiro que tinha guardado tornou-se comerciante de livros, andando pelas ruas e subúrbios da cidade. Permaneceu em Gibraltar por pouco tempo e em seguida foi para Granada, onde abriu uma verdadeira e própria livraria. Em Granada, no dia 20 de janeiro de 1539, após ter escutado uma pregação do beato João d’Ávila, decidiu começar vida nova. Seu fervor de neo-convertido


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impressionou negativamente a população da cidade que o tomou por louco e o internou em um hospício. Lá, deu-se conta da situação fora do normal em que eram tidos os doentes mentais e decidiu em seu coração fazer alguma coisa.

O início de sua obra Assim que saiu do hospício foi em peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, pois desejava que a mãe celeste lhe fizesse conhecer com mais clareza se seus planos vinham de Deus. Retornando a Granada, começou a cuidar dos enfermos. Primeiramente, cuidando dos enfermos na entrada de um palácio nobre; depois, em uma casa mais confortável e finalmente fundou um autêntico complexo hospitalar. O bispo do local lhe sugeriu usar um hábito, que mesmo não sendo o usado entre os religiosos, torná-lo-ia conhecido como pessoa consagrada a Deus. João aceitou, pois, deste modo, sua obra não pareceria mais como exótica iniciativa pessoal, mas como obra da Igreja, dando-lhe maior crédito para obter fundos. O bispo, por sua vez, por sua própria conta quis oficializar o nome que jamais o povo lhe tinha dado: “João de Deus”. Em 1548, fundou um outro hospital em Toledo e depois foi a Valladolid para se encontrar com Felipe II, regente de Espanha, e sua corte. Estava cheio de dívidas e não podia pagá-las com a simples ajuda do povo. Apresentou a quem de direito a situação em que se encontrava não por imprudência ou por má administração, mas porque procurava ir ao encontro das necessidades objetivas dos súditos do rei. O arcebispo de Valladolid lhe replicou que, através de prévia investigação, ficara sabendo que seus hospitais eram um covil de vagabundos e de prostitutas. O santo aceitou o desafio e respondeu simplesmente com o convite de ir visitálo pessoalmente, e depois acrescentou: “Sua excelência encontrará somente uma pessoa indigna de comer o pão das ofertas: e esta pessoa sou eu”.

Irmãos, fazei o bem Quando João pedia esmolas dizia sempre: “Fazei o bem, irmãos, a vós mesmos!”, para recordar a cada um que quem dá aos pobres empresta a Deus. Daí, o nome “fatebenefratelli” dado aos seus filhos espirituais. Na verdade, ele não pensava em fundar uma ordem ou congregação religiosa: os seus colaboradores eram leigos que queriam cuidar dos enfermos como ele.


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Os primeiros foram dois inimigos obstinados que João tinha re­ conciliado; a estes, aos poucos, foram-se juntando outros e João os chamou simplesmente de “irmãos hospitaleiros”. Quando morreu, aos 18 de março de 1550, não deixou nenhuma regra escrita, mas somente algumas cartas. O des­envolvimento das fundações e dos colaboradores depois de sua morte impeliu a Santa Sé a dar aos “fatebenefratelli” uma regra e uma estabilidade jurídica. Pio XII, no IV centenário da ordem, sintetizou bem a espiritualidade de João de Deus com estas palavras: “Com a profundidade do olhar de sua fé, ele penetrou a fundo o mistério que se esconde nos enfermos, fracos e aflitos; e consolando-os, dia e noite, com a presença, palavras e remédios, estava convencido de prestar este trabalho piedoso aos membros doloridos do Redentor”.

As intuições de João João de Deus, porém, não é lembrado somente por sua santidade, mas também pelas intuições extraordinárias que teve a respeito da saúde. Naquele tempo, os hospitais eram ao mesmo tempo asilos para os idosos abandonados, refúgio para os peregrinos sem casa e abrigo para os doentes que ninguém queria ter em casa. Freqüentemente, os indigentes, também os enfermos com doenças contagiosas, eram literalmente amontoados sobre leitos improvisados e quem entrava no hospital corria o risco de ser contaminado por outras doenças mais graves. João organizou seus hospitais por repartições, segundo as várias doenças e a cada enfermo era dado um leito limpo e bem-arrumado. Partindo do Evangelho, que em cada enfermo se revela o rosto sofredor de Cristo, ele quis dar a cada enfermo uma assistência personalizada que não se limitava a ministrar os remédios, mas estabelecia um relacionamento humano de confiança recíproca com cada um. Ainda mais revolucionária foi a sua obra com os doentes mentais. Estes ainda eram considerados como endemoniados e eram freqüentemente presos e punidos. João, tendo experimentado na sua pele certos maus-tratos, decidiu que em seus hospitais os dementes fossem tratados simplesmente como pessoas doentes psiquicamente; portanto, com mais necessidade de afeto humano: ou melhor, deveriam ser amados mais que os outros e jamais castigados ou encarcerados. A seu respeito foi escrito justamente que “na assistência hospitalar mereceu um lugar que jamais poderá ser esquecido nos séculos”.


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9 de março Santa Francisca Romana viúva e religiosa (1384-1440) “Fizeste resplandecer em Francisca as virtudes de esposa e de mãe e na sua oblação consagraste-a com todos os teus dons.” 4

Os anos do cisma do Ocidente (1378-1449) foram tempos difíceis para Roma. Quando o Papa retornou de Avignon, lá ficou um antipapa e pouco depois surgiu outro com a pretensão de ser o legítimo sucessor de Pedro. A cristandade ficou desorientada a tal ponto que nem mesmo os santos como são Vicente Ferrer conseguiam reconhecer quem era o verdadeiro Papa. Naquela situação deplorável, o Estado pontifício e, de um modo especial, a cidade de Roma estavam politicamente abandonados e economicamente falidos. Por três vezes ocupada por Ladislau de Durazzo, rei de Nápoles, foi posta a ferro e fogo e, como sempre acontece nessas circunstâncias, foram os pobres os que mais sofreram. Naquele ambiente e em tal dilaceração da história desenvolve-se a vida de Francisca Bussa ou de Buscis.

Santa, mas em família Nascida em 1384 de família nobre, teve uma educação esmerada para uma criança de seu tempo. Entendia de arte, literatura e conhecia muito bem a Divina Comédia. Cristã convicta, admirava a vida dos mosteiros, mas seu caminho foi o matrimônio. Segundo o costume do tempo, casou-se ainda muito jovem, aos 13 anos, com um outro nobre, Lourenço Ponziani. Os Ponziani viviam em um luxuoso palácio em Trastevere junto à Igreja de Santa Cecília e ocupavam cargos importantes no Estado pontifício. Francisca se adaptou muito bem à nova família, estabelecendo ótimo relacionamento não só com os sogros, mas também com o cunhado e com a sua mulher, Vannozza. Esta tinha um caráter particularmente difícil, mas depois de ter hostilizado Francisca, deixou-se conquistar pelo seu amor e se tornou uma fiel colaboradora nas obras de atendimento em favor dos pobres. Francisca desempenhava muito bem o seu papel de mulher da nobreza sem se 4. Do Prefácio, suplemento monástico do Missal Romano, 152.


Santa Francisca Romana

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deixar ir atrás das vaidades daquele mundo. Teve três filhos, que amou com muito carinho, mas somente um chegou à idade adulta. Quando Roma foi ocupada, saqueada e atingida pelas angústias da fome e golpeada pelo flagelo da peste, enquanto os grandes afiavam as armas e os homens da Igreja discutiam sobre a superioridade ou não do concílio ecumênico sobre o Papa, Francisca arregaçou as mangas e sem perder tempo abriu as portas do celeiro e da adega, e junto com sua cunhada Vannozza e outras damas da nobreza romana organizou a assistência aos pobres. Freqüentemente conduzia um burrinho carregado de lenha ou de alimentos e passava de casa em casa distribuindo-os aos pobres; visitava os doentes e os confortava preparando com suas próprias mãos os remédios para lhes amenizar a dor.

As oblatas olivetanas Enquanto se doava incansavelmente às obras de caridade, o Senhor lhe favorecia com iluminações celestes que ela submetia humildemente a seu confessor para depois comunicá-las às suas amigas e colaboradoras. Estas seguiam os seus exemplos e, permanecendo cada uma na própria casa, empenhavam-se em viver as virtudes monásticas e se doar aos pobres. Em 1425 constituíram-se em associação e se chamaram oblatas olivetanas, pois freqüentavam a igreja dos monges beneditinos olivetanos, e se inspiraram naquela espiritualidade. Em 1433, tornou-se uma congregação religiosa de vida comum e foram morar em um edifício em Tor de’ Specchi (Torre dos Espelhos). Francisca as acompanhou em 1436, após a morte do marido, depois de quarenta anos de vida matrimonial vivida na mais plena harmonia. O esposo foi comandante das tropas pontifícias e foi ferido gravemente enquanto defendia Roma contra Ladislau de Nápoles, permanecendo inválido pelo resto da vida, mas cercado do afeto da mulher e do filho.

Uma alma da Igreja Francisca passou os últimos quatro anos no convento onde foi eleita superiora e se dedicou, sobretudo, a três tarefas: formar as suas filhas segundo as luzes que Deus lhe dava, dar-lhes o exemplo nas obras de misericórdia a que eram chamadas, orar pelo fim do cisma na Igreja. Morreu no dia 9 de março de 1440. Os cronistas daquele tempo afirmam que toda a cidade fez parte do seu funeral, que já a chamava com a doce


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invocação de “santa Francisca romana”. A Igreja reconheceu oficialmente sua santidade no ano de 1608. Quando Paulo V perguntou ao cardeal Roberto Belarmino se achava oportuno que Francisca Romana entrasse para o calendário universal da Igreja, recebeu o parecer favorável com esta motivação: “Ela pode ser exemplo de virtude para todas as idades e a cada estado de vida”. Na bula de canonização se diz que ela com suas orações e sacrifícios apressou o fim do cisma do Ocidente.

17 de março São Patrício o apóstolo da Ilha Verde (385-461) “O Senhor me deu o dom inestimável de regenerar para ele, com a minha obra, muitos povos e de levá-los à plenitude da vida cristã.” 5

Patrício não nasceu na Irlanda; pelo contrário, o primeiro encontro com aquela belíssima terra foi para ele muito desagradável. Tinha apenas 16 anos quando os piratas o levaram da Grã-Bretanha, sua terra, e o venderam como escravo nas costas nórdicas da Ilha Verde a um desconhecido, talvez, um chefe de tribo.

Um sonho desfeito Foi o período mais duro de sua vida. O seu pensamento retornava continuamente à casa paterna, à mãe, uma cristã autêntica, e ao pai, diácono da comunidade de Bannhaven Taberniae, onde Patrício nasceu em 385 e onde tinha recebido uma educação muito esmerada. Talvez naquele período tinha pensado em dirigir uma comunidade cristã como o pai ou de se tornar monge para difundir o Evangelho, mas agora o tempo dos sonhos tinha tragicamente acabado! Sim, encontrava-se em terra 5. Confissões de São Patrício, PL 53,809.


São Patrício

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estrangeira, no meio de um povo que até o momento não era cristão, do qual não entendia uma palavra, e agora passava o dia todo cuidando dos animais, coisa que jamais tinha feito em toda a sua vida. Por duas vezes tentou fugir, mas inutilmente. Terá duvidado de que talvez Deus o quisesse naquelas terras e no meio daquele povo? Mas à medida que se adaptava aos costumes de seus patrões e aprendia sua língua, descobria com surpresa que não eram assim tão rudes como lhe parecia no início. Também a organização tribal revelava qualquer coisa de nobre e os relacionamentos entre as famílias e entre as tribos eram fundamentados no respeito recíproco. Certamente que lhes faltava a fé cristã, adoravam ainda os ídolos, mas o que ele poderia ter feito sozinho e sem nenhuma experiência neste campo? E depois ele não era sempre um pobre escravo? Que sentido tinha a sua permanência neste país estrangeiro? Precisava então fugir a todo custo. Organizou pela terceira vez um plano de fuga e desta vez ele conseguiu perfeitamente. Havia seis anos que estava longe de casa.

À escola de são Germano Não sabemos se o navio o repatriou ou se o deixou nas costas francesas. Sabe-se com certeza que em um determinado momento Patrício apareceu em Auxerre, junto ao bispo são Germano (+ 448), homem de profundo conhecimento de ciência e de grande santidade que, por sua vez, estivera na Inglaterra para restabelecer a paz naquela Igreja perturbada pela heresia pelagiana. São Germano acolheu com muita satisfação o jovem britânico e ouviu com interesse a descrição das suas peripécias. Ali descobriu o dedo da Providência. Quem melhor do que ele, que conhecia por experiência pessoal a língua e os costumes dos celtas e dos escoceses – como eram chamados os irlandeses – poderia levá-los à fé cristã? É verdade que o papa Celestino já tinha mandado um bispo para a Irlanda, mas este não tinha conseguido entrar no coração daquela gente. A idéia não desgostou a Patrício que, depois de ter completado em Auxerre a sua formação cristã e cultural sob a direção do santo bispo, esteve por um tempo em Lérins, centro monástico de fama européia, defronte à Provença, onde mergulhou com todas as suas forças na vida monástica, convencido de que só com este carisma poderia plantar a Igreja de maneira duradoura entre os povos da Irlanda. Tendo vivido com eles por seis anos, tinha notado que havia uma grande diferença entre a psicologia dos habitantes das ilhas juntos em uma


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mesma cultura mais familiar e mais estática, e a dos habitantes do continente, continuamente imersos em acontecimentos históricos e mais movimentados e com mais fôlego. Por isso quis visitar os numerosos pequenos mosteiros das ilhas do mar Tirreno, em frente à atual Toscana, e ver com os próprios olhos o método adotado pelos monges para cristianizar os habitantes das ilhas.

O evangelizador da ilha Naquele período, teria visitado Roma e falado com o papa? É possível, mas não o sabemos com certeza. Ao contrário, sabemos com segurança que no ano de 432, com a morte de Palladio, o primeiro bispo da Irlanda, Patrício foi nomeado seu sucessor e ele partiu o mais rápido possível com um grupo de monges rumo à sua missão. Estabelecendo-se em Armagh, começou a preparar seus planos. A Irlanda, de modo diverso da Inglaterra, não tinha conhecido o domínio romano e, portanto, não havia naquela ilha nenhuma estrutura social sobre a qual basearse para iniciar a evangelização. Seus habitantes eram subdivididos em clãs, bem unidos internamente e bem diferentes entre si. Tinham cultura e organização tribal próprias, nas quais eram muito apegados. Patrício aproximou pessoalmente os chefes dos clãs, favorecido pelo fato de que conhecia bem sua língua e costumes. Mostrou-lhes a sua primeira abadia e propôs-lhes construir outras para servir sua gente. Fez-se ajudar por eles na construção e os fez co-responsáveis também pela manutenção. Não lhe foi difícil enchê-las de jovens irlandeses educando-os com a ajuda de seus monges. Os chefes, respeitados nos seus cargos, foram os primeiros a abraçar a fé, arrastando consigo o próprio clã. As abadias se multiplicavam e ao redor surgiam as habitações dos chefes e do povo, embriões das futuras cidades. Os monges, sob a sábia direção de Patrício, conseguiram englobar na fé cristã tudo o que a religiosidade anterior continha de positivo, deixando de lado o que por sua vez era inconciliável. Esta capacidade genial de Patrício de se identificar com a alma irlandesa e de compreendê-la até o fundo explica por que a pregação da nova fé não teve nenhum mártir naquela terra, mesmo que seus habitantes fossem um povo de guerreiros e freqüentemente em luta entre si. Assim, a cultura monástica conseguiu encarnar-se na vida daquele povo generoso e altivo sem provocar traumas com o seu passado. Patrício escolhia entre os jovens do lugar seus monges e padres. Entre eles, não havia muita diferença, pois os monges sacerdotes exerciam com empenho


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o ministério pastoral e os padres diocesanos viviam com prazer com os monges ao redor do seu bispo. Este, por sua vez, ou era o abade ou o monge escolhido pelo mesmo abade e, portanto, entregue à sua responsabilidade. Sobre todos estava a figura paterna e carismática de Patrício. Ele percorria a ilha em todas as direções para visitar os mosteiros e as dioceses, sob sua responsabilidade e para que fossem sempre o centro da vida evangélica à altura de seu carisma e missão. Nos últimos dias de sua vida, contemplando a obra que Deus tinha realizado na ilha, exclamava comovido: “De onde me veio esta sabedoria, que antes eu não tinha? Eu não sabia nem mesmo contar os dias, nem era capaz de amar a Deus. Como então me foi dado um dom assim tão grande e salutar, como este de conhecer a Deus e de amá-lo? Quem me deu forças para abandonar a pátria e os meus pais e rejeitar as honras que me foram oferecidas, e de vir a pregar o Evangelho para o povo da Irlanda, suportando os ultrajes dos incrédulos e a infâmia do exílio, sem contar as numerosas perseguições e até mesmo as correntes da prisão e o cárcere? Assim, eu sacrifiquei minha liberdade pela salvação dos outros! Se não sou digno, estou pronto também para oferecer, sem hesitar e com muito prazer, minha vida pelo seu nome. Se o Senhor me der a graça, desejo consagrar as minhas forças a esta causa”.6 Patrício terminou sua vida em paz em Ulster em 461, em Down, cidade que se chamaria Downpatrik (cidade de Patrício). Sua missão já se podia dizer cumprida, pois ninguém até hoje conseguiu arrancar o cristianismo do coração dos habitantes da Ilha Verde.

18 de março São Cirilo de Jerusalém bispo e doutor (Cerca de 313-387) “Procura conservar bem na memória o símbolo da fé (o “Creio em Deus Pai”). Ele não foi escrito segundo caprichos humanos, mas é resultado de uma escolha dos pontos mais importantes de toda a Escritura. Estes compõem e formam a 6. Ibid.


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única doutrina da fé. E como um grão de mostarda, embora sendo pequena, contém em germe todos os ramos; assim é o símbolo da fé, contém, nas suas breves fórmulas, toda a soma da doutrina que se encontra tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.” 7

O sucesso de Cirilo na história é devida a um estenógrafo de Jerusalém que, admirado pela sua pregação, decidiu repassar suas instruções aos catecúmenos. As Catequeses de Cirilo tornaram-se famosas pela simplicidade que as tornaram acessíveis a todos, pela fidelidade à ortodoxia e pelo alento espiritual que as permeia.

Nascido para ensinar Nada sabemos a respeito da juventude de Cirilo. Sabemos que ele nasceu perto de Jerusalém, talvez em 313, de uma família cristã e rica. Pelo que transparece em seus escritos, deveria ter recebido uma boa instrução literária e séria formação cristã. É possível que na juventude tenha abraçado a vida monástica, mas mesmo que não tenha vivido em um mosteiro, certamente praticou a ascese vivendo na pobreza e celibatário. Pelas suas virtudes e pela preparação intelectual, o bispo, Máximo, ordenou-o sacerdote por volta de 345 e associou-o ao governo da Igreja, confiando-lhe de modo especial a pregação. Naquele período, Cirilo pronunciou as famosas Catequeses, suscitando admiração dentro e fora de Jerusalém. Naquele tempo, a cidade santa atraía a devoção de todos os cristãos, finalmente livres para visitar os lugares da paixão e ressurreição de Cristo. Mesmo antes que santa Helena empreendesse as pesquisas, Cirilo já conhecia a exata localização daqueles lugares.

Perseguido por sua fidelidade Quando Máximo faleceu, foi eleito bispo e reconhecido como tal também pelo seu metropolita, Acácio de Cesaréia. A comunidade de Jerusalém atravessava um período feliz, e são Basílio, que a visitou, ficou profundamente edificado. Infelizmente, a paz não durou por muito tempo, pois Cirilo não 7. PG 33.


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quis se submeter a Acácio, bispo de Cesaréia que professava o arianismo, uma doutrina que negava a divindade de Cristo. Em seguida a isto, reivindicou independência do seu bispado da sede metropolitana de Cesaréia, alegando o fato de que a Igreja de Jerusalém era de origem apostólica. Acácio não quis ouvir as razões e, depois de o ter intimado em vão a se apresentar a seu tribunal, declarou-o deposto e, apoiado pela corte imperial, foi com uma escolta armada a Jerusalém e colocaram em prática suas decisões, impondo um bispo ariano. Cirilo era acusado de ter dilapidado os bens da Igreja. Tinha provocado escândalo uma atriz que apareceu no teatro com uma veste cujo tecido tinha sido doado pelo imperador Constantino ao predecessor de Cirilo. O fato foi interpretado como uma grave ofensa à memória do doador. Na realidade, durante a carestia, o bispo tinha vendido alguns bens da Igreja para ajudar os pobres. Em 357, quando Cirilo pela primeira vez foi exilado, encontrou refúgio primeiro em Antioquia e depois em Tarso. O bispo local, Silvano, foi muito acolhedor e lhe permitiu o exercício do ministério em sua diocese, valorizandoo pelos seus dons de pregador. No Concílio de Selêucia de 359, onde estava presente também santo Hilário de Poitiers, foi reintegrado em sua função e retornou à Jerusalém. Ali permaneceu apenas um ano, pois em Constantinopla Acácio conseguiu novamente sua condenação. Parece que Cirilo tenha-se refugiado junto a Melésio de Antioquia até a morte do imperador Constantino em 361. Foi o segundo exílio. Quando Juliano, o Apóstata, permitiu a todos os bispos exilados por seu predecessor a retornarem às suas sedes, Jerusalém recebeu o seu legítimo pastor. O novo imperador, desprezando os cristãos, tinha autorizado a recons­ trução do antigo Templo de Jerusalém. Naquela ocasião, teria acontecido o que foi narrado pelo historiador não-cristão, Ammiano Marcellino, na sua obra Rerum gestarum: “Enquanto o chefe (dos trabalhadores) Alípio, auxiliado pelo governador da província, apressava os trabalhos, foram-se desprendendo medonhos globos de fogos dos lugares próximos aos alicerces, queimaram os trabalhadores e tornaram o local inacessível. Como o fenômeno persistisse a impedir os trabalhos, renunciou-se ao empreendimento”. Acontecimento casual ou milagre, como o interpretaram os contemporâneos? O fato é que o templo não foi reconstruído e os cristãos sentiram-se protegidos pelo céu.


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Mas Cirilo ainda teria um terceiro exílio. O imperador Constâncio era ariano e no ano de 364 decretava que todos os bispos, antes expulsos de suas dioceses por ordem de Valente, deveriam voltar para o exílio. Desta vez, Cirilo permaneceu fora de sua diocese até 378. Nesse ínterim, a comunidade cristã de Jerusalém atravessava seu período mais triste. Na comunidade havia um grande número de he­ ré­ticos, cada um vindo com a complacência dos bispos arianos que se alternavam em governá-la. Os homens de Igreja, escolhidos sem cri­té­rio, escandalizavam com seus baixos costumes e os bens eclesiásticos eram dilapidados sem escrúpulos. Quando são Gregório de Nissa foi en­car­ regado de visitar aquela comunidade, ficou espantado: jamais tinha ima­ ginado que a sede da primeira comunidade cristã pudesse renegar a tal pon­to os ditames do Evangelho. Em 378, ele escreveu: “Aqui não há vício que não alcance despu­do­ra­ damente seu apogeu: perversidade, adultério, furto, idolatria, prostituição, calúnia, homicídio; em síntese, todos os crimes foram aqui se difundindo com obstinada pertinácia”.8

Bom pastor e mestre Foi este o terreno que Cirilo encontrou ao retornar. E não era tudo. Na comunidade havia grandes divisões e o próprio Cirilo recebeu contestações enérgicas. Mas ele, não usando os mesmos métodos dos seus adversários, gostava de repetir que “O erro tem muitas formas, mas a verdade tem uma só aparência”. E teve de usar toda a sua habilidade diplomática para não faltar com a caridade. A obra de reconstrução foi longa e cansativa, mas valeu a pena. Quando participou do Concílio de Constantinopla em 381, os padres escreveram uma carta ao papa Damaso e fizeram referência a seu respeito com este bonito testemunho: “Informamo-vos que o bispo da Igreja de Jerusalém, mãe de todas as igrejas, é o reverendo e amado de Deus, Cirilo, o qual no passado foi ordenado canonicamente pelos bispos da sua província e promoveu em muitos locais a luta contra os arianos”. Foi um reconhecimento bem merecido. Sua fé reta não podia ser colocada em dúvida. Explicando o “Creio em Deus Pai”, dizia aos seus fiéis: “No aprender e professar a fé, abrace e conserve 8. Cit. in: P. Manns, I Santi, I, Jaca Book, Milano 1989, p. 182.


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somente aquela que no momento é proposta pela Igreja e é garantida pelas Sagradas Escrituras. Mas nem todos são capazes de ler as Escrituras. Alguns são interrompidos pela incapacidade, outros pelas várias ocupações. Eis por que, para impedir que a alma receba danos desta ignorância, todos os dogmas da nossa fé vêm sintetizados em poucas frases. Aconselho-te trazeres contigo esta fé como uma provisão de viagem para todos os dias da tua vida e de não aceitar jamais outra fé que não seja esta”.9 Nessa longa e dolorosa experiência das acesas controvérsias teológicas do seu tempo, tinha aprendido que a verdade se torna cega de um olho quando falta amor em quem a exprime. Por isso se era exigente na defesa da doutrina, sabia ser no entanto indulgente para com aqueles que tinham errado, mesmo quando se mostravam ainda indecisos: “Eu te acolho, ainda que não tenhas vindo com bons propósitos; mas tenho boas esperanças que te salvarás. Talvez não estivesses bem de onde vieste e em quais redes ficaste preso. Tu caíste na rede da Igreja. Persevera e não vás embora. Jesus te prende pelo anzol, não para te matar, mas para dar-te a vida, depois de ter-te deixado morrer. Ele te deixa morrer para fazer-te ressuscitar. Ouviste o que ele disse aos apóstolos: “Mortos para o pecado, mas vivos para a justiça”. Então, morre para teus pecados e vive para a justiça; e começa ainda hoje”.10 Suas catequeses mais bonitas são sem dúvida sobre os sacramentos da iniciação cristã. Eis algumas citações breves: “Batizados em Cristo e revestidos de Cristo, assumistes uma natureza semelhante à do Filho de Deus”; “A vós também, depois que saístes das águas sagradas (do batismo), fostes ungidos com o Crisma, isto é, o Espírito Santo”; “No sinal do pão te é dado o corpo e no sinal do vinho te é dado o sangue, pois, recebendo o corpo e o sangue de Cristo, te tornaste cocorpóreo e consangüíneo de Cristo. Tendo recebido em nós o seu corpo e o seu sangue, nós nos transformamos em cristóforos, isto é, portadores de Cristo”. Cirilo não era um teórico nem se sentia atraído pelo estudo dos filósofos gregos. Sua única fonte de luz eram a Sagrada Escritura e a sã tradição. Foi, ao contrário, um bom pastor, capaz de ensinar com sabedoria e de governar com prudência. Morreu em 386, depois de ter reconstruído desde os fundamentos a comunidade cristã de Jerusalém. Hoje ele é honrado também no Ocidente como doutor da Igreja. 9. PG 33. 10. Cit. In: P. Manns, op. cit., p. 183.


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19 de Março São José esposo da bem-aventurada virgem Maria (século I) “Quando a condescendência divina escolhe alguém para uma missão especial ou para um estado sublime, concede à pessoa escolhida todos os carismas que lhe são necessários para a sua realização... Eis quanto se realizou sobretudo no grande são José.” 11

O Evangelho chama José de homem justo, como eram chamados os antigos patriarcas de Israel. Ele, como aqueles, acreditava no amor de Deus para com o seu povo e a humanidade inteira, e esperava pelo cumprimento da promessa da salvação, de uma salvação que viria do alto. E agora se achava envolto em primeira pessoa nesta extraordinária aventura.

Esposo de Maria, pai de Jesus Os evangelhos de Mateus e de Lucas nos falam de José na medida em que os acontecimentos de sua vida estão relacionados com o nascimento e a infância de Cristo; eles não tiveram nenhuma intenção de escrever uma biografia de José. Mateus (1,1-16), querendo explicar a descendência davídica do Messias, escreve a genealogia de Jesus e conclui com estas palavras: “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado de Cristo”. Desse modo, o evangelista lhe assegurava a descendência de Davi, pois, para os hebreus, o que tinha valor era a paternidade legal. E quanto a não haver nenhuma dúvida a respeito da concepção virginal de Cristo por obra do Espírito Santo, Mateus continua: “Eis como aconteceu o nascimento de Jesus Cristo: sua mãe Maria, sendo prometida a José, como esposa, antes de coabitarem, encontrou-se grávida por obra do Espírito Santo”. Quando José soube que Maria esperava um filho, concebido sem a sua participação, não sabia o que pensar. Maria por sua vez não podia explicar, pois era muito grande o mistério. Como para ela, também para seu esposo era

11. Bernardino de Sena, Discursos, Obra 7,16.


São José

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necessária uma luz divina. José, sendo um homem justo, não quis repudiar sua esposa e, antes de comunicar o acontecimento aos parentes de Maria, invocou a ajuda de Deus. Sua oração foi ouvida e ele escutou: “José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque aquele que foi gerado nela é obra do Espírito Santo. Eis que ela dará à luz um filho e tu o chamarás Jesus” (Mateus, 1,20-21). Agora que o véu do mistério estava um pouco descoberto, os dois cônjuges puderam passar a viver juntos e toda a sua existência foi dirigida para uma terceira pessoa: o filho que, vindo do alto, tinha vindo morar entre nós.

Os anos da infância de Jesus O evangelista Lucas, depois de ter descrito a anunciação a Maria e sua visita a Isabel, narra-nos outros episódios da infância do Messias. Antes de tudo, o seu nascimento. Jesus nasceu em Belém, pois José da casa de Davi deveria se transferir com sua esposa para esta cidade para fazer o recenseamento ordenado pelos romanos. O menino nasceu em um ambiente pobre, recebeu homenagem de pastores simples e mais tarde de nobres reis magos. No oitavo dia foi circuncidado e José impôs-lhe o nome de Jesus, como Deus lhe havia ordenado. Foi levado também à Jerusalém, como ordenava a Lei de Moisés para ser apresentado ao templo. Naquela ocasião, tiveram a oportunidade de ver a o regozijo do velho Simeão e da profetiza Ana, mas ouviram também a profecia que Simeão fez a respeito do menino: será sinal de contradição! O evangelista conta que José cuidou do menino e de sua mãe, e percebeu que não havia lugar para eles em Israel, e por inspiração divina tomaram o caminho do exílio para o Egito. Retornaram para a pátria somente depois da morte do feroz Herodes, autor da matança dos inocentes. Não permaneceu na Judéia, onde reinava o filho de Herodes, que não era diferente do pai. Preferiu ir para a Galiléia dos gentios, em Nazaré, onde como bom carpinteiro poderia ganhar o suficiente para manter a família.

A vida em Nazaré O único episódio deste período, descrito no Novo Testamento, é o desaparecimento de Jesus em Jerusalém. Ele foi com seus pais para a festa da


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Páscoa. Depois de três dias de angústia de seus pais, ele foi encontrado entre os doutores da Lei. Jesus disse aos seus pais: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo me ocupar das coisas de meu Pai? E em seguida o evangelista acrescenta: ‘Retornou à Nazaré e lhes era submisso’. (cf. Lucas 2,41-51) Aqui o evangelista silencia. Nós não temos palavras humanas adequadas para descrever o que se passou com aquela família, onde a vida trinitária vivia a cada dia a experiência humana. E isso por trinta anos, durante os quais Jesus crescia em idade, sabedoria e graça. “Trinta anos dos quais quase nada se conhece. É um mistério. O mistério do amor. O mistério do amor divino e humano entre... coração de carne, vestido de virgindade. Ninguém o compreendeu. Alguma coisa nós só saberemos no paraíso, na proporção de quanto na terra os tivermos amado e seguido.”12 “Na família de Nazaré, Maria certamente educava, mas educava ouvindo a voz do Espírito Santo dentro dela, que estava em harmonia com o Filho de Deus, que estava diante dela. Educava também o seu filho, obedecendo-lhe. Por outra parte, Jesus menino – ele era o guia da família de Nazaré, porque era Deus – estava também submisso a Maria e a José, como diz a escritura. José, por sua vez, chefe da família aos olhos dos outros, pois era tido como pai de Jesus, pois Jesus lhe obedecia e porque Maria sem dúvida lhe terá obedecido, era ao mesmo tempo submisso a Deus e à Mãe de Deus. De tudo isto se vê que os três, de um ponto de vista, mandavam e os três, de um outro ponto de vista, obedeciam.”13 Durante a vida pública de Jesus não se diz nada de José, somente no início, quando as pessoas, diante da sabedoria e da autoridade com que o jovem rabino ensinava e o seu poder de realizar milagres, se perguntavam estupefatas: “Não é ele o filho de José?” (Lucas 4,22). Mas José já havia cumprido sua missão e não parece que ainda estivesse vivo naquela terra.

A paternidade de José Na linguagem que se tornou tradição, José é chamado o suposto pai de Jesus. Se de uma parte este título salvaguarda a concepção virginal de Cristo, de outra não exprime plenamente a relação de paternidade existente entre José 12. C. Lubich, Escritos Espirituais/1, Cidade Nova, Roma 1991, p. 171. 13. Cit. in: S. Cola, Obediência: a descoberta de um relacionamento, in: Gen´s, 2/89, pp. 25-31.


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e o Salvador. Um autor medieval já tinha observado que “José foi o verdadeiro pai em ordem ao matrimônio”, embora “suposto pai em ordem à geração corporal”.14 E santo Tomás de Aquino acrescentou: “José é ao mesmo tempo tanto pai de Cristo quanto esposo de Maria, não em virtude da união carnal, mas do vínculo matrimonial”.15

Protetor da Igreja Universal Por causa desta relação especial com Jesus e Maria, José sempre foi muito venerado na Igreja. Pio IX, resumindo a herança desta longa tradição, proclamou-o patrono da Igreja Universal e Leão XIII o indicava como modelo de todas as famílias cristãs. Bento XV escreveu: “A casa divina, que José governou... continha os princípios da igreja nascente... Como conseqüência disto o santo patriarca deve sentir como confiada a si, por esta especial razão, toda a multidão dos cristãos”. Pio XII o propôs como exemplo para todos os trabalhadores e fixou o dia 1o de maio como festa de São José Trabalhador, que “enobreceu o trabalho humano, sustentado e animado pela convivência de Jesus e Maria” e “exercendo sua arte com empenho e virtude admiráveis, tornou-se o mestre de trabalho do Cristo Senhor que não desdenhou ser chamado filho do carpinteiro”.

23 de março São Turíbio Afonso de Mongrovejo bispo, apóstolo do Peru (1538-1606)] “Cristo é a verdade, não os costumes.” 16

Com esta frase, o bispo Turíbio, parafraseando Tertualiano, dirigiu-se a alguns religiosos que não queriam ir às missões entre os índios. Os frades se justificavam, afirmando que era costume de sua ordem permanecer na cidade para 14. Estio, In IV Sent., d. 30, par. 11. 15. Summa Theologica, 3, q. 28, a.1. 16. A frase exata de Tertuliano é a seguinte: “Sed Dominus Noster Christus veritatem se, non consuetudinem cognominavit” (De virginibus velandis, 1).


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atender melhor os deveres da vida religiosa e para acolher com os braços abertos não só os espanhóis, mas também os índios que batessem à porta do convento. Certamente não era fácil viver entre os índios sem as tradicionais comodidades da distante Europa, que bem ou mal já se encontravam nos centros habitados dos conquistadores. Mas, na opinião do bispo, os padres e os frades tinham vindo à América para levar o Evangelho e não para estarem acomodados nos conventos, segundo um certo costume bem conhecido dele.

De brilhante advogado a bispo missionário Ele mesmo tinha deixado sua pátria e largado uma brilhante carreira para responder ao chamado de Deus. Era agora um simples leigo, amigo do rei Felipe II da Espanha, e este, tendo a necessidade de confiar a um bispo as conquistas espanholas da América Latina, apresentou-o ao papa como seu único candidato. Era época em que os reis católicos da Espanha e Portugal tinham dividido o Novo Mundo em duas partes, encarregando-se de estabelecer contemporaneamente a civilização européia e o cristianismo tridentino. Por isso, gozavam do direito do padroado no governo da Igreja: a eles competia escolher bispos e párocos, edificar igrejas, conventos e seminários, remunerar os encarregados do culto. Não se pode negar que muitos deles o faziam verdadeiramente com espírito de fé para servir o reino de Deus, mas, como facilmente acontece com as coisas humanas, foram numerosos aqueles que instrumentalizaram a religião submetendo-a ao poder. Turíbio era um brilhante advogado, fidelíssimo ao rei que o tinha nomeado juiz em Granada. Nascera em León em 1588, de família nobre e estudou em Valladolid, Salamanca e Santiago de Compostela. Era um homem reto, um cristão autêntico, mas jamais tinha pensado na carreira eclesiástica, muito menos de se tornar bispo em terras de missão. A proposta do rei o pegou de surpresa, e não sabia ainda o que lhe responder, quando lhe chegou a confirmação por parte do papa Gregório XIII que lhe pedia para receber o mais breve possível todas as ordens sagradas e de partir o quanto antes para sua arquidiocese de Lima, no Peru. Turíbio abaixou a cabeça e em pouco se tornou padre e bispo. Tinha 42 anos e era agosto de 1580. Na primavera seguinte, partiu para Lima, onde, além do governo da grande diocese, todo o país ficou sob sua responsabilidade e ele deveria também se responsabilizar por todas as dioceses sufragâneas.


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Naquela época, compreendiam quase toda a América Latina conquistada pela Espanha e se estendiam de Caracas na Venezuela até Assunção no Paraguai, de Córdoba na Argentina (Buenos Aires ainda era uma simples vila) a Santiago no Chile. Uma área imensa com distâncias incalculáveis. A situação religiosa que encontrou no Peru foi preocupante e nos outros países não era diferente. Os conquistadores tinham ocupado aquelas terras com uma rapidez incrível, destruindo com igual celeridade as civilizações indígenas daqueles povos. Os pobres indígenas, obrigados a viver uma cultura hostil a eles e uma religião desconhecida, sentiram-se violentados e humilhados. Os missionários, mesmos os mais esclarecidos, não conseguiam frear os abusos dos conquistadores e não conseguiam administrar a expansão política com uma adequada evangelização. Os indígenas faziam-se batizar em massa mais por medo dos soldados do que por amor a Cristo. Os espanhóis que escolhiam a nova terra como pátria edificavam nas cidades suas igrejas, mas não se preocupavam em construir uma capela entre as ocas dos índios.

Bispo de todos, mas especialmente dos índios Turíbio logo percebeu que a situação era bem diferente daquela que informavam ao rei. Tomou coragem, arregaçou as mangas e procurou colocar um pouco de ordem, usando sua natural prudência e diplomacia, e apoiandose na autoridade que lhe vinha do rei e do papa. Primeiramente, visitou pessoalmente toda a diocese, percorrendo, ora a pé ora a cavalo, 15 mil km, ministrando a crisma a 60 mil cristãos, organizando desta maneira as doutrinas, comunidades que depois se tornaram paróquias. Estimulou os religiosos a saírem de seus conventos nas cidades para se colocarem a serviço dos índios, mas, sobretudo, dava o exemplo, pregando a palavra de Deus não somente na cidade, mas também entre as cabanas dos índios e construindo igrejas no meio deles. Em sua diocese realizou dez sínodos e outros três na imensa província eclesiástica da qual era responsável. Seu objetivo era colocá-los em ação em terras da América o Concílio de Trento, e as decisões daqueles sínodos foram particularmente importantes para a vida religiosa do continente sul-americano. Em 1591, construiu o primeiro seminário para a formação do clero local, para não depender totalmente da Europa num setor tão importante.


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Turíbio soube manter bons relacionamentos com todos e cuidou tanto dos espanhóis quanto dos nativos, mas seu amor de predileção foi pelos índios e mestiços. Alguns se ressentiram, não aceitando ser digno de um bispo de nobre estirpe misturar-se tão familiarmente com pessoas de cor e ainda por cima ignorantes. Mas aqueles murmuradores não sabiam que justamente dentre aqueles pobres assim desprezados sairiam os primeiros santos daquele continente: santa Rosa de Lima, são Martinho de Porres e são Francisco Solano. Estes conheciam quem era o bispo deles e certamente foram suas palavras e o seu exemplo que fizeram que eles compreendessem a beleza do cristianismo encarnado na sua própria cultura e a iniciá-los no caminho da santidade. Neles, de fato, como no santo bispo, resplandecem duas características espirituais: um amor total para com Deus e uma dedicação heróica para com os pobres. Turíbio defendia os índios contra a mentalidade presunçosa de superio­ ridade dos brancos. Durante um sínodo provincial em Lima, a alguns eclesiás­ ticos que afirmavam que os espanhóis eram superiores aos indígenas pela inteligência, o santo bispo respondeu: “Mas, para dizer a verdade, até agora eu tenho encontrado muitos indígenas que aprenderam a língua dos espanhóis, mas pouquíssimos espanhóis aprenderam a língua dos índios”. Turíbio morreu no dia 26 de março de 1606, numa pobre capela fora da cidade entre os índios, como se quisesse gritar a todos com a própria vida, até o fim, o seu amor preferencial pelos pobres.


ABRIL

2 de abril São Francisco de Paula fundador dos mínimos (1436-1507) “Vós deveis renunciar a todo ódio e a toda inimizade, guardai-vos diligentemente das palavras mais ásperas e, se elas saíram da vossa boca, não vos importe extrair o remédio da mesma boca, pela qual foram desferidas aquelas feridas. E assim, perdoai-vos uns aos outros e não fiqueis pensando na injúria recebida.” 1

Não podendo estar sempre presente entre os frades, que se multiplicavam na Itália e no exterior, Francisco pegava a pena e escrevia. Ele conhecia muito bem o coração humano: as dificuldades amiúde nascem das incompreensões e colocam em perigo a pacífica convivência também entre as pessoas totalmente consagradas a Deus. Só a caridade pode manter viva a fraternidade, mas esta muitas vezes exige o perdão.

Uma explicação que não convence O jovem Francisco estava concluindo em Roma a última etapa de sua longa peregrinação juntamente com os pais, quando viu chegar a São Pedro um 1. Das Cartas do santo. Cit. in: A. Galuzzi, Origem da Ordem dos Mínimos, Roma, 1967.


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luxuoso cortejo de carruagens. Jamais tinha visto um cortejo tão imponente, e grande foi a sua surpresa quando lhe disseram que dentro estavam os cardeais da santa Igreja. Ele, que chegava de Assis, onde lhe contaram a experiência do Poverello (pobrezinho), foi tomado de santo zelo, aproximou-se de uma carruagem e observou ao cardeal que se preparava para descer, que aquele luxo não era segundo o Evangelho. O cardeal Juliano Cesarini parou para ouvi-lo e depois num tom paterno disse-lhe: “Não te escandalizes, meu filho, com este luxo. Se nós fizéssemos por menos, em nossos dias, a dignidade eclesiástica pioraria na estima das pessoas, e seria levada ao desprezo”. Infelizmente, era esta a mentalidade que dominava no mundo eclesiástico daquele tempo. A resposta do purpurado não o convenceu inteiramente, antes confirmou o propósito de retornar à sua terra e seguir o exemplo de são Francisco. Ele não sabia que o Espírito Santo já estava operando em outros santos, como Inácio de Loyola, Jerônimo Emiliano, Caetano de Thiene, e em tantos outros que desejavam ardentemente reformar a Igreja à luz do Evangelho. Ele também fazia parte daquele grupo e daria uma contribuição relevante não só socorrendo os pobres, mas também convertendo os ricos. Francisco nasceu em Paula na Calábria (Itália) aos 27 de março de 1526, filho de Paulo Aléssio Martolillo e de Vienna Fuscaldo. Era uma família cristã que possuía uma pequena propriedade no campo, uma sorte naqueles tempos e naquela região, onde tudo pertencia ao estado ou a vários nobres do lugar. Seus pais tinham pedido a Deus um filho, prometendo que este pres­ taria serviço gratuito no convento vizinho por um ano, vestindo o hábito de são Francisco.

O cumprimento de um voto Aos 12 anos, o menino cumpriu corretamente com alegria a promessa paterna. No convento foi jovial e pronto para qualquer serviço, sempre presente onde havia mais necessidade, e isso levou a pensar que ele tivesse o dom da bilocação. Cumprido o voto, os frades quiseram que o rapaz continuasse entre eles, mas Francisco quis voltar para casa, não tanto por saudades, mas porque


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desejava ver mais claro qual seria a sua vocação. Pediu ao pai e à mãe para acompanhá-lo em uma longa peregrinação. Juntos foram até Montecassino, onde admirou o trabalho dos monges e sua esplêndida liturgia, depois foi a Loreto, onde visitou aquela que é considerada a casa de Nazaré, e ficou encantado com a simplicidade da moradia do Verbo, bem semelhante à sua casa natal, e finalmente chegou a Assis. Lá cada coisa falava ao seu coração, mas sobretudo lhe impressionou um aspecto particular da vida de são Francisco: o de se retirar muitas vezes à vida eremítica para poder ficar mais próximo de Deus e estar depois mais disposto ao serviço do próximo. Assim em Greccio e em Verna. O jovem calabrês tinha encontrado o seu caminho. O episódio chocante de Roma o tinha confirmado em seu propósito.

Início da vida eremítica Chegando em casa, sem perder tempo foi para uma cabana que a família possuía no campo. Ali podia orar sem ser perturbado e jejuar, procurando o indispensável para viver trabalhando na terra. Aquilo que colhia, repartia com seus pais e com os pobres que naquela região não faltavam nunca. Não passou muito tempo e outros jovens vieram visitá-lo, e depois permaneciam com ele atraídos por seu estilo de vida, que achavam original e alegre. Construíram doze cabanas para outros tantos “eremitas de são Francisco”, como queriam ser chamados. O arcebispo local quis ver de perto e se convenceu de que a experiência vinha de Deus e a abençoou. O povo também se comoveu e começou a construir uma Igreja e um verdadeiro convento com muitas celas, pois nunca as vocações tinham sido tão numerosas e não podiam mais morar numas poucas cabanas. Finalmente, o pai Martolillo, assim que ficou viúvo, quis seguir o caminho de seu filho e fez parte do primeiro grupo de eremitas. Começava assim a se espalhar pelos arredores a fama de santidade de Francisco e a ele acorria toda espécie de necessitados: doentes que imploravam a cura, esfomeados que procuravam um pedaço de pão, injustiçados que recorriam à sua intervenção competente junto aos poderosos. Francisco, lembrado de que se tinha feito eremita para que, fortalecido pela união com Deus, pudesse servir melhor aos irmãos, ia ao encontro deles, e todos recebiam uma ajuda, um conforto e não poucos também recebiam curas consideradas milagrosas.


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A opção pelos pobres O contato com tantas misérias humanas fez que ele se convencesse de que sempre que há mais apego às riquezas por parte de alguns, provoca-se fome e opressão em outros. Bastava escutar os pobres e observar ao redor para ver as injustiças que os barões e poderosos cometiam contra os camponeses, reduzidos a verdadeiros escravos, sem nenhuma possibilidade de apelação, pois os ricos tinham a seu favor também os homens encarregados da justiça e da ordem pública. Dos ricos e dos poderosos, Francisco jamais teve medo e deles aceitava ajuda somente se, primeiro, tivessem tratado bem os próprios dependentes. Naturalmente esse seu modo de agir suscitou a ira de muitos barões, habituados a serem reverenciados pelos eclesiásticos, e até mesmo pelo rei de Nápoles, Fernando de Aragão, ao qual os religiosos do reino prestavam obediência. Quando o santo levantou a voz contra as opressões do rei, este, enfurecido, enviou os guardas com ordem de trazer acorrentado aquele frade que ousava contestá-lo: mandou derrubar o convento de Paula e enviar para casa todos os eremitas, alegando que eles eram perturbadores da ordem pública. Os guardas chegaram repentinamente, entraram na igreja e encontraram Francisco em adoração diante do Santíssimo, mas quando se aproximaram para prendê-lo o frade desapareceu. Procuraram-no por toda parte, mas inutilmente. O povo gritou ao ver o milagre e quanto à demolição do convento, não é bom nem falar! Se quisessem ter a vida salva, deveriam partir imediatamente para Nápoles e falar ao rei que ele deveria vir a Paula para venerar o santo e para lhe pedir conselhos. Os emissários do rei compreenderam que não tinham nada mais a fazer do que partir imediatamente e foram contar ao rei o que havia acon­ tecido. O rei caiu na conta de que não era oportuno perturbar um “leão” no seu território.

Na Sicília No entanto, a fama de Francisco se espalhava para além dos confins da Calábria, e um grupo de notáveis sicilianos foram encarregados por seus conterrâneos de ir até a cidade de Paula e convidar o religioso para fundar um convento naquela terra. Francisco aceitou e assim que foi possível viajou. Chegando ao estreito de Messina, pediu ao barqueiro Pedro Colossa para levá-lo até a outra margem


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“por amor de Deus”. O barqueiro lhe respondeu que ele para sobre­viver deveria trabalhar “por amor do dinheiro”. A tradição popular conta que o santo não repreendeu o pobre Pedro, pois ele também tinha suas razões, mas sem se enfurecer estendeu o manto sobre as águas, subiu em cima, prendeu a aba da vestimenta ao seu bastão içado como uma vela de uma barca e se deixou levar pelo vento.

A visita papal Quando ele voltou da Sicília uma surpresa o esperava: o papa Paulo II tinha enviado o núncio para pesquisar sobre “os eremitas de são Francisco”. Um dia o visitador pontifício lhe fez a observação de que a regra era muito severa, pois prescrevia o jejum quaresmal por todo o ano. Francisco então pegou de uma fogueira alguns carvões acesos e, colocando-os sobre a palma da mão, mostrou-os ao seu espantado interlocutor e lhe disse: “Não tenhais medo, excelência, a quem ama e serve a Deus com sinceridade de coração tudo é possível. Todas as criaturas se tornam dóceis à vontade daquele que observa e cumpre fielmente a vontade do Criador”. O parecer do mensageiro papal sobre os novos eremitas foi favorável mas, por causa da prematura morte de Paulo II, foi preciso uma outra visita antes da obtenção da aprovação pontifícia que foi dada por Sisto IV em 1474.

Ida à França Francisco pensava em se dedicar completamente à consolidação da sua família religiosa, mas o papa, pressionado pelo rei da França, Luís XI, pediulhe para se transferir à França, a fim de atender aos desejos do rei. Este não era nenhum santo, mas quando contraiu uma doença grave teve um medo louco de morrer. Assim, não conseguindo ser curado pelos melhores médicos de Paris, recorreu aos poderes taumatúrgicos de Francisco enviandolhe um mensageiro com ricos dons e com uma calorosa recomendação do rei de Nápoles. Francisco rejeitou os dons e não se comoveu. O rei então recorreu ao papa. Este, tendo vários negócios pendentes com o rei, encarregou Francisco de permanecer na França não só pelo bem do rei, mas também pelo bem da santa Igreja. Francisco aceitou e se dirigiu à França. Passando por Nápoles, encontrou toda a cidade em festa para vê-lo e até mesmo o rei foi recebê-lo com a sua


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corte e o conduziu ao palácio, e lhe ofereceu uma soma de dinheiro pedindolhe para fundar um convento também em Nápoles.

O sangue dos pobres Compreende-se por que Francisco recusou a oferta considerável. Pegou uma das moedas e a quebrou com os dedos, e todos viram o sangue escorrer dos dois pedaços da moeda. “Olhai” – disse o santo – “este é o sangue dos vossos súditos que vós oprimistes e que grita vingança na presença de Deus”.

A caminho de Roma Em Roma o papa quis ordená-lo, ao menos, sacerdote para poder apresentá-lo mais dignamente diante da corte da França, mas Francisco foi irredutível. Se o papa quisesse enviar à França um dignitário eclesiástico, bastava escolher um entre tantos que havia em Roma, mas se quisesse que fosse ele próprio, era simplesmente um pobre eremita de são Francisco e não poderia se tornar uma outra pessoa.

A missão na corte Chegando à França, não conseguiu curar o rei da doença, mas este teve tempo suficiente para ouvir os conselhos de Francisco, rever e reparar as numerosas injustiças cometidas, seja no âmbito civil como eclesiástico. E encontrada a paz de espírito se apresentou diante de Deus. Enquanto se ocupava dos afazeres do rei e do papa, Francisco difundia na França a sua ordem. Quando morreu o soberano, e ele se preparava para voltar, o papa, por pedido da própria corte, pediu-lhe para permanecer ainda na França. Francisco, que mesmo na corte tinha continuado a viver segundo o seu carisma, aceitou com serenidade a vontade do papa e simultaneamente trabalhava para aperfeiçoar a sua regra, fundar a Segunda e a Terceira Ordem, e escrever o Correttorio e outros livros. Morreu em Plessis-les-Tours aos 2 de abril de 1507, deixando para a Igreja uma nova família espiritual, a dos “mínimos”, um nome que recorda a sabedoria evangélica do último lugar e a presença de Cristo nos “menores”. Sendo a espiritualidade de Francisco de Paula a mesma do pobrezinho (poverello) de Assis, também como este, foi acusado de excessiva severidade.


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Na realidade, o estilo de vida, honesto e austero, que ele quis para si e para seus filhos, não só favoreceu a vida evangélica, mas trouxe saúde e longevidade aos membros da ordem. Mesmo sendo uma ordem de eremitas, ele via aquela experiência espiritual não como uma vantagem exclusiva do indivíduo que a vivia, mas como base para uma autêntica caridade para com o próximo, sobretudo para com os mais pobres, “os mínimos”, onde o mais vivo resplandece o rosto de Cristo crucificado.

4 de abril Santo Isidoro de Sevilha bispo e doutor (560-636) “Aquele que deseja estar sempre com Deus deve orar e ler continuamente (a Sagrada Escritura). Quando oramos, estamos falando com o próprio Deus, quando lemos, ao contrário, é Deus quem fala conosco. (...) O bom leitor não se preocupa tanto com aquilo que lê, mas antes em colocá-lo em prática.” 2

Isidoro nasceu em uma família afortunada, ainda que marcada pela dor. Seu pai, Severiano, prefeito de Cartagena na Espanha, vivia feliz com sua mulher e os três filhos: Leandro, Fulgêncio e Florentina, quando soube que chegavam como um furacão os godos. Além dos danos materiais, por onde eles passavam traziam consigo a heresia ariana. Para um perfeito cristão como ele, a melhor coisa que tinha a fazer era emigrar para um lugar mais seguro. Mudou-se para Sevilha: estava menos rico, mas tinha assegurado a educação cristã dos filhos.

Infância e juventude Lá, Isidoro nasceu aproximadamente em 560 e, ainda criança, ficou órfão. Para sua felicidade, a família era muito unida e o irmão Leandro logo assumiu o lugar do pai e Florentina o da mãe. Ao menino não faltou nada: 2. Isidoro de Sevilha, Livro das Sentenças, 3,8-9; PL 83, 679-680.


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nem o afeto da família nem os professores para os estudos na escola episcopal ou monástica. Em casa, já se respirava pela tradição um ar puro e erudito dos ambientes eclesiais e era tal a preparação humana e cristã de seus membros que, com o tempo, Fulgêncio se tornou bispo de Astigi (Ecija); Leandro, arcebispo de Sevilha; e Florentina, uma importantíssima monja em um mosteiro onde a abadessa parecia ser antes a governanta de sua casa.

O estudioso Quanto a Isidoro, parecia que tinha nascido para os estudos, pois não chegava um livro em suas mãos que não fosse logo devorado como uma refeição saborosa. Qual seu método de estudo? Ouçamos o que ele escreverá mais tarde: “Aquele que lê procura em primeiro lugar compreender aquilo que lê. Em seguida tenta exprimir da maneira mais conveniente aquilo que aprendeu”. Naqueles tempos, os estudos – mesmo quando eram sobre ciências profanas – eram todos direcionados para a teologia ou mais exatamente para as páginas sagradas, isto é, para compreender e colocar em prática as Sagradas Escrituras. Isidoro estudava com paixão nessa direção e tinha o dom de harmonizar dentro de si tudo quanto estudava e de transmiti-lo a todos numa linguagem bem acessível. Pesquisador incansável de toda a sabedoria antiga, grega, romana e cristã, escreveu pelo menos 17 obras e se tornou incontestavelmente um verdadeiro mestre em sua época. Sua obra mais famosa foi o Libro delle etimologie, dividido em vinte volumes pelo seu discípulo são Bráulio, bispo de Saragoça. É considerada a primeira verdadeira enciclopédia cristã, estudada em todas as melhores escolas teológicas medievais, tanto que fez Dante dizer que o mundo do saber estava todo “sob a ardente inspiração de Isidoro”. Das outras obras citamos somente algumas: Storia dei goti; Uffici divini, em que explica a antiga liturgia espanhola; Regola dei monaci para reavivar a observância da autêntica disciplina monástica.

O doutor da fé Isidoro não foi só um fiel transmissor da fé dos padres da Igreja, mas também um obstinado defensor de sua pureza. Na Espanha de seu tempo,


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o rei visigodo Leovigildo apoiava a heresia ariana, mais por interesse político que por motivos religiosos, colocando em perigo a autêntica fé em toda a Península Ibérica. Quando seu filho Hermenegildo se converteu à verdadeira fé, foi um lampejo de esperança e Leandro, já bispo de Sevilha, foi enviado a Constantinopla para tratar com o imperador sobre esta questão. Lá teve a oportunidade de estreitar profunda amizade com o apocrisário, o representante oficial do pontífice romano junto ao imperador, que se tornou depois o papa Gregório Magno. Infelizmente, neste meio tempo, o partido contrário a Hermenegildo convenceu o rei a assassinar seu filho com intenção de obrigar o povo a aceitar a heresia, ao passo que Leandro era exilado. Mas, em seu leito de morte, o rei atormentado por remorsos pediu perdão pelo seu delito e suplicou ao seu sucessor Recaredo que reparasse o mal feito, levando o seu povo para a verdadeira Igreja, de Leandro. Isidoro, voltando para casa, não perdeu tempo e falou abertamente em defesa da verdadeira fé aos bispos e príncipes, propondo a celebração do terceiro concílio de Toledo para pacificar de novo toda a península. O concílio, de fato, aconteceu no ano de 589 e foi presidido por Leandro. Naquela ocasião, Isidoro pronunciou um memorável discurso sobre a unidade da fé. Também os godos seguiram em massa o exemplo do novo rei e desapareceu o perigo ariano na Espanha.

O pastor Leandro, o metropolita de Sevilha, morreu no ano de 601 e Isidoro foi eleito para assumir o seu lugar. O homem dos livros se tornou pastor de almas. Embora cumprindo com zelo o novo trabalho, seus horizontes moviamse para além dos limites da sua diocese, pois muitos bispos e mesmo o rei sempre pediam a sua intervenção para dirimir questões eclesiásticas e civis, e para promover sínodos e concílios. Precisou resolver a questão de Gregório, um bispo que professava a heresia monofisita e que, perseguido na Síria, se refugiou na Espanha, onde estava criando um pouco de confusão. Isidoro aproximou-se dele e o convenceu a se emendar. A obra mais preciosa de Isidoro, depois da suas Cartas, é sem dúvida o quarto concílio de Toledo no ano de 633. Lá foi conseguido entre os bispos um acordo pela uniformidade litúrgica em toda a península. Este acontecimento foi


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muito importante, pois se sabe como as diversidades litúrgicas sempre foram motivo de discórdias doutrinais. Exortou-se, portanto, cada diocese a instituir uma escola de formação para o clero a exemplo daquela que ele há alguns anos levava adiante com tanto sucesso em Sevilha, de onde saíam homens preparados não só na doutrina, mas também espiritualmente; e isto possibilitou um clero celibatário que tinha acabado com tantos abusos na Igreja. Por isso o concílio reafirmava a validade do celibato não só para os bispos, mas também para os presbíteros. Tratou-se até mesmo de questões políticas para manter a unidade da população da península. Naquele momento, todos reconheceram como rei Sisenando, mas, depois de sua morte, o rei seria eleito democraticamente por uma assembléia, formada pelos príncipes do reino e dos bispos. Legislou-se também sobre os judeus, numerosos no território. O concílio estabeleceu que eles não podiam ser obrigados a se tornarem cristãos. Depois de todo esse esforço e daquele concílio que deu frutos duradouros também fora do território ibérico, Isidoro viveu ainda três anos.

Os últimos dias São Bráulio descreve assim a morte de seu amado mestre: “Percebendo que se aproximava o fim, duplicou as esmolas com tal profusão que, durante os últimos seis meses de sua vida, de todas as partes se via chegar em sua casa uma multidão de pobres da manhã até a noite. Alguns dias antes da morte pediu aos bispos João e Epárquio que fossem ao seu encontro. Permaneceu com eles na Igreja, juntamente com uma numerosa parte do clero e do povo. Quando chegou ao meio do coro, um dos bispos colocou-lhe um cilício e outro, cinzas. Ele, então, levantando as mãos para o céu, orou e pediu em alta voz perdão de seu pecados. Depois recebeu das mãos dos bispos o corpo e o sangue de Cristo, pediu as orações dos presentes, perdoou os seus devedores e distribuiu aos pobres todo o dinheiro que lhe restava. Tendo voltado para casa, lá morreu em paz no dia 4 de abril de 636.3 Isidoro edificou a Igreja com o exemplo e a palavra, escrita e falada, sem confiar em si mesmo, mas agindo sob a ação do Espírito Santo, convencido de que “se a doutrina não for sustentada pela graça, mesmo que entre pelos

3. Cit. in: G. Pettinato. Os Santos canonizados do dia/ IV, Edições Segno, Udine 1991, p. 56.


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ouvidos, não consegue chegar até o coração. Faz barulho externo mas não serve para nada. A palavra de Deus só chega até aos ouvidos e ao fundo do coração quando há intervenção da graça, agindo intimamente e levando à conversão”.4 Somente neste caso a compreensão não pode ser separada da conversão, pois, “após ter conhecido, devemos sentir a necessidade de colocar em prática as coisas boas que aprendemos”.5 No dia 25 de abril de 1722, Gregório XIII o proclamou doutor universal.

5 de abril São Vicente Ferrer sacerdote (1350-1419) “Então, tu que desejas ser útil às almas dos irmãos, primeiramente recorre a Deus com todo o coração e pede a ele com simplicidade esta graça, que se digne de infundir em ti aquela caridade, que é a perfeição das virtudes, e por meio da qual possas cumprir tudo o que desejas.” 6

As circunstâncias históricas fizeram deste pregador incansável do Evan­ gelho uma figura emblemática. Ele, fidelíssimo à Igreja, encontrou-se, sem querer, ao lado de um antipapa. Quando percebeu seu erro, não perdeu tempo e colocou todos os meios à sua disposição para que na Igreja cessasse o escândalo da desunião. Com sua moral elevada, Vicente muito contribuiu para recompor entre os homens da Igreja feridas provocadas por sua discórdia evitando a perpetuação de um cisma, e com o seu carisma de pregador popular salvou da heresia a cristandade da Europa ocidental.

Um digno filho de Domingos Vicente Ferrer nasceu em Valência, na Espanha, e aos 17 anos entrou no convento dominicano de sua cidade. Jovem inteligentíssimo, estudou com 4. Isidoro de Sevelha, Livros das sentenças, 3,10; PL 83,682. 5. Id., Livros das sentenças, 3, 10. 6. V. Ferrer, Sobre a vida espiritual, Ed. Garganta Forcada, 13.


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muito proveito filosofia e teologia em sua pátria, e depois em Toulouse na França, recebendo o título de “mestre em teologia”. Logo em seguida foi lhe confiado ensinar teologia na catedral da sua cidade. No ano de 1389, por motivo de sua incomum preparação doutrinal e da extraordinária capacidade de expor as verdades da fé, tanto às pessoas cultas quanto ao povo simples, a sua ordem lhe conferiu o cargo de “pregador geral”. Tal notoriedade envolveu-o bem cedo nos graves problemas que atormentavam a igreja. No ano de 1378 foram eleitos dois papas ao mesmo tempo: Clemente VII em Avinhão e Urbano VI em Roma. Qual dos dois era o verdadeiro papa? Hoje a história reconhece a legitimidade de Urbano VI, mas naquele tempo muitos se enganaram.

Quem era o verdadeiro papa? O “mestre” Ferrer foi consultado de todos os lados, e antes de dar seu parecer procurou-se informar com um dominicano de sólida fé, frei Nicolau Eymerich, um homem que das coisas da igreja sabia o bastante, pois tinha sido capelão e confessor do papa anterior, Gregório XI. Segundo Nicolau, a eleição de Urbano VI havia sido muito turbulenta para ser válida. Frei Elias Raimundo, geral da sua ordem, e o cardeal aragonês Pedro de Luna tinham o mesmo parecer. Antes, este último havia pedido uma ajuda a Vicente para que com seu superior convencessem as cortes da Espanha e Portugal a reconhecer como papa Clemente VII. Vicente, convencido da validade da eleição do papa de Avinhão, escreveu até mesmo um livro de sólido conteúdo teológico e jurídico em sua defesa, e se colocou à disposição do cardeal Luna. Este o cobriu de honras e o escolheu como confessor da corte de Aragão; quando sucedeu a Clemente VII, chamouo para seu lado, nomeando-o capelão, confessor, penitenciário apostólico e mestre do palácio. Pedro de Luna, que tinha tomado o nome de Bento XIII, sabia que Vicente, além de grande talento e de sua capacidade de oratória, tinha também uma forte influência junto à corte espanhola e junto às massas populares, um homem, então, muito precioso para sustentar sua causa. Na realidade enganou-se muitíssimo, pois quando Vicente conheceu de perto as intrigas da corte de Avinhão e se conscientizou de que no amigo Pedro, mesmo revestido de um manto papal, havia mais astúcia que virtude,


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foi-se distanciando, abandonando a corte e se retirando para o convento dos dominicanos de Avinhão, e começou também a fazer uma série de inter­ rogações: Bento XIII era verdadeiramente o legítimo papa? E se fosse, por que não aceitava a idéia de renunciar para evitar à cristandade a desgraça de um cisma? Constatava com dor que, enquanto os pastores discutiam entre si para saber “quem dos dois era o maior”, o rebanho de Cristo estava disperso e em vários lugares da Europa se tornava vítima das heresias.

Pregador popular No ano de 1398, Vicente ficou gravemente doente e, quando se preparava para morrer, teve uma visão de Jesus com são Domingos e são Francisco para lhe comunicar a cura e encarregá-lo de reevangelizar a Igreja. No espaço de um ano, Vicente readquiriu a saúde e, profundamente convencido de ter recebido um mandato divino, enquanto os homens de Igreja debatiam entre si e aprofundavam a dissidência, ele se preocupava com o povo de Deus percorrendo quase toda a Europa ocidental e pregando o Evangelho. Sua pregação era inflamada e com tons apocalípticos. A situação triste da Igreja, o avanço das heresias, a confusão no vértice do papado, tudo levava a pensar na aproximação do fim do mundo. Nessa perspectiva ele pedia ao povo uma purificação dos próprios costumes e um retorno à prática das virtudes evangélicas para evitar uma recaída nas heresias, e para ajudar a Igreja, esposa de Cristo, a reencontrar a unidade interna pedida por Cristo ao Pai. Com este espírito, pregou em toda a Espanha, França, Suíça, talvez também Bélgica, e na Itália setentrional, onde encontrou o jovem Bernardino de Sena, que depois entrou para os franciscanos e seguiu seu exemplo de pregador popular. Ao redor de sua pessoa, como sempre acontecia na alta Idade Média, formaram-se grupos de penitentes que às vezes chegavam a mais de 10 mil. Eram, sobretudo, pessoas que queriam colocar em prática ao pé da letra tudo quanto ele pregava, com manifestações externas do tipo penitencial, então muito comuns, como as procissões e as flagelações em público. Por isso, eram chamados de “flageladores” ou “penitentes”. Vicente não ficou muito satisfeito, pois muitas vezes o entusiasmo deles se transformava em fanatismo, e lhes impôs regras muito severas, procurando contê-los dentro de um regime eclesial de fervorosa, mas normal vida cristã. Muitos dentre eles deram origem nas cidades às famosas confrarias, associações de leigos que tanta influência positiva tiveram por séculos na Igreja.


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Reconstruir a unidade Nesse ínterim a situação na cúpula da cristandade havia piorado muitís­ simo. Em Pisa, alguns cardeais tinham deposto os dois papas e eleito um terceiro. Conseqüentemente, a cristandade passou a ter, não dois, mas três papas. Então, num concílio em Perpignano foi proposto que os três renunciassem e que fosse eleito um único papa. Vicente, presente àquele concílio, usou toda a sua influência sobre Pedro de Luna para convencê-lo a aceitar a proposta, mas não conseguiu. Era mais fácil trazer de novo à fé as massas populares desviadas que con­ven­ cer um dignitário eclesiástico a fazer um ato de humildade. Tentou de novo em 1514, junto com Fernando de Castilha, quando João XXIII de Pisa e Gregório XII de Roma já tinham renunciado, mas desta vez também tudo foi inútil. Enquanto o concílio estava reunido em Constança para eleger o novo papa, o imperador em pessoa dirigiu-se a Perpignano e com a ajuda de Vicente pediu a demissão de Pedro de Luna. Depois de um mês de inúteis tentativas, retornou a Constança com as mãos vazias, enquanto que Vicente, enfraquecido pelas longas viagens e amargurado pela teimosia de seu velho amigo, adoeceu gravemente. Ao médico que lhe enviou Pedro de Luna respondeu que não tinha necessidade de cura e que na próxima quinta-feira subiria novamente ao púlpito e pregaria. E assim aconteceu. Foi a pregação mais famosa de sua vida, iniciando com a citação bíblica de Ezequiel: “Ossos secos, escutai a palavra de Deus”. Falou apaixonadamente sobre a necessidade da unidade na igreja e das resistências absurdas e agora inúteis que alguns opunham, referindo-se claramente a de Luna; censurou o egoísmo entre eles, mostrando a aproximação da morte que em breve lhes mostraria a estupidez das próprias vaidades e os entregaria ao tremendo juízo de Deus. A igreja estava repleta de gente do povo e de numerosas personalidades, embaixadores, príncipes, cardeais e o próprio Pedro de Luna estava presente. Ele ouviu tudo, impassível, mas pouco depois fugiu. Vicente a esta altura, de acordo com o rei Fernando, liberou a todos de qualquer vínculo de obediência para com o fugitivo, convidando-o a aceitar o novo papa que seria eleito em Constança. Quando no concílio foi proclamado papa Martinho V, Vicente estava pregando em Tours. Foram-lhe enviados mensageiros conciliares para lhe


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anunciar oficial e solenemente a nomeação, como se usava fazer com os reis, agradecendo-lhe por tudo quanto tinha feito para reconstruir a unidade na Igreja. Sua alegria e plena adesão a Martinho V foram para as massas populares, e não só para eles, um sinal importante da legitimidade do novo papa. Encerrava-se assim um capítulo doloroso da história da igreja e Vicente continuava sereno em sua missão de evangelizador até a Normandia. Em Caen pregou também na presença do rei da Inglaterra, estupefato ao constatar no pregador o dom das línguas. De Caen foi para Nantes e em seguida para Vannes, onde no dia 5 de abril de 1519 terminou a sua caminhada terrena. Como filho de são Domingos, tinha cumprido de maneira exemplar a missão de pregador do evangelho.

7 de abril São João Batista de La Salle patrono dos professores (1651-1719) “Em todo o vosso modo de ensinar, comportai-vos de maneira que as crianças confiadas aos vossos cuidados vejam que cumpris vossas tarefas como ministros de Deus na caridade não simulada e na atenção fraterna.” 7

Para La Salle, fundador de uma família religiosa leiga, seus filhos eram chamados à grande aventura, não de pregar o evangelho nos púlpitos ou de imprimi-lo em papel, mas no coração dos jovens através das escolas.

Em rápida ascensão João Batista nasceu em Reims na França no dia 30 de abril de 1651, dos cônjuges La Salle, um nobre casal que não possuía riqueza de bens materiais, mas conservava a fineza de comportamento. João foi o primeiro de dez filhos, dos quais três foram sacerdotes e uma religiosa. Recebeu em casa uma educação esmerada por parte da mãe, Nicoletta Möet e de sua avó, Pieretta Lespagnol. Os primeiros passos nos estudos ele fez com os mestres da família, pois freqüentou como aluno externo o colégio dos “Buoni fanciulli”.

7. Das Meditações de la Salle, medit. 201.


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Seu sonho era se tornar sacerdote e pela sua conduta exemplar e pelos ótimos resultados nos estudos, aos 11 anos recebeu a tonsura de clérigo e aos 15 anos ganhou a renda de cônego para continuar tranqüilamente os estudos. Aos 16 anos, já era um “mestre das artes”. Fez os primeiros estudos de teologia em sua cidade natal e depois em Paris, na Universidade de Sorbonne. No ano de 1678 foi ordenado sacerdote e em 1680 obteve o doutorado em Teologia. Agora finalmente já podia se dedicar ao ministério pastoral e o exerceu com muito empenho.

Preparação providencial Para não se desviar do caminho de santidade a que se propôs, escolheu um diretor espiritual na pessoa de um santo padre, o cônego Nicolau Roland. Este, para prover a instrução e a assistência às crianças pobres, tinha fundado as Irmãs do Menino Jesus e aos poucos foi encaminhando La Salle no mundo da escola para os filhos dos pobres. Uma outra circunstância o envolveu ainda mais nesta problemática. Um leigo muito empenhado, o mestre Adriano Nyel, pediu sua ajuda para fundar uma escola para rapazes pobres, segundo as recomendações e o apoio financeiro da senhora Maillefer, uma convertida que tinha uma ligação de parentesco com a família La Salle. João aceitou dar-lhe uma ajuda e, quando a escola começou a funcionar, duas coisas ele rapidamente percebeu. Primeiro havia a necessidade extrema de dar uma formação integral a muitos rapazes, pois de outra forma cresceriam despreparados para as exigências dos novos tempos, tornando-se facilmente vítimas da miséria e de todas os vícios que normalmente a acompanham; em segundo lugar, a necessidade de preparar professores à altura da sua missão, quer do ponto de vista intelectual e pedagógico quer espiritual. Primeiramente organizou encontros periódicos de formação para os pro­ fessores, mas depois percebeu que não bastava ensinar e dar bons conselhos: pre­ cisava conviver e trabalhar com eles. Começava a formar-se na sua mente a idéia de uma congregação de leigos consagrados a Deus e decididos a aplicar na escola todos os seus talentos naturais e adquiridos. Comunicou sua idéia e logo encontrou um grupo de professores dispostos a segui-lo. Então, renunciou ao canonicato, vestiu uma roupa mais simples e passou a conviver com eles. Isso aconteceu no ano de 1683. Assim nasceram os primeiros “Irmãos das Escolas Cristãs”. No ano seguinte sobreveio uma grande carestia na região e La Salle vendeu todo o seu patrimônio e não o deu à própria instituição, mas distribuiu-o entre os pobres da cidade.


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Naqueles dias, recebeu de esmola um pedaço de pão e, retornando à casa, comeu-o de joelhos e entre lágrimas, experimentando de uma maneira extraordinária a paternidade de Deus, como havia acontecido com são Francisco, quando restituiu ao pai o seu manto. No ano de 1687 foi aberto o primeiro noviciado com numerosos aspirantes e de um certo valor. Deus abençoava a obra que estava nascendo. No entanto, começavam as primeiras perseguições. A sua mudança de vida não agradou aos parentes e suscitou o ressentimento da burguesia e do clero da cidade. Abandonar os hábitos dos nobres para vestir roupas dos pobres e deixar o ofício canônico para se misturar com pessoas do mais baixo nível, desperdiçando o seu tempo precioso com moleques de rua, era um ultraje à sua linhagem e uma ofensa à dignidade do sacerdócio.

Um caminho em ascensão Mesmo os amigos que apreciavam sua obra punham-lhe obstáculos. O bispo de Reims a queria só para sua diocese e não permitia que se expandisse para fora de seus limites; os párocos aceitavam de boa vontade as escolas, mas não compreendiam como os leigos pudessem formar uma comunidade religiosa vivendo sozinhos sem a autoridade e o controle de um sacerdote e se intrometiam na vida interna dos “irmãos” como se fossem patrões; até o sistema escolástico existente, sentindo-se ameaçado pelo método novo que o santo andava introduzindo com sucesso, fizeram duras críticas à congregação que estava nascendo. Como se tudo isso não bastasse, algumas pessoas da corrente galicana e jansenista, que estavam provocando não poucos danos nas comunidades cristãs, procuram atraí-lo para seu lado. Sem que ele soubesse, fizeram uma falsa assinatura numa carta de protesto contra a bula Unigenitus. A esta calúnia, o santo respondeu energicamente com uma carta de próprio punho na qual assinava “sacerdote romano”. Logo em seguida foi acusado de traidor e conservador, e começou uma perseguição feroz não só com palavras mas também com fatos, sendo retiradas as subvenções às suas escolas. Em alguns lugares seus filhos passaram fome e foram socorridos pela caridade de um convento de clausura. No meio dessas dificuldades, mesmo sofrendo, sobretudo pela deserção de alguns dos seus, La Salle ia em frente movido por uma força superior, convicto de que a obra não era sua, mas de Deus.


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Uma intuição genial Nas escolas daquela época ensinava-se latim, o que trazia uma grande dificuldade para a maioria dos alunos que vinham de famílias pobres e sem nenhuma prévia preparação; depois dos primeiros esforços, desistiam facilmente. Além disso, o ensino tinha uma feição clássica útil somente para aqueles que se preparavam para o sacerdócio ou que se encaminhavam a uma profissão liberal, mas não para os filhos dos pobres, destinados em grande parte ao trabalho nos campos e ao exercício de um ofício. João teve a coragem de modificar uma tradição de vários séculos e introduziu o ensino em língua materna, e, depois das “pequenas escolas” paroquiais, fundou também as “escolas profissionais” para aqueles que queriam aprender algum ofício. Em seguida, tais escolas transformaram-se em verdadeiros “Institutos Superiores”, dando uma contribuição significativa ao desenvolvimento do setor técnico. Para formar professores à altura de seu trabalho, fundou as “Escolas para os mestres”, antecipando os atuais Institutos Magistrais, onde se dava uma formação esmerada aos futuros mestres. Para ir ao encontro dos ex-presidiários e de outros excluídos da so­ ciedade, criou “escolas de recuperação”; e, enfim, para os jovens e adultos que não podiam freqüentar a escola diurna porque estavam ocupados com o trabalho, instituiu os cursos noturnos e dominicais. Em tudo aquilo que se referia à escola, La Salle estava adiantadíssimo e observava bem de perto outras instituições semelhantes existentes na França e em outros lugares, como aquela do padre Barré dos Mínimos em Paris e a dos Escolápios na Itália.

Patrono dos professores Assim que foi possível, La Salle transferiu a casa generalícia para Paris, onde fundou o Colégio de São Sulpício. Depois de vários acon­te­ci­ mentos transferiu-a para Rouen e em seguida retornou à Paris; por fim, de­ finitivamente em Rouen. Lá o fundador deu os últimos retoques à sua obra e faleceu no dia 7 de abril de 1719, quando a sua fundação já contava com cento e um membros em vinte e três casas com cerca de 10 mil alunos. No ano de 1900 foi canonizado e em 1950, pela atualidade de seu método edu­cativo, o papa Pio XII o proclamava “celeste patrono junto de Deus de todos os mestres e mestras”.


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A vida evangélica no dia-a-dia A espiritualidade de La Salle é típica das escolas francesas do seu tempo, isto é, humanismo devoto que muito se tinha inspirado em são Francisco de Sales. Ajudava a unir a autêntica vida evangélica ao dia-a-dia, levando em séria consideração os dotes e as qualidades humanas como dons de Deus para empregá-los em favor do bem da humanidade. Ele a adotou particularmente adaptada a seus filhos. Naturalmente nenhum santo é simples cópia de outro santo, mas sempre há um aspecto genial na sua obra. Assim é La Salle. Ele ensinou aos seus que, para preparar jovens para a vida, era necessário, antes de tudo, sólida base religiosa, não tanto e só intelectual, mas vital, dando-lhes a possibilidade de fazer forte experiência da paternidade de Deus. Esta é a missão confiada pelo Senhor a seus filhos. Para cumpri-la, deviam sentir-se filhos do mesmo Pai e irmãos entre si, vivendo unidos em casa, pois cada um na escola reproduziria este clima de família com os alunos, irmão entre irmãos, todos discípulos do único Mestre. Para La Salle, só esta vida de comunhão vivida na presença de Deus daria significado a toda a atividade dos irmãos das escolas cristãs: suas palavras, exemplos, cultura e capacidades didáticas. Uma coisa a que La Salle jamais quis renunciar foi o aspecto leigo dos membros da sua congregação. Suportou muitas lutas, sofreu humilhações, por fim foi-lhe tirada sua autoridade sobre seus filhos espirituais, mas ele permaneceu firme na convicção de que os “irmãos” deviam permanecer leigos e como mestres leigos tinham uma grande missão a realizar. Também os responsáveis das comunidades e os membros de todas as congregações deviam ser leigos. Ele pessoalmente era uma exceção que não deveria ser repetida. Sob esse aspecto, foi um profeta e talvez o único fundador que naquele tempo obteve a aprovação da regra com tais disposições.

11 de abril Santo Estanislau bispo e mártir (1030-1097) “Deus lhe deu a graça de concluir com o martírio seu serviço pastoral.” 8

8. Da Oração da liturgia do dia.


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Estanislau nasceu em 1030 em um pequeno povoado na periferia de Cracóvia e, depois de ter estudado com os beneditinos da cidade, foi enviado a vários conventos do Ocidente, na Bélgica e na França, onde pôde formar-se cultural e espiritualmente, respirando a plenos pulmões as idéias da reforma gregoriana que queria libertar a igreja da dependência do poder civil, para conduzir o clero e o povo a uma vida mais evangélica. Chamou-se gregoriana por causa do papa Gregório VII que foi o seu principal promotor. Retornando à sua pátria, foi ordenado sacerdote pelo bispo Lamberto que, tendo percebido o seu talento, preparou-o para seu sucessor, nomeando-o primeiro cônego e depois pregador. Em 1072, morreu Lamberto, e Estanislau foi chamado para sucedê-lo pela vontade unânime do rei Boleslau II, do clero e do povo. A designação foi confirmada por Roma. Tinha 42 anos e o esperava um imenso trabalho: em algumas regiões da Polônia já cristianizadas era necessário agilizar a reforma gregoriana, enquanto que a outras era urgente levar em primeiro lugar o anúncio do evangelho.

Também os reis devem obedecer a Deus e respeitar o homem Cracóvia era então a capital do reino e sede do rei Boleslau. Em um primeiro momento, o rei favoreceu a ação apostólica de Estanislau, mas depois a relação entre os dois foi-se tornando sempre mais difícil. O rei tinha um caráter suspeito e, depois da vitória contra os russos em Kiev, tornouse particularmente violento e dissoluto: cometia injustiças contra os pobres, estava loucamente enamorado por uma senhora casada, levando uma vida imoral com grave escândalo dos súditos. Estanislau, de acordo com os outros bispos e inspirando-se no exemplo de são João Batista, muitas vezes o advertiu, mas inutilmente. Então, aplicou a doutrina do papa Gregório VII, excluindo-o da comunhão eclesial.

Fiel até o martírio O rei se enfureceu com a excomunhão e decidiu se vingar acusando Estanislau de infidelidade ao rei e mandando matá-lo. Parece que o próprio rei participou da horrenda execução: o bispo foi agredido no altar enquanto celebrava a eucaristia. Depois de ser ferido na cabeça, foi esquartejado em pedaços, como se usava fazer com os traidores. Isso aconteceu no dia 11 de abril de 1079.


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A reação popular foi toda a favor do bispo. O seu corpo foi recomposto e sepultado com todas as honras de um mártir, e o rei precisou fugir para o exílio com o peso do delito em sua consciência e a pena da excomunhão. Retirou-se para a Hungria e depois de alguns anos escondido pediu perdão de seu pecado e se retirou para fazer penitência como irmão leigo no convento dos beneditinos de Osjak. Uma lenda conta que os membros dilacerados e separados do mártir se reuniram miraculosamente e o corpo de Estanislau refulgiu com novo esplendor. Com este gênero literário, os poloneses, cujo território era continuamente subdividido e disputado de vários lados, quiseram exprimir sua profunda aspiração de serem respeitados como um único povo, uma só terra e uma só fé. Estanislau foi canonizado por Inocêncio IV em Assis no ano de 1253 e é venerado na Polônia como “mártir da verdade”. João Paulo II inseriu sua memória no calendário litúrgico universal da Igreja Católica. Ele é a figura típica do pastor que não tem medo de levantar sua voz em defesa dos valores morais, mesmo quando seu anúncio evangélico censura a vida de homens poderosos. Estes, vendo-se desmascarados, respondem com o uso da violência mas, enquanto pensam em calar quem os repreende, criam os mártires, cujas vozes depois ressoam pelos séculos.

13 de abril São Martinho I papa e mártir (+ 656) “Por intercessão de são Pedro (Deus) confirme seus corações na fé ortodoxa e os torne firmes contra qualquer herege ou inimigo de nossa Igreja. Dê força especialmente ao pastor que agora os governa. De modo que, sem ceder em algum ponto ainda que mínimo e sem se dobrar em alguma parte mesmo que secundária, conservem na íntegra a fé professada por escrito diante de Deus e dos santos anjos e, por isso, possam receber juntamente comigo, pobrezinho, a coroa da justiça e da fidelidade das mãos do Senhor e salvador nosso Jesus Cristo.” 9 9. Da Carta 17 do papa Martinho I: PL 87,204.


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Estas são palavras de um homem que de sua fria prisão na Criméia, injustamente privado dos mais elementares direitos humanos, longe da própria Igreja, conserva íntegra sua dignidade e intacta sua fé, e encontra a força para orar por aquele que ocupou seu lugar e por seus filhos de Roma que, na desgraça, primeiramente o tinham esquecido e depois abandonado. Por eles pede a Deus fidelidade àquela doutrina pela qual estava sofrendo gota a gota aquele longo e doloroso martírio. Martinho nasceu em Todi, mas era diácono da igreja de Roma e o papa, por causa de suas qualidades pouco comuns de doutrina e de santidade, o tinha enviado a Constantinopla como núncio apostólico. Em contato com a corte imperial e com o patriarcado mais importante do Oriente, ponto de convergência de tantos problemas ligados à religião e ao poder, aprendeu quanto era difícil impedir que a política instrumentalizasse a fé.

Um pontificado difícil Quando foi eleito papa em 649, as relações com o Oriente não eram muito boas seja no campo político seja no religioso por causa das acaloradas disputas teológicas acerca do monotelismo (N. do E.: doutrina que defendia a idéia de que Jesus Cristo só tinha uma vontade). Algumas igrejas, apoiando-se no concílio de Calcedônia que tinha definido duas naturezas na única pessoa de Cristo, sustentavam que nele havia duas vontades – a divina e a humana; outras igrejas, ao contrário, para evitar um possível contraste entre as duas vontades, admitiam uma só, a divina. No passado o imperador Eráclio tinha apoiado a doutrina da única vontade, daí o nome monotelismo, e a tinha imposto com um decreto a todo o império, aumentando as discussões e as brigas, sobretudo entre Roma e Constantinopla. O imperador Constante II, temendo que a disputa teológica se tornasse motivo de separação também política entre Oriente e Ocidente, pensou em resolver o mal pela raiz com um novo decreto, chamado Tipo, no qual, entre outras coisas, ordenava: “Estabelecemos para todos os nossos súditos que de hoje em diante fica proibido discutir se em Cristo há uma ou duas vontades. Quem for contra esta disposição, em primeiro lugar fica sob o terrível juízo de Deus, em segundo, expõe-se também às punições imperiais: à deposição se for bispo, ao confisco dos bens se for proprietário e ao açoite e exílio se for simples súdito”.10 10. Mansi X, 1029-1030.


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O imperador se esquecia de que entre seus súditos havia os descendentes de Sócrates, mais dispostos a engolir cicuta do que a renunciar a exprimir suas próprias idéias. Muitos monges, entre os quais o famoso e douto são Máximo, o Confessor, para não se submeter às imposições do imperador, exilaram-se e se refugiaram em Roma; a mesma coisa tinha feito um outro grupo de bispos das regiões do Oriente Médio invadidas pelos muçulmanos, por negligência da autoridade de Constantinopla. Assim que Martinho foi eleito papa, ele não esperou a confirmação do imperador, como acontecia antes, mesmo porque o exarcado de Ravenna, que representava o imperador no Ocidente, estava vacante. O papa rapidamente se pôs ao trabalho, consciente de sua liberdade diante de qualquer autoridade política. A situação não agradou ao imperador, sobretudo quando o papa, apenas três meses depois da eleição, convocou um concílio em Roma, e na igreja de são João de Latrão reuniu quase todos os bispos italianos, uns trinta bispos orientais e uma representação dos bispos africanos. Coisa inaudita, pois, desde os tempos de Constantino os grandes concílios tinham sido sempre convocados pelo imperador, mas, fosse lá como fosse, nunca sem seu consentimento. Os padres do concílio rejeitaram por unanimidade seja o decreto aber­ tamente monotelita de Eráclio, seja o decreto de Constante II, que impunha o silêncio, como também todos os seguidores do monotelismo.

A perseguição do imperador O imperador, sem pensar duas vezes, quis dar uma lição exemplar ao bispo de Roma, que valesse para ele e para os seus sucessores: os decretos imperiais não se discutiam nos concílios, mas simplesmente serviam para todos os súditos, mesmo que fossem bispos. Enviou a Ravenna, como exarca, um general, Olímpio, com ordem de fazer assinar o Tipo não só de todos os bispos italianos, inclusive o de Roma, mas também os cidadãos mais importantes da cidade. Se o papa se opusesse, deveria prendê-lo e levá-lo a Constantinopla. Olímpio chegou a Roma com muita circunspecção e se deu conta de que a incumbência não era simples, pois todos estavam com o papa: os bispos ainda reunidos em concílio, a população e até mesmo a guarnição militar que, mesmo dependendo nominalmente do imperador, acabou sendo transformada em uma milícia de defesa da cidade e sem ligação com o poder imperial. Gregorovius conta que Olímpio tentou matar o papa à traição. Enquanto ele se aproximava da eucaristia, o seu escudeiro deveria passá-lo a fio de espada,


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mas este inesperadamente perdeu a visão. Na verdade, Olímpio, durante sua permanência em Roma, não só não prendeu o papa, mas se rebelou contra o imperador na esperança de conseguir ocupar o posto no Ocidente, e depois partiu para libertar a Sicília dos invasores muçulmanos. Lá seus sonhos foram desfeitos e morreu em uma batalha. Constante II, convencido de que o papa tinha conspirado juntamente com Olímpio contra a unidade do império, enviou a Ravenna no ano de 653 um novo exarca, Teodoro Calliope, com a ordem de levar o papa prisioneiro para Constantinopla. Teodoro foi a Roma, entrincheirou-se no palácio imperial e com muita astúcia comunicou ao pontífice que trazia uma carta de paz da parte do imperador, mas que tinha medo de se apresentar em Latrão por temer que no palácio pontifício estivessem escondidos os sicários para expulsá-lo. O papa, homem pacífico e adoentado, se bem que suspeitasse de alguma coisa, convidou-o a vir depois de ter feito a inspeção em todo o palácio por seus guardas. Ninguém tramava contra o mensageiro imperial, enquanto que este, quando se encontrou diante do papa indefeso, mostrou a ordem de prisão; e depois de ter levado o papa em sua guarnição, embarcou-o à noite, pelo Tibre, para o mar. Os romanos não tiveram nem tempo de perceber o que estava acontecendo.

A caminho da punição A viagem por mar com diversas paradas durou 15 meses: o tempo necessário para o imperador espalhar as mais horrendas calúnias contra o pontífice e fazer eleger em Roma um novo papa mais obediente às suas ordens na pessoa de Eugênio I, bem conhecido nos ambientes imperiais por sua docilidade quando era núncio em Constantinopla. Martinho, doente de gota e acometido de contínua disenteria durante a viagem, não teve permissão para descer do navio, nem se lavar ou receber os numerosos presentes que em cada porto os cristãos lhe ofereciam. Somente em Nasso, onde o navio permaneceu por quase um ano, pôde ser hospitalizado e curado com afeto por uma família do lugar. Quando chegou à cidade imperial, foi acolhido por uma multidão opor­ tunamente instigada para insultá-lo com as palavras mais infamantes e depois mantido em cárcere por três meses em total isolamento. No tribunal estas foram as acusações: juntamente com Olímpio, ter tramado contra o estado; ter chamado os sarracenos na Sicília oferecendo-lhes


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dinheiro e ter blasfemado contra a virgem Maria. Ele respondeu: “Em Olímpio abracei meu inimigo pessoal, pois se arrependeu de seu delito; aos serracenos dei dinheiro para resgatar os cristãos que vós deixastes sem defesa; como pontífice sustentei a fé contra o Tipo”. O juiz o interrompeu, recordando-lhe que não estava sendo julgado por motivos de fé, mas por alta traição e depois acrescentou que quanto à fé: “Tanto nós como os romanos somos todos cristãos, tu somente és herege”. “Isto” – replicou Martinho – “será visto no tribunal de Deus”, e depois, referindo-se à acusação de blasfemador, acrescentou: “Agora eu desejaria que a minha língua fosse de fogo para excomungar os blasfemadores de Maria, mãe do verdadeiro homem e do verdadeiro Deus, Jesus Cristo; maldito quem não a venera acima de toda outra criatura, depois de Deus uno e trino”.11

Diante do tribunal O tribunal o condenou à deposição e à morte. Foi então levado para cima de um balcão à vista da multidão, foi-lhe retirado o pálio, sinal de sua autoridade pontifícia que na ocasião lhe tinham colocado sobre os ombros, e depois um soldado rasgou a sua roupa de cima a baixo, deixando-o quase desnudo. Assim, acorrentado e seminu, foi obrigado a descer até o meio das pessoas que o insultavam e depois foi trancado no cárcere dos condenados à morte. Nesse meio tempo, Paulo, patriarca de Constantinopla, que havia conspirado contra Martinho, adoeceu gravemente. Sentindo-se próximo da morte e sabendo como fora tratado o santo pontífice, arrependeu-se e suplicou ao imperador para não se manchar com o sangue do bispo de Roma, mas de permutar a pena de morte para o exílio. E assim foi feito. Na sexta-feira santa do ano de 655, enquanto em Roma o papa Eugênio se apresentava para celebrar solenemente os ritos pascais, Martinho iniciava na Criméia no Chersoneso a última etapa de sua via crucis. De seu cárcere, onde jamais viu um pedaço de pão, escrevia aos poucos amigos que permaneceram fiéis, mas que também não puderam fazer nada: “O Senhor está próximo, com que devo me preocupar? Espero na sua misericórdia que não tardará a pôr fim esta minha condição do modo que ele achar melhor. Saudai a todos os vossos queridos no Senhor e todos aqueles que por amor a Deus tiveram compaixão das minhas correntes”.12 11. Cit. in: G. Pettinato. Os santos canonizados do dia/IV, Ed. Segno, Udine 1991, p. 190. 12. Da Carta 17 do papa Martinho I: PL 87,204.


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Morreu em setembro do ano 655. Não muito distante dele definhava no cárcere, com a mão cortada e a língua arrancada, um grande amigo seu, o monge são Máximo, o Confessor, mas os dois não se podiam visitar. Pela fidelidade à verdadeira doutrina e pelo exemplo de santidade, Martinho tornou-se famoso não só na Igreja romana mas também na grega e eslava, e por todos é venerado como mártir.

21 de abril Santo Anselmo de Cantuária bispo e doutor (1034-1109) “Ó Deus, peço-te, quero conhecer-te, amar-te e poder alegrar-me. E se nesta vida não sou capaz disto plenamente, possa ao menos cada dia progredir até chegar à plenitude. Cresça em mim o conhecimento de ti, para que eu chegue um dia à plenitude; cresça agora em mim o amor por ti até à plenitude; também que a minha alegria seja grande na esperança, e plena um dia na realidade.” 13

Esta oração, por si só, revela a alma mística de Anselmo. Dizem que foi sua mãe, a nobre Ermemberga d’Aosta, quem lhe infundiu no coração o amor ardente para com Deus. O seu secretário e biógrafo, o monge Eadmero, conta que, ainda criança, Anselmo imaginava o bom Deus entre os cimos alpinos brancos e uma noite sonhou que o convidava para se sentar com ele à mesa no esplêndido palácio real para se alimentar de um saboroso pão branco. Bem diferente foi a figura paterna. Gandulfo dei Gisliberti era nobre de estirpe, mas rude nos modos e pouco inclinado à religião. Entre pai e filho nunca houve um bom relacionamento. Anselmo nasceu em Aosta no início do ano de 1034 e bem cedo a mãe, com permissão do marido, enviou-o à escola junto ao priorado beneditino do lugar. Lá, aos 15 anos, Anselmo pediu para vestir o hábito de monge, mas deparou-se com a oposição decisiva do pai que não permitia absolutamente que o seu primogênito desaparecesse no anonimato de um convento, mas deveria continuar a glória da família. 13. Santo Anselmo, Proslógio, cap. 14.


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Anselmo adoeceu gravemente e pediu para fazer os votos antes de morrer, mas nem nesta circunstância o pai quis consentir. Curado da enfermidade e tendo perdido a mãe, “a nau do coração de Anselmo” – assim diz Eadmero – “como estivesse privado de sua âncora, foi quase totalmente levado pelas ondas da vida mundana”.

De andarilho a monge O pai primeiramente ficou contente, mas bem se convenceu de que o relacionamento com o filho estava cada vez mais difícil, até que um dia Anselmo desapareceu de casa, atravessou o Moncenisio e por três anos andou a vagar pela França em busca de aventuras. Chegou até Normandia, onde para sua felicidade se encontrou com Lanfranco di Pavia, prior do convento de Bec. Naquela escola voltou a estudar e nele se reacendeu a vocação monástica. Ele pensou bastante antes de decidir, pois aos 27 anos vestiu o hábito e pouco depois foi ordenado sacerdote. No mosteiro, Anselmo estava à vontade: a ascese e os estudos abriam-lhe novos horizontes, fazendo-o reencontrar em grau bem mais elevado aquela familiaridade com Deus que havia tido quando criança. Deus, de fato, era “seu amor, sua contemplação, sua alegria e sua satisfação”. Logo foi escolhido como mestre e formador dos jovens monges, que o escutavam com grande interesse, pedindo-lhe para dar por escrito suas aulas. Pela difícil experiência vivida com o pai, Anselmo rejeitava os métodos autoritários e impositivos, que na ocasião eram muito usados nos conventos e usava a arma da persuasão, convencido de que quem faz as coisas por medo, comumente, se torna falso. Comparava os jovens com as plantas, que em campo aberto crescem mais sadias e mais fortes do que aquelas que são cultivadas nas estufas. Quando Lanfranco se tornou abade de Caen, Anselmo foi eleito prior e, considerando que o abade Bec estava velho e doente, precisou carregar sozinho todo o peso do governo da abadia, tornada famosa, mas sem abandonar o ensino. Quando morreu o abade em 1078, os monges unanimemente o elegeram seu sucessor. Naquela mesma época, havia na Igreja uma profunda renovação e Anselmo fez parte daquele conjunto de reformadores. Era muito exigente consigo mesmo e com os outros na observância monástica, mas fazia-o suscitando convicção e também entusiasmo, sobretudo entre os jovens.


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Numerosos monges foram chamados a Cantuária para levar aos irmãos de Manica a renovação feita no continente e a obra foi tão bem aceita que no ano de 1070, devendo-se eleger um novo arcebispo, o rei e o povo escolheram Lanfranco de Caen. O antigo e amado mestre de Anselmo aceitou a incumbência e em seguida se pôs a trabalhar, mas pediu ajuda ao discípulo, para que passasse um certo tempo em Cantuária para instruir os monges e para aconselhá-lo em suas tarefas particularmente difíceis. A Igreja daquela região de fato estava se organizando após a conquista da parte dos normandos. A permanência de Anselmo na ilha foi muito positiva e ele ficou conhecido e apreciado não só pelos monges, mas também pela corte real de Guilherme, o Conquistador. Naquele período, conheceu o monge Eadmero, que se tornou seu companheiro fiel. Com muita perspicácia, este observava que Anselmo tinha ganhado a simpatia e o afeto dos monges ingleses, porque “se tinha tornado um deles” e, mesmo gozando da estima do arcebispo e do rei, não quis viver no arcebispado ou na corte, mas no convento submisso à disciplina comum. Mesmo depois do retorno a Bec, as ligações com a igreja, agora irmã, continuaram tão intensas que, na morte de Lanfranco em 1089, o rei Guilherme, o Vermelho, mandou buscá-lo para torná-lo arcebispo. Anselmo respondeu ao rei que não podia aceitar aquela nomeação, porque partia do poder laico, mas, depois, teve que se render à vontade unânime dos bispos ingleses.

Arcebispo de Cantuária Em Cantuária sua missão não foi nada fácil, não por culpa dos monges, ou do povo e de outros bispos, mas pela luta existente entre a corte real e o papa. O poder normando tinha superado o anglo-saxão e o novo rei interferia continuamente na vida interna das igrejas, seja impondo taxas, seja fazendo nomeações abertamente em divergência com a linha da reforma gregoriana. Mais de uma vez correu-se o risco de uma separação de Roma, sobretudo quando o rei Guilherme, o Vermelho, julgou-se autorizado a definir quem era o legítimo papa entre Urbano II, eleito pelos cardeais, e Clemente VII, apoiado pelo imperador da Alemanha. Eram tempos difíceis também para a Igreja inglesa e muitos bispos pre­ feriram não se pronunciar ou se juntaram ao rei, enquanto que Anselmo reafir­mava a doutrina da não-ingerência do poder civil no governo da Igreja. Mas se era inflexível em seus princípios, era por outro lado maleável


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no resto. Desse modo, quando o rei correu o perigo de ser excomungado por Urbano II, Anselmo foi a Roma para impedi-lo e lá recebeu o pálio em sinal de reconhecimento da sua jurisdição primacial sobre todos os bispos da Inglaterra. Em sua permanência na Itália participou do concílio de Bari em 1098 e depois foi a Bec para visitar seus monges. Nesse meio tempo, o rei morreu e lhe sucedeu seu filho Henrique que, com muita astúcia, para ganhar a estima dos bispos e do povo, tinha mandado um mensageiro à França para dizer a Anselmo que retornasse o mais breve possível, pois todos estavam esperando com ânsia seu pastor. De fato, foi acolhido com todas as honras, mas pouco depois o rei exigiu que sendo ele súdito de sua majestade, lhe prestasse homenagem de obediência e lhe pedisse a aprovação para exercer sua jurisdição de arcebispo-primaz no reino, não aceitando que fosse suficiente a designação papal. Foi um momento difícil para Anselmo. Agindo de acordo com o seu modo de ser, foi decididamente contrário às exigências do rei, mas com muito tato foi adquirindo o apoio dos bispos e também foi favorecendo o rei naquelas coisas nas quais era possível fazê-lo sem ferir a liberdade da Igreja. Assim dispensou dos votos religiosos Matilde, filha do rei da Escócia, para permitir ao rei Henrique esposá-la.

Exílio, retorno e os últimos anos Infelizmente, a luta parecia não diminuir. O rei, com astúcia, convidou Anselmo a ir a Roma com uma comissão para conferir diretamente com o novo papa, Pascoal II, a questão da supremacia na Igreja inglesa de maneira a definir para sempre se esta pertencia ao arcebispo de Cantuária ou ao rei. Se o papa desse razão ao rei, a questão estaria definida a favor do soberano, mas se, ao contrário, desse razão a Anselmo, o rei ainda tinha uma arma para ser usada, impedir que o arcebispo retornasse à Inglaterra e colocando em seu lugar um outro eclesiástico de seu agrado. O papa não só confirmou Anselmo na sua missão primacial, mas ameaçou de excomunhão a qualquer leigo que ousasse fazer uma nomeação eclesiástica. O rei percebeu o golpe: não poderia escolher um sucessor para Anselmo sob pena de excomunhão e talvez até houvesse uma rebelião por parte de muitos príncipes de bispos. Limitou-se a expulsar Anselmo de seu reino. Começava para o santo bispo três anos de exílio na França, até que o rei compreendeu que era oportuno renunciar às suas pretensões e lhe permitiu em 1106 retornar, tendo sido acolhido por todos com grande festa.


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Consciente de que agora lhe restavam poucos anos de vida, Anselmo convocou um concílio em Londres para reafirmar a independência da Igreja diante do poder político e depois se dedicou sobretudo à formação do clero. Morreu no dia 21 de abril de 1109 e será seu sucessor, são Tomás Becket, quem pedirá a canonização de Anselmo, enquanto será um rei, Jaime III, quem pedirá ao papa para proclamá-lo doutor.

Mestre na fé De fato, Anselmo não foi somente um homem de governo e reformador da Igreja, mas foi também um excelente mestre de categoria universal. Entre as suas obras, recordemos duas das mais famosas. O Monológio é uma meditação amorosa, onde a mente, sustentada pela fé pela Sagrada Escritura, se aventura com todas as suas capacidades humanas na busca do conhecimento de Deus uno e trino, segundo o método patrístico e, sobretudo, agostiniano. Nela o raciocínio filosófico, a especulação metafísica, a oração filial e a contemplação mística se entrelaçam admiravelmente entre si. No Proslógio, o autor, querendo completar a primeira obra, tentou fazer uma demonstração racional da existência de Deus, procurando “com um só e breve argumento poder provar o que se crê e se ensina a respeito de Deus”. Brevemente relatemos tal argumento, que se tornou depois célebre, a fim de suscitar o interesse dos leitores que quiserem aprofundá-lo e para entrar um pouco mais no coração deste doutor da Igreja. Ele começa com esta oração: “Senhor, tu que nos deste a inteligência da fé, concede-me entender, por quanto tu sabes ser útil, que tu existes como cremos e que és aquilo que cremos. Ora nós cremos que tu és algo do qual não se pode pensar nada maior”. Este “algo do qual não se pode pensar nada maior, existente tanto na inteligência como na realidade”, deve existir na realidade, senão a inteligência humana não o poderia perceber como algo do qual não se pode pensar coisa maior. Anselmo conclui assim a sua reflexão orante: “E isto és tu, ó Senhor nosso Deus. Então, tu, ó Senhor meu Deus, existes de modo assim verdadeiro e não podes ser pensado como não existente. E é certo. Se de fato alguma mente pudesse pensar alguma coisa maior que tu, uma criatura se elevaria acima do Criador e julgaria o Criador. E isto é absurdo. De fato, todas as


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outras coisas existentes, exceto tu somente, podem ser pensadas como não existentes. Somente tu, então, tens a existência do modo mais verdadeiro e maior que todas as outras coisas, pois cada outra coisa não existe em modo assim verdadeiro, e por isso tem uma existência menor”.

Fundador da filosofia escolástica Este argumento ontológico suscitou muitas polêmicas, mas certamente abriu um caminho à nova pesquisa teológica, fazendo o seu autor merecer o título de fundador da Teologia Escolástica. Hoje se reconhece em Anselmo o mérito de ter afirmado com clareza, em todos os seus escritos, que quem quer fazer teologia não pode confiar somente na sua inteligência, mas deve ter uma viva experiência de fé vivida. Para ele, a atividade do teólogo compreende três etapas: antes de tudo a fé, que é dom gratuito de Deus que devemos acolher com humildade; depois a experiência, isto é, a encarnação no cotidiano da palavra bíblica na qual se crê; somente depois vem o verdadeiro conhecimento, que não é feito de raciocínios ascéticos mas é intuição contemplativa. “Quem não crê” – escrevia – “não pode compreender. Pois, quem não tem fé, não pode fazer a experiência e quem não é expertus (perito), não conhece. Realmente, como quem faz a experiência de uma coisa sabe mais do que quem só ouviu falar, assim a ciência de quem fez experiência é superior ao conhecimento de quem sabe só por ter ouvido falar”. Uma outra característica de Anselmo foi o amor à mãe de Deus. Eis uma das suas invocações: “Maria, tu és a grande Maria, a mais feliz entre as ditosas Marias: tu és a maior entre as mulheres; senhora, tu és grande, mas tão grande, que o meu coração deseja te amar, e a minha língua deseja ardentemente te louvar”.

23 de abril São Jorge mártir (século IV) “Quem nasce homem novo em Cristo no batismo, não vista mais a roupa da mortalidade, mas deponha o homem velho, revista-se do novo e viva desse modo, com um novo estilo


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de conduta pura e santa. Só assim, purificados da imundície da nossa antiga condição pecadora e brilhando pelo fulgor de uma vida nova, poderemos celebrar dignamente o mistério pascal e imitaremos verdadeiramente o exemplo dos mártires.” 14

Esta é a mensagem que são Pedro Damião fez da figura de são Jorge, cuja festa cai no tempo pascal. O exemplo de todos os mártires nos primeiros séculos era um convite aos não-cristãos à conversão e, nos séculos seguintes, quando o batismo começou a ser ministrado às crianças, estimulava os cristãos a redescobrirem o valor deste sacramento, encarnando com seriedade o evangelho na vida pessoal e da comunidade. São Jorge é um mártir do século III ou IV, certamente antes do edito de Constantino. Sabemos que existiu uma antiqüíssima igreja, construída em sua honra, em Lidda-Diospolis na Palestina. Exceto o fato de ter existido, nada sabemos de certo sobre este santo e devemos nos contentar com aquilo que foi descrito em sua passio (atas do sofrimento) a respeito de seu martírio, historicamente incerta, escrita – diz-se – por seu ajudante de nome Pasicrate. Segundo este autor, Jorge era originário da Capadócia e tornou-se oficial do exército. Convertido ao cristianismo, renunciou a seu ofício e, quando foi preso por causa da fé, enfrentou com firmeza o martírio.

A lenda do dragão À sua figura, foi ligada a famosa lenda do dragão que vale a pena ser contada, pois no imaginário popular queria significar que então a força desarmada do cristianismo estava para triunfar sobre a violência desumana do mal. Próximo da cidade, havia um lago do qual de tempos em tempos saía um horrível dragão que, com seu hálito fétido, matava muitas pessoas inocentes. Para aplacar sua ira, era necessário lhe oferecer vítimas humanas e uma vez coube ao rei do lugar dar-lhe em alimento a própria filha. Mesmo profundamente entristecido, levou-a até o lago, acompanhado por uma multidão de pessoas aos prantos. Quando o dragão saiu das águas para agarrar a jovem, encontrou ao seu lado um cavaleiro, Jorge, que lhe pôs uma corrente ao pescoço e entregou-o à jovem. Iniciou-se a procissão de volta para a cidade: caminhava a filha do rei, ao seu lado o corajoso cavaleiro, levando preso à corrente o monstro que se tornou manso como um cordeiro. 14. São Pedro Damião, PL 144,571.


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Quem permaneceu na cidade, ao ver o dragão, acorrentado e agora inofensivo, teve medo e fechava a porta, e espiava pela janela entreaberta o insólito espetáculo. O cavaleiro garantia a todos, afirmando que ele veio em nome de Cristo para libertar a cidade do dragão e anunciar a todos a salvação através do batismo. O povo percebeu o significado do acontecimento e, a começar pela princesa e sua família, pediram o batismo, deixando para sempre as práticas de escravidão às quais estavam submetidos até aquele momento.

O culto O culto a são Jorge foi e continua sendo um dos mais difundidos no mundo cristão e em todos os lugares sua imagem de cavaleiro com o dragão sob seus pés, se de um lado alimenta a fantasia popular, de outro, instrui também os analfabetos, infundindo nos cristãos a confiança na proteção divina também nos momentos mais difíceis da vida. Na Idade Média, são Jorge se tornou protetor dos cavaleiros e, de maneira particular, dos cruzados; e numerosas igrejas foram dedicadas a ele. Devido a são Jorge, a cidade da Geórgia e os reis da Inglaterra, a começar por Ricardo Coração de Leão, quiseram que ele fosse o patrono da casa real e de suas terras. O imperador Constantino ergueu uma igreja em Constantinopla em homenagem a são Jorge. Entre os povos eslavos, sua figura é muito apreciada. Ainda hoje, é incontável o número de igrejas católicas e ortodoxas dedicadas a ele, em todas as partes do mundo. Talvez a função histórica desses santos envoltos em lendas seja a de recordar ao mundo um só pensamento, muito simples, mas fundamental: o bem, mesmo que demore, vence sempre o mal e a pessoa sábia nas escolhas fundamentais da vida não se deixa jamais enganar pelas aparências.

23 de abril Santo Adalberto bispo e mártir (936 – 987) “Eu me chamo Adalberto, sou da Boêmia por nascimento, monge por vocação, bispo por sagração e agora vosso apóstolo por missão. O motivo pelo qual estou aqui


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entre vós é para vossa salvação, a fim de que possais abandonar as estátuas surdas e mudas e conhecer o vosso Criador, o único e verdadeiro Deus; e crendo nele tenhais a vida e obtenhais o prêmio das alegrias celestes nas moradas eternas”. 15

Assim respondeu Adalberto aos pagãos que, em Tenkitten, na terra da Prússia entre o Noget e a Vistola, haviam-no aprisionado juntamente com seu irmão Gaudêncio e um outro monge. À pergunta dos pagãos a respeito da viagem deles, a Liturgia das horas coloca em sua boca as seguintes palavras: “Era nosso ardente desejo dar-vos não somente o Evangelho, mas também a nossa própria vida, pois, para nós, vós sois caríssimos”. Nasceu por volta de 956 de um príncipe da Boêmia da nobre família dos Slavnic e de mãe alemã, Adilburga, parente do rei Henrique I. Recebeu o nome de Vojciech, que significa socorro da força armada, e foi destinado à vida militar, mas ainda jovem ficou muito doente, à beira da morte e os pais fizeram uma promessa de entregá-lo a Deus se ele recuperasse a saúde. Para cumprir a promessa e encaminhá-lo à vida eclesiástica, no ano de 972, enviaram-no para a famosa escola capitular, em Magdeburgo, colocandoo sob a proteção de Adalberto, o santo bispo daquela cidade. Vojciech era um rapaz muito inteligente e de belo aspecto, amante dos estudos e da vida ascética. Via na promessa dos pais uma manifestação da vontade de Deus e uma particular predileção da mãe de Jesus: escolhido pelo Senhor desde a sua infância para tão nobre missão, desejava corresponder-lhe com todo o zelo. O bispo, por sua vez, via em Vojciech um futuro apóstolo para evangelizar a Boêmia. O jovem correspondeu às expectativas de seu protetor e quando recebeu o sacramento da crisma quis mudar o nome; daí em diante, passou a ser chamado de Adalberto. No ano de 981, retornou à sua cidade natal e naquele mesmo ano Dithmaro, primeiro bispo de Praga, ordenou-o sacerdote. A vida exemplar e a preparação intelectual, a linhagem nobre, tudo isso indicava que ele se tor­ naria seu sucessor. Assim aconteceu em 982. Ao morrer o bispo, o príncipe Boleslau II, o clero e o povo de Praga o escolheram como pastor. O imperador Óton II aprovou a escolha e o metropolita o consagrou na ordem episcopal no dia 29 de junho de 983 em sua sede de Magonza. 15. Acta Sanctorum, abril III, pp. 186-187.


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A grandiosa festa de acolhida em Praga logo contrastou com o estilo de vida do eleito. Entrou na cidade descalço e em seguida propôs que o Evangelho não fosse proclamado como um rito mágico nas festas, mas como norma de vida cotidiana. Ao clero, recomendou a castidade; aos governantes, a justiça; e ao povo, o abandono das práticas das superstições pagãs. Não demorou muito para que Adalberto percebesse que não era fácil evangelizar o seu povo. Depois de seis anos de muito trabalho, não conseguindo extirpar a poligamia, o comércio dos escravos e a bruxaria, e não se conformando com as intrigas entre as famílias nobres e a desobediência do clero, sentiu-se incapaz de exercer o seu ministério de pastor e no ano de 988 resolveu ir a Roma. Expôs ao papa João XV suas dificuldades, depositou em suas mãos seu cargo de bispo e obteve a permissão de se retirar para a vida monástica. Antes de entrar em um mosteiro, fez uma peregrinação até a Terra Santa. Antes, porém, parou em Montecassino e em seguida foi para o cenóbio de Vale das Luzes, onde encontrou o famoso abade são Nilo. Encantado com a vida daqueles monges do rito oriental, Adalberto pediu para ser lá admitido. “Mas o abade Nilo percebeu no seu semblante, mesmo antes das primeiras palavras, o grande merecimento que ele possuía diante de Deus. Tanto que foi dizendo jamais ter visto um jovem assim, com tão grande amor por Jesus Cristo. E lhe disse: “Caríssimo filho, eu te receberei com muito prazer, pois tua admissão não trouxe nenhum prejuízo nem para mim nem para os meus e servirá para ti de rejuvenescimento”.16 Nilo pertencia ao rito grego e com os seus monges tinha fugido da Calábria para se livrar das pilhagens dos árabes da Sicília e foi recebido pelo monges de Montecassino, que lhe entregaram o convento do Valleluce perto de Cassino. Naquela época não era permitido receber na ordem um bispo latino. Então, escreveu uma carta e aconselhou Adalberto a abandonar a idéia da peregrinação aos lugares santos e, quanto antes, retornar a Roma para se apresentar ao abade do convento de Santo Aleixo. Lá encontraria o mesmo estilo de vida monástica, mas sob a proteção direta do papa, e ninguém teria coragem de criticá-lo. Santo Aleixo sobre o Aventino era um dos conventos cedidos pelo papa Bento VII ao metropolita Sérgio de Damasco, que tinha fugido da Síria para 16. Da primeira Vida de Santo Adalberto, do abade João Canapario, retratado in: G. Giovannelli, S. Nilo de Rossano, fundador de Grottaferrata, Abadia de Grottaferrata 1966, p. 208.


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não cair nas mãos dos maometanos. Ele havia renovado a vida monástica com a intenção de acolher os monges que vinham em peregrinação a Roma. Por isso é que entre eles moravam monges gregos e latinos, e ele era muito estimado pelos orientais e pelos ocidentais. Adalberto aceitou o conselho de são Nilo e passou a fazer parte daquele convento. Lá uniu-se também a ele seu irmão Gaudêncio e para os dois se iniciou o período mais bonito de suas vidas. Em abril de 990. A paz monástica para eles não durou muito tempo. Em Praga, as coisas andavam muito mal e a evangelização daquele povo corria graves riscos, não encontrando um bispo à altura daquela missão. O arcebispo de Magonza, depois dos oportunos contatos com os nobres e o povo de Praga, pediu ao papa que enviasse novamente Adalberto. Ele lhe fez ver que seu retorno seria perfeitamente inútil se os habitantes não estivessem dispostos a viver como cristãos. Como a presença de um bispo na cidade representava não só a evangelização, mas também a promoção humana, sobretudo através da escola e da instrução para os filhos dos nobres, prometeram juntamente com o povo que obedeceriam ao seu pastor. Após esta resposta e em obediência ao papa e ao abade, Adalberto retornou à sua terra. Desta vez, tinha um plano diferente. Estava convencido de que a evangelização poderia ter sucesso só se os evangelizadores não trabalhassem sozinhos mas em comunidade e fossem portadores do carisma monástico. Para que a fé se enraizasse nos povos eslavos ou germânicos, não bastava lhes anunciar as verdades cristãs, era preciso apresentar um estilo de vida mais nobre e mais atraente do que aquele que eles tinham vivido até aquele momento. Adalberto partiu de Roma com um grupo de doze monges, inclusive seu irmão Gaudêncio. Chegando à sua pátria fundou a abadia de Brevnov, que em seguida se tornou o centro propulsor da cultura e da evangelização do mundo eslavo. O zelo do santo bispo não se limitou somente a Praga, mas estendeu-se também à Hungria, onde ele administrou o sacramento da crisma ao futuro rei santo Estêvão e colaborou para que se casasse com uma princesa cristã, Gisela, irmã de Henrique II, também reconhecida como santa. Enquanto isso, na sua terra estourava uma luta sangrenta entre duas famílias: a dos Slavnik, seus parentes, e a dos Premislidi. Sua intervenção foi inútil para restabelecer a paz, antes pelo contrário, piorou ainda mais, pois foi acusado de favorecer sua família. Adalberto, não querendo se envolver nesta guerra, novamente deixou Praga no ano de 996 e retornou para o convento em Roma.


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O abade não só o acolheu, mas lhe confiou o encargo de prior, tão grande era a estima que ele possuía junto aos romanos. Nesse meio de tempo, Óton III estava em Roma para ser coroado imperador, conheceu Adalberto e ficou impressionado com sua cultura e santidade. Um homem de tal envergadura não podia permanecer escondido em um convento romano. Enquanto isso, o arcebispo de Magonza retornava novamente à função, pedindo ao papa e ao imperador que enviasse Adalberto a Praga, pois ele era a única pessoa certa para aquela difícil missão. O pobre monge teve de deixar Roma de novo e, acompanhado pelo imperador, dirigir-se para além dos Alpes. Durante a viagem, ficou sabendo que não só os diocesanos não o desejavam, mas na verdade já tinham até assassinado alguns de seus parentes. Depois de ter permanecido algum tempo junto de Óton III como seu conselheiro, aceitou o convite do príncepe Micislau para evangelizar a Polônia. Sua obra de evangelização na Polônia foi um sucesso e ele se dirigiu à Prússia oriental, levando o Evangelho a Danzica. Encontrava-se com os seus monges em Tenkitten, quando eles foram presos pelos habitantes do local. Ele confortava assim os seus companheiros: “Irmãos, não vos entristeçais! Sabei que sofremos estas coisas por causa do nome do Senhor: sua virtude supera todas as virtudes, sua beleza a todas as belezas, seu poder é inenarrável, e sua misericórdia, extraordinária. Então, o que há de mais interessante e mais bonito que entregar nossa vida ao dulcíssimo Jesus?”17 Suas palavras provocaram a reação do chefe dos carcereiros que lhe deu um golpe de lança. Adalberto ainda teve forças para pedir em oração que aquele povo ainda pudesse descobrir o amor infinito de Deus. Era 23 de abril do ano de 997. Os dois companheiros do santo foram libertados depois de um custoso resgate. O príncipe polonês resgatou também o que restava do corpo do mártir e o sepultou na cidade de Gniezno. Dois anos depois, o papa Silvestre II o proclamou santo e no ano 1000 seu amigo imperador, Óton III, elevou Gniezno a arcebispado. Onde quer que tivesse passado, Adalberto tinha espalhado vários con­ventos e seus monges souberam levar adiante com sucesso sua obra evan­gelizadora. 17. Ibid.


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24 de abril São Fidélis de Sigmaringa (1578-1622) “São Fidélis fazia transbordar a plenitude de sua caridade para confortar e auxiliar materialmente o próximo e, abraçando em seu coração de pai todos os infelizes, sustentava numerosos grupos de pobres com esmolas que recolhia de todas as partes. Amenizava o abandono dos órfãos e das viúvas, recorrendo à ajuda dos poderosos e dos príncipes. Sem cessar, ajudava nos cárceres os prisioneiros que podia, com socorros espirituais e materiais; não deixava de visitar com freqüência os doentes; e confortando-os e reconciliando-os com Deus, preparava-os para a última batalha. Este homem Fiel de nome e de fato, excelso na defesa incessante da fé...” 18

No século XVI estava-se bem longe de uma consciência ecumênica. A Igreja Católica se sentia despojada de seus filhos ao surgirem novas igrejas cristãs e estas defendiam com todos os dentes suas conquistas. Freqüentemente, a religião se misturava com a política e a luta se tornava sangrenta. Frei Fidélis de Sigmaringa tentou pôr ordem nesse caos, e procurou fazê-lo com muita caridade, embora não se pudesse subtrair aos limites da mentalidade de sua época. Nesse sentido, dedicou sua vida, mas certamente muito contribuiu para uma convivência menos violenta entre católicos e calvinistas na Suíça.

Uma vida cheia de aventuras, mas polida Ele não nasceu na Suíça, mas na Alemanha, precisamente em Sigmaringa, em 1578, de João Roy e de Genoveva Rosenberger, oriundos das Fiandras e de tradição católica. Seu nome de batismo foi Marco. Obteve muito sucesso nos estudos e, em 1601, tendo terminado brilhantemente o curso de Letras e Filosofia em Friburgo, iniciou na mesma cidade os estudos jurídicos. Interrompeu-os no ano de 1604, quando o conde de Statzingen lhe confiou os seus filhos e outros jovens nobres, para que ele os instruísse e preparasse para a vida. Com eles, fez uma experiência original. Durante seis anos de convivência, girou pela Itália, Espanha e França, permanecendo somente por longo tempo naqueles lugares onde havia coisas interessantes para aprender. Foi uma escola 18. Homilia de Bento XIV na sua canonização. Cit. in: G. Ferrini, Um santo para cada dia, Edições Franciscanas, Cesena 1991, p. 138.


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itinerante, mas séria e rigorosa, conduzida com habilidade pelo mestre e muito apreciada pelos alunos. Estes o admiravam e gostavam de chamá-lo de “o filósofo cristão” por sua retidão e fidelidade à prática religiosa. Naquele período, Marco aprendeu as linguas italiana e francesa, e leu muitos livros. Retornando à pátria, entregou os alunos e retornou aos estudos jurídicos. Em um ano completou o curso e se laureou em direitos canônico e civil, iniciando logo em seguida a profissão de advogado em Colmar na Alta Alsácia. Lá recebeu o título de “advogado dos pobres”, pois considerava uma honra defender gratuitamente as causas dos mais deserdados e fazer com que seus direitos fossem respeitados. Por causa de sua fama de brilhante advogado e por proposta do conde de Hohenzollern-Sigmaringen, foi nomeado conselheiro da regência em Esisheim, sempre na Alta Alsácia.

O advogado famoso se torna capuchinho Sua carreira estava indo muito bem, quando surpreendeu a todos com uma decisão imprevista. Abandonando “códigos e coletâneas de leis”, aos 34 anos ordenou-se sacerdote e entrou para a ordem dos capuchinhos de Friburgo, na Suíça. Escolheu os capuchinhos que tinham a fama de ser uma ordem muito severa, em que se revivia o primitivo espírito franciscano. Mudou de nome e passou a ser chamado de Frei Fidélis e fez com muito empenho o ano de noviciado, como testemunha um manuscrito seu daquela época, intitulado Exercícios espirituais. Quando terminou o noviciado, permaneceu ainda um ano em Friburgo e depois foi mandado a estudar teologia em Constança e em Frauenfeld por quatro anos. Em seguida foi nomeado guardião de vários conventos, o último deles foi em Weldkirchen, onde se tornou estimado por todos não só pela sua pregação, mas sobretudo pela sua dedicação para com os empesteados quando esse flagelo golpeou toda a região. Não obstante, Frei Fidélis ter sempre ocupado o cargo de superior, con­ tinuou a missão de pregador. Seus discursos eram breves, incisivos e con­vin­ centes. Sabia falar para os doutos e para os simples. Mas, sobretudo, con­vencia pela santidade de vida.

No caminho do martírio Naquele tempo a Suíça estava atravessando um período particularmente difícil: a discórdia entre católicos e calvinistas se transformou em declarada luta política contra o imperador da Áustria, que apoiava os católicos.


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Frei Fidélis procurava acalmar o ambiente, mas não podia ir contra a própria consciência e com sua palavra e seu exemplo convencia facilmente os camponeses a retornar à religião de seus pais, sem se enredar no campo político. Essa maneira de agir suscitava preocupações. A animosidade chegou ao máximo quando o conde Rodolfo de Salis se convertu ao catolicismo e o governador Baldirone dos Grigioni promulgou um edito a favor dos católicos. Os calvinistas temeram que cantão perdesse a independência e se tornasse submetido ao imperador, e alguns deles decidiram raptar o frade. Convidaram-no para pregar em uma igreja de sua vila, fingindo que queriam voltar ao catolicismo. Frei Fidélis foi avisado do perigo, mas respondeu aos amigos: “Se me matarem, aceitarei de boa vontade a morte por amor de nosso Senhor. Acreditarei que será uma grande graça”. Quando subiu ao púlpito, encontrou um bilhete: “Hoje você pregará pela última vez”. Ele falou com uma linguagem angustiada que tocava no coração daqueles bons camponeses, mas de repente se ouviu um tiro de arma de fogo, foi uma grande confusão dentro da igreja, pois todos procuravam fugir. Frei Fidélis percebeu o que estava acontecendo, desceu do púlpito e se dirigiu para a saída do templo. Lá, vinte e cinco homens armados estavam esperando por ele. Ele foi preso e o intimaram a se retratar de tudo quanto havia dito na igreja. Calmamente, ele respondeu: “Não posso, é a fé de vossos avós. Para que que vocês retornem a esta fé, eu entrego de boa vontade a minha vida”. Um dentre eles golpeou a cabeça com um bastão, ele apenas teve tempo de pronunciar as palavras de perdão: “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que estão fazendo”. Enfurecidos, atacaram-no e seu corpo foi barbaramente esquartejado, como era costume à época nesse tipo de contenda. Seu sacrifício não foi inútil, pois sua morte tocou o coração de muitas pessoas e apressou a pacificação entre os adversários, fazendo que encontrassem um modo mais humano e mais evangélico de convivência. Hoje, o seu corpo repousa na catedral de Coira, recordando aos cristãos de todas as igrejas a necessidade da mútua compreensão.

25 de abril São Marcos evangelista (século I) “Tu quiseste que os santos mistérios de Cristo, teu Filho, princípio de redenção e de vida, fossem conhecidos mediante a Sagrada Escritura por obra de homens


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iluminados pelo Espírito Santo. Assim, as palavras e os gestos do Salvador, encontrados nas páginas imortais dos evangelhos, são confiados à Igreja e se tornam semente fecunda que nos séculos faz germinar frutos de graça e de glória.” 19

Marcos, como os outros evangelistas, ouviu e nos transmitiu a pregação apostólica, para nos encorajar no seguimento de Cristo. Seu interesse não foi o de simplesmente passar uma doutrina, como faziam os filósofos, falando a respeito de Jesus, queria nos ajudar no início do caminho da fé para que nos encontrássemos pessoalmente com ele na comunidade eclesial.

Sua vida Ele possuía dois nomes: um hebraico, João, que usava entre os seus conterrâneos; outro, grego, Marcos, para se apresentar no mundo grecoromano. Para aqueles que tinham freqüentes contatos com aquele meio ambiente, o uso de dois nomes era comum. Segundo uma tradição antiquíssima, sua mãe, Maria, no tempo da paixão do Senhor, muito provavelmente já era viúva. Sua família era abastada, tinha um relacionamento íntimo com o Mestre, pois colocava à sua disposição a casa em Jerusalém e o jardim próximo, na colina das oliveiras. Na grande sala de sua casa foi celebrada a última ceia e naquele mesmo local reuniram-se os apóstolos, da paixão até pentecostes, para se tornar depois a igreja doméstica da primeira comunidade de Jerusalém. Depois da última ceia, quando Jesus e os apóstolos se deslocaram para o monte das oliveiras, João Marcos foi com eles e dormiu nas dependências do pequeno sítio. Inesperadamente foi acordado pela agitação dos guardas que tinham vindo para prender Jesus. Levantou-se e, ainda enrolado em um lençol, foi ver o que estava acontecendo. Os soldados prenderam-no, “mas lançando ele de si o pano de linho, escapou-lhes, despido”.20 Marcos acompanhou todos os acontecimentos dolorosos da paixão, e depois os gloriosos da ressurreição e de pentecostes, e passou a fazer parte na comunidade cristã juntamente com sua mãe e Barnabé, seu parente. Quando este em 44, procedente de Antioquia, aonde tinha sido enviado 19. MA I, 934-935. 20. Marcos 14,52.


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pelos apóstolos, veio a Jerusalém juntamente com Paulo, Marcos escutou a narração dos acontecimentos que os dois fizeram sobre a difusão do Evangelho naquela cidade cosmopolita e, quando retornaram, quis segui-los. Uniu-se a eles na primeira viagem apostólica até Cipro, mas quando eles se dirigiram a Perge para atravessar os terrenos pantanosos e escalar as montanhas de Tauro para chegar à Antioquia, Marcos não teve coragem para enfrentar tantas dificuldades e retornou a Jerusalém. Novamente, em 49, encontrou-se com Barnabé e Paulo, que retornavam a Jerusalém para resolver com os apóstolos a espinhosa questão dos cristãos vindos do paganismo sem se submeter às práticas da Lei mosaica, e soube de quantas maravilhas aconteceram naquelas regiões, de que tanto tinha medo. Tomou coragem de novo e foi com eles para Antioquia. Quando Paulo e Barnabé prepararam uma outra viagem apostólica para visitar e confirmar as jovens comunidades cristãs, Marcos se ofereceu de novo para acompanhá-los, mas encontrou a rejeição determinada e absoluta de Paulo, que não queria levá-lo, pois ele poderia se tornar um impedimento para a realização de seu programa. Finalmente, ficou decidido que Paulo partiria para a Ásia Menor acompanhado de um outro discípulo, Silas, mais habituado às canseiras, enquanto Barnabé iria a Cipro com Marcos. Sabemos pelas cartas paulinas que mais tarde Marcos se tornou um fidelíssimo colaborador de Paulo e não teve medo de segui-lo até Roma. Em 61, de fato, estava junto com o Apóstolo que estava preso esperando para ser julgado. Naquela ocasião, Paulo escrevendo aos colossenses, mandou saudações de “Marcos, primo de Barnabé”, e acrescentou: “Se este for ter convosco, acolhei-o bem”.21 Paulo ainda falou a respeito de Marcos na segunda vez que foi preso em Roma. Escrevendo a Timóteo, que se encontrava em Éfeso e lhe pedindo que viesse a Roma para ajudá-lo, pediu: “Toma contigo Marcos e traze-o, porque me é útil para o ministério”.22 Talvez tenha chegado a tempo de rever o apóstolo dos pagãos e para assistir a seu martírio, mas certamente permaneceu na cidade dos Césares e se colocou a serviço de Pedro, que naquela época também estava na capital do império, e foi-lhe particularmente “útil no ministério”, como seu intérprete. 21. Colossenses 4,10. 22. 2ª Carta a Timóteo 4,11.


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Segundo uma tradição antiquíssima, Pedro, quando viu que a comu­ nidade estava bem consolidade na fé, enviou o seu caríssimo discípulo à Alexandria do Egito. Lá Marcos teria fundado a igreja e encontrado o martírio. Suas relíquias foram guardadas cuidadosamente pelos cristãos do Egito até o ano de 1419, quando os venezianos, com o pretexto de protegêlas contra o perigo de cair nas mãos dos muçulmanos e de se perderem, acabaram trazendo-as para sua cidade. Hoje elas se encontram na belíssima basílica que traz exatamente o mesmo título de São Marcos.

Seu evangelho Mas a obra mais bela que Marcos nos deixou é sem dúvida alguma o seu evangelho, considerado atualmente o mais antigo. Ele não viveu com Jesus desde o início como os outros apóstolos, “mas” – escreve Vaccari – “como foi colaborador de Pedro na pregação do Evangelho, assim também foi intérprete e porta-voz autorizado na composição do mesmo e por meio deste nos transmitiu a catequese do príncipe dos apóstolos, tal qual ele pregava aos primeiros cristãos, especialmente na Igreja de Roma”.23 Seu estilo não é absolutamente refinado, mas simples e imediato. Marcos escreve quanto escutou ou viu sem se preocupar com a ordem cronológica dos fatos e sem esconder as fraquezas dos apóstolos, nem mesmo as de Pedro, a quem amava com um amor filial. Por isso o seu evangelho é particularmente agradável. Não só ele teve a coragem de descrever até o que o Crucificado, antes de morrer, “gritou com voz forte: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”24, quase como se houvesse uma ruptura entre ele e o Pai, mas logo depois há uma alegria em demonstrar a conversão do centurião aos pés da cruz. Este, de fato, contemplando aquele que no momento não demonstrava nenhum sinal triunfal da sua divindade, antes tinha morrido, esquecido pelo céu e desprezado pela terra, havia exclamado: “Este homem era realmente o filho de Deus!”25 Não seria aquela a profissão de fé que daquela hora em diante afloraria freqüentemente aos lábios de muitos na Roma dos Césares pela pregação 23. Cit. in Bibliotheca Sanctorum, VIII, Cidade Nova Ed.,Roma 1996, 718. 24. Marcos 15,34. 25. Marcos 15,39.


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de Pedro e Paulo? Valia a pena registrá-la em seu evangelho, não só por seu profundo significado, mas também porque o primeiro a pronunciá-la foi, de fato, um soldado romano.

28 de abril São Pedro Chanel mártir e patrono da Oceania (1803-1841) “Não costumava negar coisa alguma aos habitantes de Futuna, nem mesmo àqueles que o perseguiam, desculpando-os sempre e nunca os repelindo, por mais rudes e inoportunos que fossem. Tratava a todos com extraordinária amabilidade, que manifestava de diversos modos, sem excluir ninguém.” 26

Pedro Chanel nasceu em Cuet nos arredores de Bourg-en-Bresse, então diocese de Lyon, na França, aos 12 de julho de 1803 de uma família abastada. Quando freqüentava a escola elementar chamou a atenção do pároco que teve um cuidado especial para com ele, pensando em endereçá-lo ao sacerdócio. Aos 15 anos, Pedro fez a primeira comunhão e naquele momento sentiu a vocação missionária. Dois anos depois, entrou para o seminário menor e levou avante seus estudos sem dificuldade. Quando em 1823 um dos seus professores partiu como missionário para a América do Norte, ele, com outros dois companheiros, queria acompanhá-lo, mas não lhe foi possível porque ainda deveria estudar filosofia por mais um ano. Naquele ano, o departamento de Ain foi separado de Lyon e foi constituída diocese de Belley, onde se difundia a fama do santo curador que realizava maravilhas em Ars, uma das pequenas paróquias da nova diocese. Pedro, ao terminar os estudos de teologia no seminário maior de Bourg, foi ordenado sacerdote aos 15 de julho de 1827 e logo em seguida pediu ao seu bispo para deixá-lo partir para as missões. Este lhe respondeu que a nova diocese era tão pobre de clero e tão necessitada de evangelizadores que ele podia muito bem se exercitar sendo missionário em sua própria terra, ao menos por ora. 26. Do testemunho de um religioso marista, seu companheiro na missão.


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O seu coração estava nas missões Desenvolveu então sua atividade pastoral na diocese como vigário e depois como pároco, suscitando entre os leigos o espírito missionário em plena sintonia com o papa, que em 1829 oficialmente recomendava a todos os católicos que colaborassem com a propagação da fé. Nesse mesmo tempo continuava a cultivar a idéia de poder um dia partir para as missões. Nesse ínterim juntava-se um grupo de sacerdotes diocesanos dispostos a partir para as missões e se empenhavam mais profundamente na prática da pobreza, da castidade e da obediência. Chamavam-se Sociedade de Maria ou maristas e constituíam uma associação diocesana com um responsável escolhido pelo bispo. O criador da sociedade era o sacerdote João Cláudio Colin, que simultaneamente fundava também as irmãs Maristas. No verão de 1833, o fundador foi a Roma para pedir a aprovação pontifícia do novo instituto e para colocá-lo à disposição da Santa Sé para as mis­ sões. A aprovação foi dada e a nova congregação foi indicada como terra de missão a Polinésia. Pedro Chanel, que acompanhava Colin, foi logo inscrito na lista do primeiro grupo que partiria. Retornados a Belley, os maristas se reuniram em capítulo, e no dia 24 de setembro de 1836 elegeram Colin seu superior-geral, fazendo votos em suas mãos. Eram dezenove, entre sacerdotes e irmãos leigos. No fim daquele mesmo ano, o primeiro grupo, com padre Pompallier como vigário apostólico e padre Pedro como pró-vigário, partia para a Polinésia. Depois de uma viagem cheia de aventuras que os obrigou a mudar continuamente o programa, acabaramse dividindo em dois grupos: padre Pompallier com outros ficou na ilha de Wallis e o padre Pedro e o irmão Maria Nicézio, no dia 12 de novembro, desembarcaram na ilha de Futuna.

Os anos difíceis na ilha de Futuna Eles ficaram admirados com a beleza natural da ilha, dividida em duas partes por uma montanha que tinha separado geograficamente duas tribos rivais. O cristianismo até então ainda não tinha chegado lá, mas na ilha já se havia estabelecido um comerciante inglês que, por seus interesses particulares, alimentava a luta entre as duas tribos. Apenas três meses depois que eles chegaram, estourou uma verdadeira guerra entre eles. O rei da tribo mais forte, Niuliki, não querendo que os missionários permanecessem no território


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de seus adversários, obrigou-os a vir habitar primeiro na sua casa e depois em uma habitação próxima, exercendo forte controle sobre eles. Foram anos difíceis seja pelas dificuldades que encontravam junto aos chefes seja também porque não conseguiam falar bem a língua indígena. Em compensação, sua bondade, seu espírito de serviço, sobretudo com os doentes, e a própria liturgia exerciam forte atração sobre o ânimo popular e de modo particular sobre a juventude. Em fevereiro de 1839, um ciclone arrasou a ilha com enormes danos e obrigou as duas tribos a uma trégua e permitiu aos missionários uma maior liberdade de movimento. Da ilha de Wellis veio para ajudar um outro padre e Pedro, que agora já conseguia se comunicar melhor na língua do lugar, fez algumas pregações e conseguiu as primeiras conversões. Infelizmente, a trégua durou pouco. O padre que tinha vindo para ajudar partiu para Wellis; em Futuna a tribo, tradicionalmente mais forte, com a batalha final de 10 de agosto de 1839, desencadeou uma terrível carnificina contra a tribo mais fraca. Embora os missionários estivessem sempre sob o controle dos vencedores e contra eles não houvesse nenhuma acusação de traição, sua vida foi-se tornando cada vez mais difícil. Os chefes, festejando a vitória, atribuíram-na aos seus deuses e, querendo restaurar os antigos usos tribais, viam nos missionários adversários perigosos, portadores, segundo eles, de novidades exóticas que suscitavam a inveja dos antigos deuses da região.

Da morte renasce a vida As coisas pioraram quando perceberam que os jovens simpativazam com os missionários e abraçavam de boa vontade a fé cristã. Por fim, o filho do rei, o príncipe Meitale, pediu o batismo! Foi a gota d’água que fez transbordar o vaso. A família do chefe se reuniu e pediu a morte imediata do padre Chanel. No dia 28 de abril de 1841, enquanto o irmão Nicésio se encontrava do outro lado da ilha, um grupo de homens, guiados por Musumusu, genro do rei, foi até a cabana do missionário e, com o pretexto de lhe pedir um favor, o arrastou para fora, deram-lhe muitas pauladas e Musumusu, depois de ter roubado tudo quanto havia na casa, estourou-lhe o crânio com seu machado. Quando irmão Nicésio retornou, não pôde fazer nada, a não ser avisar a missão de Wellis. A notícia chegou às autoridades francesas que, atingidas em sua honra pelo assassinato de um pacífico cidadão francês, não quiseram deixar o fato passar sem


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uma exemplar punição, também pelo temor de que outros indígenas pudessem se sentir encorajados e repetir ação semelhante. Na ilha, o comportamento do rei e de seus amigos foi reprovado pela população que amava os missionários. Por todos os cantos espalhava-se o medo de uma expedição punitiva que provocasse outras vítimas, mas a intervenção dos maristas junto às autoridades francesas impediu outro derramamento de sangue. Eles pediram somente a restituição dos despojos mortais do mártir. Este comportamento pacificador despertou a admiração nos habitantes de Futuna que quiseram de volta os missionários e em poucos anos todos abraçaram a fé católica. No ano de 1889, padre Pedro Chanel foi reconhecido como beato e no ano de 1954 foi cononizado como mártir e proclamado patrono da Oceania.

28 de abril São Luís Maria Grignion de Montfort (31 de janeiro 1673 – 28 de abril 1716) “Maria é um espaço santo, onde os santos são formados... santo Agostinho chama a santa virgem de forma de Deus, a estampa de Deus... Aquele que foi lançado nesta forma divina é imediatamente formado e estampado em Jesus Cristo, e Jesus Cristo nele.” 27

“Esta citação descerra o sentido mais rico da meditação monforteana sobre Maria, venerada como instrumento da visita de Deus, figura da Igreja, cidade na qual nascem os verdadeiros filhos. Ele personalizou em Maria o mistério da Igreja, levando até as últimas conseqüências desta mística identificação na vida interior e na prática cristã. Uma apaixonada redescoberta da pessoa de Maria, um diurtuno e concreto abandono à sua mediação materna, uma intensíssima vida de relação com ela tornaram possível a Montfort fazer da mãe de Deus não o objeto de uma devoção particular, mas, com certeza e sempre mais, a chave de sua espiritualidade missionária.”28 Mas quem era Luís Maria de Montfort? 27. Monfort, Oração ardente, in Opere, pp. 647ss. 28. B. Papàsogli, Monfort, un uomo per l’ultima chiesa, Gribaudi, Torino 1979, p. 322.


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A opção pelos pobres Grignion e Blain, dois jovens amigos inseparáveis, estavam aproveitando uma bela tarde de sol, correndo juntos pelos campos. Em um determinado momento, porém, Blain percebeu que seu companheiro havia desaparecido. Pensou que fosse uma brincadeira e se colocou à sua procura. Talvez estivesse escondido no bosque ou dentro de qualquer caverna! A brincadeira já durava bastante tempo, quando lhe passou pela mente a suspeita de que aquele louco tivesse ido à procura dos pobres. Dirigiu-se diretamente para um casebre não muito distante, onde vivia “um mendigo inocente, ignorante e muito maltratado pela natureza”29, que não fazia mal a ninguém, mas que suscitava o interesse dos moleques que se divertiam todas as vezes que ele aparecia na cidade à procura de esmolas. Luís, ajoelhado, acariciava-lhe os pés nus e os beijava como fazem os bons camponeses na igreja prostrados diante do crucifixo. Blain parou para observar e não disse uma palavra. A cena não lhe parecia deste mundo: o seu amigo via alguma coisa que para ele no momento lhe escapava. Foi entender um pouco melhor no dia seguinte quando Luís, depois de ter feito uma coleta entre os estudantes para um seu companheiro pobre, procurou um vendedor de roupas, e pondo sobre o balcão todo o dinheiro recolhido, disse- lhe: “Eis um irmão meu e teu. Eu esmolei na escola tudo o que pude para vesti-lo. Se estiver faltando alguma coisa, cabe a ti acrescentares o que falta”. E o mendigo esfarrapado foi vestido com roupas novas. Para Luís, o pobre não era um simples indigente para ser despachado com qualquer esmola, mas o sacramento especial da presença de Cristo entre os homens. Deus havia-lhe mostrado com clareza desde a infância e desde então ele jamais poderia esquecer.

Os primeiros passos nos estudos Nasceu em 31 de janeiro de 1673 de João Batista Grignion e de Joana Robert de Vizeule na pequena cidade de Montfort-sur-Mer na Bretanha, era o segundo filho de dezoito irmãos. Seu pai, advogado, trabalhava duro para sustentar uma família tão numerosa e sua mãe administrava com extremo cuidado a casa, encontrando sempre alguma coisa para dar aos pobres. 29. A descrição é do mesmo Blain in: Abrégé de la vie de Louis-Marie Grignion de Montfort, Centro Internazionale Monfortano, Roma 1973, no 17.


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Ainda cedo Luís foi enviado ao tio sacerdote em Rennes para estudar no famoso colégio dos jesuítas, onde aceitavam gratuitamente os estudantes pobres. Depois de dois anos, toda a família Grignion se mudou para aquela cidade, para que também os outros filhos tivessem a possibilidade de estudar. O pai se orgulhava de Luís e já o via ocupando mais tarde altos cargos na sociedade. Mas bem depressa se conscientizou de que o amor exagerado daquele filho pelos pobres tornava-o um pouco estranho não só a seus olhos, mas também diante das outras pessoas. Será que ele não percebia que era da classe burguesa e que um bom cristão certamente deveria ajudar os pobres, mas sem exagerar? As discussões sobre esse assunto tornavam-se muito calorosas e às vezes também ásperas, sobretudo à mesa e amiúde Luís, para não faltar com o respeito ao pai, retiravase em silêncio sem terminar o almoço ou o jantar. Afinal, aquilo que dava aos pobres, em certo sentido, era seu. Havia um jesuíta no colégio que o compreendia verdadeiramente: era Descartes, sobrinho do famoso filósofo, considerado o pai da filosofia moderna. Quem sabe quantas vezes em seus encontros pessoais o bom jesuíta terá descrito diante dos olhos luminosos do jovem Grignion a figura do seguidor de Cristo: “Sem dinheiro, bens, lar, reservas, desprovido de tudo, não tendo mais nada entre as criaturas, para possuir unicamente só a Deus...”30 Foi nesse ambiente que floresceu sua vocação ao sacerdócio. Não lhe ocorria a idéia de permanecer em uma paróquia, mas a de ir pelo mundo anunciando o Evangelho a todos, especialmente aos pobres. Uma jovem, de família nobre, veio a Paris para tratar de negócios com o advogado Grignion, permaneceu por algum tempo em sua casa e percebeu que aquele jovem estudante tinha talentos fora do comum e ficou sabendo de sua aspiração ao sacerdócio. Por que não enviá-lo a Paris para um daqueles esplêndidos seminários, famosos pelas ciências e santidade? O pai ficou satisfeito com os elogios que a senhorita de Montigny fazia a respeito de seu filho, mas quanto a enviá-lo a Paris, ele lhe explicou que ainda tinha outra dezessete bocas para alimentar. A nobre senhora não se deu por vencida e se ofereceu para levar consigo uma das filhas deles, Teresa, que desejava se tornar freira: para esta havia conseguido o dote necessário. Quanto a Luís, tinha escrito de Paris, dizendo que havia encontrado uma pessoa amiga que estava

30. De Fiores, Itinerário espiritual de são Luís Maria de Montfort, Dayton (Ohio) 1974, p. 48.


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disposta a lhe pagar sua estadia no seminário. Seus pais não se opuseram, mas derramaram algumas lágrimas na partida de Teresa. No fundo, para eles se tratava de duas bocas a menos para alimentar e para os filhos duas carreiras respeitáveis a alcançar.

Rumo à cidade das luzes Depois de algum tempo, chegou a notícia de que Luís era esperado em Paris. O pai lhe pôs mas mãos dez escudos e a mãe lhe confeccionou uma roupa nova. Tinham também pensado em lhe dar um cavalo, mas ele não quis que a família se sacrificasse demais. Um triste adeus, de poucas palavras e muito afeto, e Luís foi a pé pela estrada de trezentos quilômetros para chegar a Paris. Durante um pequeno trecho, acompanharam-no o tio sacerdote, o irmão José e talvez o amigo Blain. Chegados à ponte de Casson, despediram-se e Luís atravessou o rio. Para ele, era como se a ponte tivesse sumido, agora era só olhar adiante sonhando com a vida dos apóstolos. Tinha apenas saído dos estreitos limites de uma terra que ele conhecia a dedo, quando ouviu um gemido de um pobre à beira da estrada. Para Luís, era Jesus que vinha ao seu encontro. Ele aproximou-se do desconhecido, e colocoulhe em suas mãos os dez escudos de ouro que o seu pai havia economizado para a viagem e para as primeiras despesas em Paris; depois tirou a roupa nova que sua mãe lhe havia feito com tanto cuidado e a trocou com os farrapos do mendigo; em seguida abraçaram-se e Luís retomou o seu caminho levando no coração uma alegria tão grande, jamais experimentada antes. Agora era também um pobre, poderia viver de esmolas. A viagem durou oito dias e chegou à capital tão desfigurado e malvestido que não teve coragem de se apresentar naquele estado à sua benfeitora. Conseguiu um alojamento provisório em uma estrebaria e uma mão caridosa lhe deu um pouco de comida e uma roupa mais decente.

No seminário dos pobres A senhora de Montigny, mesmo tendo feito tudo de sua parte, não conseguira encontrar para ele um lugar no colégio de São Sulpício, pôde só lhe arranjar uma pequena ajuda econômica que lhe permitiria ser aceito em uma casa para seminaristas pobres, administrada pela caridade de um santo


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padre, Cláudio Bottu de la Barmondière, já pároco de São Sulpício. Para Luís, era o cêntuplo que a providência lhe mandava. O regulamento da casa parecia ter sido feito para vir ao encontro dos seus desejos mais profundos: “Os pobres estudantes eclesiásticos viviam em comum... em honra da vida pobre, desprezada e laboriosa que Jesus levou durante trinta anos em sua vida escondida... Longe de se sentir confuso com sua condição de pobre, consideravamse honrados, pois Jesus a havia tornado gloriosa em sua pessoa, em seus mais caros amigos e em todos os seus ensinamentos”.31 Os estudantes freqüentavam as aulas no famoso Seminário de São Sulpício; quando retornavam à casa deveriam realizar todos os trabalhos domésticos: limpar os cômodos, cortar a lenha, lavar as roupas, cozinhar e, além de tudo isso, encontrar tempo para estudar e visitar os pobres. Luís admirava o padre Cláudio e lhe confiava sua direção espiritual; o santo sacerdote, de sua parte, correspondia a tal confiança e o conduzia nos caminhos da santidade, fazendo-lhe descobrir de maneira nova a realidade de Maria, venerada pelos estudantes “como a senhora e a dona da casa”. Não havia ainda passado um ano no encanto desta experiência, quando sua benfeitora se encontrou na impossibilidade de lhe dar a habitual ajuda econômica. Para comprar pão, Luís precisava percorrer as ruas de Paris durante algumas horas, pedindo esmolas, e três vezes na semana velar os mortos no necrotério da paróquia de São Sulpício. Lá numa noite ele rezou por um príncipe que tinha sido morto quando saía de um prostíbulo. Uma outra vez, por uma das mais belas damas da corte, cujo semblante em poucas horas se tornou irreconhecível. Passava as noites em oração, meditando sobre as últimas realidades da existência humana. Em casa reinava um clima fraternal e havia sempre um pedaço de pão que, se não matava inteiramente a fome, assegurava a subsistência. Assim foi por um ano, pois, em setembro de 1694, o benfeitor deles morreu de repente e eles tiveram que procurar outro lugar. Alguns conseguiram entrar no colégio de São Sulpício, enquanto Luís, com alguns companheiros, foi acolhido por um outro sacerdote, Francisco Boucher. Para sobreviver, todos os alunos deviam pedir esmolas diariamente. Foram dois anos terríveis por causa da fome e do frio de inverno. 31. Manuscrito do Arquivo de São Sulpício, cit in: B. Papàsogli, op. cit., p. 58.


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Naquelas condições, Luís ficou tão fraco que foi preciso interná-lo em um hospital, certos de que estavam de sua morte iminente. Mas, ao contrário, aconteceu um duplo milagre: ele se recuperou e a sua benfeitora de Paris tendo explicado a situação de Luís a uma senhora rica, esta se ofereceu para lhe pagar a mensalidade no colégio de São Sulpício.

No seminário, sem fome Parecia-lhe inacreditával não passar mais fome, poder estudar e orar sem preocupação de outro gênero. A espiritualidade do seminário impelia os estudantes a “viverem soberanamente para Deus, em Cristo Jesus nosso Senhor, de modo que suas disposições interiores penetrassem no mais íntimo do nosso coração”.32 Quando terminou o curso do seminário, Luís não freqüentou mais as aulas para tirar o doutorado. Depois de ter ouvido por anos tantos mestres, sentia a necessidade de parar para poder organizar em uma síntese vital as verdades da fé. De acordo com o seu diretor espiritual, escolheu permanecer em casa a fim de estudar livros de espiritualidade à sua disposição e aprofundar o conhecimento dos padres da Igreja.

Entre os pobres de Poitiers Aos 27 anos foi ordenado sacerdote. Em seguida, quis partir como missionário para o Canadá para trabalhar entre os índios, mas as circunstâncias o conduziram a Poitiers. Por decreto real, toda a cidade grande deveria ter seu hospital, completamente diferente do que hoje conhecemos. A pobreza era tão espalhada e tão degradante naquela época que, para evitar a invasão das ruas da cidade pela multidão de maltrapilhos, a sociedade “dos homens honestos” – como então se dizia – construía às margens das cidades grandes prédios para dar acolhida e comida aos miseráveis. Naqueles hospitais havia doentes, miseráveis, delinqüentes, prostitutas. Luís, primeiro como capelão e depois como diretor, pôs mãos à obra com todo o seu entusiasmo juvenil e, compartilhando em tudo, até mesmo no

32. Cf. Oeuvres complètes de M. Olier, cc. 1145-1147.


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alimento, a vida daqueles excluídos pela sociedade que ele tratava com ternura de mãe, ganhou bem depressa sua amizade. Naquele período, conheceu Maria Luísa Trichet que, após ter sido seu braço direito no hospital, se tornaria a co-fundadora das Filhas da Sabedoria. Infelizmente, o sucesso obtido junto aos pobres suscitou a aversão dos conservadores, que provocaram uma revolta contra o sacerdote e conseguiram mandá-lo embora. A paixão que ardia no coração do jovem padre não era o hospital mas a evangelização dos aldeões, de onde vinham em ondas os mendigos dos hospitais. Durante uma breve viagem a Paris para ajudar sua irmã que corria o risco de ser despedida do convento, pois não havia conseguido obter o dote necessário, procurou, entre os seus amigos, companheiros dispostos a segui-lo no ideal da missão. Mas, embora o convidassem a pregar nos seminários e nos conventos e todos admirassem sua sabedoria, ninguém ousou acompanhá-lo em seu projeto de ser missionário dos pobres camponeses.

Breve estadia entre os eremitas O bispo de Paris lhe confiou uma delicada missão – levar a paz e a observância monástica aos eremitas do Mont-Valérien, uma colina fora da cidade. Os eremitas esperavam um homem autoritário e pronto a reprimir qualquer abuso, mas Montfort não abriu a boca, antes se uniu com imensa alegria na observância da disciplina monástica e, por todo o tempo em que permaneceu com eles, tornou-se o eremita mais observante. Até que num certo momento os monges foram-lhe pedir para falar e o escutaram com veneração, agradecendo-lhe porque os tinha ajudado a redescobrir toda a beleza da vocação eremítica. Ele teria permanecido ainda por mais tempo naquele lugar bendito, se não fosse a carta que os pobres do hospital de Poitiers tinham escrito ao bispo. A carta começava com as seguintes palavras: “Nós, quatrocentos pobres, suplicamos humildemente que nosso venerável pastor retorne, aquele que ama tanto os pobres, o Grignion”. O bispo lhe ordenou que voltasse. Seu retorno ao hospital foi triunfal, mas depois de algum tempo percebeu que os dirigentes lhe dificultavam o trabalho. O hospital não era o seu lugar.


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Missionário apostólico Tinha 31 anos e Deus queria que se dedicasse às missões populares. Com permissão do bispo, ele se mudou do hospital para as periferias abandonadas da cidade e começou a pregar aos habitantes do lugar. O povo o escutava comovido, mas mesmo lá algumas pessoas muito influentes obrigaram o bispo a remover aquele padre que pretendia revolucionar a vida daquela gente. Luís não conseguia compreender isso e resolveu viajar para Roma para submeter sua vida ao julgamento do papa, apresentando-lhe sua dispo­ nibilidade para partir como missionário para terras distantes. Clemente XI o recebeu em audiência e o escutou com atenção, e depois concluiu: “Senhor, na França há um campo bastante vasto para exercitar o seu zelo. Não vá para outro lugar. Trabalhe sempre com perfeita submissão aos bispos nas dioceses para onde for chamado, e Deus abençoará o seu trabalho”.33 E, tendo notado a grandeza espiritual de seu interlocutor, nomeou-o “missionário apostólico”. Isso queria dizer que sua missão era abençoada pelo papa. Retomou, sempre a pé, a viagem de retorno e se estabeleceu definitivamente na parte ocidental da França. A Bretanha, o Poitou, l’Aunis, l’Angiò e a Vandea tornaram-se as terras de seu apostolado: percorreu incansavelmente aquelas regiões por dez anos. Nem sempre encontrou apoio dos bispos, algumas vezes até proibiramno de pregar e celebrar, mas Montfort – fiel à ordem do papa – obedeceu sempre sem nenhuma recriminação, vendo também naquelas proibições mais absurdas a mão providencial de Deus que queria conduzi-lo a outros lugares. Chegou a Poitiers descalço, com os pés feridos, o rosto queimado pelo sol, o chapéu debaixo do braço e o rosário na mão. Os habitantes tiveram dificuldade para reconhecê-lo e quando descobriram que era o “missionário apostólico” tiveram medo dele. O que lhes poderia acontecer, se voltasse a pregar agora com a autoridade que vinha do papa? Pediram ao bispo para mandá-lo embora o quanto antes e este, para evitar que se reacendessem os conflitos, convidou-o a deixar a cidade.

“Reconhecei Jesus nos pobres” Luís, no entanto, tinha conseguido a admiração e a confiança de um jovem leigo, Maturino, que passou a segui-lo, tornando-se seu primeiro 33. Grandet, La vie de messire Louis-Marie Grignion de Montfort..., chez Verger, Nantes 1724, p. 100.


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colaborador nas missões. Com ele dirigiu-se a uma localidade vizinha perto do convento onde estava a sua irmã Sílvia e pediu à porteira “a caridade por amor de Deus”. A irmã porteira ficou perplexa diante daquele homem tão esquisito e foi falar com a abadessa. Esta, assim que viu Grignion, pensou que fosse mais um vagabundo e o mandou embora. Quando descreveu às irmãs como uma figura estranha que tinha encontrado, Sílvia exclamou: “Mas é meu irmão”. A superiora fez de tudo para fazê-lo retornar, mas Luís respondeu ao mensageiro: “A abadessa não quis me fazer a caridade por amor de Deus, agora me oferece por amor de minha irmã? Eu lhe agradeço...”34 e continuou o caminho. Episódio semelhante se deu à porta da casa de sua velha senhora ama-deleite. Quando a pobre mulher se deu conta do erro cometido pelo seu genro, foi procurar Luís e, com lágrimas nos olhos, convidou-o a entrar e abençoar sua pobre casa. Desta vez, ele aceitou, fazendo-a porém refletir: “Mãe Andreina, esquecei o Grignion que nada merece, mas pensai em Jesus Cristo que é tudo e reconhecei-o nos seus pobres!...”35 A mesma cena se repetiu em um convento dominicano. Luís se dirigiu ao sacristão e logo o reconheceu: era seu irmão José a quem ele havia ajudado nos estudos. Dirigiu-lhe a palavra: “Meu caro irmão, peço-te que me dês os paramentos para a missa, pois quero celebrar...”. O padre dominicano se ofendeu por ter sido chamado simplesmente de irmão e lhe ofereceu os paramentos mais desgastados. Depois se aproximou de Maturino e lhe perguntou quem era aquele padre assim malvestido. A princípio, Maturino não respondeu, em obediência à ordem de silêncio recebida de Luís, mas por fim não resistiu: “É Luís Grignion de Montfort...”. Terminada a missa os dois se abraçaram e José se lamentou por não o ter logo reconhecido. “Mas eu te chamei de irmão” – disse com um sorriso satisfeito e brincalhão – “o que tu querias mais. Que maior sinal de ternura eu te poderia ter dado?”36

O estilo de suas missões Ele amava transmitir a mensagem evangélica com a própria vida: estes fatos, às vezes pitorescos, permaneciam impressos na memória e sempre mudavam a vida das pessoas que estavam envolvidas. Ele era uma pregação viva pelas estradas 34. Blain, op cit., nn. 263-266. 35. Cf. Grandet, op. cit., pp. 114ss. 36. Ibid., pp. 109 ss.


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do mundo e gostava de cantar: “Quando estou viajando, com meu bastão nas mãos, descalço e sem bagagem, mas também sem preocupação, caminho em grande pompa como um rei no meio de sua corte. Corro pelo mundo como um menino perdido, tenho o humor de andarilho, e todos os meus bens foram vendidos. Ó avarentos, eu vos enganei, pois levo comigo a melhor parte. Vou de ramo em ramo como um passarinho, o meu coração não se cansa jamais, pois nada tenho para carregar...Tenho cem pais e cem mães, em lugar daqueles que eu deixei; tenho cem irmãos e cem irmãs cheios de caridade. Todo o meu luxo e a minha glória são os pobres esfarrapados; se tenho o que comer ou beber é com eles que eu reparto. Se alguém quiser me seguir, seja bem-vindo”. Uma das características de suas missões eram os cânticos. Ele mesmo criava as palavras, utilizando melodias populares de maneira que todos pudessem cantar. A coletânea de seus cantos, ricos de doutrina, tornou-se com o tempo um patrimônio para a Igreja da França. Servia-se também de seus quadros, tendo um bom talento artístico, e depois das missões deixava como recordação uma cruz plantada no lugar mais freqüentado pelo povo.

O fundador Chamado de todas as partes para pregar missões, Grignion obtinha muitos frutos. Quem ouvia sua palavra dificilmente podia resistir à voz de Deus. Um dia, entrou em uma igreja uma jovem vestida de maneira provocante e se sentou no primeiro banco, fixando-o com olhar de desafio. Tinha vindo de propósito para que ele fizesse um dos habituais ataques contra a vaidade das mulheres, para depois falar mal dele na roda dos amigos. O missionário a viu e falou do amor de Deus de tal maneira que a jovem provocante num certo momento prorrompeu em lágrimas. Quis falar com o pregador e depois de algumas horas Bénigne, a bela filha do rico funcionário da cidade, já havia amadurecido o seu propósito: desafiando parentes e amigos, deixava o mundo e se entregava a Deus no convento das clarissas. Luís ouvia que a obra das missões poderia renovar, a partir de dentro, a vida da Igreja e então poderia expandir-se e continuar, mesmo depois de sua morte. Mas onde encontrar companheiros e sucessores? Havia-os buscado, em vão, no Seminário de Paris. Lembrou-se de Blain, o amigo com o qual havia partilhado o caminho de formação desde a infância. Agora ele era cônego em Rouen e conselheiro de João Batista de La Salle. Foi procurá-lo na esperança de ganhá-lo para sua causa.


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O encontro foi frustrante. Blain – como ele mesmo conta – perguntou-lhe “qual era o seu desígnio e se esperava encontrar pessoas dispostas a segui-lo na vida que levava. Uma vida assim pobre, dura, abandonada à providência, era para os apóstolos, para homens de força, graça e virtude raras, talvez só para ele que tinha inclinação para aquilo e graça... Se quisesse que outras pessoas da Igreja se associassem a seu desígnios e trabalhos, deveria mitigar o rigor de sua vida”. Luís ficou estupefato e lhe perguntou “se achava que se poderia rir de tudo o que Jesus Cristo tinha praticado e ensinado”. Se o amigo conhecesse uma outra alternativa para seguir Jesus de mais perto, que lhe mostrasse e ele deixaria de lado sua vida “pobre, mortificada e sustentada pelo abandono à divina providência...”. Mas não havia alternativa e agora, se Deus quisesse mais tarde juntar a ele algum bom eclesiástico, ficaria feliz com isso, mas era trabalho de Deus, não seu. Depois concluiu que “se a sabedoria consistisse em não fazer nada de novo para Deus ou nada empreender para a sua glória, os apóstolos teriam achado errado sair de Jerusalém; deveriam ter ficado fechados no cenáculo; são Paulo não teria feito tantas viagens, nem são Pedro teria tentado fincar a cruz sobre o Campidoglio (N. do E.: centro administrativo de Roma) e submeter a Jesus Cristo a cidade rainha do mundo... e o mundo seria ainda hoje o que era então...”37 No dia seguinte, os dois se separaram continuando a ser amigos, mas cada um com sua idéia. Também desta vez, Montfort retornou para casa com as mãos vazias e não lhe restava outra arma senão a oração, que com o tempo se tornava cada vez mais inflamada: Peço-te sacerdotes livres com tua liberdade, sem serem impedidos por pai, mãe, irmãos, irmãs, parentes segundo a carne, amigos segundo o mundo; sem bens, empecilhos e preocupações, desapegados de tudo, até mesmo da própria vontade. Peço-te homens segundo teu coração, totalmente dedicados a ti por amor e disponíveis ao teu querer. Nem afastados nem retidos pela própria vontade, novos Davi, tendo na mão o bastão da cruz e a funda do rosário. Peço-te homens livres a fim de voarem para aonde forem impelidos pelo sopro do Espírito Santo, como nuvens que pairam no céu e cheias de orvalho... Peço-te pessoas que estejam sempre à tua disposição, sempre prontas a te obedecer, à voz dos superiores, como Samuel, sempre prontas a correr e a tudo suportar contigo e para ti, como os apóstolos... 37. Blain, op. cit., nn. 331ss.


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Quando virá aquele dilúvio de fogo do puro amor, que se deve acender sobre toda a terra de modo assim doce e veemente para alcançar e converter pagãos, muçulmanos, judeus e todos os povos? 38

No final da vida terrena, Montfort terá ao seu lado alguns leigos e dois sacerdotes, um adoentado e tímido, Renato Malot, e o outro jovem e inexperiente, Adriano Vatel. Mas, pela chama monforteana acesa nos seus corações, eles se tornaram os dois primeiros pilares da Campanhia de Maria. Mais afortunado foi ele com as Filhas da Sabedoria. Maria Luísa Trichet, por ele acolhida e formada no hospital de Poitiers, já trabalhava por dez anos e, com ela, uma outra senhora de grande valor, Caterina Brunet. O espírito das duas fundações era o mesmo, mas aos sacerdotes Montfort recomendava sobretudo sua dependência de Maria, enquanto que entregava as irmãs à divina Sabedoria da cruz. “A finalidade interna das Filhas da Sabedoria” – lê-se no número 1 do manuscrito da regra – “é a aquisição da divina Sabedoria. A finalidade externa é tríplice, segundo suas inclinações: 1) instrução das crianças da cidade e da zona rural em escolas gratuitas; 2) assistência aos pobres nos hospitais e fora deles, doentes ou não, curáveis ou incuráveis; 3) além da direção das casas de formação quando forem chamadas”.

O mistério de Maria Mas a obra-prima de Montfort será sempre o Tratado da verdadeira devoção a Maria. “Este livro, deixado por longo tempo no silêncio de um cofre e difundido além de um século depois da morte do autor, é agora um clássico da literatura espiritual. Apresenta-se hoje com o particular verniz das páginas que ajudaram muitos a orar. Tem ajudado na formação de santos, tem tornado doce, para tantas almas, o seguimento de Cristo e a experiência da cruz. Ao lê-la, com sua ênfase equilibrada, pode voltar ao leitor o som de certas coisas antigas, que perderam uma parte de seu poder de comunicar; mas é na vital fruição das verdades ali contidas que se chega a perceber o segredo e a saborear a palavra profunda.”39 Ele escrevia com a simplicidade de um catequista e a profundidade de um padre da Igreja: “O modo de agir que as três pessoas da santíssima Trindade 38. Montfort, Oração inflamada, in Opere, pp. 647 ss. 39. B. Papàsogli, op. cit., p. 322.


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adotaram na encarnação e na primeira vinda do Verbo conservam-no sempre e o manterão até o fim dos séculos... Uma mesma mãe não dá à luz a cabeça sem os membros, nem os membros sem a cabeça: se tal acontecesse teríamos um monstro da natureza... Jesus é e sempre será o fruto e o filho de Maria, e Maria é e sempre será a árvore verdadeira que conduz o fruto da vida e a verdadeira mãe que o produz... Cada um que queira ser membro de Jesus Cristo deve ser formado em Maria, por meio da graça de Deus que nela habita com plenitude... A santa virgem é o meio do qual nosso Senhor se serviu para vir a nós; é também o meio pelo qual devemos nos servir para chegar até ele....”40 Terminemos com esta oração que brotou do coração de Montfort: Recorda-te, Espírito Santo, ter formado o filho de Deus com Maria, tua esposa fiel. Formaste nela e com ela a cabeça do corpo místico, por isso com ela e nela deves formar todos os seus membros. Tu não geraste nenhuma pessoa divina no seio da Trindade, mas somente tu fazes dos homens filhos de Deus. Todos os santos do passado e do futuro são obras do teu amor unido à Maria. 41

Quando no dia 28 de abril do ano de 1716, Grignion, durante uma de suas missões, já estava para partir deste mundo, o seu quarto foi invadido bem umas duas vezes pelas pessoas da aldeia. Ele abençoou “os seus pobres”, depois recolheu as suas forças e entoou com os presentes um dos seus cânticos: “Vamos, meus queridos amigos, vamos ao paraíso! Qualquer coisa que aqui se lucra, no paraíso vale muito mais!”. E morreu cantando.

29 de abril Santa Catarina de Sena virgem, doutora e co-padroeira da Itália (1347-1380) “Deste-lhe o dom de penetrar os mistérios insondáveis da tua vida divina e de amar a tua Igreja com um coração grande e apaixonado. No silêncio de uma assídua oração contemplava a tua beleza e diante das discórdias e do cisma, elevava alta e forte a sua voz para que se recompusesse a unidade dos teus filhos.” 42

40. Cf. Montfort, Tratado da verdadeira devoção a Maria, Ed. Montfortane, Roma 1987, passim. 41. Montfort, Oração inflamada, cit., pp. 647 ss. 42. MA I, 942.


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No final da Idade Média, tanto no campo civil como no eclesiástico, os homens se dilaceravam em lutas internas, provocando guerras entre os estados e cismas na Igreja, e pondo em risco a própria sobrevivência da civilização cristã diante do perigo sempre iminente dos muçulmanos. Deus naquele tempo suscitou mulheres como santa Brígida da Suécia e santa Catarina de Sena que, com seus carismas, procuraram pacificar os ânimos e reconstruir a unidade da Igreja, dando uma contribuição, sob certos aspectos, determinantes para a civilização européia. Catarina Benincasa nasceu em Sena em um bairro popular de Fonte­ branda de uma família de tintureiros em 1347. Foi a vigésima quarta dos vinte e cinco filhos de Jacó Benincasa e Lapa Piagenti. Aos 6 anos apareceulhe, num mar de luz, Jesus revestido com os paramentos pontificais e cercado de uma multidão de santos, entre os quais ela reconheceu são Pedro, são Paulo e são João. Aos sete, na presença de Nossa Senhora, desposava para sempre Jesus, tendo plena consciência – como ela mesma dirá mais tarde a seu confessor – do valor que esse voto comportava.

“Uma cela na mente” A mãe, Lapa, bem consciente da situação social das mulheres de então, procurava um bom casamento para suas filhas. Por isso, quando Catarina atingiu a idade de 12 anos, não quis nem ouvir histórias e a noivou com um jovem de Sena. Catarina em sinal de protesto e para se defender cortou os cabelos e se fechou no quarto. A reação dos pais foi muito dura: retiraram-na e a obrigaram aos trabalhos mais humildes e pesados. Catarina não se revoltou, mas com a ajuda do Espírito Santo construiu para si uma cela toda interior, onde convivia com seu Esposo, enquanto que externamente realizava com esmero as atividades domésticas. Mais tarde, aos seus discípulos, imersos nas múltiplas atividade terrenas, poderá dizer: Fazei uma cela na mente, da qual não possais mais sair. A mãe, que não quis renunciar a seu projeto, disse- lhe: “Os cabelos crescerão de novo e logo te casarei”. Felizmente a perseguição familiar cessou, um pouco depois, quando o pai Jocopo, vendo-a rezar, percebeu que aquela filha não era como as outras. Catarina, livre finalmente para seguir a sua vida, pediu para vestir o hábito das Mantelates da Ordem Terceira Dominicana e por três anos se retirou em silêncio quase absoluto em sua casa. Foi um período de oração e de profunda ascese com as provas típicas da noite dos sentidos.


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Esposa de Cristo e mãe da Igreja Aos 20 anos aparece-lhe Jesus com Maria e outros santos, e coloca-lhe um anel de noivado no dedo e, numa visão seguinte, pede-lhe para se dedicar à renovação da Igreja. Assim se concluía o ciclo que se podia chamar de sua vida oculta. Catarina saía para a vida pública, percorrendo as estradas não só da Toscana e da Itália, mas também fora de sua pátria. Seguindo a ascese do tempo, não economizou jejuns e penitências ao seu corpo, flagelando-se até sangrar várias vezes ao dia para obter de Deus a conversão dos pecadores e a reforma da Igreja. Sua caridade para com os pobres e doentes, sua assistência aos condenados à morte e as conversões que se seguiam, logo atraíram atenção e o entusiasmo do povo simples que a considerava como uma santa, mas também as calúnias e as perseguições por parte dos mais críticos. Grande número de personalidades do tempo, homens e mulheres, políticos, cardeais, religiosos e leigos foram tocados pelo seu carisma e se reuniram ao redor de Catarina, escolhendo-a como mãe e mestra e se dirigindo a ela para lhe pedir conselhos não só a respeito da própria santificação, mas também sobre questões importantes da vida pública. As cartas de Catarina, cheias de sabedoria, que circulavam entre seus discípulos, e o movimento espiritual que crescia ao redor de sua pessoa, começaram a preocupar os homens da Igreja. O capítulo geral dos dominicanos de 1374 convocou Catarina, como terciária dominicana, a Florença em Santa Maria Novella para ser examinada a respeito da fé. O capítulo reconheceu sua plena e perfeita ortodoxia e, para evitar no futuro novos problemas, deu-lhe como custódio e confessor frei Raimundo de Cápua. Uma escolha que se revelou providencial, pois o douto religioso compreendeu o carisma de Catarina e colocou sua ciência de teólogo e sua experiência de homem de Deus a serviço daquele mesmo carisma com uma fidelidade admirável.

A paixão pela Igreja Quando Urbano V morreu, pouco depois do infeliz retorno a Avinhão, foi eleito papa Gregório XI. O novo papa, que havia conhecido e admirado santa Brígida da Suécia pouco antes de sua morte, alegrou-se quando soube da influência que Catarina tinha na Itália.


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Catarina, preocupada com as divisões existentes entre os príncipes cristãos, fez de tudo para uni-los e foi a Pisa, que, como república junto ao mar, facilitava o contato com as personalidades políticas do tempo. Em Pisa, na igreja de Santa Cristina, no ano de 1375, recebeu os estigmas, sinal da sua perfeita identificação com o Esposo crucificado, estigmas que permaneceram invisíveis para significar as dores, sobretudo morais, que teria que suportar pela unidade da Igreja.

Em Avinhão, ao lado do papa Uma liga contra o papa, organizada em Florença com outras cidades da Toscana, da Umbria e do Lazio, provocou a excomunhão da “cidade das flores”. Seus chefes, impressionados com as conseqüências econômicas que a sanção eclesiástica provocava, pediram a mediação de Catarina, que aceitou ir até Avinhão para pedir clemência. Fez a viagem, acompanhada por seu confessor e por mais três outros discípulos. Foi recebida e hospedada pelo papa com muita honra, mas, nesse meio tempo, em Florença se reacendeu a rivalidade contra o papa e a intervenção de Catarina foi inútil. A santa não perdeu, porém, seu tempo. Permaneceu em Avinhão por três meses, pois tinha ido até lá não só por causa de Florença, mas, sobretudo, para levar o papa de volta a Roma. Teve com ele vários encontros, falou-lhe da necessidade de retornar à sede romana para começar um séria reforma na Igreja e lhe prometeu todo o seu apoio, antes de tudo com a oração junto a Deus e depois também com sua influência junto aos grandes da terra. Segundo alguns autores43, Catarina, diante da hesitação do papa, recordoulhe o voto feito no dia da sua eleição, quando então ele se comprometeu diante de Deus a voltar para Roma. Tratando-se de um fato pessoal e secreto, jamais comunicado a alguém, o papa ficou profundamente abalado diante daquela revelação e decidiu cumprir o mais rápido possível seu compromisso. Naqueles meses, o papa teve tempo de conhecer a fundo a obra de Catarina e quis-lhe dar um sinal de seu reconhecimento, concedendo-lhe privilégios particulares, como o do altar portátil, de maneira que em qualquer lugar o sacerdote pudesse celebrar para ela a missa, e confirmou frei Raimundo de Cápua como seu guardião e confessor. Destinou-lhe também três outros 43. Cf. Catarina de Sena, La verità dell’amore, aos cuidados de G. Cavallini, Città Nuova Ed., Roma 1978, p. 24, nota 24.


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sacerdotes que, munidos de todas as faculdades, podiam acompanhá-la aonde quer que fosse para atender confissões dos penitentes que se convertiam em grande número à sua passagem. Catarina saiu de Avinhão somente no dia seguinte à partida do papa. Quando chegou a Gênova, o pontífice teve um momento de hesitação e, sob as pressões de eclesiásticos e de familiares, estava a ponto de retornar. Decisiva foi sua intervenção para fazê-lo prosseguir a viagem. Enquanto o papa entrava em Roma, acolhido com grande festa pelo povo, Catarina tinha-se retirado para Sena. Daí, deveria intervir uma segunda vez para a reconciliação entre Florença e o papa. Depois de várias e difíceis tentativas, até mesmo colocando sua vida em risco, pôde assistir à assinatura de paz no ano de 1378, quando o papa Gregório XI já tinha morrido, e para seu lugar tinha sido eleito o papa Urbano VI. Pensava que sua missão já estava cumprida e dedicava a maior parte de seu tempo a ditar a mensagem espiritual, o Diálogo da Divina Providência. Nessa obra, com uma linguagem carregada de sentimento e acessível a todos, apresenta as principais verdades da fé, assim como ela as tinha percebido sob ação do Espírito Santo. Fala da Trindade, da Encarnação do Verbo como manifestação de amor misericordioso de Deus para conosco, da função de Maria na economia da salvação e sobre o caminho espiritual do cristão, da conversão até o dia de seu retorno ao seio da Trindade. Atualíssima é sua visão de Igreja, que, feita à imagem da Trindade, possui por disposição divina o tesouro do sangue de Cristo para distribuí-lo à humanidade através dos sacramentos. O papa, qual doce Cristo na terra é o dispenseiro (assim era chamado o monge que na comunidade guardava os alimentos) do sangue divino e os sacerdotes são os administradores (aqueles que o distribuem). Da Igreja, Catarina se sente filha e mãe ao mesmo tempo: filha, pois, como cada cristão, é gerada nesta vida divina, e mãe, pois Jesus a impulsiona e a regenera para a nova vida, utilizando todos os meios para a sua reforma espiritual. Ela sonhava com uma Igreja santa com bispos pastores e não mais como senhores, e com padres zelosos. Queria-a assim com todo o seu coração, não com uma visão triunfalista do cristianismo, mas para que a Igreja pudesse recompor o mundo em harmonia, dando aos homens “o sangue” de Cristo que gera a paz.


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A paz é a grande visão histórica de Catarina. Para encontrá-la, colocou em ação a reforma da Igreja com três metas bem precisas: antes de tudo, o retorno do papa a Roma, a única pessoa com condição de realizar uma verdadeira reforma na cristandade; em segundo lugar, a renovação do mundo eclesiástico (bispos, padres e religiosos); e em terceiro, a unidade entre os príncipes cristãos, que ela procurou reunir na “santa travessia”, isto é, em uma cruzada não mais concebida como “guerra contra os infiéis”, mas como “missão” para lhes levar a Boa-Nova.

Reformadora das dominicanas e dos dominicanos Catarina estava convencida de que só as pessoas renovadas pelo Evangelho poderiam renovar a Igreja, por isso se dedicou com todas as suas forças à reforma dos frades e das monjas da Ordem de São Domingos, à qual estava ligada como terciária. Nunca tinha havido naquela ordem tantos filhos espirituais com quem se podia contar, e antes de morrer fez que eles prometessem que no próximo capítulo elegeriam como superior-geral o frei Raimundo de Cápua, como depois aconteceu. A reforma pegou impulso na Itália e depois se espalhou na Alemanha, na Holanda, em Portugal e em outros países, levando a Ordem Dominicana masculina e feminina ao espírito das suas origens. Enquanto Catarina estava absorta nesta obra de saneamento moral, um grupo de cardeais impugnou a eleição de Urbano VI e elegeu o antipapa Clemente VII. Catarina correu a Roma para defender o papa legítimo. A convite do pontífice, falou no consistório aos cardeais que permaneceram fiéis, escreveu carta à rainha Joana de Nápoles e a outros chefes de estado, para que todos se alinhassem em defesa do único e verdadeiro vigário de Cristo, e reuniu os chefes da comunidade cristã de Roma, concitando-os com a sua palavra, para que unidos defendessem Urbano VI.

A prova mais dura Esse foi, sem dúvida, o período mais doloroso da vida de Catarina, golpeada no seu maior amor. Agora perguntava-se se tinha feito bem em fazer que o Papa retornasse a Roma, pois se o tivesse deixado em Avinhão talvez não tivesse surgido o cisma. A cada manhã, percorria a pé com afinco o caminho de sua casa até a Basílica de São Pedro onde passava o dia todo em oração, suplicando ao Senhor que restabelecesse a unidade de sua Igreja.


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Faleceu no dia 29 de abril de 1380, com o coração despedaçado pela dor, não tendo podido ver o fim do cisma. Aos seus filhos espirituais que estavam ao redor do seu leito de morte, recomendava, além do amor fraterno, a paixão pela Igreja. Confidenciou-lhes: “Tende por certo, queridos filhinhos, que partindo de meu corpo eu na verdade consumi-o, dei a vida na Igreja e pela Igreja santa, o que foi para mim uma graça muito especial”. Canonizada em 1491, foi declarada padroeira da Itália juntamente com são Francisco de Assis em 1939 e doutora da Igreja em 1970. Foi a primeira mulher, junto com santa Teresa d’Ávila, a ser agraciada com esse título, para significar a atualidade e a universalidade de sua vida e de seu ensinamento. A 1o de outubro de 1999 João Paulo II a proclamou co-padroeira da Europa, juntamente com santa Brígida da Suécia e santa Edith Stein.

30 de abril São Pio V papa (1504-1572) “Eu vos recomendo a santa Igreja que tanto amei. Procurai eleger após mim um sucessor zeloso que só procure a glória do Salvador e não tenha outro interesse neste mundo que a honra da Sé Apostólica e o bem da cristandade.” 44

Foram as últimas palavras de Pio V dirigidas aos cardeais no leito de morte.

De camponês a professor de teologia Nasceu em Borgo Marengo (Alexandria) aos 17 de janeiro de 1504. Seus pais foram Paolo Ghislieri e Domenica Augeria, humildes camponeses. Foi batizado com o nome de Miguel. Somente aos 14 anos conheceu a escola por empenho de um concidadão que o apresentou aos padres dominicanos de Voghera onde, depois de quatro anos de estudos, tomou o hábito de são Domingos com o nome de Miguel Alessandrino. Após o ano de noviciado e a 44. Cit. in: E. Lodi, I Santi del Calendario Romano, Ed. Paoline, Milão 1990, p. 174.


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profissão religiosa, completou os estudos teológicos; aos 24 anos, era sacerdote e começava a lecionar Teologia. Aí permaneceu ensinando por dezesseis anos em vários seminários dominicanos. Por causa de sua preparação teológica e de sua fama de homem piedoso, foi escolhido como ajudante do inquisidor de Pavia e depois foi nomeado inquisidor em Como.

Conselheiro do Papa Conhecido e apreciado pelo Papa, foi chamado a Roma e foi feito bispo e cardeal. Teve de tratar de questões difíceis não somente do ponto de vista doutrinal, mas muitas vezes também de caráter político, como no caso do cardeal Moroni, injustamente acusado de heresia e depois reconhecido como inocente; ou naquele outro caso mais complicado do arcebispo de Toledo, caído em desgraça junto a Filipe II que, para se livrar, tinha-o acusado como herege e o encarcerou. Frei Miguel Alessandrino, agora cardeal Alessandrino Ghislieri, agiu sempre com extrema prudência, sabendo que muitas vezes bastava uma simples suspeita ou então um inconfessado desejo de vingança ou de inveja para desencadear acusações difamadoras. Talvez aquele método não tenha agradado a Paulo IV, que julgava dever desmantelar qualquer sinal de heresia assim que aparecesse, sem dó nem piedade. O papa Carafa achou que Alessandrino era muito fraco, chegou mesmo a duvidar de sua ortodoxia e o ameaçou de prisão. Quando Pio IV sucedeu ao papa Carafa, confiou o Santo Ofício a um colégio de cardeais, reduzindo cada vez mais os poderes do cardeal Ghislieri, a ponto de lhe retirar até mesmo o apartamento no Vaticano onde morava havia vários anos, e pensou que havia chegado o momento de deixar Roma. Anteriormente, tinha-lhe sido confiada a diocese de Mondovani, onde tinha preparado a reforma tridentina a exemplo do vizinho dele, são Carlos Borromeu, seu caríssimo amigo. Estava para partir definitivamente para sua diocese, quando uma grave doença o impediu de fazê-lo e, com a licença do papa, ficou em Roma.

Papa reformador e organizador Com a morte de Pio IV, por proposta de são Carlos Borromeu, em 1566 foi eleito Papa. Para ele, foi uma grande surpresa e para a Igreja, naquele momento


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histórico, um presente providencial. Também santo Inácio de Loyola, que muito havia sofrido com o papa Carafa, sentiu-se aliviado. Alessandrino, por respeito a seu predecessor, que também tanto o havia humilhado, quis chamar-se Pio V. Mudou-se decididamente o próprio conceito de papado. Assim o descreveu o historiador alemão Ludwig von Pastor: “Raramente em um papa o príncipe passou para segundo plano ante o padre como aconteceu com o filho de são Domingos, que então se sentava na cátedra de Pedro. Uma só coisa lhe ia no coração: a salvação das almas. A esse serviço, pôs toda a sua atividade e sob a exigência dela calculava o valor de cada instituição e ação”. Tentou chamar para Roma o cardeal Borromeu, mas este não achou oportuno deixar Milão, onde havia empreendido uma vigorosa reforma eclesial, e lhe enviou um experiente colaborador. Pio V iniciou seus trabalhos pela reforma da Cúria romana e da diocese de Roma. Pela experiência acumulada no passado, reorganizou as congregações romanas sobre novas e eficientes bases, instituiu uma comissão cardinalícia que cuidasse do clero da diocese, fez pessoalmente, e por meio de outros, a visita pastoral a toda a diocese, incentivou a formação dos seminaristas sob a orientação dos jesuítas e dispôs a mesma coisa para as dioceses do Estado pontifício. A todos os bispos ordenou a obrigação da residência e da aplicação dos decretos do Concílio de Trento e iniciou uma profunda reforma também entre os religiosos, para que vivessem segundo o carisma do próprio fundador. O trabalho desenvolvido junto ao Santo Ofício havia-lhe feito com­ preender que muitos mal-entendidos eram fruto de ignorância teológica dos pastores e de falta de catequese nos fiéis. Deu, então, um forte impulso aos estudos teológicos nos seminários, estimulou o estudo dos padres da Igreja e quis que no Ocidente se tributassem aos santos doutores orientais as mesmas honras que até então tinham gozado os doutores ocidentais. Inscreveu entre os doutores também são Tomás de Aquino. Para ajudar os párocos, fez compilar o Catecismo Romano, que se tornou famoso em toda a Igreja. Empenhou-se para que fossem editados os livros litúrgicos do Breviário e o do Missal. Interessou-se também pelas missões, criando uma comissão cardinalícia que se deveria ocupar da evangelização na América, na África e na Ásia.

Os bens da Igreja são para os pobres Em Roma, fez questão de manter um contato pessoal com o povo. Uma vez a cada mês recebia quem se sentia injustiçado e duas vezes na semana


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os que tinham qualquer problema com a burocracia. Procurou melhorar também a economia do Estado pontifício. Tão logo foi eleito papa, decretou que a soma reservada para festas fosse distribuída entre os pobres de Roma: “Os bens da Igreja” – escreveu – “são dos pobres”. Infelizmente, não achou pessoas adequadas e decididas para levar a cabo uma séria reforma econômica como desejava. Deu também o golpe de misericórdia na praga do nepotismo. Ao receber os parentes, que tinham acorrido em grande número após sua eleição à procura de soldos e favores, disse-lhes: “Os parentes do Papa são suficientemente ricos se não viverem na indigência”. A um parente seu, que se havia instalado em Roma para fazer suas atividades, aproveitando seu parentesco com o Papa, mandou que viesse à sua presença e, mostrando-lhe uma vela acesa, disse-lhe: “Antes que esta vela acabe, tu deverás deixar Roma”. Se na reforma interna da Igreja foi seguido com interesse e simpatia, e apoiado consideravelmente pelos santos do tempo, como Inácio de Loyola, Filipe Néri e Carlos Borromeu, não o foi da mesma maneira na política com os Estados. Na França, não conseguiu acabar com a luta sangrenta entre católicos e huguenotes, e, na Inglaterra, as condições de vida dos católicos se agravaram muito depois da excomunhão da rainha Elisabeth. As coisas andaram um pouco melhor na Alemanha, onde conseguiu conservar o principado de Colônia dentro da Igreja Católica, e na Polônia, onde evitou que aquela nação passasse para o protestantismo. Com Filipe II da Espanha, a relação foi difícil e, embora o papa estivesse convencido da inocência do bispo de Toledo, não conseguiu libertá-lo da prisão mesmo depois de o ter trazido para Roma. Uma das glórias atribuídas a Pio V foi a de ter salvo a Europa da invasão dos turcos. Com muita dificuldade, o Papa conseguiu que a Espanha e a República de Veneza se unissem para deter o avanço dos otomanos. A vitória obtida em Lepanto aos 7 de outubro de 1571 ficou como um marco na história da civilização européia. O Papa atribuiu-a à intervenção de Nossa Senhora e instituiu a festa da Senhora das Vitórias logo depois da festa de Nossa Senhora do Rosário.

Em sintonia com os carismas Com Pio V, algo de novo aconteceu na história da Igreja. Enquanto no passado as reformas eclesiais quase nunca partiam da hierarquia, mas da base – e através dos carismas fermentavam a Igreja por dentro – , com o Concílio


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de Trento, e, sobretudo com esse Papa, os carismas e a hierarquia trabalharam unidos e desenvolveram uma extraordinária renovação com o florescimento de santos e de obras jamais vistas no passado. Não é por nada que aquele período foi chamado o “século dos santos”. Pio V morreu a 1o de maio de 1572, consumido pela doença. O povo logo o venerou como santo, mas sua beatificação oficial só se deu depois de cem anos; e, para sua canonização, passaram-se quarenta anos de estudos, porque o reconhecimento de sua santidade teve de passar por muitos e complicados caminhos.


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2 de maio Santo Atanásio bispo e doutor (295ca-373) “Além do estudo e do verdadeiro conhecimento das Escrituras temos necessidade de uma vida correta e de uma alma pura, bem como das virtudes segundo Cristo, a fim de que, caminhando na virtude, o intelecto possa alcançar e compreender o que deseja, de tudo o que a natureza humana possa compreender de Deus Verbo. Efetivamente, sem um intelecto puro e uma vida modelada sobre a vida dos santos, não podem ser compreendidas as palavras dos santos... Assim quem quer compreender o pensamento dos teólogos deve purificar e lavar a alma com a sua vida e se aproximar dos santos através da imitação de suas ações, a fim de que unindo-se a eles mediante a conduta da vida, compreenda o que Deus lhes revelou.” 1

Para Atanásio, o verdadeiro teólogo deve ser um santo, de outra forma ser-lheá impedimento para a compreensão da verdadeira fé. Por isso, desde a juventude ele uniu o estudo à ascética, a contemplação da palavra à sua encarnação. Os seus contatos com Antão, patriarca do monaquismo, não cessavam de o encantar, pois constatava que aquele pobre monge compreendia as verdades da fé muito mais e melhor que tantos outros homens mergulhados nas bibliotecas de Alexandria. 1. Atanásio. A encarnação do Verbo, no 57.


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Atanásio viveu em um período histórico muito difícil para a Igreja que, tendo saído das perseguições, enfrentava dois graves problemas: os relacionamentos com a autoridade imperial e a formulação da verdadeira doutrina dentro da cultura greco-romana. Dois problemas que, se não fossem bem resolvidos, poderiam assinalar também a degeneração e o fim do cristianismo. Constantino havia dado a liberdade à fé cristã, mas, precisando conservar a paz entre os súditos como chefe supremo da sociedade imperial, continuava a se comportar também como “sumo pontífice”, como haviam feito todos os imperadores do passado, e convocava concílios, destituía bispos, apoiava e até mesmo impunha determinadas doutrinas. Como compreender o seu desempenho dentro dos justos limites? E quais eram esses justos limites segundo o cristianismo? A outra espinhosa tarefa prendia-se mais de perto à vida interna da Igreja e se tratava antes de tudo da formulação da doutrina trinitária. A cultura grega na qual se movia o mundo mediterrâneo havia chegado ao monoteísmo e não encontrava dificuldade em aceitar um cristianismo filho do judaísmo, mas para abraçar a fé em um Deus uno e trino era enorme o passo que deveria dar. Daqui provinha a interrogação sobre quem eram exatamente Cristo e o Espírito Santo. Ario dava uma resposta simples e bastante compreensível para a men­ talidade helenística, mas destruía a peculiaridade do cristianismo. Para ele, Jesus era um homem que Deus elevou à dignidade de seu filho, para fazê-lo nosso mestre: um homem extraordinário sem dúvida alguma, mas não obstante sempre um homem. E se Jesus era um homem, também o seu Espírito não poderia ser senão uma criatura. Deus permanecia na sua grandeza solitária e a mente humana não deveria, pois, fazer grandes esforços para aceitá-lo. Neste contexto doutrinal, o cristianismo, inspirando-se nos ensinamentos do mestre Jesus, alcançava a salvação com suas próprias forças. Atanásio percebeu logo os dois grandes perigos e lutou durante toda a sua vida, até mesmo quando o mundo inteiro parecia que se tinha tornado irremediavelmente ariano, dando uma contribuição determinante para o triunfo da verdadeira fé. Mas esta luta lhe tornou a vida particularmente uma grande tribulação.

No turbilhão em Alexandria Nasceu em Alexandria no ano de 295-296 de uma família cristã, recebendo juntamente com a fé uma boa formação literária. Conhecia bem a cultura helênica e a copta, a filosofia e a teologia como eram ensinadas no prestigioso


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didaskaleion da cidade, a mais famosa escola daquela metrópole. Viveu sua infância e sua adolescência no tempo em que se enfurecia a perseguição contra os cristãos, decretada por Diocleciano, e admirou a coragem dos mártires. Assistiu também à controvérsia dos assim chamados lapsi, cristãos que nas perseguições não tinham tido coragem suficiente de enfrentar a morte, e que em tempos de paz pediam para serem readmitidos na comunhão eclesial. Os bispos mais severos, como Melécio de Licópolis, opuseram-se, dando origem ao partido dos melecianos. Na juventude Atanásio conheceu Antão e entre os dois nasceu uma profunda amizade espiritual. Não sabemos se passou um período no deserto, mas certamente foi influenciado pelos valores do carisma de Antão e procurou encarná-los na sua vida cotidiana, vivendo como um asceta. Quando estalou a heresia ariana, ele já era diácono ao lado do bispo Alexandre, bispo que ele acompanhou ao Concílio de Nicéia no ano 325. Uma experiência inesquecível, na qual os padres puderam exprimir claramente e livremente quanto o Espírito queria dizer à Igreja, proclamando que o Filho é “consubstancial ao Pai”. O imperador soube manter-se no seu lugar, limitando-se a respeitar e a fazer respeitar as decisões do Concílio. Ario não quis se submeter a tal decisão e foi excluído da comunhão eclesial. Atanásio tornou-se conhecido e respeitado por muitos bispos, mesmo sendo um simples diácono. Ele já se impunha pela doutrina e santidade de vida. Três anos depois, tendo morrido Alexandre, Atanásio foi aclamado seu sucessor e os bispos, que acorreram para consagrá-lo, aprovaram a escolha reconhecendo que ele era “um autêntico cristão, um asceta, um verdadeiro bispo”.

Sempre em perigo Depois da sua eleição, Atanásio dirigiu-se em visita pastoral à Tebaida entre os monges de São Pacômio. Era importante consolidar a unidade com os monges, pois eles tinham uma grande influência sobre o povo e sua fidelidade à fé nicena podia ser determinante para o bem da Igreja, sem esquecer que seu coração batia muito forte pelo mundo dos ascetas. Pois todos sabiam de sua amizade com Pacômio, que não obstante procurou se esconder temendo que o amigo bispo quisesse ordená-lo sacerdote e envolvê-lo no ministério. Atanásio o compreendeu e lhe perdoou esta fuga. Enquanto visitava aquele imenso território ao redor de Assuan, os melecianos, guiados por um certo João Arkaf, acusaram-no diante do imperador


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de ter sido ordenado bispo ainda muito jovem, de ter imposto tributos injustos aos cristãos, de ter quebrado o cálice sagrado de um bispo meleciano e – coisa inaudita – de ter tramado contra a vida do próprio imperador. Não foi difícil, para ele, se defender dessas grandes falsidades. No final do ano de 332, uma nova infamante acusação: ele teria mandado matar o bispo Arsênio de Ipsele. Também dessa vez foi grande a vergonha pela qual passaram os inimigos. Atanásio tinha ao seu lado os monges e Arsênio, que estava escondido em um mosteiro, compareceu vivo e vigoroso no tribunal. Mas além dos melecianos havia também os arianos para lhe tornar a vida penosa. Estes conseguiram que Ario subscrevesse uma fórmula de fé que poderia, talvez, ser interpretada no sentido ortodoxo, mas sem a palavra “consubstancial”. O imperador pediu a Atanásio readmiti-lo em sua igreja, mas ele não aceitou. Os bispos arianos e melecianos obrigaram-no a convocar um concílio em Tiro no ano 335. Atanásio partiu acompanhado de mais ou menos cinqüenta bispos egípcios, todos fiéis a Nicéia, mas eles foram excluídos da participação nas reuniões conciliares onde se decretou a readmissão de Ario na comunhão eclesial e a condenação de Atanásio. Durante o concílio, Atanásio foi insultado, coberto de injúrias e obrigado a fugir escondido em uma jangada, dirigindo-se a Constantinopla para falar pessoalmente com Constantino.

O exilado Durante um passeio a cavalo, o imperador ouviu as razões de Atanásio e parecia que havia aceitado, mas no dia seguinte decretou o seu exílio para Treviri nas Gálias (hoje Trier na Alemanha). Era o primeiro exílio, durou dois anos e Atanásio aproveitou-os para tornar conhecido naquelas terras o veneno escondido na falsa doutrina ariana e a fantástica experiência dos monges do Egito. Enquanto isso, em Alexandria, os melecianos colocavam como bispo João Arkaf que encontrava uma fortíssima oposição da parte dos católicos e pouco depois era expulso. Depois de sua morte ninguém ousou colocar outro bispo na sede de Alexandria, que como seu verdadeiro pastor reconhecia somente Atanásio. E ele, de onde estava, sustentava a comunidade com as suas cartas, enquanto Santo Antão enviava muitas cartas ao imperador pedindo-lhe que restituísse Atanásio à sua sede. Por ocasião da morte de Constantino em 337, Atanásio, com o consen­ timento dos imperadores do Ocidente e do Oriente, pôde retornar a Alexandria


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e foi acolhido com grandes festividades; no ano seguinte convocou um concílio, no qual foi reafirmada a fé nicena e os bispos egípcios proclamaram sua plena confiança em seu patriarca, informando tanto ao papa quanto aos outros bispos. Os arianos protestaram e escolheram outro bispo, um certo Gregório da Capadócia, e entre tumultos populares empossaram-no em Alexandria, pedindo ao papa um concílio geral para examinar o caso de Atanásio. A confusão atingiu o seu auge e Atanásio achou oportuno distanciar-se da sua cidade, refugiando-se entre os monges. Em vão a polícia imperial procurou encontrá-lo, porque os monges sabiam escondê-lo, continuamente mudandoo de lugar. A convite do papa de então, Júlio I, Atanásio dirigiu-se para Roma para participar do concílio convocado por esse pontífice, enquanto os arianos, que o haviam solicitado, recusaram-se a fazer parte dele. O Concílio romano reconheceu a inocência de Atanásio, mas ele não pôde retornar à sua sede. Foi o segundo exílio. A longa permanência em Roma, do ano 339 a 346, foi – como aquela de Treviri – importante para toda a Igreja, porque Atanásio com a sua presença e a sua palavra fazia todos se conscientizarem do perigo do arianismo que esvaziava a fé cristã do seu conteúdo, reduzindo-a a uma pura doutrina humana, ao mesmo tempo em que ele propagava a experiência do monaquismo egípcio, tanto masculino quanto feminino.

Atanásio, um homem de fé Na primeira das Cartas a Serapião ele escrevia: “A nossa fé é esta: a Trindade santíssima e perfeita é aquela que é distinta no Pai e no Filho e no Espírito Santo, e não tem nada de estranho ou acrescentado de fora, nem é constituída por Criador e por realidades criadas, mas é inteiramente potência criadora e força operativa. Uma é a sua natureza, idêntica a si mesma. Um é o princípio ativo e outro, a operação. De fato, o Pai realiza cada coisa por meio do Verbo no Espírito Santo e, deste modo, é mantida intacta a unidade da Santíssima Trindade. Por isso na Igreja é anunciado um só Deus que está acima de todas as coisas, atua por tudo e está em todas as coisas (cf. Ef 4,6). Está acima de cada coisa obviamente como Pai, como princípio e origem. Atua por tudo, certamente por meio do Verbo. Finalmente atua em todas as coisas no Espírito Santo... É Trindade não só de nome ou por puro som verbal, mas pela sua existência verdadeira. Como, de fato, o Pai é aquele que é, assim


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também o seu Verbo é aquele que é Deus acima de tudo. E o Espírito Santo não é insubsistente, mas existe e subsiste verdadeiramente”.2 Qual é a relação entre Deus uno e trino e a criação? Atanásio a isso nos responde no no 42 do Discurso contra os pagãos: “Depois de ter feito todas as coisas por meio do Verbo eterno e de ter dado existência à criação, Deus Pai não deixa ir à deriva aquilo que criou, nem o abandona a um cego impulso natural que o faça cair no nada. Mas, bom como é, com o seu Verbo, que é também Deus, guia e sustenta o mundo inteiro, para que a criação, iluminada por sua orientação, pela sua providência e pela sua ordem, possa persistir no ser. Ao invés, o mundo torna-se participante do Verbo do Pai, para ser por este sustentado e não deixar de existir. Isso certamente aconteceria se não fosse conservado pelo Verbo, porque ele é a imagem do Deus invisível gerado antes de toda criatura (Colossenses 1,15); pois por meio dele e nele têm consistência todas as coisas, tanto as visíveis quanto as invisíveis, pois ele é a cabeça da Igreja, como nas Sagradas Escrituras ensinam os ministros da verdade” (cf. Colossenses 1,16-18). Entre as criaturas há uma na qual Deus quis resplandecer de modo especial: é o ser humano. Atanásio vê nisso a imagem do Verbo, desfigurada pelo pecado, que o Filho de Deus quis restituir à sua originária perfeição, deificando o ser humano. Mas para fazer isso o Verbo deve ser consubstancial ao Pai. “Se Cristo não fosse propriamente a imagem substancial do Pai, se não fosse Deus senão pelo modo de dizer, por participação, não teria podido nunca deificar ninguém; porque ele mesmo seria apenas um ser deificado. Quem possui uma coisa unicamente por empréstimo não pode, efetivamente, fazer os outros participantes dela, enquanto que aquilo que possui não é algo seu, mas propriedade do doador, e a esmola que recebeu não serve senão para cobrir a sua indigência e a sua nudez”.3

Entre fugas e triunfos No ano 343, seguindo sugestão do papa e de outros bispos ocidentais, os dois imperadores [do Império Romano, o do Oriente e o do Ocidente] permitiram a convocação de um Concílio em Sárdica (a atual Sofia) para voltar 2. Id. Cartas a Serapião no 28. 3. Id., De Synodis no 51.


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a trazer a paz para Alexandria. Os bispos arianos não queriam iniciar o concílio se antes não fosse confirmada a condenação de Atanásio. Presidia a assembléia, em nome do papa, o bispo Ósio de Córdoba. Este, pro bono pacis [por amor à paz], prometeu que, caso Atanásio fosse considerado inocente, não retornaria para a sua sede, mas ele [Ósio] o levaria consigo para a Espanha. Na noite seguinte os bispos arianos abandonaram Sárdica, deixando um escrito no qual reafirmavam suas posições. O Concílio se manteve, o bispo que havia sido instalado ilegitimamente em Alexandria foi declarado deposto e Atanásio foi convidado a retornar. Todavia, o imperador Constâncio não lhe deu livre passagem até o ano 346. E mesmo quando consentiu, Atanásio mostrou-se muito prudente e só depois de ter consultado o Papa retomou o caminho de volta para a sua igreja. Foi um verdadeiro triunfo: em Antioquia o imperador o recebeu com todas as honras; na Palestina, dezesseis bispos festejaram-no com um sínodo e no dia 21 de outubro de 346 chegou a Alexandria, que o aguardava com grandes festividades. Gregório Nazianzeno narra que, ao ingressar Atanásio na cidade, fizeramno montar em um cavalo enquanto diante dele estendiam tapetes multicores e agitavam ramos; era “um caudal de gente, quase um Nilo de vagas douradas, que percorria todo o caminho ao redor do próprio pastor”. A paz voltou à grande metrópole; Atanásio podia dedicar todas as suas forças à difusão do Evangelho no vasto território; recebeu são Frumêncio, apóstolo da Abissínia, e o consagrou bispo para toda a região da Etiópia; e mais de quatrocentos bispos sentiam-se ditosos por lhe declarar fidelidade. Infelizmente a paz não durou por muito tempo, porque depois da morte de Constante, o imperador católico, o poder passou para as mãos de Constâncio que não escondia suas simpatias pelos arianos. Recomeçaram as intrigas com acusações junto ao imperador e junto ao papa Libério. O papa tomou a sua defesa, mas Constâncio reuniu um concílio em Arles no ano 352 e o fez novamente condenar. Depois do pedido do papa, que não aceitou a condenação, reuniu-se um outro concílio em Milão, mas também aí Atanásio foi condenado e Santo Eusébio de Vercelli, São Dionísio de Milão e Lucífero de Cagliari foram exilados. Mais tarde o imperador, decidido a levar ao triunfo definitivamente o arianismo em todo o império, mandou para o exílio também o papa Libério e Hilário de Poitiers. Quando os enviados do império chegaram a Alexandria para eliminar também Atanásio, não conseguiram encontrá-lo. Nesta terceira vez, exilado


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desde o ano 356 ao ano 362, ele precisou deslocar-se continuamente de um lugar para outro, mas nenhum dos seus filhos o traiu, ao contrário, ele podia em qualquer lugar que estivesse reafirmar a fé com a palavra e os escritos e fazer que sua voz fosse ouvida em um mundo que, no modo de dizer de são Jerônimo, parecia que tinha se tornado totalmente ariano. Neste período, Atanásio escreveu várias obras, entre as quais a famosíssima Vida de Santo Antão. No ano 360, Constâncio morreu e o seu sucessor Juliano, que depois se tornou o Apóstata, permitiu a todos os bispos exilados retornarem às suas sedes. Atanásio, em 362, retornou para Alexandria e juntamente com Eusébio de Vercelli, Lucífero de Cagliari e mais cerca de cinqüenta bispos vindos da Arábia, da Líbia e do Egito, reafirmou a fé nicena e preparou um plano para trazer a paz às igrejas, sobretudo no Oriente. Sua obra de pacificação não agradou a Juliano, que pensava reconduzir o império ao seu antigo esplendor restaurando o paganismo, e por duas outras vezes Atanásio teve de retomar o caminho do exílio. O imperador escreveu ao governador do Egito: “Por todos os deuses, coisa alguma eu veria e nada ouviria com maior prazer, feita por ti, do que a expulsão de Atanásio para fora dos confins do Egito, este infame que ousou batizar mulheres gregas insignes sob o meu governo! Seja mandado embora”.

Conquistador de corações Juliano tinha razão, porque Atanásio não só tinha batizado senhoras da alta aristocracia, mas continuava a conquistar para o cristianismo e para a ascese muitíssimas pessoas. Ele mesmo na História dos arianos narrada aos monges tinha escrito: “Muitas jovens que se preparavam para o casamento, prontas para as núpcias, se tornaram virgens por Cristo! Muitos jovens, vendo o exemplo delas, abraçaram a vida monástica! Muitos pais persuadiram os seus próprios filhos e muitos convenceram os próprios pais a não abandonar a ascética cristã. Eram muitíssimas as mulheres que convenceram os seus maridos e outros tantos os maridos que persuadiram as próprias esposas a entregarem-se à oração segundo o preceito do Apóstolo. E quantas viúvas, e quantos órfãos, que viviam na fome e na nudez, foram vestidos e saciados pelo amor vivo do povo!”. Em 363 morria Juliano e Atanásio pôde retornar. O novo imperador Joviano, sinceramente católico, lhe pediu para pacificar a igreja de Antioquia,


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mas ele não o conseguiu. Joviano em pouco tempo faleceu e o seu sucessor, Valente, retomou a triste política religiosa de Constâncio, e Atanásio espontaneamente deixou a sua cidade. Deflagraram-se conflitos e o imperador foi obrigado a chamá-lo. A coragem e a persistência de batalhador aos poucos ia se esgotando; o bispo que sabia governar a diocese, mesmo estando no exílio, era na sua sede amado pelos seus diocesanos e até mesmo respeitado pelos seus inimigos. Agora ele podia dedicar os últimos anos de sua vida ao atendimento direto de seu rebanho, sem deixar de escrever livros e cartas e não deixando de dar os seus conselhos ao papa Dâmaso, de Roma, e aos outros irmãos no episcopado, entre os quais gozava da mais elevada estima. São Basílio, que iniciava o ministério episcopal, o considerava como o único com capacidade de dialogar com todos, porque nenhum como ele “tinha a solicitude com todas as igrejas”. Morreu a 3 de maio de 373. Foi definido por Basílio como “alma grande e apostólica”.

3 de maio Santos Filipe e Tiago apóstolos (século I) “Filipe e Tiago, escutando a voz que os tornou discípulos de Cristo, seguiram a vida e a palavra com tanta fidelidade, que desejaram conhecer-vos, ó Pai, e contemplar abertamente o vosso semblante. Confirmados na fé da ressurreição do Mestre, tornaram-se testemunhas eloqüentes e confiantes do Evangelho.” 4

A Igreja romana celebra no mesmo dia a festa destes dois apóstolos. Eles não são apresentados pela tradição como protagonistas de fatos extraordinários, mas como homens generosos que responderam imediatamente ao chamado divino e, juntamente com outros apóstolos, viveram a divina aventura de colaborar com Jesus que implantou na terra a própria vida do céu.

4. MA I, 954.


Santos Filipe e Tiago

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Filipe de Betsaida era pescador e, ao chamado de Jesus, seguiu-o com presteza. Encontrando Bartolomeu, seu conterrâneo, comunicou-lhe com entusiasmo que havia encontrado o Messias prometido pelos profetas. À resposta incrédula do amigo que não se convenceu, propôs-lhe que fosse ver com os próprios olhos. O Evangelho de João mostra um particular interesse por este apóstolo, referindo a respeito dele algumas passagens. Na primeira multiplicação dos pães, “Jesus disse a Filipe: ‘Onde compraremos pão para que todos estes tenham o que comer?’ (...) Filipe respondeu-lhe: ‘Duzentos denários de pão não lhes bastam, para que cada um receba um pedaço’”. E Jesus realizou o milagre que é conhecido por todos (João 6,1-13). Um outro episódio, sempre narrado por João (João 12,20-25), aconteceu depois da entrada de Jesus em Jerusalém. Alguns gregos, impressionados pela figura do Mestre, dirigiram-se a Filipe, talvez pelo seu nome grego, pedindolhe para serem apresentados a Jesus, e Filipe serviu como embaixador com a colaboração de André. Depois da última ceia, quando Jesus falou do Pai, Filipe lhe pediu: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta”. Esse pedido dá ao Evangelho joanino a oportunidade de nos abrir uma fresta para conhecermos o relacionamento de Jesus com o Pai: “Há tanto tempo que estou convosco e não me conheceste, Filipe! Aquele que me viu, viu também o Pai. Como, pois, dizes: Mostra-nos o Pai... Não credes que estou no Pai, e o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, é que realiza as suas próprias obras. Crede-me: estou no Pai, e o Pai está em mim. Crede-o ao menos por causa destas obras” (João 14,8-11). É um dos textos que mais fortemente testemunha como os apóstolos, só depois da paixão e ressurreição, quando o Espírito Santo for dado, compreenderão em plenitude quem é Jesus. Depois de Pentecostes, Filipe teria atravessado a Ásia Menor e teria se dirigido até a Scítia, a atual Ucrânia, e depois teria ido para a Frígia, e em Gerápolis, capital dessa área, teria sido martirizado em uma cruz decussada, isto é, em forma de X, e de cabeça para baixo. Depois de várias vicissitudes, suas relíquias foram transportadas para Roma e sepultadas na basílica dos Doze Apóstolos. Tiago, o Menor, assim é chamado porque seria de menor estatura em relação ao outro apóstolo, o irmão de São João, que tem o mesmo nome. A única referência certa é que foi apóstolo do Senhor, para tudo o mais devemos confiar nas tradições, hoje dificilmente comprováveis. Segundo


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os estudos mais críticos, ele não seria aquele Tiago que dirigiu a primeira comunidade de Jerusalém. Segundo outras tradições, ele teria sido primo de Jesus, filho de Alfeu e de uma certa Maria que esteve presente aos pés da cruz. Devido a este parentesco com Jesus foi muito estimado e respeitado pelos primeiros cristãos e pelos próprios apóstolos. Fazemos referência aqui aos fatos que encontramos no Novo Testamento, mesmo que não tenhamos certeza absoluta se estão se referindo à mesma pessoa. Paulo, três anos depois da conversão, subiu a Jerusalém e não viu “mais nenhum, a não ser Tiago, irmão do Senhor” (Gálatas 1,19). Em sua segunda visita, depois de 14 anos, o apóstolo relata (Gálatas 2,9-10) que, tendo apresentado o evangelho que ele anunciava aos pagãos, “Tiago, Cefas e João, que são considerados as colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo; iríamos aos pagãos, e eles aos circuncidados”. Por ocasião do Concílio de Jerusalém, Tiago disse: “Julgo que não se devem inquietar os que dentre os gentios se convertem a Deus. Mas que se lhes escreva somente que se abstenham das carnes oferecidas aos ídolos, da impureza, das carnes sufocadas e do sangue” (Atos 15,19-20). Preocupado pela harmonia que devia reinar nas comunidades mistas, formadas pelos cristãos provenientes, seja do judaísmo seja do paganismo, Tiago recomenda alguns comportamentos práticos que evitem escândalos lamentáveis e inúteis. Também na sua última viagem a Jerusalém, Paulo visitou Tiago. Com ele estavam todos os presbíteros da comunidade e Paulo desta vez também narrou todas as coisas admiráveis realizadas pelo Senhor entre os pagãos. Segundo a tradição, no ano 62 a boa fama que Tiago gozava em Jerusalém e o crescimento da comunidade cristã provocaram uma rebelião popular e o apóstolo foi preso e jogado do pináculo do templo e depois morto com um golpe final. Traz o nome de Tiago uma carta apostólica, de sabor sapiencial, dirigida a toda a cristandade. Citamos aqui dela um pequeno trecho, no qual o autor fala da sabedoria que vem do Alto e dirige a vida cristã: “A sabedoria, porém, que vem de cima, é primeiramente pura, depois pacífica, condescendente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade nem fingimento. O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz” (Tiago 3,17-18).


São Pancrácio

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12 de maio Santos Nereu e Aquiles mártires (séculos I ou IV?) “Existem, por assim dizer, duas moedas, a do Senhor e a do mundo, e cada uma delas traz esculpido o sinal próprio: os infiéis trazem esculpida a imagem deste mundo, os fiéis, animados pelo amor, trazem a efígie de Deus Pai, através do semblante de Jesus Cristo. Se nós não estamos dispostos a morrer para imitar a sua paixão, a sua vida não está em nós.” 5

A única informação certa é que Nereu e Aquiles foram dois mártires romanos, que já eram venerados no tempo do papa Dâmaso, no século IV. O papa compôs para eles uma inscrição sepulcral, da qual chegaram a nós alguns fragmentos. Através deles ficamos sabendo que os dois eram soldados romanos martirizados pela fé durante a perseguição de Diocleciano. Uma outra tradição, que se refere a eles, ensina que foram dois irmãos batizados por São Pedro e que estavam a serviço da matrona Domitila, mulher do imperador Tito Flávio Clemente. Juntamente com a patroa eles foram exilados na ilha de Ponza e depois submetidos a dilacerações cruéis em Terracina e finalmente decapitados. Seus corpos, recolhidos pelos cristãos, foram sepultados no mesmo sepulcro de Domitila na via Ardeatina. Deixando de lado suas vicissitudes históricas, que talvez jamais chegaremos a conhecer com certeza, permanece o fato de que testemunharam a fé com o martírio.

12 de maio São Pancrácio mártir (= 304) “Por seu Deus São Pancrácio lutou até a morte, venceu a prova: Cristo foi a sua força. À vida neste mundo preferiu o reino dos céus.” 6 5. Inácio de Antioquia. Carta aos Magnésios, V. 2. 6. Do Responsório da Liturgia das Horas.


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Sua história de adolescente de pouco mais de 15 anos comoveu, desde o início, a piedade popular que conservou viva a sua memória. A ele foram dedicadas numerosas igrejas e mosteiros não só em Roma, mas também em Cantuária e em outros lugares. As informações seguras a respeito de sua vida são pouquíssimas: foi martirizado sob o domínio de Diocleciano, e sobre seu túmulo, no cemitério de Ottavilla, junto da via Aurélia foi edificada a basílica que traz o seu nome. Em uma narrativa posterior lê-se que Pancrácio nasceu em Sinadada, uma cidade da Frígia situada próximo da estrada que conduz a Trôade, em uma região, portanto, evangelizada por São Paulo. Sua família, abastada e talvez de origem romana, não era cristã. Ainda pequeno, Pancrácio ficou órfão de pai e mãe, e ficou sob a tutela de Dionísio, seu tio paterno. Este o conduziu a Roma por dois motivos: o menino havia herdado de seus pais uma propriedade valiosa e na cidade imperial ele poderia receber uma educação digna das tradições familiares. Em Roma, os dois mantiveram contato com a comunidade cristã e depois de um certo tempo pediram o batismo e foram batizados pelo papa Marcelino. Mas pouco depois desatou-se a terrível perseguição de Diocleciano e o tio foi condenado à morte. Pancrácio, ao invés, sendo menor de idade, teve de ser julgado diretamente pelo tribunal do imperador. Diz-se que o próprio imperador quis julgá-lo e, ao seu convite de sacrificar aos ídolos, o jovem teria respondido: “Estou admirado de que me mandeis estimar os vossos deuses, visto que puniríeis com o extremo suplício também um escravo que tivesse uma vida tão depravada quanto a deles”. O imperador ficou pasmado com a firmeza daquele jovem e, depois de ter tentado com elogios e ameaças salvarlhe a vida, precisou destiná-lo à decapitação. A liturgia romana coloca nos seus lábios, enquanto ele caminha para o suplício, esta oração que se encontra nos escritos de são Bernardo de Claraval: “É melhor para mim, Senhor, abraçar-te na tribulação, ter-te comigo no meio do fogo, do que estar sem ti, ainda que fosse no céu”. Pancrácio, pela sua coragem e pela sua fidelidade a Cristo, foi escolhido como modelo e padroeiro dos jovens.

14 de maio São Matias apóstolo (século I) “Muito douto na Lei do Senhor, prudente e perspicaz na explicação da Sagrada Escritura, cauteloso em dar conselhos, agradável na pregação, operador de


São Matias

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milagres, testemunha (do Ressuscitado) elevou as mãos ao céu e entregou o espírito”.

Este elogio se encontra em uma lápide da catedral de Treviri, na Alemanha, que se orgulha, junto com a basílica romana de Santa Maria Maior, de possuir as relíquias de São Matias. Além do que encontramos nos Atos dos Apóstolos a respeito de sua agregação ao colégio apostólico, não sabemos muito mais da sua vida. Eusébio de Cesaréia7 considera-o um dos setenta e dois discípulos do Senhor. É certo que depois da Ascensão, Pedro, encontrando-se no Cenáculo com os apóstolos, Maria e outros crentes, em número aproximado de cento e vinte pessoas, propôs retornar a doze o número dos apóstolos, como quis o Mestre, escolhendo entre os presentes um que tivesse estado com Jesus desde o início. A comunidade apresentou dois candidatos: José, chamado o Justo, e Matias. Depois de uma breve oração tiraram a sorte e esta caiu sobre Matias. No prefácio da festa da liturgia ambrosiana lê-se: “Para que o número dos apóstolos fosse completado, dirigistes um singular olhar de amor sobre Matias, iniciado no seguimento e nos mistérios do teu Cristo. Sua voz uniuse à das outras onze testemunhas do Senhor e levou ao mundo o anúncio que Jesus de Nazaré verdadeiramente ressuscitou e que aos homens tinha descerrado as portas do reino dos céus”.8 As notas que caracterizam os apóstolos são três: a fidelidade no discipulado, ter seguido Jesus desde o início; o encontro com o Ressuscitado, para testemunhar sua ressurreição, não por ter ouvido dizer, mas por tê-la constatado pessoalmente; o mandato, ser escolhido por Deus e enviado. Matias possuía as duas primeiras, enquanto que a terceira a recebeu através da Igreja reunida no cenáculo. Não temos outras informações historicamente seguras a respeito desse apóstolo. São Clemente Alexandrino relata algumas afirmações que no seu tempo eram atribuídas a Matias. Aqui as transcrevemos: “Admirai as coisas presentes, porque elas revelam a grandeza de Deus”9; “Combater contra a carne e submetê-la, não lhe concedendo nenhum prazer ilícito, e crescer na

7. Eusébio de Cesaréia. História eclesiástica, I, 12, 3. 8. MA, I, 961. 9. Clemente Alexandrino. Stromata, II, 9.


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fé e na sabedoria”10; “Se um vizinho de um escolhido peca, também peca o escolhido, porque este se tivesse se comportado como o Verbo prescreve, o outro teria se envergonhado de viver uma vida (má) e não teria pecado”.11

18 de maio São João I papa e mártir (= 526) “Vítima de Cristo pelo exílio forçado, confirmou com o testemunho do martírio a sua missão apostólica.” 12

João era originário da Toscana, mas transferira-se para Roma tornandose diácono dessa Igreja e obtendo a estima do clero e do povo que o elegeram papa depois da morte de Ormisdas no ano 523.

O pastor João exerceu a função papal durante apenas trinta meses, mas deu novo vigor à vida cristã, restaurando igrejas e cemitérios, promovendo o canto sacro e a reforma litúrgica que, depois, será concluída por Gregório Magno; fixou a data para a celebração da Páscoa com o sistema que, seguido por muitas igrejas, perdura até nossos dias, e introduziu a era cristã, iniciando a datação dos atos e fatos não mais pela fundação de Roma, mas a partir da data do nascimento de Cristo. Reuniu também vários concílios na França e na África. Um papa, portanto, que sabia exercer muito bem a sua função na Igreja. Pouco tempo antes da sua eleição, tinha terminado a divisão, até então existente, entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla, sobretudo graças ao imperador Justino Augusto. No Ocidente até esse momento reinava a paz porque Teodorico, rei dos ostrogodos, havia submetido o imperador, obtendo o reconhecimento de rei

10. Id., III, 4. 11. Id., VII, 13. 12. Da inscrição sobre a sua sepultura.


São João I

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da Itália e de exarca do império. De Ravena ele controlava grande parte do Ocidente com o secreto desejo de se tornar senhor absoluto com o apoio de seus temíveis godos espalhados por todos os cantos e quase todos de fé ariana. Para com os católicos tinha se mostrado sempre muito condescendente: admirava a civilização romana e desejava transmiti-la aos seus para fundi-los em um só povo com os vencidos. Para que isso pudesse ser realizado, chamou para a sua corte personagens ilustres como Boécio, Símaco e Cassiodoro. Havia feito uma visita, em Roma, ao papa Ormisdas, detendo-se em oração sobre o sepulcro de São Pedro “como um católico”, fazendo ofertas para a restauração de igrejas e monumentos. O povo da capital teve a impressão de que ele traria para Roma o esplendor dos césares e respondeu com grandes manifestações de júbilo. Teodorico apoiou o bispo de Roma e os católicos para que ficassem ao seu lado, mas quando o imperador Justino Augusto se empenhou pela reconciliação do seu patriarca e dos outros bispos do Oriente com Roma, ele se tornou extremamente receoso, temendo que tramassem contra ele.

O mártir Seus pressentimentos se tornaram certeza quando o imperador emanou um edito no qual obrigava todos os arianos a restituírem as igrejas e a converterem-se ao catolicismo, vendo nisso um golpe baixo contra os godos arianos. Começaram as vinganças. Só porque tinha havido correspondência epistolar com o imperador, Teodorico condenou à morte por traição o cônsul Albino de Roma, a mesma coisa fez a Boécio que havia defendido o amigo e o seu sogro, Símaco, chefe do senado romano e ao sábio Cassiodoro. Teodorico, que até aquele momento demonstrara a todos ser um homem político de grande visão, que sabia governar com sabedoria, se tornou de um momento para o outro um perigoso tirano. Convocou a Ravena o papa João I e constituiu uma comissão formada pelo papa, pelo bispo de Ravena e por quatro ilustres senadores. Eles foram enviados a Bizâncio para obter do imperador a revogação do decreto contra os arianos, a restituição das igrejas que tinham sido tiradas deles e o retorno dos arianos convertidos ao catolicismo à sua fé anterior. Antes de partir, o papa disse claramente que, em consciência, não podia pedir que os convertidos retornassem ao arianismo, porque se travava de uma


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heresia, mas a ordem ameaçadora de Teodorico não admitia réplica. O rei ostrogodo pensava que com o prestígio do papa e com o medo que ele pensava incutir também no imperador teria obtido, como no passado, tudo o que queria. Mas nesse momento os tempos eram outros. Em Constantinopla o papa foi recebido com grandes honras, “como se fosse São Pedro”, seja da parte do imperador seja da parte do patriarca. Foi-lhe oferecido o privilégio de celebrar solenemente o Natal na Igreja de Santa Sofia. Depois, na Páscoa, durante a liturgia, o imperador quis ser por ele novamente coroado. Nunca tinha havido idílio semelhante entre a velha e a nova Roma. O papa obviamente e os seus companheiros falaram do objetivo da sua missão e o imperador prometeu devolver as igrejas aos arianos que não pretendiam se converter, mas nada mais. Teodorico sentiu-se logrado e quando a comissão retornou para a Itália mandou aprisionar as pessoas que a compunham. O papa morreu depois de poucos meses em maio de 526. Seu funeral foi triunfal pela afluência de cristãos, e depois de quatro anos os seus restos mortais foram levados para Roma e sepultados no pórtico de São Pedro, tendo acima uma inscrição que o celebrava como “vítima por Cristo”, símbolo de todos aqueles que se deixam imolar em defesa da fé evangélica e da conseqüente liberdade da Igreja.

20 de maio São Bernardino de Sena sacerdote (1380-1444) “Vós me vedes despojado de tudo e pregado em uma cruz; se me amais, é necessário também que vós vos despojeis de tudo e leveis uma vida crucificada.” 13

Bernardino formou-se ainda jovem na escola do Crucificado. Certa iconografia retratou-o erroneamente como um frágil fradinho de olhar manso e de palavra doce. Mesmo que não possuísse um físico imponente, com a sua estatura moral esse filho de são Francisco passou sua vida fazendo grandes reformas, não só no campo estritamente religioso, mas também no campo social e político. 13. Cit. in: Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / V. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 251.


São Bernardino de Sena

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Os temas que tratava diante das multidões que acorriam para ouvi-lo eram: a unidade, a concórdia, a caridade e a justiça. Censurava sem meiostermos os vícios dos simples cidadãos, mas atacava de maneira cáustica também as injustiças cometidas por aqueles que, detentores do poder, se aproveitavam disso para explorar o povo indefeso. Sua pregação foi como um sopro do Espírito Santo que atravessou toda a Itália setentrional e central, dilacerada então pelas lutas fratricidas entre os guelfos e os gibelinos, e entre as várias famílias da nobreza do tempo.

Da universidade para o convento franciscano Bernardino nasceu em Massa Marittima, na Toscana, em 1380; e ainda criança perdeu os pais e foi educado em casa por duas tias na cidade de Siena, onde lhe deram uma ótima educação cristã sem nenhuma carolice. Desenvolveu-se saudável, com um caráter sincero e decidido, amante da liberdade, mas, contudo, consciente de sua própria responsabilidade. Freqüentou a famosa faculdade da república de Sena e sobressaiu-se nos estudos. Aos 20 anos encontrou-se com são Vicente Ferrer em Alexandria e, atingido pela influência que a palavra inspirada que aquele dominicano tinha sobre as multidões, sentiu forte chamado para se doar a Deus, mas ele não entrou na Ordem de São Domingos. Fascinado pela figura de são Francisco de Assis, na idade de 22 anos escolheu livremente a Ordem Seráfica, onde desejava reviver o primitivo espírito franciscano. Aos 24 anos tornou-se sacerdote e foi viver na colina Capriola, perto de Sena, num pequeno convento dos frades observantes, onde durante doze anos se dedicou aos estudos dos grandes doutores e teólogos, especialmente os franciscanos.

Pregador popular No ano 1417 foi nomeado vigário da província toscana e transferiu-se para Fiesole, dando um forte impulso à reforma que estava sendo realizada na sua ordem. Contemporaneamente iniciou sua extraordinária pregação pelas cidades da Itália. Onde ele se detinha, toda a cidade e todas as autoridades se reuniam para ouvi-lo e, não havendo igreja que pudesse conter tantas pessoas que vinham também de outras aldeias vizinhas, todos se reuniam na praça. Para poder ouvir bem a voz do pregador levantava-se uma bandeirinha móvel


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que mostrava a direção do vento e depois se organizava o palco de tal modo que o próprio vento se encarregava de fazer chegar a todos a palavra. As conversões freqüentemente clamorosas, as reconciliações das pessoas pertencentes a partidos que por tradição se odiavam de maneira mortal, o retorno aos sacramentos dos pecadores endurecidos eram tão numerosos que nem sempre eram suficientes os sacerdotes para atender às confissões e para distribuir a comunhão. Bernardino escrevia e falava muito bem o latim, mas sabia também utilizar com arte a língua do povo. Sua preparação humanística e teológica e o seu amor por todas as pessoas fizeram dele um pregador da doutrina sólida e clara e de linguagem incisiva e acessível tanto para os instruídos quanto para os analfabetos. Sua pregação centrava-se sobre o amor de Deus, manifestandose a nós na pessoa de Jesus salvador. Apresentava a vocação cristã como correspondência a este amor: amar-nos sempre como irmãos, tirar do meio de nós toda injustiça e fazer reinar em toda parte a paz.

Reformador dos costumes E Bernardino recorria sempre à objetividade. Em uma cidade havia luta entre as famílias rivais que dividiam o povo em dois partidos? Ele, então, explicava: “Agora dizei-me, o que é parte? Sabeis o que é? É uma divisão: deste e daquele. Agora dizei-me, o que é a caridade? É unir um ao outro”. Comumente as partes se chamavam guelfos e gibelinos. Bernardino dizia-lhes: “Todas estas coisas são pecado mortal: e este tal guelfo e gibelino é coisa do diabo para a vossa perdição”. Em uma outra cidade havia sido instaurada a tirania? Bernardino explicava com um linguajar florido quem são os tiranos: “Quem possui este vício se apresenta sempre como um benfeitor, mas na realidade é um agiota e um tirano. Existem infelizmente os tira-anos, os tira-meses, os tira-semanas, os tira-dias, os tira-manhãs, os tira-tardes, os tira-noites e por fim os tira-horas. Sabeis quem é o tira-ano? É aquele que tira uma vez por ano. O tira-mês é pior, pois tira cada mês. Pior ainda é o tira-semanas, pois tira cada semana. E o tira-dias é ainda pior, porque rouba tirando cada dia... E o tira-manhã é pior, porque vai toda manhã ao palácio do governo e sempre tira. Assim também o tira-noite. E o que diremos do tira-horas? Podemos dizer que ele sempre tira, rouba e despoja qualquer um que ele encontre. E depois estes políticos querem ser chamados de governadores do povo! A eles convém muito bem um só nome: ladrões!”. E


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dirigindo-se diretamente a esses tipos, freqüentemente sentados na primeira fila, dizia: “Sabeis o que vos digo? Vós sois as excelências zero. Podeis fazer-vos temer por um certo tempo, mas nunca sereis respeitados, antes chegará o dia em que o povo vos desprezará e espalhará urina sobre a vossa cabeça”. Para combater a exploração do pobre, freqüentemente privado até mesmo dos bens essenciais para a existência, explicava: “Eu sei bem que o que vós possuís não é vosso; é de Deus que deu tudo a todos, para satisfazer às necessidades de todos. Se vós tendes muitas coisas e não precisais delas, e se não as derdes, e morrerdes, vós ides para a casa da fornalha (o inferno)...”. Com freqüência as mesmas leis que regiam uma comunidade, um domínio, uma república eram injustas, e observá-las significava perpetuar a injustiça. Bernardino, nestes casos, declarava livres do juramento público oficial e convidava a cidade a fazer novas leis inspiradas no Evangelho. A coisa que mais surpreendia é que as cidades se empenhavam em escutar esse pregador tão claro e exigente, e dele aceitavam as diretrizes. Para que a sua pregação não fosse esquecida facilmente, Bernardino com profunda intuição psicológica a resumia na devoção ao nome de Jesus, e inventou um brasão de cores vivas que era colocado em todos os lugares públicos e privados, substituindo os brasões das famílias e das várias corporações sempre em luta entre elas. Consistia em uma tabuinha, tendo esculpido ou pintado um grande sol, símbolo do amor de Deus, tendo no centro três letras latinas: JHS (Jesus Hominum Salvator), Jesus Salvador dos homens ou da humanidade. Sua pregação lhe proporcionou, evidentemente, adversários que, não tendo a coragem de enfrentá-lo diretamente, recorreram à calúnia acusandoo de heresia junto do papa. Por três vezes Bernardino foi chamado para se defender e sempre saiu vitorioso. Por fim Roma lhe ofereceu o bispado de Sena e, sucessivamente, o de Ferrara e de Urbino, mas jamais quis aceitar.

Reformador de sua ordem Em 1430, Bernardino, nomeado vigário-geral dos Observantes, fomen­ tou a reforma entre os seus frades, aumentando de vinte para duzentos os conventos observantes e tirando dos frades despreparados a faculdade de confessar. Constatando a ignorância existente na sua ordem e no clero em geral, pôs-se a escrever tratados teológicos e deu um forte impulso aos estudos, fundando com esta finalidade uma escola em Perúgia e outra em Sena.


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Quando em 1442 deixou o cargo de vigário, retomou à sua atividade de evangelizador popular. E foi exatamente numa dessas missões populares que Deus o chamou a si, na cidade de Áquila, no dia 20 de maio de 1444. Nessa cidade, “depois de sua morte”, realizou o seu primeiro milagre: a cidade, que não se tinha convertido com a sua palavra enquanto ele viveu, durante três dias desfilou diante de seus restos mortais e decidiu abandonar o ódio. Depois de apenas seis anos, no Pentecostes de 1450, o papa Nicolau V proclamou-o santo, ouvindo a voz do povo que já o havia aclamado como tal ainda em vida. Bernardino abriu o caminho da santidade a muitos discípulos, entre os quais os mais famosos foram João de Capistrano, Tiago da Marca e os beatos Mateus de Agrigento, Miguel Cercano, Bernardino de Feltre e Bernardino de Áquila.

25 de maio São Beda Venerável sacerdote e doutor (672-735) “Peço-vos, bom Jesus, como fostes benigno para comigo e me concedestes as doces palavras da vossa sabedoria, assim concedei-me por vossa bondade chegar a vós, fonte de toda sabedoria, e de permanecer sempre na vossa presença.” 14

Com esta oração o monge Beda concluía a sua História eclesiástica dos anglos. Mas para compreender a extraordinária figura deste doutor da Igreja precisamos conhecer alguma coisa daquele ambiente monástico que tinha se desenvolvido em sua terra natal, a Nortúmbria, uma região que mais ou menos corresponde à atual Northumberland, no nordeste da Inglaterra, limítrofe com a Escócia. Aí, de fato, há um ano apenas do seu nascimento em 672/673, um monge excepcional, Bento Biscop, fundou a abadia de Wearmouth, que em pouco tempo se tornou centro florescente de cultura e de fervorosa vida monástica. 14. Venerável Beda. Storia ecclesiastica degli Angli. Roma, Città Nuova Editrice, 1987, p. 384.


São Beda Venerável

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Monge desde menino Beda, tendo nascido de uma família humilde e talvez órfão de ambos os genitores, na idade de 7 anos foi levado para o mosteiro pelos seus parentes próximos e apresentado ao abade como “oblato”, evitando que o menino terminasse como ajudante ou aprendiz de um patrão sem coração, e assegurando-lhe ao mesmo tempo uma digna formação humana e cristã. Como transparece claramente em seus escritos, o menino estava muito bem no convento e não sofreu nenhum trauma familiar, tendo logo encontrado no abade um verdadeiro pai. O abade logo percebeu as qualidades não comuns que o rapaz possuía e não podendo acompanhá-lo de perto confiou-o ao seu direto colaborador, Ceolfrido. A abadia de Wearmouth estava em pleno desenvolvimento, porque o seu fundador, homem de ampla visão, amante da cultura e da mais autêntica vida monástica, recebia muitas vocações e precisou pensar na fundação de uma outra abadia em Jarrow próximo das margens do Tyne, confiando-a a um grupo de dezessete monges tendo como abade Ceolfrido.

O ambiente em que viveu Bento continuava sendo o responsável pelos dois mosteiros, que estavam onze quilômetros distantes um do outro, neles imprimindo o seu modo de ser. Ele havia viajado muito pela Europa, visitando a fundo dezessete mosteiros, recolhendo de todos os lugares o melhor da tradição, e tinha mantido um relacionamento muito vivo com a Igreja de Roma. Pela veneração aos santos apóstolos Pedro e Paulo, e para manter sempre viva a união com o papa, dedicou a primeira abadia a São Pedro e a segunda a São Paulo. Desta forma, ele quis colocar as bases para evitar, do modo mais absoluto, que os príncipes terrenos se intrometessem na futura eleição do abade e na vida interna dos mosteiros. Tendo de escolher, como observância monástica, entre a tradição céltica e a irlandesa ou a romana, optou decididamente pela de São Bento de Núrcia, do qual quis tomar o nome. Teve a maior urgência de prover logo cada mosteiro de uma ótima biblioteca e de escritos assaz específicos, importando do continente as obras dos padres, livros litúrgicos e também de autores clássicos latinos e gregos. Quando se iniciava a construção da abadia de Jarrow, Beda tinha apenas 10 anos e seguiu Ceolfrido neste empreendimento. Tudo caminhava bem


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25 de maio

até que, em 684, grassou na região uma peste que dizimou drasticamente a população da área e também das duas abadias. Em Jarrow permaneceram vivos somente Ceolfrido e Beda. Mesmo que a abadia estivesse vazia, os dois – narra Beda – cada dia faziam ecoar o canto litúrgico na nave da igreja e em pouco tempo a vida refloresceu exuberante e os dois mosteiros chegaram a conter cerca de seissentos monges. Com desconcertante simplicidade Beda nos descreve como transcorria a sua vida: “Sempre vivi neste mosteiro, onde me dediquei intensamente ao estudo da Sagrada Escritura e à observância da regra e ao exercício cotidiano do canto na igreja; sempre considerei importante o aprender, o ensinar, o escrever”.15 E continua: “Fui ordenado diácono aos 19 anos, padre aos 30, sempre pela disposição do abade Ceolfrido e pelas mãos do bispo João. Desde o tempo em que me tornei padre até a idade de 59, para auxiliar os meus confrades dediqueime a fazer breves resumos dos livros dos santos padres e também acrescentei alguma coisa de meu em harmonia com o sentido da interpretação deles”.16 Eis aqui o elenco de todas as obras escritas até aquele momento, isto é, no ano de 731. São cerca de trinta e sete obras.

Um verdadeiro monge Beda foi antes de tudo um verdadeiro monge, sempre aplicado em compreender a palavra de Deus e a praticá-la. Por isso ele estudava assidua­ men­te a Bíblia – como era costume em todos os mosteiros fiéis à regra – e, para melhor compreendê-la, também os escritos dos padres da Igreja e os autores clássicos da cultura grega e latina. Com os poucos meios de que dispunha aprendeu até mesmo alguma coisa da língua hebraica e progrediu no conhecimento das várias ciências. Devido à sua extraordinária inteligência tornou-se teólogo, gramático, poeta, matemático, naturalista. Foi para o seu tempo uma “enciclopédia viva” e, naturalmente, lhe confiaram a instrução dos monges não só no que diz respeito à sagrada doutrina, mas também no que se refere às cópias, pois ele era um experiente amanuense.

15. Id., p. 382. 16. Ibid.


São Beda Venerável

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Sob a sua direção foi copiado o códice da Bíblia vulgata de São Jerônimo em três cópias: uma para Jarrow, outra para Wearmouth e a terceira para ser levada como presente à Igreja de Roma que havia emprestado o original.

Monge culto e humilde Beda, mesmo sendo admirado e venerado como mestre e santo durante a vida, conservou sempre uma grande humildade e honestidade a toda prova. Consciente de que tudo o que possuía havia recebido como dom da tradição da Igreja, se acrescentava alguma coisa de si, sempre o fazia em sintonia com esta tradição e como luz que dela brotava. Por medo de que alguém atribuísse ao seu engenho pensamentos que ele tomava dos padres, anotava escrupulosamente ao lado do códice as iniciais do nome do autor citado e recomendava aos seus copistas a nunca omitir estes sinais. Os santos padres mais citados por ele são: Agostinho, Ambrósio, Jerônimo, Gregório Magno. Por este último tinha uma veneração especial porque, como apóstolo do seu povo, enviou seus monges a evangelizá-lo. Além dos comentários em latim da Sagrada Página – como era costume chamar então a Escritura –, Beda iniciou a tradução do Evangelho de João para a língua de seu povo, mas apenas tinha chegado ao capítulo 6 quando foi surpreendido pela morte. Infelizmente esta obra perdeu-se. A obra que o tornou famoso foi a História eclesiástica dos anglos, um trabalho que os estudiosos consideram insuperável no seu gênero pelo sentido histórico, pela abundância de pormenores, pelas informações que jamais poderemos ter de outras fontes. O autor se dedicou com empenho e ele, que jamais havia se afastado do seu mosteiro, o fez para ter a possibilidade de interrogar testemunhas e consultar documentos. Foi também o autor do primeiro martirológio escrito com critérios históricos.

Morreu cantando Sigamos a narrativa dos últimos dias de sua vida, da maneira como foi descrita pelo monge Cuthberto na Carta sobre a morte de São Beda, o Venerável.17 17. PL 90,64-66.


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Depois que ele adoeceu, passava o tempo deitado na esteira em sua cela e continuava, como sempre, a orar e a ensinar, ditando as lições ao discípulo que o assistia. Em um certo dia disse-lhe que não havia terminado de ditar a última parte da lição. Beda respondeu: “Escreve logo”. E começou a ditar. Quando terminou, pediu ao jovem monge que o ajudasse a se sentar na esteira para orar. Depois, vendo já próximo o fim, disse ao monge: “No meu pequeno baú existem algumas coisas preciosas, isto é, pimenta, lenços e incenso. Vai logo e traz para mim os sacerdotes do nosso mosteiro, porque quero distribuir para eles estes pequenos presentes que Deus me deu”. Eram os pequenos objetos que cada monge podia possuir para seu uso pessoal. Choravam os monges reunidos ao seu redor, e Beda os consolava: “Eu vivi muito e o piedoso Juiz dispôs bem a minha vida; enfim chegou o momento de arriar as velas, pois desejo morrer e estar com Cristo; de fato, minha alma deseja ver Cristo, meu rei no seu esplendor”. E sentado “sobre o chão de sua cela e cantando: Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, depois de ter nomeado o Espírito Santo exalou o último suspiro”. Aquele que havia louvado a Deus na terra com as muitas modulações da sua voz melodiosa e com a sabedoria da sua pena de escritor merecia entrar no céu cantando. Tinha 63 anos, dos quais 56 vividos no mosteiro. Era o dia 5 de maio de 735. Com a sua vida exemplar e com a sua produção literária tinha colocado bases sólidas para a formação de uma fileira interminável de santos monges. Entre eles recordemos Egberto, arcebispo de York e fundador da escola de grande prestígio da qual saiu Alcuíno que tanta influência exerceu na cultura européia; sem esquecermos os numerosos monges que deixaram a Inglaterra para evangelizar a Holanda e a Alemanha. Com justeza o sínodo de Aquisgrana, no ano de 836, declarou-o “venerável e doutor admirável” e desde então a história o chamará de Venerável Beda.

25 de maio São Gregório VII papa (1020ca-1085) “Depois que, por disposição divina, a Mãe Igreja me colocou no trono apostólico, apesar de eu ser por demais indigno e contra a minha vontade – Deus é testemunha!


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– procurei sempre e acima de tudo que a santa Igreja, esposa de Deus, senhora e mãe nossa, voltando à primitiva beleza que lhe é própria, permanecesse livre, casta e católica.” 18

Nestas palavras, nas quais se percebe a linguagem do tempo, está todo o coração de Hildebrando e o seu programa de reforma da Igreja, aquela reforma chamada exatamente de gregoriana porque, iniciada pelos pontífices precedentes com a sua contribuição e a de outras personalidades como São Romualdo, São Pedro Damião, Hugo de Cluny, etc..., tomou direção decisiva sob o seu pontificado. Muitos estudiosos recentes colocaram em destaque que a reforma realizada por Gregório VII está fundamentada sobre uma espiritualidade. A sua obra, pois, torna-se incompreensível se esquecermos esta perspectiva. “Gregório VII insiste sobre o fato de que todos os membros da Igreja, e não somente os clérigos e os monges, devem ser homens espirituais: e esta insistência constitui-se uma novidade. Assim, pois, quando afirma o direito que a Igreja tem – e cada Igreja particular dentro da Igreja universal – de possuir autonomia jurídica, de ser livre nos confrontos com o poder secular, de elaborar e de aplicar uma legislação própria para poder desenvolver a missão recebida de Cristo, ele contemporaneamente se opõe a qualquer tendência pessoal para o domínio e a riqueza. Todo o seu ensinamento está centrado sobre a realidade de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem: ele pode tudo, mas se fez fraco e pobre para dar a todos um encorajamento, um exemplo e a graça da humildade. Em relação à grandeza de Cristo todo poder real fica relativizado. Daí deriva, em particular, uma concepção muito exigente do sacerdote, ministro de Cristo na sua Igreja. Ao expor esta doutrina, ele usa enfoques que poderemos qualificar de místicos. Fala das orações que os santos fazem por nós. De Maria evoca não só as orações, mas também os méritos. E todos os seus esforços, como reformador, são destinados a preparar o reino escatológico que Cristo, no fim dos tempos, entregará nas mãos do Pai. Sua atividade reformadora lhe oferece a oportunidade de elaborar uma teologia espiritual..., em condições de oferecer o fundamento teológico para aquela imagem de clero reformado e de Igreja renovada, que ele quis colocar à frente das pessoas”.19 18. PL 148,709. 19. Leclercq, J. La spiritualità del medioevo 4 / A. EDB, 1986, p. 162.


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Uma vida atribulada De Hildebrando não sabemos com exatidão nem a data nem o local de seu nascimento, mas somente que desde adolescente se encontrava em Roma, onde recebeu sua formação espiritual e intelectual. É quase certo que tenha sido monge entre os beneditinos de Santa Maria no Aventino. Quando em maio de 1045 foi eleito papa João Graciano, arcipreste de São João na Porta Latina, Hildebrando foi chamado a colaborar com ele. O novo pontífice chamou-se Gregório VI e suscitou muitas esperanças nos homens desejosos de uma reforma na Igreja. São Pedro Damião escreveu-lhe manifestando toda a sua estima e o seu apoio, porque finalmente “a pomba havia retornado para a arca com o raminho de oliveira”. Mas Gregório VI, para afastar da sé de Pedro o indigno Bento IX, havia consentido que fosse paga uma grande quantia pela sua renúncia ao papado. A notícia chegou à corte do imperador Henrique III que veio para a Itália a fim de estabelecer a ordem. Em Sutri reuniu um sínodo de bispos alemães e italianos que intimou os últimos três papas que ainda estavam vivos a se apresentarem, para ser examinada a situação deles. Silvestre III foi declarado deposto, Gregório VI foi convidado a se demitir e a se retirar para Colônia sob o controle do arcebispo do lugar, e Bento IX, que não havia se apresentado, foi condenado no sínodo que o imperador fez realizar-se logo depois em Roma. Aí o imperador indicou como novo papa, e logo todos aceitaram, um amigo seu, o bispo de Bamberga, Suitgero, com o nome de Clemente II, e se fez chamar pela nobreza romana com o título de: “patrício dos romanos”, de maneira que no futuro não fosse possível eleger um papa sem o seu consentimento. Hildebrando acompanhou ao exílio Gregório VI, permanecendo ao seu lado até a sua morte, depois foi viver com os monges de Cluny. Foram três anos particularmente fecundos: trocando idéias com Gregório VI primeiramente e depois com o abade Hugo de Cluny, compreendeu que uma reforma autêntica da Igreja seria impossível enquanto não se eliminasse a interferência do imperador e dos reis na nomeação dos bispos, dos abades e até mesmo do papa.

A investidura leiga Mas a investidura leiga dos cargos eclesiásticos já era uma longa tradição que remontava aos francos e a cristandade a aceitava como um fato normal. Os bispos e os abades não eram também responsáveis pelo bom andamento do


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reino deste mundo? Não deviam administrar a justiça, manter a ordem pública, fornecer dinheiro e homens em caso de guerra? Era, pois, mais do que justo que sua escolha fosse feita pelas mãos do imperador ou do rei, a única autoridade entre os leigos – assim se entendia naquele tempo – investida por Deus com o duplo poder de “rei e sacerdote”. Não era esta também a tradição no império bizantino? Apelava-se também para os exemplos maravilhosos deixados pelo imperador Santo Henrique II e pelo rei Santo Estêvão da Hungria. Naturalmente nenhum imperador ou rei jamais pretendeu transmitir os poderes sagrados ordenando bispos, isto pertencia à esfera sacerdotal, eles reclamavam só o direito de designar os candidatos. Hildebrando e os reformadores desenvolveram uma outra visão, retornando aos primeiros tempos da Igreja, quando a autoridade temporal não tinha voz nenhuma nesta vicissitude. Enquanto o imperador ou quem em nome dele escolhe bispos e abades, e os liga com juramento de fidelidade, os encargos eclesiásticos dificilmente serão confiados a homens dignos, mas serão objeto de interesses humanos até de simonia e seus titulares não serão animados pelo bem da comunidade cristã, mas pela ganância por ouro. Quem poderá exigir de tais homens mundanos que vivam e façam viver os seus padres, por exemplo, o celibato? Não era raro o fato de que alguém comprasse o bispado e, sem nem mesmo se fazer ordenar, permanecendo leigo e casado, administrava os bens do bispado visando seus interesses particulares, pagando um bispo auxiliar para o governo espiritual da diocese. A experiência dava grande razão aos reformadores e de todo canto se levantava o grito do povo cristão que exigia bons pastores. Mas como mudar um costume mais que secular? Quem tinha a coragem de pensar em uma distinção verdadeira entre a Igreja e o império? A teoria mais difundida, também aceita por São Pedro Damião e em um determinado tempo também por Hildebrando, via “sacerdócio e reino”, papa e imperador, harmoniosamente unidos no promover juntos o bem espiritual e temporal do povo. Ninguém, de fato, até aquele momento se admirava que um imperador convocasse um concílio de bispos ou que o papa coroasse um imperador.

Conselheiro de cinco papas Enquanto se refletia sobre problema tão sério, Henrique III, com toda a sua boa vontade, como patrício dos romanos e chefe supremo da cristandade, escolhia o sucessor do papa Dâmaso II na pessoa do bispo Bruno de Toul. O piedoso bispo,


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porém, aceitou com uma condição, que fosse eleito regularmente pelo povo e pelo clero de Roma. Dirigiu-se para a cidade eterna com vestes de peregrino e foi acolhido com muita simpatia e eleito papa com o nome de Leão IX. Ele, antes de se transferir da sua diocese, quis levar consigo o monge Hildebrando e o tornou praticamente um homem de sua total e inteira confiança, confiando-lhe entre outras coisas a reforma do mosteiro beneditino de São Paulo em Roma. Daquele momento em diante Hildebrando tornou-se a alma da reforma e conselheiro de confiança dos papas.

In nomine Domini Foi mediante sugestão sua e de Umberto da Silva Cândida que o papa Vítor II, em 1059, escreveu o decreto In nomine Domini, no qual se estabelecia que a eleição do papa podia ser feita somente pelos cardeais bispos, para depois ser aclamada pelo restante do clero e do povo, e em seguida comunicada por deferência aos príncipes cristãos. O candidato, além disso, podia ser um romano, se os cardeais aí encontrassem “pessoas dignas e capazes”, certamente podiam escolher entre “as pessoas de toda a Igreja”. A norma foi logo aplicada, após a morte de Vítor II, na eleição de Alexandre II. As reações da nobreza romana, que chegou a fazer eleger pelo imperador um antipapa, durou pouco tempo e todos precisaram reconhecer a legitimidade da eleição de Alexandre II. Quando esse papa morreu, enquanto se realizava o seu funeral na basílica lateranense, o povo aclamou papa a Hildebrando. Para não recair no antigo costume, os cardeais bispos rapidamente se reuniram e escolheram, também por unanimidade, Hildebrando para bispo de Roma. Após esta eleição canônica, Hildebrando aceitou e escolheu o nome de Gregório VII em homenagem a São Gregório Magno, que também fora beneditino.

Um pontificado difícil Desde o início do seu pontificado ele anunciou claramente que se empenharia profundamente pela liberdade da Igreja diante de toda interferência política e reafirmou os princípios da reforma. Ele esperava agora encontrar compreensão e apoio por parte de Henrique IV, tanto pelo respeito mostrado no passado pelos seus predecessores para com a sé de Pedro, quanto porque esperava contar com a influência benéfica sobre o soberano da parte de sua mãe, Inês, mulher de profunda fé cristã. Mas enganou-se.


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A primeira dificuldade, porém, encontrou-a em muitos bispos alemães que, tendo desembolsado enormes somas de dinheiro para poder ocupar suas sedes, não aceitavam ser considerados simoníacos e precisar renunciar a elas. Quanto ao celibato, eles tinham ao seu lado a grande maioria do clero. Mesmo que a vida celibatária fosse recomendada e ordenada por lei, o costume era diverso e poucos eram os clérigos que estavam dispostos a observá-lo, excetuando-se aqueles que viviam a vida comum, ligados entre si por um ideal religioso. A maioria dos bispos e dos padres não havia feito uma tal escolha, mas tinha se dirigido para o sacerdócio em busca de uma profissão que lhes desse o pão de cada dia. O mau humor era tão grande que surgiram revoltas contra aqueles bispos que exigiam a observância das disposições papais. Nesse momento, Henrique IV colocou-se abertamente contra o Papa e continuou a dar investiduras a bispos e abades de sua preferência sem nem mesmo consultar o Papa. Por fim acabou elegendo o capelão de sua corte, Teobaldo, para bispo de Milão em contraposição a Aton, eleito dois anos antes pelo papa, e criou ao redor do bispo de Ravena um núcleo de bispos da Itália setentrional contrários a Gregório. Por fim, o cardeal Hugo da Silva Cândida e o prefeito de Roma, Cêncio, passaram-se para o lado do imperador. Cêncio, na noite de Natal de 1075, entrou na igreja de Santa Maria Maior, golpeou o Papa enquanto ele celebrava a missa, arrastou-o e o prendeu em uma torre. O povo, depois de um primeiro momento de perturbação e de surpresa, libertou o Papa no dia seguinte e o levou para a igreja para continuar a missa. Foi por intervenção do Papa que Cêncio não foi linchado pela multidão. Hugo da Silva Cândida e Cêncio fugiram rapidamente para a Alemanha, para a corte de Henrique. A reforma encontrava inimigos por todos os lados: os patrícios romanos porque não podiam mais dispor do papado para os seus interesses; os bispos príncipes e o clero casado porque não queriam renunciar aos benefícios adquiridos segundo a antiga tradição; a corte imperial porque via minada a sua supremacia no governo da cristandade, não podendo mais dispor dos ricos bispados e das riquíssimas abadias.

Luta aberta com Henrique IV Henrique, instigado por Hugo da Silva Cândida, reuniu os bispos e os príncipes alemães em Worms. Muitos bispos ficaram perplexos diante das graves acusações levantadas contra o papa e alguns não quiseram nem mesmo tomar parte na convocação, mas os presentes subscreveram uma carta que o


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imperador mandava “a Hildebrando não mais Papa, mas um falso monge”, ordenando-lhe: “Abandona a sede apostólica usurpada, tu que foste condenado pelo juízo de todos os nossos bispos e pelo nosso. Nós, Henrique, rei pela graça divina, com todos os nossos bispos, te declaramos deposto do trono”. A carta foi lida durante uma reunião do sínodo romano e suscitou grande indignação. Gregório neste ponto entendeu que a medida estava já cheia e excomungou o imperador, desobrigando do juramento de fidelidade ao imperador os seus vassalos. Era fevereiro de 1076. Na Alemanha foi um Deus nos acuda. A cristandade estava habituada a ver as intervenções do imperador nos assuntos internos da Igreja, mas jamais tinha visto um papa excomungar um imperador. Os inimigos de Henrique – e não eram poucos – coligaram-se e os seus amigos ficaram surpresos, também porque parecia que a maldição papal estava já produzindo os seus frutos amargos entre os desobedientes: morreram de maneira inesperada Cêncio e o arcebispo de Utrecht. Bispos e príncipes apresentaram a Henrique estas condições: dentro de um ano ele devia se libertar da excomunhão e depois apresentar-se a uma dieta em Augusta na presença do Papa para ser novamente reconhecido como o rei deles. O papa, tomando conhecimento disso, colocou-se logo em viagem. O mesmo fez Henrique. O encontro entre os dois aconteceu no castelo de Canossa na presença da marquesa Matilde e do abade Hugo de Cluny. Depois de três dias de espera do penitente fora do castelo, sob a neve, Henrique foi recebido pelo papa. Foram dias terríveis para ambos. Para Henrique, porque não estava acostumado à humilhação; para Gregório, porque estava interiormente travando um combate entre o perdão, que como pastor não podia negar, e o seu faro diplomático, que lhe preanunciava a falsidade do arrependimento. Por fim cedeu às pressões de Matilde e de Hugo e readmitiu Henrique na comunhão com a Igreja, mas sob duas precisas condições: assim que tivesse voltado para a Alemanha deveria enviar uma escolta para levar o papa para Augusta e que deveria se apresentar para se submeter ao seu juízo e dos bispos e príncipes da Alemanha. Assim que se sentiu livre da excomunhão, Henrique esqueceu toda promessa e, tendo armado bem o seu exército, primeiro derrotou os seus inimigos internos, depois marchou decidido contra Roma levando consigo um antipapa, o arcebispo de Ravena Guiberto. Foi novamente excomungado, mas desta vez sem grandes conseqüências. Sua primeira tentativa de tomar Roma não conseguiu sucesso e os romanos o constrangeram a fugir. Ele retornou depois de dois anos, usando


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a força e a astúcia da corrupção e realizou o seu desejo, fazendo-se coroar imperador pelo antipapa. Gregório foi socorrido pelos normandos do sul da Itália, mas esses saquearam Roma de tal maneira que levantaram os romanos contra o Papa, o qual se viu constrangido a refugiar-se em Salerno, onde morreu a 25 de maio de 1085, pronunciando estas palavras que se tornaram famosas: “Amei a justiça e odiei a iniqüidade, por isso morro no exílio”.

Uma derrota ou um novo início? A atividade de Gregório não se limitara somente a lutar pela liberdade da Igreja. Ele teve um olhar de predileção para com os países escandinavos, aonde fazia pouco tempo que tinha chegado a pregação do Evangelho. Para suprir suas necessidades e estabelecer aí um clero local, solicitou o envio de jovens que, formados em Roma na fé cristã, pudessem depois inculturá-la no país de origem. Também na Espanha, onde estava sendo realizada a famosa “Reconquista”, ele fez ouvir a sua voz, exortando os cristãos espanhóis a respeito de outras crenças, recordando-lhes o mandamento evangélico de não fazer aos outros aquilo que não queremos que seja feito a nós. Enfim, um outro grande desejo seu era a reunificação com a Igreja de Constantinopla, ajudando-a a libertar-se do domínio muçulmano. Infelizmente não teve tempo de se ocupar concretamente disso, e as cruzadas que aconteceram depois dele não favoreceram a reunificação. A morte de Gregório VII pareceu uma derrota, mas na realidade foi para a Igreja o início de uma nova etapa. Ele havia levantado o problema da distinção entre o trono e o altar, que será discutida por muitas gerações durante séculos. É inegável que a reforma da Igreja por ele iniciada foi levada adiante e retomada na história até a atualidade, deu os seus frutos, não só precisando a independência entre a Igreja e o Estado, mas também conscientizando os bispos e o clero de que a missão deles não é o poder, mas o serviço.

25 de maio Santa Maria Madalena de Pazzi virgem (1566-1607) “Vós inflamastes de modo admirável a virgem Santa Maria Madalena com os carismas do vosso Espírito; e ela manifestou em suas obras o amor ao vosso Verbo


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encarnado e desejou ardentemente a santidade da Igreja. Por isso amou-a com todas as forças para que refulgisse em seu rosto a imagem de Cristo, seu Esposo, despendeu sua vida na oração fervorosa e com a imolação de si mesma.” 20

A paixão pela renovação da Igreja, que a seu tempo havia inflamado o coração de Santa Catarina de Sena, tinha-se depois amplamente difundido, e mesmo passados já dois séculos continuava a afervorar uma outra Catarina da terra da Toscana, uma carmelita de Florença, que havia tomado o nome de Irmã Maria Madalena. Para manter acesa essa chama, contribuíram não só a leitura dos escritos da virgem de Sena, mas também as cartas que os missionários jesuítas enviavam das Índias e do Japão. Catarina nasceu em Florença no dia 2 de abril de 1566, filha de Camilo de Geri de’ Pazzi e de Madalena Maria Buondelmonti, uma nobre família florentina que, no passado, havia se destacado na sociedade como a famosa família dos Médici. Aos 8 anos, a menina foi confiada aos cuidados da tia materna, irmã Lessandra Buondelmonti, no convento das Cavaleiras de Malta, próximo da igreja de São Joãozinho, na qual oficiavam os padres jesuítas. Aí, sob a direção dessa irmã e graças ao empenho dos jesuítas, fez a primeira comunhão com a idade de 10 anos. Acontecimento incomum naqueles tempos, quando somente os adultos podiam receber a eucaristia e o faziam raramente e depois de uma longa preparação. No dia 19 de abril do mesmo ano, 1576, Catarina fez voto de virgindade e depois de alguns meses na festa de Santo André, enquanto estava com a mãe no jardim da sua propriedade perto de Prato, aconteceu-lhe o primeiro êxtase. A mãe naquele momento não deu muita importância, mas o jesuíta padre Blanca, que conhecia a alma daquela menina, procurou orientá-la. Quando em 1580 a família precisou mudar-se para Cortona, lugar para o qual o pai havia sido nomeado comissário, o piedoso jesuíta aconselhou os pais a terem o cuidado de colocar a menina já no mosteiro de São Joãozinho com a condição, porém, de que lhe fosse permitido receber todos os dias a comunhão. No ano seguinte, a família retornou para Florença e Catarina, nesse momento já com 15 anos, estava de novo em casa, toda compenetrada na busca de seu caminho. De uma coisa estava certa: entraria em um convento, mas em qual ela ainda não sabia. No São Joãozinho certamente que não, pois 20. Prefácio do Missal próprio dos carmelitas.


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não lhe agradava. Desejava ela mesma escolher e pediu para permanecer uns quinze dias com as carmelitas de Santa Maria dos Anjos, para estudar a regra delas e experimentar ali a vida conventual.

A escolha definitiva Era um convento de rigorosa observância que não tinha jamais tido a necessidade de reforma, e as irmãs gozavam do privilégio de receber a comunhão todos os dias. Catarina se encontrou verdadeiramente bem ali e compreendeu que aquela era a sua casa. Retornou para junto dos seus e manifestou a sua decisão. Diante da resistência da família ela ficou inabalável, mesmo tendo apenas 16 anos. Seu pai precisou ceder, mas antes da partida quis que um pintor lhe fizesse o retrato no esplendor da sua juventude, porque se não podia mais vê-la em pessoa, poderia ao menos mostrar aos amigos o seu retrato. Catarina se submeteu aos desejos paternos em troca da liberdade de partir o mais breve possível para o convento, onde entrava no mês de novembro de 1582, vestindo o hábito das carmelitas na festa da Imaculada daquele mesmo ano. Tinha apenas iniciado com grande fervor o noviciado com o nome de irmã Maria Madalena, quando o seu físico, tão belo e promissor, foi atacado por uma misteriosa doença que durante dois meses a obrigou a ficar sempre sentada em sua cama “sem poder deitar devido à veemência da tosse”. Os médicos, depois de tentarem tudo o que estava ao seu alcance, deram-se por vencidos e preanunciaram o seu fim próximo. A priora do mosteiro, irmã Vitória Conturzi, e a mestra das noviças, irmã Evangelista del Giocondo, com o consentimento de toda a comunidade, concederam à noviça fazer a profissão religiosa. Era a manhã do dia 27 de maio de 1584, festa da Santíssima Trindade. Mas a hora da partida deste mundo para a jovem ainda não havia chegado e essa jovem irmã de 18 anos se recuperou milagrosamente e, sob a guia sábia da mestra Evangelista e do diretor espiritual Agostino Campi, continuou sua formação. No convento se meditava a Sagrada Escritura, especialmente os evangelhos, e os santos padres, entre os quais gozava de um lugar de honra Agostinho, mas se liam também os escritos dos santos, de modo particular aqueles de Santa Catarina de Siena e também, sob a influência dos jesuítas, os atos dos apóstolos modernos, que levavam o evangelho aos povos do distante Oriente.


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Os êxtases e o verdadeiro semblante de Deus Mas o Senhor quis intervir diretamente na formação dessa contemplativa. Se ainda menina já tinha experimentado o êxtase e havia sido conquistada totalmente pelo amor de Deus, no convento os êxtases se sucederam com uma freqüência impressionante. O seu confessor, homem culto e prudente, para se certificar de que esses fenômenos não eram fruto de histeria, pediu à irmã Maria Madalena que registrasse por escrito tudo o que recebia durante o êxtase. Ela obedeceu prontamente, mas depois disse que não obstante os seus esforços não conseguia exprimir em palavras a luz que recebia. O confessor então encarregou outras três co-irmãs de escrever tudo quanto ela dizia durante os êxtases para depois lê-lo e fazer as devidas correções se fosse necessário. Com este método foram transmitidos cerca de cinco volumes de manuscritos, ricos de uma profunda doutrina espiritual, que alimentou a piedade cristã até o século XIX. Irmã Maria Madalena, em um período em que a imagem mais comum que se tinha de Deus era a do severo juiz, revelava ao mundo o semblante paternal de Deus que no seu imenso amor envia ao mundo o Verbo, seu Filho, o qual, através da sua santa humanidade, entra em plena comunhão conosco e nos dá o fogo do seu Espírito. Para irmã Maria Madalena, o Verbo teria se encarnado mesmo que não houvesse o pecado, porque a Encarnação não está condicionada à maldade humana, mas é fruto do livre e infinito amor do Pai pelas suas criaturas. Nos êxtases, além de contemplar a Deus no seu amor por nós, Maria Madalena contemplou e reviveu em si toda a paixão de Jesus, tanto nas dores físicas quanto também nos sofrimentos espirituais. “A boca da alma (...) docemente vos saboreia, Verbo; saboreia a pureza da essência da vossa Divindade e Humanidade, e chega a tanta cognição da vossa pureza que aquilo que antes lhe parecia virtude, depois lhe parece defeito em si e nos outros”.21 Mesmo que o Senhor lhe coloque um anel nupcial no dedo, como sinal invisível, mas real, do seu esponsalício com ela, sobre a sua fronte põe uma coroa de espinhos, também ela invisível, que lhe provocava dores contínuas e agudíssimas. Por intermédio dessas provas tão torturantes estaria morta se de vez em quando não houvesse pausas para readquirir um pouco das forças. O período mais difícil durou cinco anos e ela o chamou “a cova dos leões”. 21. Santa Maria Madalena. I colloqui, in Op., V, 3, p. 90.


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A reforma da Igreja Quando a dentada, isto é, o sofrimento na “cova dos leões” afrouxava, o Senhor lhe comunicava que devia se preparar para uma missão particularmente difícil, mas muito importante: a renovação da vida da Igreja, sobretudo do clero e dos religiosos. Essa missão a assustou, sentindo-se incapaz de levá-la a bom termo. Sentiu que era tão superior às próprias forças, que lhe pareceu temerário e fruto de um engano do demônio. Falou disso longamente com os seus responsáveis, consultou um dominicano e um jesuíta, recorreu a todas as pessoas sábias e prudentes, depois finalmente, encorajada por todos a responder ao apelo de Deus, “escreveu algumas cartas em abstração da mente ao Sumo Pontífice e a outros prelados e servos de Deus em favor de tal renovação”. Parece que tais cartas jamais chegaram aos destinatários, porque a superiora, mesmo concordando totalmente com o conteúdo delas, teve medo das reações do eminente mundo eclesiástico. O que é de surpreender, porém, é que exatamente nesses anos o papa Sisto V estava empenhado em vastas reformas eclesiásticas, da mesma forma que tanto desejava a santa carmelita. Há quem pense que pelo menos algumas de suas cartas tenham chegado ao Papa de forma muito reservada. No ano de 1604, para irmã Maria Madalena findavam os êxtases e começava o último período da sua vida, o do “nu padecer”, quando confi­ gurava interiormente as dores espirituais de Jesus Crucificado. Ela aceitou essa duríssima provação e formulou a expressão que ficou famosa: Pati et non mori (sofrer e não morrer), isto é, não morrer para poder participar o mais longamente possível da paixão de Jesus pelo bem da Igreja.

Mestra da vida evangélica No ano de 1602 foi escolhida como mestra das noviças e no ano de 1604 como vice-priora. Devemos a estes seus cargos o fato de hoje contarmos, além dos cinco volumes dos manuscritos e das vinte e oito cartas, também com um pequeno opúsculo de Ammaestramenti e Avvisi [ensinamentos e avisos]. As coirmãs empenhavam-se em recolher as exortações que ela lhes dirigia em várias ocasiões no cumprimento de seus afazeres. Neste período, irmã Maria Madalena, mesmo vivendo imersa em uma extrema desolação interior que submetia a duras provas as virtudes teologais,


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permaneceu sempre fiel ao seu Deus de amor, espargindo ao redor de si esta mesma fé e usando sempre para as co-irmãs de uma caridade delicada e operosa, e fomentando entre todas a unidade, como atesta esta sua oração: Ó Verbo Filho de Deus, vós olhais com maior complacência uma obra feita em união e caridade fraterna do que milhares de obras em desunião; agrada-vos mais uma pequena ação, como um piscar de olhos, feita em união e caridade do que se eu sofresse o martírio em desunião e sem caridade. Onde há união vós aí estais, pois vos chamais Amor: ‘Deus é amor’. Vós vos chamais Deus de paz e de união: ‘Deus pacis’. Sois aquele que estabelece toda paz e sem vós não pode existir verdadeira paz, nem união. Fingida é a paz e a união entre os pecadores, nem pode durar por muito tempo, pois o coração deles está dominado pela tirania do pecado e das paixões, logo se rompe aquele vínculo que existe entre eles, vínculo mais fraco do que um fio de linha. Assim como somente de vós, ó Deus, provém a verdadeira união; e onde existe desunião, existe confusão por causa do pecado e do demônio. Com quanto desejo devemos procurar esta união e, com muita vontade, amá-la! (...) Ó Santíssima Trindade, dai-nos então a graça de viver sempre unidos uns aos outros, conservando a união de espírito, tendo um mesmo querer e sentir, procurando ter a mesma indivisível unidade que existe entre as pessoas divinas. 22

Aos 25 de maio de 1607 faleceu Maria Madalena, com a idade de 41 anos. Foi proclamada beata em 1626 e santa em 1669. Se durante a vida sua influência não ultrapassou em muito os limites do convento de Santa Maria dos Anjos, depois da sua morte seus escritos tiveram uma grande ressonância na espiritualidade católica do século XVII-XVIII, sobretudo na Itália.

26 de maio São Filipe Néri o apóstolo de Roma (1515-1595) “Se quereis a obediência espontânea, não ordeneis muito. A nossa única regra é o amor.” 23 22. De: Santa Maria Madalena, G. Intimità divina, V. Roma, Monastero di San Giuseppe, 1954, pp.184-185. 23. Cf. Lortz, J. Storia della Chiesa II. Milano, Ed. Paoline, 1987, p. 252.


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Filipe Néri nasceu em Florença em 1515 e foi batizado no “Belo São João” (Bel San Giovanni).24 Ainda menino, perdeu antes a mãe e depois o irmão mais velho, mas o amor da madrinha e a companhia das duas irmãzinhas não permitiram que a tristeza fizesse morada no seu coração e perturbasse sua infância. No famoso convento de São Marcos, os padres dominicanos lhe transmitiram o amor aos estudos e a admiração pelo espírito reformador de Savonarola. A família vivia de uma forma muito modesta, porque o pai, que era escrivão, mais do que no trabalho vivia ocupado por encontrar a pedra filosofal e, não a tendo encontrado jamais, quando cresceram os filhos tiveram que se virar sozinhos para cuidar da própria sobrevivência. Para as duas meninas não foi difícil encontrar marido, e Filipe, já com 17 anos, encontrou trabalho em Cassino com seu tio, que era comerciante.

De Cassino a Roma Mas aí, mais que o trabalho, o que lhe atraía a atenção era a abadia beneditina situada no cimo do monte, à qual subia de boa vontade todas as vezes que contava com algum tempo livre, tornando-se logo amigo do ilustre monge Eusébio de Evoli, que se tornou seu diretor espiritual e mestre. Permaneceu só três anos com seu tio em Cassino, pois não sentindo nenhuma atração pelo comércio e, não encontrando na abadia que tanto admirava a sua casa, dirigiu-se para Roma. Aí, depois do saque de 1527, a vida reflorescia em todos os campos, desde o comércio até as artes, da reconstrução material à reforma dos costumes. Uma cidade cravejada de santos como Inácio de Loyola e os seus primeiros companheiros, Caetano de Thiene e a sua recente e rigorosa congregação, Carlos Borromeu e o grupo dos seus amigos, Camilo de Lellis e os seus admiráveis ministros dos enfermos. Filipe chegou a Roma em 1534, encontrou refeição e alojamento na casa de um fiscal pontifício, tornando-se preceptor dos seus dois filhos. Ao mesmo tempo passou a freqüentar a universidade dos jesuítas, a “Sedes Sapientiae”, para completar a sua formação cultural. Tomando a sério a sua tarefa de preceptor descobriu o método educacional que depois aplicará durante toda a sua vida e deixará como herança aos seus 24. Assim é chamado o artístico batistério de Florença.


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filhos: educar na alegria usando todos os meios colocados à disposição pela providência e pela criatividade humana, como os jogos, os passeios e as visitas aos museus para admirar e fruir as obras de arte, o canto e a música. Com estes meios Filipe atraía para si os jovens de todos os estratos sociais, mesmo os mais abandonados que de outra forma seriam presa da delinqüência, e os educava através do desenvolvimento de suas boas qualidades e tornando para eles atraente e agradável a religião. Deus entrava assim em suas vidas não para mortificá-las com rígidos preceitos, mas para fazê-las florescer através dos talentos de cada um.

Um globo de fogo Apesar de estar envolvido com o trabalho, o apostolado e o estudo, Filipe cultivava com cuidado a sua união com Deus. O seu lugar preferido para se retirar e orar eram as catacumbas que lhe recordavam os tempos heróicos do cristianismo. E foi exatamente nas catacumbas de São Sebastião que, em Pentecostes do ano 1544, o Espírito Santo apareceu para ele como um globo de fogo que lhe penetrou o coração. O que aconteceu naquele momento não podemos saber porque Filipe, poucos dias antes de morrer, queimou todos os seus escritos. Certamente se Inácio teve a sua luz em Manresa e Bento na torre de Montecassino, Filipe teve a sua nas catacumbas de São Sebastião e se deixou guiar por essa luz por toda a sua vida. Naquele tempo, as mulheres e os homens espiritualmente mais sensíveis aos problemas da reforma da Igreja começavam reformando, antes de tudo, a própria vida e dedicando-se às obras de misericórdia. Também Filipe sentiu forte este chamado do Espírito Santo e com um grupo de amigos fundou a Confraria da Santíssima Trindade, que cuidava dos peregrinos, tão numerosos em Roma, e dos muitos doentes, que saíam dos hospitais da cidade, e das pessoas abandonadas nas ruas. A instituição se revelou particularmente útil por ocasião do Ano Santo de 1550. Ao lado das obras de assistência, Filipe começou a desenvolver também a formação espiritual e cultural de seus amigos especialmente a catequese, a confissão e a direção espiritual e a adoração eucarística. Foi para cumprir bem estas tarefas que, aceitando o conselho de seu confessor, se fez ordenar sacerdote no ano de 1551 e foi morar no internato eclesiástico no quarteirão conhecido como “Regola”, no coração da cidade.


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O oratório secular Naquele tempo, em Roma, eram numerosas as pessoas que desejavam empenhar-se na vida espiritual, mas sem entrar em uma ordem religiosa. Para eles Filipe concretizou uma das suas idéias mais geniais: o Oratório secular. Atraídos pela sua espiritualidade, tão humana e evangélica ao mesmo tempo, acorriam para ele pessoas do povo e pessoas da nobreza, artesãos e profissionais, padres e leigos, jovens e anciãos, e todos se sentiam realizados. Eles ouviam com prazer este padre florentino que os fazia dialogar entre si, brincar e cantar, empenhava-os concretamente em uma obra de caridade entre os doentes, órfãos e pobres de todos os gêneros; em uma palavra, fazia-os experimentar a comunidade cristã como aquela descrita nos Atos dos Apóstolos. Que não se tratasse de coisa sem importância e mínima via-se pelos frutos obtidos. O Oratório, de fato, não era só um lugar de encontro e de formação espiritual para pessoas humildes, mas suscitava e formava genialidades de grande talento, personalidades que se tornaram célebres pela ciência e santidade. Entre estes recordamos Barônio que, sob incentivo de Filipe, escreveu os famosos Annali Ecclesiastici [Anais Eclesiásticos] em resposta a Centuriae Magdeburgenses25 e tornou-se cardeal e prefeito da Biblioteca Vaticana; Tarugi, bispo e cardeal, que levou o espírito do Oratório para a França; Ancina, que colaborou com são Francisco de Sales na renovação da Igreja em Savoia, Animuccia e Palestrina, que deram uma contribuição importantíssima à música polifônica e ao nascimento do Oratório Musical; Severano e Bósio, que com a ajuda do cardeal Carlos Borromeo iniciaram os estudos de arqueologia cristã.

Mestre de vida cristã Mas o campo no qual Filipe se distinguiu de modo particular foi a direção espiritual. Com uma grande sabedoria, que não fazia nenhum ruído, porque sabia ocultar-se sob a aparência do simples bom senso, Filipe indicava a cada pessoa o caminho da santidade sem exigir os votos e as práticas do estado religioso. Talvez nenhum santo, antes dele, tenha sabido tornar tão popular a santidade em cada condição de vida segundo o desejo de são Francisco de Sales.

25. As Centuriae Magdeburgenses constituíam uma grande obra em sete volumes, escrita por dois protestantes, Flácio Ilírico e João Wigand, em polêmica com Roma e em apoio ao protestantismo.


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Por isso recorriam a ele pessoas do povo e personalidades de elevada condição social, e ele os acolhia a todos sem jamais fazer distinção entre as pessoas. Tornou-se célebre a esse respeito um acontecimento. Enquanto atendia um homem pobre, avisaram-lhe da chegada de um cardeal que desejava lhe falar. Filipe, sem se incomodar nem um pouco, respondeu: “Diga ao senhor cardeal que espere, porque agora estou ocupado com o Senhor Jesus Cristo. Assim que eu terminar o receberei”.

Homem meigo, mas decidido Filipe era famoso pela sua doçura e pelo respeito à liberdade do outro, mas era também assaz conhecido pela sua firmeza e também com pessoas de elevada condição social, quando se tratava de defender a justiça ou quando se tratava de corrigir erros que acarretavam danos para a comunidade. Com uma carta severíssima repreendeu o cardeal Carlos Borromeo, que aproveitava de sua autoridade para tomar para seu serviço, das Ordens religiosas, os frades mais bem preparados sem se preocupar em antes dialogar com os seus responsáveis. Foi inflexível também com o papa Clemente VIII. Quando Henrique de Navarra, para poder se tornar rei da França, abjurou sua precedente fé calvinista (ele havia pertencido aos huguenotes), o Papa não acreditava na sinceridade de tal conversão e não queria aceitar sua abjuração. Essa atitude intransigente, porém, poderia ter conseqüências desastrosas para a Igreja e para a França. Filipe disse a Barônio, confessor do Papa, que enquanto o pontífice se mantivesse nessa atitude intransigente em relação ao rei não podia exigir a absolvição dos seus pecados. Entre o pontífice e o santo estabeleceu-se algo como um braço-deferro, ao passo que o pobre Barônio não sabia a quem obedecer. Finalmente, logo depois da morte de Filipe, o Papa aceitou o conselho que Filipe lhe dera, evitando assim na França o perigo de um cisma. O rei profundamente grato, depois da morte de Filipe, empenhou-se por apressar a causa da beatificação e para proclamá-lo co-padroeiro da França.

A comunidade dos padres Do Oratório secular nasceu espontaneamente a respectiva comunidade sacerdotal formada pelos primeiros companheiros de Filipe, tornando-se também eles sacerdotes. Recolheram-se à vida comum primeiramente junto da


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igreja de São João dos Florentinos, na via Júlia, e a seguir, depois da aprovação pontifícia, em 1575, foram para Santa Maria, em Vallicella. Os padres do Oratório não estavam ligados por votos, como acontece com os religiosos, mas só aos trabalhos assumidos pela ordenação presbiteral e viviam vida comum unidos entre si pela caridade fraterna. Uma vida ordenada, sem as práticas particulares de penitência e no ensinamento da liberdade cristã e da simplicidade evangélica. É difícil relatar em poucas linhas os elementos essenciais da espiritualidade que Filipe viveu e que imprimiu em sua obra. Vejamos alguns desses elementos: Antes de tudo uma viva caridade para com o próximo: cada pessoa, qualquer que seja a consideração que goze na sociedade, para Filipe é sempre uma presença de Cristo, um Jesus para ser escutado e ser servido também materialmente como o Evangelho ensina. Um segundo ponto forte é a mortificação do egoísmo e da vanglória. Filipe não apreciava muito as penitências corporais, mas exigia aquelas que mortificam o orgulho. Às vezes colocava três dedos na fronte e recordava que naquele pequeno espaço se podia escolher a santidade ou a perdição, porque a soberba e a vanglória podem arruinar até mesmo as pessoas irrepreensíveis em outros campos da moral. A Barônio, que ele tanto estimava, aconteceu este fato: a comunidade dos padres do Oratório escolhia, cada dia, quem deveria ir para a cozinha. Filipe, com um expediente todo seu, fez de modo que por vários dias acabasse sempre sendo escolhido Barônio, até que uma manhã entrando Barônio na cozinha, viu escrito na parede: Baronius, cocus perpetuus (Barônio, cozinheiro para sempre). A caligrafia era bem conhecida e Barônio não só não se incomodou com isso, mas comunicou a Filipe sua disponibilidade em aceitar não só a brincadeira como também até mesmo o conteúdo. Um terceiro elemento da espiritualidade evangélica de Filipe que se vivia no Oratório era a alegria, uma alegria toda ela fruto de uma vida vivida em conformidade com a vontade de Deus. Para Filipe, um santo triste era um triste santo. Enfim, a simplicidade do evangelho. Ele possuía a simplicidade de Francisco de Assis atualizada para os tempos modernos, que às vezes surpreendia e divertia ao mesmo tempo. Quando lhe levaram, em nome do papa, o chapéu cardinalício, não só não aceitou a nomeação para cardeal, mas perguntou brincando quanto se poderia ganhar vendendo aquele belíssimo ornamento. Entregou-o a seguir aos rapazes do Oratório para que brincassem com ele. Por seu mérito a pregação perdeu o tom empolado e pomposo, e o canto sacro tornou-se mais popular. Para os seus padres quis um hábito simples, mas


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digno, de modo que pudessem se apresentar tanto entre as pessoas simples quanto nos palácios dos nobres e na cúria papal sem atrair particular atenção.

A regra de Filipe Toda a espiritualidade de Filipe pode ser resumida nesta frase que ele gostava de repetir sempre aos seus: “A nossa única regra é o amor”. Em maio do ano de 1595, já na idade de 80 anos, Filipe adoeceu gravemente e, pensando no Senhor crucificado, dizia: “Tu, Jesus, na cruz, e eu em um leito limpo com tantas pessoas ao redor que cuidam de mim!”. Morreu no dia 26 de maio desse mesmo ano. Sua obra não só se havia firmado em Roma, mas também em Nápoles, em San Severino e em Fermo, e não demorou muito a transpor os limites da Itália e da Europa: foi retomada com sucesso pelo cardeal Newman e difundida na Inglaterra. Logo após a sua morte Filipe foi aclamado santo pelos romanos e o Papa iniciou logo a seguir o processo, declarando-o beato no ano de 1610 e santo em 1622. O povo da Urbe o quis como seu co-padroeiro e introduziu o costume de oferecer todo ano na igreja da Vallicella, por ocasião da festa, um cálice de ouro em sinal de afeição e gratidão.

A personificação da liberdade cristã É certo que, com o seu carisma, Filipe contribuiu de maneira deter­ minante para a renovação da Igreja juntamente com outros carismáticos do seu tempo. Se são Camilo de Lellis escrevia o evangelho da caridade no serviço aos doentes e abandonados ao seu próprio destino; se são Caetano de Thiene fazia reflorir entre o clero a apostolica vivendi forma [forma apostólica de viver] com todos os valores da vida monástica e da oração litúrgica; se santo Inácio de Loyola, com a sua organização, restituía à Igreja o rosto unitário não só no campo disciplinar, mas sobretudo no campo espiritual e intelectual; a são Filipe Néri deve-se reconhecer o mérito de ter exprimido toda essa nova vitalidade católica de maneira mais livre, mais espontânea e mais adequada ao mundo secular. O historiador Lortz assim definiu são Filipe Néri: “A melhor personificação católica da liberdade do cristão”.26

26. Ibid., pp. 251-252.


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Filipe foi um grande reformador, mas do seu jeito. Ele que tanto amava Savonarola a ponto de julgá-lo um santo e a ler seus escritos, adotou para si um estilo diverso: em vez do ímpeto do profeta, seu compatriota preferia a firmeza cheia de caridade, uma caridade que comumente se apresentava revestida de bom humor. Combatia os abusos mais com o exemplo do que com a palavra; respeitava as instituições, mas não esperava muito delas. Costumava dizer: “É possível restaurar as instituições com a santidade, mas não se restaura a santidade com as instituições”.27

27 de maio Santo Agostinho de Cantuária bispo (= 604ca) “O bispo Agostinho, nosso reverendíssimo irmão, foi formado na regra do mosteiro, conhece bem a Sagrada Escritura, pela graça de Deus é rico em boas obras, por isto tudo o que ele te aconselhar tu deverás escutar de bom grado, colocar em prática devotamente, conservar cuidadosamente na memória (...). Apega-te a ele de todo o coração no fervor da fé e ajuda-o em seus esforços com a capacidade que o Senhor te deu, para que ele te faça participante do seu reino. Aquele cuja fé tu fazes acolher e proteger no teu reino.” 28

Com esta carta o papa Gregório Magno apresentava Agostinho a Etelberto, rei dos anglos. Na realidade, a fé cristã havia chegado na ilha dos britânicos já nos primeiros séculos e eles já tinham tido mártires na perseguição de Diocleciano. Mas com as invasões dos anglos e dos saxões, nos séculos V e VI, precisaram abandonar a parte sul-oriental da ilha Bretanha e retirar-se para a Cornuália e para Gales. Os novos senhores do país não eram cristãos e os britânicos, humilhados e oprimidos, nada haviam feito para a conversão deles.

Um apelo vindo da terra dos anglos Etelberto, o rei dos anglos, conseguiu impor sua supremacia a todas as tribos anglo-saxônicas até o rio Humber. Durante uma visita ao continente 27. Citação extraída de Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1988, p. 294. 28. Venerável Beda. Storia ecclesiastica degli Angli. Roma, Città Nuova Editrice, 1987, p. 100.


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acabou se enamorando pela filha do rei de Paris, Berta. Ela aceitou desposá-lo e transferir-se para o além-mar sob uma condição: poder continuar a praticar sua fé cristã e levar consigo o bispo Liudardo. Foi neste período que o papa Gregório Magno recebeu uma carta, talvez do bispo ou da rainha Berta, que implorava missionários para a conversão dos anglosaxões. Gregório não pensou duas vezes, pois fazia tempo que andava desejoso de realizar este sonho. Escolheu quarenta monges beneditinos do mosteiro de Monte Célio, nomeou Agostinho para ser o abade e enviou-os à terra dos anglos. Só neste momento é que tomamos conhecimento da existência de Agostinho. Nada sabemos a respeito de seu passado, a não ser que havia se tornado monge e que devia ter também uma boa preparação e possuir excelentes qualidades para ter recebido do papa uma missão tão importante. O grupo dos monges, que tinha à sua frente Agostinho, que era sacerdote, compreendia camponeses, artesãos e escrivães. A ordem do papa era bastante clara: eles deviam construir um mosteiro e implantar entre os anglos o melhor da vida cristã até aquele momento conhecida, a vida monástica. Como conseqüência os pagãos, tendo contato com eles e constatando a beleza do estilo de vida deles, se converteriam. Os monges se encaminharam entusiasmados para a realização dessa meta, mas, enquanto atravessavam a Gália, receberam notícias desconcertantes a respeito da terra para onde se dirigiam e sobre o povo que a habitava. Todos diziam que os anglos eram bárbaros e muito perigosos, que havia chegado o fim deles e que eles jamais retornariam. O que aconteceu com Berta e com o bispo Liudardo? Talvez tivessem sido estrangulados. Se estivessem ainda vivos não teriam mandado notícias? Ir para tal lugar amaldiçoado era o mesmo que se suicidar. Os pobres monges, que jamais tinham colocado os pés fora dos muros de Roma, começaram a ter saudades do mosteiro do monte Célio e obrigaram Agostinho a retornar para pedir ao Papa que desistisse daquela perigosa missão, destinando-os para um outro local. Agostinho voltou para Roma e expôs a situação a Gregório que, diferentemente deles, era um homem bem viajado na vida. O Papa o encorajou, e confirmou-o como abade com a ordem de levar adiante sem medo a missão já empreendida, porque essa era a vontade de Deus. Escreveu depois uma carta a Virgílio, bispo de Arles, então o único metropolita da Gália e também seu legado, e para os outros bispos e príncipes. Em nome de Deus pedia a eles que, ao invés de apavorar os monges com narrativas fantasiosas, os encorajassem, ajudando-os materialmente, fornecendo-lhes sacerdotes que conhecessem a


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língua dos anglos e não deixando faltar nem mesmo uma escolta armada para protegê-los até chegarem à ilha dos anglos. Gregório era muito meigo, mas também firme e decidido. Possuía na Gália propriedades de terras e autorizou o metropolita de Arles a providenciar o necessário para organizar bem a viagem dos monges. Parece que Virgílio, diante dessa sugestão do Papa, havia ordenado bispo a Agostinho antes que eles embarcassem.

Os primeiros passos em Kent Finalmente, no início de 597 o navio desembarcou os missionários na ilha de Thanet, em terra do reino de Kent. De acordo com a ordem do papa, a primeira coisa que fizeram foi avisar o rei Etelberto que haviam chegado. Ele quis conhecê-los, escutou atento o discurso de Agostinho e ficou contente, dando ordem, porém, a que não colocassem os pés fora da pequena ilha antes que ele mantivesse consulta com seus pares. Enquanto isso não lhes deixaria faltar nada que lhes fosse necessário para viver. O rei por prudência quis aguardar, mas, escutando o parecer dos outros e sobretudo o de Berta, depois de um breve tempo permitiu aos monges estabelecerem-se na cidade real, em Cantuária, construindo o mosteiro próximo da antiga igrejinha de São Martinho, construída pelos cristãos antes da vinda dos anglos e usada até aquele momento pela rainha. Houve uma grande operosidade em obras realizadas durante aqueles meses e o rei quase convivia com os monges. Em Pentecostes recebeu o batismo, mas não forçou seus súditos a que seguissem o seu exemplo: havia aprendido dos seus catequistas que a fé não se pode impor. Mas no Natal do mesmo ano mais de 7 mil anglos receberam espontaneamente o batismo. Foi construído o mosteiro e nasceu contemporaneamente a comunidade cristã, e com ela muitos novos problemas. Agostinho enviou a Roma dois monges, Lourenço e Pedro, para informar ao Papa a respeito de tudo o que estava acontecendo na missão e para ter orientações seguras de como organizar a vida da Igreja nascente. Infelizmente eles só retornaram no ano 601, e o abade Agostinho precisou durante quase quatro anos agir unicamente guiado pelo seu bom senso que, por felicidade, não lhe faltava.

A ligação com Roma Quando Lourenço e Pedro retornaram, a festa foi grande. O Papa mandava uma carta para Agostinho e outra para o rei; enviava-lhe também


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o pálio com o poder de ordenar outros bispos e mandava mais um outro numeroso grupo de monges. Beda recorda, com meticulosidade de monge, os vários quesitos postos ao Papa. Citamos apenas alguns. Deveria aplicar a liturgia romana ao pé da letra neste país assim tão diferente de Roma? E o papa respondeu que, salvos os princípios da fé, o bispo podia escolher a melhor das tradições litúrgicas utilizadas em Roma, na Gália e até mesmo na religião tradicional dos anglos, e preparar uma liturgia adaptada e compreensível para a mentalidade deles. Não deveria desdenhar nem mesmo que nas festas se matassem animais para comêlos: bastava explicar-lhes que não se imolavam aos ídolos, mas que serviam para a alegria dos filhos de Deus.29 Citamos as palavras do grande pontífice a respeito da liturgia: “Conheces, irmão, o costume da Igreja de Roma, na qual bem sabes que foste educado. Mas sou do parecer que tu com solicitude devas escolher o que tiveres encontrado, seja na Igreja romana ou na Igreja de Gália, e em qualquer outra, que possa mais agradar a Deus onipotente, introduzindo e institucionalizando na Igreja dos anglos, que ainda é nova na fé, os costumes mais importantes que tiveres tomado de outras igrejas. De fato, não são apreciados os costumes pelo lugar de origem, e sim os lugares de origem é que são apreciados pelos seus costumes. Por isso escolhe de cada igreja os usos corretos, os piedosos, os religiosos e estes deposita-os, como recolhidos em um feixe, na mente dos anglos, para que se tornem um costume”.30 Havia também perguntado ao Papa o que deveria dizer para aqueles casais que, tendo entre eles vínculos estreitos de parentesco que na tradição romana seria um impedimento legítimo para o matrimônio, pediam o batismo. E o papa recomendava uma gradualidade na aplicação da lei tradicional e sábia da mãe Igreja, porque “é impossível cortar fora tudo em um só golpe de mentes incultas; como também quem quiser chegar ao topo da montanha tem de subir aos poucos, passo a passo, e não fazer tudo em um só golpe”.31 Gregório pensava alto e expunha o seu plano a Agostinho: desejava reunir em uma só comunhão também os outros cristãos de tradição céltica, como os britânicos, e com a ajuda deles converter todos os não-cristãos da ilha. Deveria, pois, constituir duas províncias eclesiásticas: uma com sede em 29. Id., p. 97. 30. Id., p. 79. 31. Id., p. 97.


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Londres e outra com sede em York, e cada uma com doze bispos sufragâneos. As duas províncias, por enquanto, ficariam sob o seu governo, mas depois se tornariam independentes entre elas e ligadas diretamente ao Papa. Agostinho havia já dirigido uma pergunta ao Papa a respeito da constituição do clero: deveria ordenar sacerdotes e deixá-los sozinhos nas diversas comunidades ou deveria ordenar monges que continuassem a viver no mosteiro? O papa optou por esta segunda opção, autorizando porém a ordenação de homens casados – que continuavam a viver em família – para ministérios outros que não o presbiterato. Também o bispo deveria ter o seu mosteiro e conviver com os seus sacerdotes segundo a tradição de Agostinho de Hipona. Assim Gregório colocava em prática as diretrizes da sua famosa Regula pastoralis [Regra pastoral] com o desejo de assegurar às comunidades cristãs um clero santo, instruído e livre de todas as preocupações terrenas.

Agostinho coloca as bases para o futuro Agostinho conseguiu fundar três bispados: um em Cantuária, a sua sede; um outro em Londres e um terceiro em Rochester. Quanto à distante Nortúmbria será necessário esperar ainda um século e será um outro Agostinho, o Biscop, que fundando lá dois famosos mosteiros plantará a fé naquelas terras em estreita união com o Papa. Um problema que Agostinho não conseguiu resolver foi a união com os bispos dos britânicos. Reuniu seus representantes junto daquela árvore que ficou conhecida como “o carvalho de Agostinho”, porque os convidados não quiseram se encontrar em um lugar fechado, temendo uma possível emboscada. A desconfiança entre eles aliás era compreensível. Agostinho era o bispo dos anglo-saxões, isto é, dos inimigos deles, dos usurpadores das terras deles, daqueles que eles haviam chamado para ajudá-los durante uma guerra contra os invasores e que depois se transformaram em forças de ocupação. Existia também um outro motivo. A tradição cristã dos britânicos era antiquíssima e não houve contatos com a tradição romana ou com a tradição gálica; tinham, portanto, um modo diferente de administrar o batismo e comemorar a data da Páscoa. E sabe-se bem o quanto as tradições e as relativas culturas são realidades que podem manter separados os povos. Debaixo “do carvalho” disseram para Agostinho que tinham necessidade de tempo para consultar suas igrejas e não apareceram mais.


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Agostinho continuou o seu trabalho consolidando as bases da Igreja entre os anglo-saxões. Morreu provavelmente em 604. Beda recorda o que está escrito em seu túmulo: “Aqui repousa o bem-aventurado Agostinho, primeiro arcebispo de Doruvernis (Cantuária), que, enviado pelo papa Gregório, bispo de Roma, e sustentado por Deus no realizar milagres, levou o rei Etelberto e o seu povo do culto aos ídolos à fé em Cristo, e cumpridos em paz os dias de seu ministério, morreu a 7 de junho, sob o reinado deste rei”.32 Segundo outros historiadores, sua morte teria ocorrido no dia 26 de maio. Mesmo que não tenha sido o primeiro a introduzir a luz do Evangelho na Grã-Bretanha, deu-lhe novo esplendor e por isso os ingleses o consideram apóstolo da sua terra.

32. Id., p. 117.


JUNHO

1o de junho São Justino mártir (= 166) “Na verdade, procurei conhecer todas as filosofias, depois acabei por abraçar a verdadeira doutrina (...). Adoramos o Deus dos cristãos, a quem consideramos como único criador e artífice, desde o princípio, de toda a criação, das coisas visíveis e invisíveis; adoramos também o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que os profetas anunciaram vir para o gênero humano como mensageiro da salvação e mestre da boa doutrina.” 1

É esta a breve e significativa profissão de fé que Justino, também em nome de seus companheiros e discípulos, fez perante o tribunal presidido pelo prefeito de Roma, Rústico, em uma linguagem acessível também aos pagãos. Ele, de fato, era um filósofo que chegou à verdade depois de uma longa busca e que, há tempos, havia aberto em Roma uma escola que, seguindo as normas da lei, ensinava aquilo que, segundo lhe parecia, conduzia o homem à salvação. Por que aos cristãos devia ser impedido seguir Cristo? Exatamente para reivindicar este sacrossanto direito, ele escrevera muito e tinha dirigido, aos dois últimos imperadores e às pessoas mais conceituadas de Roma, duas Apologias defendendo o cristianismo. 1. Atos do martírio, cap. 1.


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A procura sincera da verdade Justino nasceu no princípio do século II em Flávia Neápolis, uma pequena cidade romana renascida das cinzas da antiga Siquém da Samaria, hoje Nablus, na Síria. Pelo nome de seu pai, Prisco, e do seu avô, Bacchio [Báquio], e pela educação recebida, parece que sua família tenha sido de origem romana ou que tivesse adotado em tudo a cultura romana. De fato ele quase nada sabia a respeito do mundo hebraico e não conhecia nem mesmo os escritos bíblicos dos hebreus, ao passo que era um grande conhecedor dos autores gregos e latinos. Desde jovem demonstrou um grande interesse pela filosofia, esperando encontrar nela a verdade. Ele mesmo descreveu a aventura dessa caminhada de procura no Diálogo com o judeu Trifão. “Depois de ter freqüentado por longo tempo as aulas de um mestre estóico sem enriquecer os meus conhecimentos a respeito de Deus – pois ele mesmo não só não o conhecia como também entendia que não era necessário conhecê-lo – distanciei-me dele e fui levado para conhecer um outro mestre, um notório peripatético (isto é, um seguidor de Aristóteles), que se considerava rico de talentos. Ele foi paciente comigo somente um dia, pois pretendeu que eu estabelecesse o pagamento, para que o nosso relacionamento não fosse privado de utilidade. Foi este o motivo pelo qual eu também o abandonei, pois a meu modo de entender ele não era de fato um filósofo”.2 Justino, então, procurou um outro caminho, aproximando-se de um famoso pitagórico, “um homem que se gabava muito de sua sabedoria”. Mas foi novamente uma desilusão, porque este exigia de Justino que se aprofundasse primeiro no conhecimento da música, da astronomia e da geometria. Segundo o mestre, ele deveria antes de tudo se desprender das coisas sensíveis para depois poder penetrar nas coisas espirituais. Não tendo nenhum interesse por essas ciências, Justino acabou abandonando também esse mestre. “Na minha irreflexão” – prossegue – “resolvi escutar também os platônicos; também esses, de fato, tinham uma boa fama. Dado que na nossa cidade morou, por pouco tempo, um sábio que gozava de grande consideração entre os platônicos, freqüentei-o o mais que pude; fiz grandes progressos e fui me aperfeiçoando dia após dia. Interessava-me muito pela espiritualidade do incorpóreo e pela visão que as idéias deram ali ao meu pensamento. Em pouco 2. Cit. in Manns, P. I santi, I. Milano, Jaca Book, 1987, p. 94.


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tempo acreditei que eu era um sábio e que na minha limitação nutria a esperança de ver diretamente a Deus. Este de fato é o fim da filosofia de Platão”.3 Iniciado na filosofia platônica, retirou-se para um lugar solitário, talvez próximo de Éfeso, ao longo do mar para encontrar no silêncio e na solidão a verdadeira sabedoria. Um encontro casual, ao longo da praia, com um velho sábio abriu-lhe os olhos para a fé cristã. Depois de tê-lo ouvido por longo tempo, o velho lhe disse: “Mas tu és um amante do bem falar, não certamente um amigo de quem quer agir de acordo com a verdade”.4 Estas palavras lhe penetraram no mais profundo do coração e lhe iluminaram a mente. Então ele estava perdendo tempo! O que ele deveria fazer? E o velho sugeriu-lhe a leitura dos profetas do Antigo Testamento que falavam da salvação trazida à terra por Jesus de Nazaré, Filho de Deus. Seguindo este conselho e admirando a coerência de vida dos cristãos que sabiam enfrentar até mesmo o martírio para testemunhar a verdade, logo se convenceu de que o cristianismo era “a única, a verdadeira e útil filosofia”.5 Recebido o batismo, compreendeu que sua missão era defender e propagar o evangelho, principalmente entre as pessoas cultas. Entre estes, de fato, o cristianismo era conhecido somente pelas calúnias que eram proferidas e escritas contra os cristãos. Vestido com o manto de filósofo, Justino começou sua longa viagem de pregador itinerante pelas longas estradas do Império Romano. De uma discussão com um hebreu sábio e seus discípulos nasceu, vinte anos depois, o famoso Diálogo com o hebreu Trifão, onde é apresentada a história do povo hebreu como preparação para a vinda de Cristo e a sua missão para a salvação de todos os povos. Na sua viagem chegou também a Roma, onde fundou uma escola, teve numerosos discípulos e escreveu muito. Manteve discussão também com um famoso filósofo cínico da cidade, um certo Crescendo. E aí começaram os seus problemas. Por causa de sua atividade e de seus escritos ele já era conhecido também entre as pessoas cultas e entre os políticos e alguém, temendo sua influência em tais ambientes, denunciou-o como cristão juntamente com um grupo dos seus mais íntimos. 3. Ibid., p. 94. 4. Diálogo 3,3. 5. Ibid., 8.


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O escritor Poucos são os seus escritos que chegaram até nós, o Diálogo e as duas Apologias, mas são preciosíssimos documentos para a história do cristianismo nos primeiros séculos. Eles retratam a vida cristã do século II: a fé professada, a celebração litúrgica do batismo e da eucaristia, a coerência dos cristãos com o evangelho e também as grosseiras acusações dos pagãos. Já dissemos anteriormente a respeito da profissão de fé. Justino foi de uma importância particular, porque, vindo do mundo da filosofia grega, teve uma preciosa intuição. Ele foi o primeiro que mostrou que na procura honesta de tantos sábios da antiguidade, encontramos as assim chamadas “sementes do Verbo”, que constituem uma preparação para compreender o anúncio do evangelho. Ele não teve medo de se aproximar desses sábios profetas que guiaram o povo hebreu no Antigo Testamento. Pode-se dizer também, com uma linguagem moderna, que ele foi o primeiro escritor cristão que iniciou aquela inculturação do cristianismo no mundo greco-romano levada à realização depois pelos padres da Igreja. Quanto à liturgia batismal, assim foi descrita por Justino: “Aqueles que crêem na verdade de nossos ensinamentos e da nossa doutrina prometem viver em conformidade com ela. Então nós os ensinamos a orar e a pedir a Deus, no jejum, a remissão dos seus pecados e nós mesmos oramos e jejuamos com eles. Em seguida nós os conduzimos até um lugar onde existe água e ali os regeneramos como nós o fomos. Em nome de Deus, Pai e Senhor de todas as coisas, e de Jesus Cristo, nosso Salvador, e do Espírito Santo, são lavados”.6 A respeito da eucaristia há uma página muito bela na sua simplicidade: No dia do sol (isto é, no domingo) todos aqueles que habitam na cidade e nos campos se reúnem em um mesmo lugar e se lêem as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, enquanto o tempo o permita. Quando o leitor terminou de ler, aquele que preside faz um discurso para admoestar e exortar a colocar em prática aqueles bons exemplos. Depois todos juntos nos levantamos e elevamos orações (...). Depois de terminadas as orações, abraçamo-nos, beijando-nos mutuamente. Depois são trazidos àquele que preside os irmãos um pão e uma taça com vinho e água. Ele os pega, louva e glorifica o Pai de todos em nome do Filho e do Espírito Santo, depois pronuncia uma longa oração de ação de graças 6. Apologia 1,61.


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para que sejam todos tornados dignos destes dons. Terminadas as orações e o agradecimento eucarístico, todo o povo aclama. Amém! (...) Depois que aquele que preside cumpriu a ação de graças e todo o povo respondeu, aqueles que nós chamamos diáconos distribuem a cada um dos presentes o pão e o vinho e a água eucarísticos e são também levados aos ausentes. (Porque) o alimento eucarístico (...) é carne e sangue de Jesus encarnado... (Logo após) a distribuição das espécies consagradas, aqueles que possuem bens e têm boa vontade (de doálas) oferecem espontaneamente o que querem e o recolhido é entregue àquele que preside, o qual ajuda os órfãos, as viúvas, aqueles que se encontram em necessidade por doença ou por um outro motivo, os prisioneiros e os estrangeiros de passagem: ele procura socorrer todos aqueles que se encontram em dificuldades. 7

Descrevendo ao vivo esses ritos cristãos, Justino levava ao conhecimento do público erudito, afastando as falsas acusações de práticas mágicas e sanguinárias, como matar e comer a carne de crianças imoladas. “Eu ainda estava me aprofundando na doutrina de Platão quando fiquei sabendo das acusações feitas contra os cristãos. Mas vendo-os tão intrépidos diante da morte e dos sofrimentos – coisas que fazem outros se encherem de medo – pensei comigo mesmo que não era possível que tais pessoas vivessem no mal e no apego aos prazeres. (...) Quando percebi que existe um rol de mentiras espalhado pelos demônios para desviar os homens das divinas doutrinas dos cristãos, deu-me vontade de zombar tanto dos autores de semelhantes aleivosias quanto das fantasias criadas pela opinião pública”.8

O mártir Acusado oficialmente de ser cristão, Justino teve de se apresentar ao juiz. Os atos do martírio foram conservados e são reconhecidos de grande valor histórico.9 Deles, transcrevemos aqui uma parte: O prefeito Rústico lhe disse: — E tu, infeliz, encontras prazer na doutrina dos cristãos? Justino respondeu: — Sim, porque eu a sigo como a fé correta. O prefeito Rústico perguntou: — E qual é esta doutrina?

7. PG 6. 8. Apologia II. 9. PG 6, 1366-1371.


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Justino respondeu: — A de adorar o Deus dos cristãos, que cremos ser o único criador e artífice, desde o princípio, de toda a criação, das coisas visíveis e invisíveis; adoramos também o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que os profetas anunciaram vir para o gênero humano como mensageiro da salvação e mestre da boa doutrina. E eu, como simples homem, considero insignificante tudo o que estou dizendo para exprimir a sua infinita divindade. Reconheço que esta capacidade é própria dos profetas que antecipadamente anunciaram esse que há pouco afirmei ser Filho de Deus. Sei bem, efetivamente, que os profetas inspirados por Deus predisseram a sua vinda entre os homens. Rústico perguntou: — Então, tu és cristão? Justino confirmou: — Sim sou cristão. O prefeito disse a Justino: — Ouve, tu que és tido por sábio e julgas conhecer a verdadeira doutrina: se depois de teres sido flagelado e a seguir decapitado, estás convencido de que subirás ao céu? Respondeu Justino: — Espero entrar naquela morada, se tiver de sofrer o que dizes. Pois sei que para todos os que viverem santamente está reservada uma recompensa de Deus até o fim do mundo inteiro. O prefeito Rústico continuou: — Então, tu imaginas que hás de subir ao céu para receber uma digna recompensa? Justino respondeu-lhe: — Não imagino, sei e estou certíssimo disso. Falou então o prefeito Rústico: — Basta, deixemos isso e vamos à questão que realmente importa. Junta-te aos outros e sacrifica de maneira que concorde aos deuses. Justino respondeu: — Ninguém que esteja no bom uso de sua mente abandonará a piedade para cair na impiedade. O prefeito Rústico insistiu: — Se não obedecerdes às minhas ordens sereis torturados sem misericórdia. Justino disse: — Temos confiança de salvar-nos por nosso Senhor Jesus Cristo se formos submetidos ao castigo, porque isto nos dará salvação e confiança diante do tribunal mais temível e universal de nosso Senhor e Salvador. Outro tanto disseram também todos os outros mártires: — Faze o que quiseres; nós somos cristãos e não sacrificaremos aos ídolos. O prefeito Rústico pronunciou a sentença, dizendo: — Aqueles que não quiserem sacrificar aos deuses e obedecer a ordem do imperador, depois de flagelados, sejam conduzidos para sofrer a pena capital, segundo a norma da lei. Glorificando a Deus, os santos mártires saíram para o local determinado, onde foram decapitados e consumaram o martírio proclamando a fé no Salvador.


Santos Marcelino e Pedro

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Transcorria o ano 166. A Igreja no prefácio litúrgico do Missal ambrosiano louva Justino com estas palavras: “Ele cumpriu fielmente o seu ministério, depois de ter testemunhado diante de muitas testemunhas, e tu lhe concedestes o derramamento do seu sangue para receber a coroa de glória eterna nas fileiras luminosas dos mártires”.

2 de junho Santos Marcelino e Pedro mártires (= 303) “Jesus deu a vida por nós: demo-la, portanto, também nós, não digo por ele, mas por nós; também por aqueles que devem ser edificados pelo nosso martírio.” 10

Martírio significa testemunho, e os mártires são aqueles que testemunham com o próprio sangue o amor de Deus por nós, e o amor deles para com Deus. Nos primeiros séculos o martírio foi o meio mais convincente para a conversão ao cristianismo, tanto que levou Tertuliano a dizer que “assim que a verdade veio ao mundo, só com a sua existência provocou o ódio”, mas “a verdade combateu sozinha” e “o sangue dos mártires torna-se semente de novos cristãos”. Compreende-se agora que escritores como Orígenes exortassem os cristãos ao martírio e que as comunidades honrassem grandemente os seus mártires, venerando-lhes as relíquias e transmitindo as recordações orais e escritas deles, com o perigo de embelezá-las, distanciando-se da nua verdade histórica. Marcelino e Pedro eram evidentemente dois cristãos de Roma. O papa Dâmaso escreve que ele, quando ainda era criança, recolheu pessoalmente da viva voz do algoz como foi a execução deles. Querendo que os vestígios deles desaparecessem, para assim impedir que os cristãos lhes venerassem as relíquias, os juízes tinham ordenado que a eliminação fosse em lugar escondido, no meio de um bosque.

10. Orígenes. Exortação ao martírio, in PG 11,618.


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Os dois condenados foram então levados para fora da cidade, a um local denominado de os “Dois Loureiros”, na via Labicana, perto das terras dos Lateranos, hoje São João de Latrão. Aí eles foram obrigados a cavar a própria cova com as mãos e foram decapitados e depois sepultados. Depois de algum tempo, uma piedosa senhora, chamada Lucila, achou seus corpos e lhes deu uma sepultura mais digna. O imperador Constantino, por desejo de sua mãe Helena, edificou sobre o túmulo desses mártires uma basílica e ao lado construiu um mausoléu onde colocou o corpo de Helena. Era um costume do tempo fazer sepultar os mortos perto do túmulo dos mártires. Uma passio (paixão) escrita no século V, mas historicamente considerada não-confiável, relata que antes da execução os dois mártires foram lançados em uma prisão, sendo vigiados por um certo Artêmio, que tinha uma filha possessa do demônio. Pedro exorcista lhe assegurou que, se sua família se convertesse ao cristianismo, sua filha seria curada. Quando o carcereiro, sua mulher Cândida e a sua filha Paulina receberam o batismo, o milagre verificou-se. Os neoconvertidos confessaram a sua fé diante do juiz e foram ao encontro do martírio, na décima segunda milha da via Aurélia, onde Artêmio foi passado a fio da espada e Cândida e Paulina foram lapidadas. O relato, enriquecido com tantas particularidades, queria confirmar a irresistível difusão do cristianismo no mundo greco-romano.

3 de junho São Carlos Lwanga e companheiros mártires africanos (= 1886/87) “Estes mártires africanos acrescentam ao rol dos vencedores, chamado Martirológio, uma página ao mesmo tempo trágica e gloriosa. É uma página verdadeiramente digna de figurar ao lado das célebres narrações da África antiga.” 11

No dia 3 de junho de 1886 dezesseis pajens da corte do rei Mwanga, todos com idade abaixo de 20 anos e filhos de pessoas notáveis, subiam a colina de Namugongo, levando cada um sobre as costas um feixe de lenha. 11. Paulo VI. Homilia da canonização, in AAS, 56, 1964, 905.


Carlos Lwanga e companheiros

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Todos tinham sido condenados à morte mas, segundo uma antiga tradição, no último momento três dentre eles, tirada a sorte, foram indultados, enquanto que os outros foram amarrados e queimados vivos em uma grande fogueira. Os três sobreviventes tornaram-se testemunhas preciosas do martírio dos companheiros. Entre os condenados estava Kizito, que tinha apenas 13 anos, que enfren­ tou a morte com coragem superior à sua idade, e Mbaga Tuzinde, filho do chefe dos carrascos. Seu pai fez de tudo para salvá-lo, mas o filho não quis renegar a fé, separando-se de seus companheiros.

Testemunhas do evangelho Esse massacre foi o epílogo de uma história dolorosa e gloriosa ao mesmo tempo, na qual o colonialismo e a evangelização, a inveja e a generosidade, o amor a Deus e a fraqueza moral se entrelaçavam com as vicissitudes do reino de Buganda, a esplêndida região dos grandes lagos africanos que atualmente faz parte de Uganda. Em junho de 1879, o rei de Buganda, Mutêsa, havia recebido com satisfação os primeiros missionários católicos, os Padres Brancos do cardeal Lavigerie e muitos notáveis do reino haviam abraçado a fé. Também a Igreja anglicana havia enviado missionários e recolhia adesões ao cristianismo. Em 1882, os Padres Brancos pensaram que era oportuno abandonar a missão antes que se desencadeasse uma sangrenta perseguição. De fato muitos chefes políticos e religiosos do local sentiam-se ameaçados tanto pelo avanço do colonialismo europeu quanto pelo descrédito que as conversões ao cristianismo faziam recair sobre a religião tradicional do país. Mas em julho de 1885 o sucessor de Mutêsa, o rei Mwanga, chamou novamente os Padres Brancos assegurando a todos eles o seu apoio e a simpatia do povo. Os missionários aceitaram o convite e permaneceram admirados pela difusão da fé cristã, semeada por eles poucos anos antes, sobretudo entre aqueles que ocupavam cargos de responsabilidade na corte real. Bem cedo, infelizmente, as coisas mudaram, porque o “katikiro”, uma espécie de chanceler do reino, começou a nutrir ódio contra os cristãos que viviam na corte e que se opuseram a uma sedição contra o rei. E ele soube defender-se tão bem a ponto de fazer o soberano acreditar que os cristãos, católicos e anglicanos, trabalhavam para o serviço secreto inglês visando à destruição do seu reino.


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A isso se juntou também a aversão pessoal do rei contra a moral católica que proibia o tráfico de escravos e a pederastia. A primeira lhe rendia muito dinheiro e não queria renunciar a ela; quanto à segunda havia encontrado a resistência categórica dos pajens cristãos sustentados e instruídos pelo seu líder, Carlos Lwanga.

Católicos e anglicanos unidos pelo martírio Instigado pelo “katikiro”, no dia 29 de outubro de 1885, o rei mandou trucidar em uma emboscada uma caravana de missionários anglicanos junta­ mente com seu bispo Hannington. O mordomo da casa real, o católico José Mukasa Balikuddembe, repreendeu-o por ele não ter sabido distinguir entre os ingleses invasores e os ingleses missionários. O rei respondeu mandando decapitá-lo no dia 15 de novembro do mesmo ano. Foi o início de uma série de execuções capitais que, em poucos meses, tinham martirizado mais de cem cristãos, entre católicos e anglicanos. Até mesmo o cinqüentão Matias Kalemba, chefe de muitas aldeias e juiz do reino, por todos muitíssimo estimado, foi de maneira horrenda mutilado e abandonado à morte nas colinas de Kampala. Enfim, em Buganda, foi instaurado um clima de terror: os cristãos eram designados como “aqueles que oram”, a religião foi banida do reino. Os pajens que sobreviveram ao martírio em Namugongo assim contaram a respeito do processo da condenação à fogueira. O rei chamou os pajens a se apresentarem diante dele e lhes disse: “Todos aqueles entre vós que não querem mais orar permaneçam próximo do meu trono; aqueles que desejam continuar orando se coloquem contra aquela parede”. Carlos Lwanga foi o primeiro a se dirigir para lá, logo seguido por outros 15 cristãos. O rei perguntou a eles: “Mas vocês oram realmente?”. “Sim, meu senhor, nós verdadeiramente oramos”, respondeu Carlos em nome de todos, que no pressentimento de tudo quanto havia de acontecer havia passado a noite inteira em oração com os seus companheiros. O rei ainda perguntou: “Vocês têm a intenção de continuar a orar?”. “Sim, meu senhor, sempre até a morte”. O rei emitiu a sentença de morte para todos aqueles que não desistiram de tal propósito.12 Muitas foram as tentativas para convencer os jovens a se submeterem às ordens do rei, mas tudo foi em vão. 12. Cit. in Manns, P. I santi, II. Milano, Jaca Book, 1988, pp. 385-387.


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Os mártires ugandenses canonizados pela Igreja católica são vinte e dois: oito foram mortos antes do massacre de Namugongo e o último, João Maria Muzeyi, foi decapitado no dia 27 de janeiro de 1887. Paulo VI, na homilia da canonização desses santos, diante dos padres do Concílio Vaticano II em 1964, depois de ter recordado o exemplo heróico desses mártires modernos, acrescentou: “E não queremos esquecer os outros que, pertencendo à confissão anglicana, também enfrentaram a morte pelo nome de Cristo”. E constatava que estes mártires africanos com os seus testemunhos reafirmaram a necessidade no mundo moderno de “uma civilização aberta às mais altas expressões da inteligência humana e às mais elevadas formas da sociabilidade”.13

5 de junho São Bonifácio bispo e mártir, apóstolo da Alemanha (672/75-754) “Preguemos os desígnios de Deus aos grandes e aos pequenos, aos ricos e aos pobres. Anunciemo-los a todas as classes e a todas as idades, enquanto o Senhor nos der forças, no tempo oportuno e no tempo não oportuno, tal como São Gregório escreveu em sua Regra pastoral.” 14

Nestas poucas linhas da carta que Bonifácio escrevia a Lioba, sua parenta, fiel colaboradora e abadessa, o apóstolo da Alemanha exprimia o seu zelo incansável pela evangelização dos povos das atuais Alemanha e Holanda, e também o seu método, que se inspirava no carisma monástico e na famosa Regra pastoral de São Gregório Magno.

Um fruto do monaquismo anglo-saxão Wilfrido – era este o seu nome de batismo – nasceu por volta do ano 673 na região sul-ocidental da Inglaterra, no reino de Wessex, mas suas raízes provinham do além-mar, da distante Saxônia. Segundo um costume naquele 13. Paolo VI. Homilia da canonização, cit., 906. 14. MGH, Epistolae, 3,354.


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tempo muito difundido, ele teve a felicidade de ser acolhido e educado no mosteiro desde pequenino, primeiro na abadia de Exeter e depois na de Nursling, onde a severa disciplina monástica irlandesa tinha sido amenizada pela regra beneditina. Uma outra característica dos mosteiros daquele tempo, em terras bri­ tânicas, foi a profunda ligação com a cátedra de Pedro que, assegurando a participação na tradição romana, dava garantia às abadias contra toda ingerência do poder político, impedindo aos príncipes, aos reis e aos próprios bispos de se considerarem donos dos mosteiros edificados em suas terras. Wilfrido cresceu neste período áureo dos mosteiros ingleses. Neles eram cultivados com fervor os três amores: a observância monástica, através da oração litúrgica e no estudo diligente; a fidelidade aos santos apóstolos Pedro e Paulo, e a paixão missionária pela conversão dos povos ainda pagãos ou que retornaram ao paganismo no continente europeu. Para melhor compreensão da Sagrada Página, como era então chamada a Sagrada Escritura, era preciso conhecer a língua latina, a língua grega e o quanto possível também a língua hebraica. Um posto de conhecimento privilegiado, pois havia também o estudo dos santos padres da Igreja, considerados os intérpretes mais autênticos da palavra de Deus. Wilfrido tornou-se mestre, escreveu uma gramática para os seus alunos e se expressou também através da poesia. Tinha um bom conhecimento dos santos padres, sobretudo dos latinos, sendo sustentado por seus exemplos nos momentos de provação. No ano 716 obteve permissão para partir para as missões seguindo as pegadas do monge São Willibrordo. Chegou à Holanda e encontrou uma situação muito difícil. O príncipe do lugar, Radboch, havia se revoltado contra os francos e não aceitava o cristianismo, porque era a religião dos seus adversários, e havia forçado Willibrordo, bispo de Utrecht, a se retirar para um mosteiro. Wilfrido visitou este inflexível príncipe e percebeu que seria perigoso continuar a insistir. Retirou-se em paz e retornou para a Inglaterra para se preparar melhor enquanto aguardava ocasião mais propícia. Mas a sua visita à terra de missão não havia sido inútil e o seu amor pela evangelização não havia enfraquecido. Ele entendeu que para levar adiante tal obra precisava antes de tudo contar com colaboradores, homens e mulheres dispostos até mesmo ao martírio, para implantar, nos pontos geograficamente mais importantes, mosteiros que funcionassem como centros propulsores de cultura cristã.


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Era, pois, importantíssimo, antes de entregar-se à pregação, obter o apoio dos francos, que já estavam espalhados por todas as regiões do norte da Europa. Para não cair nas garras do poder político, era indispensável receber do papa um mandato oficial e colocar as novas comunidades cristãs sob o patrocínio de São Pedro. Wilfrido, de fato, havia observado que a Igreja dos francos estava em decadência porque, faltando esta ligação com Roma, a nomeação dos bispos e dos abades não era feita pelo desejo de escolher bons pastores, mas era manipulada pelos interesses políticos.

A primeira viagem para visitar o túmulo de Pedro Em 718, seus monges quiseram elegê-lo sucessor do abade que havia desaparecido, mas Wilfrido conseguiu fugir e assim conseguiu empreender sua segunda viagem. Desta vez, porém, dirigiu-se imediatamente para Roma, onde foi recebido pelo papa Gregório II, que estava muito interessado na conversão dos povos germânicos. O Papa reteve consigo o monge Wilfrido em Roma durante todo o inverno, e assim teve a oportunidade de conhecêlo a fundo e de apreciar-lhe os dotes, e em maio do ano de 719 enviou-o oficialmente como missionário papal com todos os poderes de que tinha precisão. Wilfrido, por sua vez, prometia que daria constantemente notícias para que o Papa soubesse do êxito das missões. Dessa vez ele também recebeu um novo nome, como sinal de sua fidelidade a Roma: chamou-se Bonifácio, nome do mártir romano cuja festa se celebrava naquele dia. Desse momento em diante, ele passou a assinar sempre com esse nome. No norte da Itália, Bonifácio foi recebido com todas as honras da corte do rei longobardo, Liutprando; daí dirigiu-se para a Baviera para tomar conhecimento da situação daquela Igreja, e depois foi para a Turíngia. Quando estava perto da Francônia recebeu a boa notícia de que a Frísia, depois da morte de Radboch, estava novamente reaberta para a recepção do evangelho. Correu logo para junto de seu amigo Willibrordo, e junto com ele fez o seu tirocínio missionário por cerca de dois anos. Quando esse pensava que havia encontrado um seu sucessor para Utrecht, Bonifácio compreendeu que havia chegado o momento certo para realizar o seu projeto mais amplo, que já havia estudado com o Papa: evangelizar os povos situados à direita do Reno que eram pagãos ou que haviam recaído no paganismo. Deixou, então, o santo bispo de Utrecht e partiu para a região da Assia.


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A segunda viagem a Roma Ali ele apenas havia fundado o primeiro mosteiro e reformado outras comunidades que estavam dispersas, quando o Papa o chamou a Roma no ano 722 para consagrá-lo bispo não de uma diocese, mas de toda a região além do Reno. Ele partiu de Roma com uma carta papal para Carlos Martel, rei dos francos, e outras cartas para os príncipes e bispos que ele foi encontrando pelo seu caminho. O Papa pedia a todos eles para dar todo apoio à obra missionária de Bonifácio, seu legado. A ordenação episcopal de Bonifácio teve uma característica interessante: ele foi consagrado como se fosse um bispo suburbicário à Santa Sé em Roma e, portanto, ligado diretamente ao Papa, a quem prestou o juramento de obediência. Naquele tempo, também no campo civil, o juramento de fidelidade ou de vassalagem feito ao superior obrigava até a morte e tudo o que o vassalo realizasse pertencia àquele ao qual ele havia jurado fidelidade. Se o vassalo do rei fosse também bispo – coisa muito comum naquele tempo – esse ficava ligado ao rei pelo juramento. Bonifácio rompeu com esta dependência ao poder civil. Se ele construía um mosteiro, se fundava uma diocese, essas obras – segundo as normas da vassalagem aceita então por todos – pertenciam à jurisdição pontifícia. Começava, dessa maneira, a se afirmar o princípio de uma Igreja que não estava submetida ao poder político. Carlos Martel, por sua vez, deu todo apoio a Bonifácio, convencido de que os outros povos, convertendo-se ao cristianismo, estariam de algum modo ficando sob a sua influência, porque o papa, evidentemente, estava bastante distante.

Missionário das terras além do Reno Tendo retornado para Assia, o novo bispo logo se entregou ao trabalho e, com uma estratégia típica do seu tempo, quis dar um golpe decisivo na superação do paganismo, colocando no chão o famoso carvalho do deus Thor perto de Geismar, usando a madeira para a construção de uma igrejinha dedicada a São Pedro. Quando a comunidade cristã do lugar já havia adquirido uma certa consistência, fundou o mosteiro de Fritzlar, nomeando para abade Vigberto e confiando-lhe o cuidado dos novos cristãos. Sob a sua cuidadosa direção a


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abadia tornou-se centro de importante vida cristã na região e uma forja onde Bonifácio podia conseguir colaboradores para as novas fundações monásticas. De Assia ele se transferiu para a Turíngia. De 725 a 731 trabalhou na reorganização da Igreja nesta região superando os contrastes do clero franco, que já se havia estabelecido nesse local, mas sem vida evangélica e sem espírito missionário. Bonifácio, enquanto preparava nos mosteiros novas levas de jovens daquela região, conseguiu obter ajuda, seja em dinheiro seja em potencial humano, da sua terra natal e os missionários anglo-saxões, homens e mulheres, estabeleceram-se nos numerosos mosteiros por ele fundados, difundindo em todos os lugares a fé e a cultura. Entre os anglo-saxões, seus colaboradores, além de Vigberto que dirigia também o mosteiro de São Miguel de Ohrdruff, em Gotha, temos que recordar a figura de Lullo que ele escolheu como seu sucessor na sede de Mogúncia, Burcardo que se tornou bispo de Würzburg, Denehard que foi seu fiel mensageiro junto do papa e os dois irmãos Willibaldo e Wunibaldo. Bonifácio compreendeu quão importantes eram os mosteiros femininos para a formação das mulheres. Lembremo-nos de Lioba que, sendo uma mulher muito culta e de profunda vida evangélica, foi por ele nomeada abadessa de Taubertbischofsheim e à qual permaneceu ligado por amizade profunda; e depois Tecla, Walburga e Cunitrude. A abadia que maior influência exerceu na região foi sem dúvida nenhuma a de Fulda, que se tornou modelo para todos os mosteiros da Alemanha e que conseguiu se subtrair da intromissão dos poderes locais, tanto políticos quanto eclesiásticos. Em 732, o papa Gregório III reconhecendo, como seu antecessor, a importância da obra de Bonifácio, enviou-lhe o pálio, nomeando-o arcebispo de todo o território por ele evangelizado e autorizando-o a eleger e a consagrar bispos e a criar dioceses na sua província eclesiástica. Bonifácio empenhou nisso toda sua capacidade organizadora, dando estabilidade à própria obra missionária.

A terceira viagem a Roma No ano 738 fez a sua última viagem a Roma com Wunibaldo. Gregório III não deixou escapar a oportunidade de se servir de Bonifácio para renovar a vida da Igreja em toda a Alemanha e nomeou seu legado para essa obra, autorizando-o a convocar sínodos e a eleger bispos em todo o país.


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Ao retornar para a Germânia, Bonifácio começou pela Baviera para depois passar para a Alemanha, a Assia e a Turíngia. Fundou a diocese de Salisburgo e deu vida nova às dioceses de Passau, Frisinga, Ratisbona, Eichstätt, Würzburg, Buraburg, Erfurt. Assim formou uma rede de centros vitais do cristianismo com o impulso missionário na direção dos povos do Oriente. Depois da morte de Carlos Martel, que havia apoiado o seu trabalho, os dois filhos do rei dividiram o reino. Carlomano recebeu a parte oeste da Francônia e, como seu pai, continuou a favorecer Bonifácio, mas encontrou a resistência surda dos círculos francos também dentro da igreja, porque o clero franco não via com bons olhos esse bispo estrangeiro que promovia uma vida austera entre os sacerdotes e se circundava de monges anglo-saxões instruídos. Neste período Bonifácio escreveu à abadessa Lioba que, enquanto seus adversários se encarniçavam contra ele, este encontrava conforto no exemplo dos santos padres: “Grandes navegadores da Igreja foram os primeiros santos padres, tais como Clemente e Cornélio, e muitos outros em Roma, Cipriano em Cartago, Atanásio em Alexandria. Sob o reinado dos imperadores pagãos, eles governaram a barca de Cristo, ou melhor, a sua caríssima esposa, ensinando, defendendo-a, trabalhando e sofrendo até ao derramamento do próprio sangue”.15 Mesmo entre as controvérsias e as oposições, Bonifácio conseguiu dar um novo semblante à Igreja da Alemanha, sobretudo formando nos conventos as novas gerações. A vitalidade das suas dioceses e das suas abadias, o florescimento de um clero culto e santo, a prosperidade também econômica do povo que não desperdiçava mais as suas preciosas energias nas tradicionais rivalidades tribais, mas sim no trabalho cotidiano iluminado e dirigido pela experiência dos monges, tudo contribuiu para esparramar a fama de Bonifácio também no estrangeiro e na sua pátria de origem.

A reforma da Igreja da Francônia Até mesmo o rei Pepino, não obstante a oposição dos bispos francos, quis que ele atuasse também no seu reino, onde a parte melhor do clero ficou ao redor de Bonifácio. Sobretudo o bispo de Metz, Crodegang, e o abade de

15. Ibid., 3,352.


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São Dionísio seguiram o seu exemplo e, depois dos dois sínodos, também a Igreja franca do reino do rei Pepino, a Nêustria, foi reformada. Quando estava sendo encerrado o segundo sínodo, seus bispos escreveram uma profissão de fé ao papa Zacarias que reproduzia a mesma que Bonifácio enviou logo depois da eleição, dizendo-lhe: “Eu serei para vós um servo fiel e devoto e não cessarei de tornar obedientes à Igreja romana todos aqueles que Deus me conceder por discípulo nas províncias que me foram confiadas”.16 Bonifácio foi fiel ao seu compromisso e conseguiu transmitir a sua paixão para além da sua província eclesiástica. Finalmente, a Regra de São Bento estava sendo vivida em todos os conventos e os monges que não a adotavam não podiam dizer que eram beneditinos, mas simplesmente cônegos regulares e também eles deviam se ater a determinadas normas; a vida dos bispos e das suas dioceses tinha seu modelo inspirador na Regra pastoral de São Gregório, que junto com o evangelho foi posta nas suas costas na cerimônia de ordenação. Enfim ficou esclarecido que eles deviam manter uma estreita ligação com o bispo de Roma. Cumprida a sua missão, renunciou à sede de Colônia para a qual tinha sido designado por um sínodo com a aprovação papal. Para não alimentar a aversão da parte franca, e nomeando Lullo como seu sucessor em Mogúncia, Bonifácio quis reservar as últimas forças para a conversão da terra de seus antepassados, a Saxônia.

O martírio Em 754-55 Bonifácio dirigiu-se para Utrecht e realizou a sua primeira viagem ao longo do rio Reno para chegar à Saxônia; depois retornou para a cidade para passar aí o inverno, e com a primavera retomou a viagem junto com Eobano, bispo da cidade, e um numeroso grupo de companheiros. Chegando próximo de Dokkum, enquanto se preparava para administrar o sacramento da crisma a um grande grupo de neófitos, foi atacado de improviso e martirizado juntamente com seus cinquenta e dois companheiros. Um dia ele havia escrito: “Não sejamos cães mudos, não sejamos assistentes calados, não sejamos mercenários que fogem dos lobos, mas pastores solícitos, vigilantes sobre o rebanho de Cristo. Enquanto Deus nos der forças, preguemos toda a doutrina do Senhor ao grande e ao pequeno, ao rico e ao pobre, a todas as classes, de qualquer idade e condição, seja no momento 16. MGH, Epistolae, 42,111.


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adequado como no momento não adequado, e deixemo-nos anunciar a vontade de Deus enquanto Deus nos der forças”.17 O apóstolo da Alemanha coroava com o martírio a sua grandiosa obra evangelizadora.

6 de junho São Norberto bispo e fundador dos premonstratenses (1080/85-1134) “De maneira muito freqüente Norberto sempre recomendava aos seus estes três pontos: pureza (da alma e do ambiente) nas atitudes no altar e nos santos misteres; correção (fraterna) no capítulo e em toda parte, das culpas e negligências; exercício da caridade e da hospitalidade nas relações com os pobres. (Tudo isto) porque no altar são evidenciados a fé e o amor a Deus; na purificação da consciência, o cuidado consigo mesmo; com o acolhimento dos hóspedes e dos pobres, a caridade nas relações com o próximo. Ele não se cansava de assegurar que uma casa que se aplica a observar estes três pontos não encontrará (nunca) penúria que suas próprias forças não possam suportar.” 18

Se Bernardo de Claraval foi o reformador da vida monástica, Norberto foi o reformador da vida apostólica do clero diocesano. Ambos partiram da espiritualidade monástica, a mais conhecida e praticada então na Igreja, mas cada um a aplicou segundo a inspiração recebida de Deus. Ambos contribuíram para a reforma da Igreja e tiveram grande influência na sociedade civil, os dois lutaram contras as heresias e contribuíram segundo o próprio carisma para a evangelização.

Destinado à carreira eclesiástica Norberto nasceu da nobre família dos Gennep, na Renânia, talvez em Xanten, cerca do ano 1080/85. Seu pai Eriberto estava a serviço de Frederico 17. MGH. Epistolae, 3,354. 18. Vita Sancti Norberti, 12. Cf. PL 170, 1262-1295.


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I von Schwarzenberg, bispo e príncipe de Colônia. Também sua mãe era de estirpe nobre e se chamava Advige. Iniciou os estudos na escola da igreja de Xanten, da qual se tornou cônego ainda muitíssimo jovem; depois foi para a corte do bispo de Colônia e então fez uma rápida carreira na corte do imperador Henrique V. Aí entrou em contato com toda a problemática política e religiosa daquele tempo no que se refere à luta entre o imperador e o Papa a respeito da eleição dos bispos. Mesmo que seus ideais fossem carreirísticos, ele conservou sempre uma profunda retidão moral recebida na sua família, e jamais quis se envolver nas desventuras espiritualmente nocivas tão comuns nos ambientes das cortes. Procurou manter-se distante também das intrigas políticas, e quando no Sínodo de Colônia em 1115, o legado pontifício excomungou o imperador, Norberto retornou para Xanten, para junto dos cônegos, e quando o imperador lhe ofereceu a sede do bispado de Cambrai, respondeu decididamente que não aceitava.

Um golpe fulminante ou uma luz do Espírito? Refletia sobre a sua vida e desejava mudar de roteiro. A queda de um raio durante uma tempestade quase lhe tirou a vida: ele viu neste acontecimento uma advertência do céu e se retirou para o mosteiro beneditino de Siegburg para refletir sobre o seu futuro. O arcebispo Frederico de Colônia não o havia esquecido e mandou chamá-lo, ordenando-o sacerdote. Norberto aceitou, mas quis retornar novamente a Siegburg para aprofundar sua formação espiritual e intelectual. Influenciado pelo espírito da reforma gregoriana que exigia dos padres diocesanos uma vida pobre, casta e obediente às leis da Igreja, voltou a viver entre os cônegos de Xanten procurando envolver também eles nesse estilo de vida. Infelizmente ele teve de admitir que seus companheiros não tinham nenhuma vontade de trilhar o caminho do Evangelho. Estavam na sua região pregadores ambulantes, pessoas que, vivendo de maneira pobre à semelhança dos apóstolos, viajavam de um lugar para outro pregando a conversão. Norberto dedicou-se a esse apostolado por vários anos; com a sua palavra calorosa e persuasiva e com o seu exemplo de candura e pobreza converteu muitas pessoas. Mas esses pregadores deixavam um tanto suspeitosa, corroendo-se em preocupações, a hierarquia da Igreja que, no sínodo de Fritzlar, no ano 1118,


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chamou Norberto para fazer uma exposição de seu trabalho e depois de tê-lo escutado atentamente não o condenou, mas também nem mesmo o aprovou. Para ele foi um golpe muito doloroso, porque não queria “correr em vão” e, aproveitando a presença do papa Gelásio II na Gália, foi vê-lo em St. Gilles, expôs-lhe o seu estilo de vida e de apostolado, e obteve a plena aprovação. Enquanto isso foram se unindo a ele alguns companheiros. Norberto percebeu que para pregar a palavra de Deus eles tinham a necessidade não só de boa vontade, mas também de instrução na Sagrada Escritura. Juntamente com eles freqüentou a escola de Laon, tendo como professor o famoso mestre Anselmo de Laon. Enquanto pregava com muito sucesso em Valenciennes ele adoeceu gravemente, e Burcardo, bispo de Cambrai, lhe enviou como ajudante o seu secretário, Hugo de Fosses. Este, atraído pelo ideal de Norberto, tornou-se seu discípulo e mais tarde foi seu sucessor no governo da ordem e o legislador dela. Norberto percebeu que o problema mais grave da Igreja era a falta de um clero santo e instruído, e pensou em se dedicar a esta tarefa. Quis se encontrar com o papa Calisto II, sucessor de Gelásio II, para expor-lhe o seu projeto. O papa ficou entusiasmadíssimo e lhe deu todo o seu apoio, encarregando o bispo de Laon, Bartolomeu de Joux, de auxiliá-lo.

Assim nasceram os premonstratenses O bispo não acreditava no que seus olhos estavam vendo e logo propôs a Norberto a fundação de um cenóbio na sua diocese. Que ambiente melhor para formar o tipo de apóstolos que ele desejava? E logo lhe ofereceu um terreno em campo aberto chamado Prémontré, que queria dizer Pratum monstratum (prado mostrado). No Natal de 1121, cerca de quarenta companheiros consagraram-se com ele com votos públicos para toda a vida apostólica. Diversamente dos monges, os votos dos premonstratenses, mesmo exigindo a vida de perfeição, tinham como finalidade a pregação, e mesmo valorizando a vida monástica, colocavam-na a serviço direto da evangelização. Por isso não foi adotada a regra de São Bento, mas sim a de Santo Agostinho, compreendida como mais adaptada para quem desejava se dedicar à evangelização do povo.


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Com o aumento das vocações, Norberto precisou fundar novos cenóbios em várias regiões do império e teve também de acolher muitas mulheres que desejavam viver de alguma maneira a sua experiência. Assim surgiram os denominados mosteiros mistos: ao lado do mosteiro dos cônegos surgia também o mosteiro das cônegas. Elas, devido à mentalidade do tempo, não podiam pregar ao povo, mas podiam orar, cuidar dos pobres e colaborar com os seus irmãos cônegos na manutenção da igreja e outros afazeres. No ano de 1123 Norberto, com um grupo de companheiros, foi convidado a pregar em Anvers. Aí, Tanquelmo, uma personalidade culta e desejosa da reforma dos costumes dos sacerdotes, havia instigado o povo a uma revolta contra o clero local, ensinando que as celebrações eucarísticas eram nulas devido aos maus costumes dos sacerdotes. Norberto conseguiu apaziguar os cristãos e restabeleceu a verdadeira fé entre eles. O episódio alcançou grande repercussão e Norberto acabou ganhando o título popular de apóstolo do Santíssimo Sacramento. Embora já tivesse alcançado a aprovação de dois papas para o seu estilo de vida e pregação, ele quis ir a Roma para pedir a aprovação definitiva de sua ordem. No dia 16 de fevereiro de 1126, Honório II lhe concedeu de forma solene o que ele desejava. Norberto retornou a Prémonstré atravessando a Alemanha, pregando em várias cidades e fundando novos cenóbios. Fazia pouco tempo que Norberto havia voltado para o berço de sua ordem, onde Hugo de Fosses levava adiante muito bem a casa e a formação dos cônegos, quando teve de aceitar o convite de pregar na Alemanha.

Bispo de Magdeburgo Assim que Norberto chegou em Speyer, recebeu o comunicado de que ele havia sido eleito arcebispo de Magdeburgo. Para vencer a sua relutância, o legado pontifício interveio com estas palavras: “Pela autoridade de Deus onipotente, pelos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo e do senhor papa Honório, eu vos ordeno que não resistais ao chamado de Deus. Como servidor fiel e prudente fazei frutificar o talento da palavra de Deus, que vós recebestes para o proveito de todos”.19 Mas não era isto fundamentalmente o que Norberto havia escolhido: levar a Palavra aos pobres? Ele foi para Magdeburgo chorando e quando avistou a cidade tirou os sapatos e se apresentou com os pés nus no palácio 19. Ibid., 18.


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episcopal. O porteiro não podia imaginar que fosse o bispo e não o deixou entrar. Quando os outros quiseram censurar o pobre porteiro, Norberto o defendeu com as seguintes palavras: “Não tenhas medo, pois tu viste bem, melhor do que os outros que me arrastam para este palácio belo demais para mim, que sou pobre e humilde de condição”.20 O povo ficou muito contente com o seu novo bispo, mas aqueles que na cidade comiam e bebiam à custa da diocese, desperdiçando aquele patrimônio que devia servir aos pobres, procuraram prejudicar a vida de Norberto e isso acontecia também entre o clero, que não tinha intenção de reformar a própria vida, segundo o evangelho. Pelo menos duas vezes os seus inimigos tentaram matá-lo à traição. Por bom espaço de tempo ele precisou deixar a diocese e se esconder. Quando retornou, o povo acolheu-o triunfalmente, mas Norberto entendeu que sem homens novos não poderia renovar a diocese. Então chamou os premonstratenses para que formassem a nova geração, sobretudo os jovens chamados ao ministério pastoral. Com esse grupo de apóstolos Norberto preparou um plano de evangelização que ia muito além dos confins da sua diocese, até o povo dos wendos. Uma obra difícil, porque, a partir de então, aceitar o cristianismo significava também que deviam aceitar a submissão ao imperador pagando-lhes as devidas taxas. Os wendos não queriam aceitar de maneira alguma esta forma de se submeter a quem quer que seja. Norberto então procurou remover o obstáculo fundando mosteiros nas terras dos wendos e ordenando bispos os respectivos abades. Estes, como as suas abadias, não tinham ligação jurídica com o imperador, mas uma simples ligação espiritual com o arcebispo de Magdeburgo. Ele teve oportunidade de presenciar apenas o início do seu projeto, que não obstante foi levado adiante, mesmo depois de ter ele terminado o seu caminhar neste mundo de Deus. No território de sua diocese também colhia abundantes frutos, porque nas principais cidades – Havelberg, Brandeburgo (Berlim), Ratzeburg (Osnabrück) – surgiram presbitérios de santos sacerdotes de vida comum juntamente com o responsável que era seu bispo.

Além da sua terra A fama da sua sabedoria de governo havia ultrapassado os confins de Magdeburgo. O imperador nomeou Norberto chanceler do império e de boa 20. Ibid.


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vontade aceitava seus conselhos. As comunidades premonstratenses presentes em várias regiões da Gália e da Germânia levavam adiante uma profunda renovação da vida do clero e das populações. Muitos bispos eram escolhidos entre os premonstratenses, porque eles eram bem preparados culturalmente e espiritualmente. No ano de 1130, logo após a morte de Honório II, foram eleitos dois papas: primeiro Inocêncio II e depois Anacleto II. Estava em perigo a unidade da Igreja. Enquanto Bernardo de Claraval fazia a sua parte, sobretudo na França, para que todos pudessem reconhecer o legítimo Papa, Inocêncio II, Norberto fez a mesma coisa na Alemanha, sobretudo junto do imperador Lotário. A controvérsia durava já muito tempo e no ano de 1132 Norberto acompanhou Lotário à Itália com a finalidade de reconduzir para Roma o papa Inocêncio II, depondo Anacleto. Com a mesma finalidade estava em Roma Bernardo. Os dois santos fundadores estavam em perfeita sintonia de pensamento. Lotário, aproveitando os favores que havia feito ao papa, não se satisfez somente com o ter sido coroado imperador em São Pedro, mas pediu que lhe fosse concedido reaver o privilégio de eleger diretamente os bispos do império. O papa estava a ponto de ceder ao pedido, mas insurgiram-se Bernardo e Norberto que lho impediram, dizendo ao imperador que, uma vez que a Igreja tinha sido libertada do cisma, agora ela não podia ser privada de sua liberdade. Norberto retornou à sua arquidiocese e ali permaneceu por mais dois anos. Morreu a 6 de junho de 1134. Os seus restos mortais foram transportados, depois da Reforma protestante, para Strahow, em Praga. A espiritualidade de Norberto se baseia na espiritualidade monástica de seu tempo, sobre a humildade que leva ao despojamento total de si mesmo, a serviço do próximo e da possibilidade de conseguir alcançar a mais alta união com Deus. Em Norberto, salientam-se em sua espiritualidade outros dois elementos: o impulso à difusão do reino de Deus no mundo com a pregação e com o cuidado pastoral, e a plena submissão à autoridade da Igreja. Essa inserção na estrutura visível da Igreja foi sem dúvida o segredo da fecundidade e da continuidade da obra reformadora, e deu uma grande contribuição à renovação da Igreja a partir de seu interior, reforçando a unidade.


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9 de junho Santo Efrém diácono e doutor da Igreja (306-373) “O Senhor enfeitou com cores variadas a sua palavra, para que aqueles que procuram conhecê-la possam encontrar aquilo que preferem. Todos os tesouros estão escondidos na sua palavra, para que cada um de nós encontre uma riqueza naquilo que contempla. A sua palavra é uma árvore que de todas as partes oferece-te frutos abençoados.” 21

Esse doutor da Igreja siríaca foi um enamorado da palavra de Deus: ele a medita, a explica, a escreve em versos e em música e a canta. E não o faz simplesmente para satisfação de seu refinado gosto artístico, mas para que a fé seja enraizada na cultura do seu povo. Efrém nasceu em Nísibe, na Mesopotâmia, no ano 306 em uma família cristã, e foi educado na escola do bispo do lugar, Tiago. Efrém amou de modo todo especial este bispo, pois nele encontrou não só o pai de sua fé, mas também o promotor de seus estudos. O santo bispo, de fato, percebeu logo os talentos de inteligência e bondade do jovem catecúmeno, e quis que ele fosse bem instruído na doutrina cristã e nas ciências. Aos 18 anos o batizou e em seguida o escolheu para ser diácono e colaborador, seja na administração dos bens da Igreja seja na catequese.

A escola de Nísibe Tiago, quando retornou do Concílio de Nicéia no ano 325, quis instituir uma escola oficial de catequese, da mesma maneira como fizeram outros bispos em suas dioceses, para dar uma instrução mais adequada aos cristãos e para se defender das heresias. Efrém foi escolhido como diretor da escola que se chamou Escola nisibeana, e se empenhou intensamente, não só formando os catecúmenos, mas também os batizados desejosos de aprofundar a própria fé e os futuros presbíteros. Enquanto a escola estava em pleno desenvolvimento e constituía a menina dos olhos daquela comunidade, uma terrível desventura se abateu 21. Efrém. Comentários ao Diatessaron. 1, 18; SC 121, 52.


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sobre a cidade. No ano 364 Nísibe caiu em poder dos persas e a comunidade cristã, para fugir da perseguição, preferiu refugiar-se em Edessa. Nessa cidade, os cristãos unidos ao patriarcado de Antioquia gozavam de liberdade e eram estimados.

Asceta e apóstolo Mesmo que a recepção dos irmãos em Edessa tenha sido muito calorosa e o bispo do lugar tenha demonstrado muita estima por Efrém, a vida dos imigrantes não foi fácil e a adaptação à vivência do povo do lugar exigia mais tempo. O bispo quis que Efrém continuasse a dirigir a escola de catequese, para os seus conterrâneos, e ela passou a ser chamada de Escola dos persas para distingui-la daquela que já existia em Edessa. Duas novidades aguardavam-no na nova sede. Antes de tudo, uma florescente comunidade de monges que vivia nos declives de uma colina nas proximidades da cidade. Efrém não podia viver como perfeito eremita por causa de suas múltiplas tarefas de diácono e de mestre, mas estava em condições de praticar os seus espíritos. Assim ele procurou conciliar em sua pessoa a vida do asceta e a vida do apóstolo, como fizeram depois dele Agostinho em Hipona e Gregório Magno em Roma, sem contar tantos outros no Oriente. A outra novidade é que lhe foi confiado o cuidado das filhas do Pacto: um grande grupo de virgens que ele instruía na Sagrada Escritura e no canto litúrgico. A heresia gnóstica estava semeando erros por todos os lugares através do canto. Dois hereges, Bardesan e seu filho Harmônio, haviam composto hinos populares que o povo gostava de cantar, assimilando desta forma inconscientemente os erros da fé neles contidos. Efrém, que com o seu talento artístico os superava, compôs hinos e instituiu uma escola de canto, escolhendo as vozes entre as filhas do Pacto e outras moças da cidade. Foi um grande sucesso: os hinos, executados com arte nas assembléias litúrgicas, foram logo aprendidos por todos, ouviam-se em toda parte, e até mesmo na periferia e nos arredores de Edessa. Sua atividade não se restringia mais somente a uma comunidade da Pérsia, mas se estendia a todas as comunidades do lugar. Ele escrevia lições para a escola, discursos para as festividades, hinos para o uso litúrgico e popular, inspirando-se nas Sagradas Escrituras e no ensinamento dos santos padres. Com estes meios procurava transmitir a verdadeira doutrina recebida dos apóstolos.


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Cantor da Virgem Maria Efrém destacou-se pela inspiração mariana de muitos de seus hinos. Deles, aqui recordamos um: No casto ventre virginalmente ela contém o fruto das mães silenciosamente ela traz: a virgem tem um menino, quem não se admirará?22 De Maria se gloriam todas as virgens porque ela é a virgem que se torna causa do bem e dela despontou a luz para aqueles que andavam nas trevas.23 Segundo alguns, Efrém havia intuído a Imaculada Conceição de Maria quando escreveu: “Tu e tua mãe, Senhor, sois os únicos perfeitamente belos... Em tua mãe não existe mancha nenhuma”.

Harpa do Espírito Santo Mesmo estando imerso nos estudos e nas pregações, Efrém soube deixar de lado a pena de escritor e a cátedra de mestre, quando Edessa foi saqueada pelos hunos, e viveu dias e meses de tremenda carestia. Com uma estratégia incomum organizou os socorros, recolhendo alimentos nos campos e promovendo uma autêntica comunhão de bens entre todos os habitantes. Terminada a carestia, ele se retirou por alguns meses para as colinas junto dos monges, onde pôde fazer reflorescer o seu antigo amor, e dali 22. Id. Il inno alla Vergine, no 2, in Bosio, G. Iniziazione ai Padri, II. Torino 1965, p. 189. 23. Ibid., p. 190.


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mesmo ele foi chamado para o céu. Era, segundo uma sólida tradição, o dia 9 de junho de 373. Desde esse tempo a Igreja do Oriente, pelos lábios de Gregório de Nissa, honra-o como mestre universal: “O esplendor da sua vida e da sua doutrina iluminava o universo”; a Igreja siríaca o considera e canta como “coluna da Igreja, boca eloqüente, profeta dos sírios, harpa do Espírito Santo, poeta da Virgem”; e também a Igreja latina quis tributar-lhe os seus louvores, reconhecendo-lhe o título de doutor da Igreja.

11 de junho São Barnabé apóstolo (século I) “A voz misteriosa do Espírito escolheu São Barnabé da igreja dos crentes em Cristo, associou-o a Paulo e ao colégio dos apóstolos, ordenando-lhe anunciar a verdade do evangelho, para que a redenção e a salvação fossem pregadas a todos os povos.” 24

As informações a respeito de Barnabé são tiradas quase inteiramente dos Atos dos Apóstolos. Ele nasceu em Chipre, mas viveu em Jerusalém, onde havia abraçado o cristianismo, tornando-se um dos mais fervorosos da comunidade cristã. Ele vendeu os seus bens e colocou o produto recebido da venda aos pés dos apóstolos.

O primeiro apóstolo entre os gentios Quando o evangelho começou a ser propagado de maneira um tanto extraordinária em Antioquia, os apóstolos mandaram para lá Barnabé. Em uma cidade tão importante, não só como centro comercial, mas também como sede do legado imperial, impunha-se a necessidade de contar com um responsável que unisse os dotes da fidelidade à doutrina apostólica e do conhecimento da cultura helênica. Barnabé possuía esses dois requisitos e foi 24. Do Prefácio do Missal próprio dos barnabitas.


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bem acolhido pela comunidade cristã que desejava ser instruída nos moldes da comunidade de Jerusalém. Foi nessa cidade que os seguidores da nova fé foram chamados, pela primeira vez, de cristãos. Barnabé devia vigiar, para que a entrada na Igreja dos numerosos fiéis provenientes do paganismo não maculasse a pureza da fé. Foi difícil, de fato, para os judeus cristãos compreenderem como poderiam os pagãos passar para o cristianismo sem primeiro se submeter às prescrições da lei de Moisés, até mesmo Pedro havia falado claramente a este respeito depois da conversão do centurião Cornélio.

Defensor e discípulo de Paulo Quando Barnabé soube que Paulo de Tarso havia se convertido no caminho de Damasco, e que ele havia se retirado para sua cidade natal, foi procurá-lo e convidou-o para ir até Antioquia para testemunhar diante de todos a ressurreição do Senhor. Paulo aceitou o convite e falou como só ele sabia fazer. Barnabé foi o primeiro a reconhecer que Paulo, pela sua experiência pessoal com o Ressuscitado, era um apóstolo no sentido pleno e quis conduzilo a Jerusalém para apresentá-lo aos outros apóstolos e para defender a linha seguida pela Igreja da Antioquia, admitindo em seu seio os convertidos do paganismo sem os submeter à circuncisão e a outras práticas já superadas pela nova lei do evangelho. A estima que Barnabé gozava junto dos apóstolos e dos anciãos dissipou os temores que alguns ainda conservavam a respeito da conversão de Paulo. Retornando para Antioquia, os dois empreenderam a primeira grande viagem, levando junto com eles João Marcos, que era sobrinho de Barnabé, ainda jovem, mas testemunha da paixão e da ressurreição do Senhor. Depois das primeiras fadigas apostólicas na ilha de Chipre, Marcos não quis prosseguir e retornou, enquanto que Paulo e Barnabé continuaram a evangelização pelas várias cidades da Ásia Menor, suscitando em todos os lugares comunidades cristãs não só entre os judeus mas também entre os pagãos. Um fato curioso aconteceu na pequena cidade de Listra, na Licaônia. Depois da cura milagrosa realizada por Paulo em favor de um homem que tinha paralisia nas pernas, a população pagã se convenceu de que Paulo era


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Mercúrio e Barnabé era Júpiter, e lhes prepararam um sacrifício segundo todas as regras do cerimonial. Foi muito custoso da parte dos dois desfazer o equívoco e explicar aos cidadãos que eles eram portadores de uma Boa-Nova não da parte de Júpiter, mas de Jesus, o Filho do Deus único e verdadeiro. Retornando para Antioquia, encontraram a comunidade transtornada. Na ausência deles vieram algumas pessoas de Jerusalém, pregando que quem não fosse circuncidado não podia ser salvo. Assim, todo o trabalho de Paulo e Barnabé foi pelos ares. Eles defenderam o que haviam ensinado e a comunidade os escolheu junto com outros para irem a Jerusalém e consultarem os apóstolos. A controvérsia deu oportunidade à convocação do que foi chamado o primeiro Concílio da Igreja. A discussão foi resolvida a favor da liberdade evangélica libertando-os das práticas judaicas. A Igreja apostólica tinha já diante de si a evangelização do mundo inteiro e saía dos estreitos limites da Palestina. Paulo e Barnabé retornaram para Antioquia acompanhados por Silas e Judas, dois anciãos da comunidade de Jerusalém, e juntos procuraram escla­ recer todos os antioquenos. Para todos foi como uma libertação do pesadelo, mesmo que a controvérsia ainda durasse longo tempo. Paulo e Barnabé podiam agora recomeçar suas viagens para confirmar as comunidades fundadas em Chipre e na Ásia Menor. Barnabé queria novamente levar consigo João Marcos, mas Paulo, temeroso de não dar certo, não aceitou. Desse momento em diante, os dois grandes amigos se separaram: Barnabé e João Marcos foram para Chipre, enquanto que Paulo se dirigiu para as comunidades da Ásia Menor. O autor dos Atos dos Apóstolos, neste ponto, registra somente a história de Paulo. Barnabé estava em Antioquia quando Paulo precisou fazer Pedro compreender sua incongruência, não freqüentando as casas dos cristãos provenientes do mundo pagão, por temer os judaizantes. Pedro e Barnabé reconheceram que tal conduta poderia acarretar dificuldades para os cristãos e aceitaram com humildade a observação de Paulo. Depois disto, o que aconteceu a Barnabé? Segundo uma tradição do século V, considerada verossímil, ele teria sido martirizado em Salamina pelos judeus-cristãos provenientes da Síria, preocupados pelas numerosas conversões dos pagãos que o santo operava naquela terra sem submetê-los às normas da lei mosaica.


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13 de junho Santo Antônio de Pádua sacerdote, doutor evangélico (1195-1231) “A suprema origem, como diz Agostinho no livro De vera religione, é o Pai, do qual são todas as coisas e do qual procedem o Filho e o Espírito Santo. A perfeitíssima beleza é o Filho, que é a verdade do Pai, em nada dele diferente. A beatíssima alegria e o sumo bem é o Espírito Santo, que é o dom recíproco do mútuo amor entre o Pai e o Filho.” 25

Era esta a teologia que frei Antônio ensinava aos frades já nos tempos de São Francisco. Ele dava à ordem, que estava surgindo, uma preparação intelectual que a teria tornado capaz de levar o carisma franciscano a todos os ambientes sem perder o seu genuíno esplendor. Mas a figura de Antônio é pouco notada sob este aspecto, enquanto que é conhecidíssima na versão elaborada pela piedade popular.

Um santo universal Em uma biblioteca de um bispo brasileiro encontrei um bonito livro com o título Antônio de Lisboa, santo e soldado. Eu já sabia bem que os países de tradição portuguesa sempre gostam de recordar suas origens lusitanas, mas que o amor dos brasileiros por este santo tivesse chegado até o ponto de colocá-lo na lista de pagamento do exército, isso eu jamais teria imaginado. Não só o escolheram para protetor dos seus soldados, mas fizeram-no percorrer toda a carreira militar desde simples soldado até capitão, pagando regularmente o estipêndio, não a ele, que está no paraíso onde não existe moeda corrente, mas ao convento de Santo Antônio. Por sua vez também não é de maravilhar, porque a devoção para com este santo ultrapassou as soleiras da Igreja católica, suscitando o interesse também dos ortodoxos, budistas e muçulmanos. Onde tenham chegado os franciscanos, aí os povos, sem distinção de fé religiosa, o acolheram como um homem de Deus que com o seu poder taumatúrgico vai ao encontro das dores e das expectativas 25. Antônio de Pádua, Discorsi, I.


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da humanidade de todos os tempos. Também por isso contam-se dele os seus milagres infindáveis, e às vezes até mesmo sem sentido crítico.

As primeiras etapas Mas vamos olhar de bem perto a verdadeira história de Antônio. O seu nome de batismo é Fernando Martins; nasceu em Lisboa, Portugal, de uma família abastada, no ano de 1195. Até os 15 anos freqüentou a escola da catedral. Nesse tempo, o livro de texto era o Saltério e os alunos mais inteligentes o aprendiam de memória. Servia para aprender a ler e a escrever, para cantar na igreja nas funções religiosas e também como catecismo para se instruir nas verdades da fé. Naturalmente era em latim, a língua de todas as escolas da Europa, que oferecia o privilégio muito grande de poder freqüentar os mais prestigiosos centros de estudo desse continente. Junto com as verdades de fé, Fernando aprendeu também a gramática, a retórica, a música e a aritmética. Aos 15 anos entrou para o mosteiro de São Vicente, dos monges regulares de Santo Agostinho, a poucos quilômetros de Lisboa. Era a única maneira de progredir nos estudos, mas foi também uma ocasião para descobrir a beleza da vida religiosa segundo a regra agostiniana: a vida comum tinha por modelo a primeira comunidade cristã, onde os monges procuravam ser um só coração e uma só alma e com este espírito se lançavam para fora do mosteiro, tendo como finalidade a edificação da Igreja. Fernando teve ótimos mestres e tornou-se um fervoroso agostiniano. Tinha somente um desgosto: com muita freqüência os seus parentes iam lá procurá-lo e isso o perturbava. Havia em Portugal o triste hábito de ir sempre aos mosteiros, não para fazer uma visita breve ou para se aprofundar na vida espiritual, mas para choramingar seus azares e com isso enganar os monges aparentados. Para o jovem Fernando isso não lhe melhorava o gênio, e não podendo se opor a esse abuso já inveterado, precisava num só golpe talhar o mal, e por isso pediu para ser transferido para o mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, distante 175 quilômetros de Lisboa. Libertado da presença importuna dos parentes, pôde dedicar-se totalmente aos estudos e à oração. Orientado por ótimos mestres, ele aproveitou bem os estudos de teologia como de costume, começando pela leitura e meditação da Sagrada Escritura, depois a leitura dos escritos dos santos padres, com Agostinho em primeiro lugar, e os comentários mais prestigiosos como os de Pedro Lombardo.


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Foi em Coimbra que ele encontrou a possibilidade de saciar a sua sede de sabedoria, mas foi aí também que encontrou uma grande cruz. Essa comunidade há muito tempo estava dividida em duas. Alguns observavam fielmente a regra sob a orientação do mestre João Nunonez, com o apoio até mesmo do papa, enquanto que outros bem consistentes seguiam os costumes dissolutos do prior, Dom João César, que se sentia forte pelo apoio do rei. O régio e pontifício mosteiro agostiniano de Coimbra, mais famoso pela santidade e pela ciência, tinha-se tornado motivo de escândalo em todo o reino. Aí Fernando terminou os seus estudos e tornou-se sacerdote, sempre fiel ao seu ideal de monge e cultivando a esperança de que o seu mísero prior mudasse de vida, sobretudo depois que ele retornou do Concílio Lateranense IV, que havia chamado a atenção de todos para a necessidade da reforma da Igreja. Uma esperança que o prior de Coimbra logo fez que se tornasse vã, visto que acarretou para o rei e para o reino de Portugal a interdição.

O carisma do qual se enamorou Nestas circunstâncias tão dolorosas, Fernando conheceu os frades de São Francisco. Eles moravam no cenóbio de Santo Antão das Oliveiras, não muito distante do mosteiro, e sempre vinham pedir esmola. O modo como eles se vestiam e a maneira como anunciavam a palavra de Deus tocaram profundamente o jovem monge agostiniano, mas o que ainda mais o fez pensar foi a chegada a Coimbra dos restos mortais de cinco frades franciscanos martirizados pelos muçulmanos em Marrocos. Esses filhos de Francisco de Assis não brincavam, tomavam o evangelho ao pé da letra e estavam sempre prontos para dar a vida pelo seu ideal. Fernando procurou quem o aconselhasse e, tendo obtido a permissão do prior, pediu para se tornar franciscano. A passagem para a ordem e a vestição do rude hábito aconteceu no verão de 1220 de forma humilde e quase que escondida, pois Portugal estava sob a pena da interdição; e de fato não era a pompa das cerimônias o que atraía o apreço de Fernando. A vida em Santo Antão das Oliveiras era aquela que ele, depois de se tornar frei Antônio, tinha sempre sonhado, porque aí a pobreza, a castidade e a obediência não eram dotes de dissertação, mas pérolas luminosas que resplandeciam no cotidiano, e o viver em fraternidade atingia plenamente o sonho evangélico de Agostinho: ser um só coração e uma só alma.


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Antônio abraçava o carisma de São Francisco quando já havia adquirido com os agostinianos uma riquíssima bagagem cultural, sobretudo bíblica e patrística, que naqueles tempos ainda não teria encontrado entre os franciscanos. Ao mesmo tempo teve a felicidade de conhecer o franciscanismo no fervor da sua fundação.

Dirigido a Marrocos encontrou-se em Assis Nesse período, o desejo de Francisco era o de evangelizar as terras onde habitavam os muçulmanos, e então também Antônio se preparou para partir para Marrocos, na esperança de que tal aventura terminasse com o martírio. Frei Antônio partiu no outono do mesmo ano ou na primavera do ano seguinte. Assim que chegou em terras de missões, nela permaneceu por bem pouco tempo, porque adoeceu e logo teve de retornar para a sua pátria. O navio que deveria levá-lo para Lisboa, devido a uma grande tempestade, mudou de rumo e teve de desembarcá-lo na Sicília. A essa altura dos acontecimentos achou melhor tomar o rumo para Assis, onde São Francisco estava preparando o famoso “Capítulo das esteiras”, acolhendo em torno de si os seus frades. Antônio participou desse capítulo como um simples fradinho português, sendo até mesmo desconhecido pelo próprio Francisco. Passou aqueles dias encantando-se na contemplação da humilde figura do fundador. Francisco quase sempre estava sentado aos pés de frei Elias, atento em escutar a palavra de quem ele considerava muito mais douto do que a si mesmo, mas muito decidido quando se tratava de defender o espírito da senhora Pobreza. Quando terminou o capítulo, era preciso estabelecer a destinação de cada frade e com Antônio ninguém sabia o que fazer, mesmo porque ele só falava em latim e então não era útil para a pregação ao povo. Mas sendo ele sacerdote, tomou-o consigo frei Graciano da Romagna para celebrar a missa no eremitério de Montepaolo. Antônio, além de celebrar a eucaristia para os frades, lhes preparava o alimento enquanto eles repousavam, oravam ou se preparavam para descer novamente do monte para pregar.

Uma teologia que não extinga o Espírito Em setembro de 1222 aconteceu, porém, um fato curioso. Em uma festa de ordenação sacerdotal de alguns frades, frei Graciano não conseguiu encontrar um bom pregador. Para o espanto de todos, ele foi pedir a Antônio que fizesse a pregação. Talvez já conhecesse o talento de Antônio. E quando


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Antônio começou a pregar foi uma revelação. Não se podia manter escondido sob o jacá um candeeiro assim tão luminoso. A notícia desse acontecimento chegou logo até os ouvidos de Francisco e com a notícia um insistente pedido: Antônio poderia ensinar a todos os frades a ciência divina das Escrituras. O espanto foi maior ainda com a resposta de Francisco. Todos sabiam de sua aversão para com os estudos que adulteravam com a vanglória da ciência o vinho genuíno do Evangelho. Mas ele escreveu uma graciosa carta para Antônio, dizendo o seguinte: “A frei Antônio, meu bispo, frei Francisco, saúde! Tenho o prazer de que tu ensines a sagrada teologia aos frades, conquanto que em tal ocupação tu não extingas o espírito da santa oração e devoção, como está escrito na regra. Passar bem”. Antônio foi chamado de bispo, porque naquela época somente os bispos tinham a tarefa e estavam à altura – se é que estavam! – de pregar e ensinar a verdadeira doutrina aos fiéis; outros só podiam fazê-lo mediante a autorização dos responsáveis das ordens ou do papa, como acontecia com os franciscanos e dominicanos. Francisco reconheceu no seu filho espiritual que a sabedoria genuína do evangelho não era ofuscada pela ciência, mas que foi colocada a seu serviço. São Francisco, confiando no douto frade vindo de Lisboa, aproveitava o seu carisma para iluminar a teologia. Mais tarde será São Boaventura que resplandecerá esta luz no seu máximo esplendor.

Mestre e orientador No entanto, Antônio abria o caminho, ensinando teologia aos frades nos conventos de Bolonha até o ano de 1224; de Montpellier, talvez no ano de 1225; de Toulouse, no ano de 1225; e de Pádua, de 1229 até 1231. Contemporaneamente continuava a pregação ao povo em várias regiões da Itália setentrional até Rimini, onde se espalhavam as heresias cátara e patarina, depois na França e finalmente novamente nos arredores de Pádua. Antônio foi também o responsável pelo governo de sua ordem como guardião em Limoges, na França, e como ministro provincial na Itália do norte. Nos intervalos de tempo livre Antônio escrevia suas lições e suas pregações. Também neste campo ele vivia a pobreza franciscana de seu tempo. Habituado a utilizar-se da rica biblioteca agostiniana de Santa Cruz em Coimbra, agora se encontrava ora nos pequenos conventos ou nos eremitérios somente com o livro do seu Senhor crucificado. Mas, vinha em seu socorro sua magnífica


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memória, que se movia tranqüilamente nas páginas da Sagrada Escritura e nos escritos patrísticos, sem deixar de recorrer aos famosos autores latinos, como Horácio, Cícero, Ovídio e Virgílio, mesmo que suas citações não pudessem ter todo o rigor científico pela falta de códices para consultar. Aos frades, Antônio ensinava a teologia que ele havia aprendido, uma teologia bíblica que privilegiava a meditação da Palavra enriquecida pelos comentários dos santos padres, mas toda ela envolvida pela inspiração própria do carisma franciscano, que vê Deus como amor, do qual provém toda a criação. O Filho de Deus é a revelação deste amor, uma revelação iniciada na encarnação no seio virginal de Maria e elevada à máxima expressão na paixão. Antônio e os seus ouvintes tinham bem vivo diante de seus olhos o que havia acontecido ao seráfico pai sobre o monte de Verna.

A lei trinitária: o amor Segundo o ensinamento de Antônio, não só a vida dos frades, mas a de todo cristão, deve ser vivida de acordo com a lei trinitária do amor nas suas duas direções: amor para com Deus e amor para com o próximo. Repetindo o que disse santo Isidoro de Sevilha, ele também cita um exemplo dizendo que a águia, depois de ter posto três ovos no seu ninho, atira para fora um para poder chocar somente dois, de antemão sabendo muito bem que não poderá alimentar três filhotes. Assim também nós não podemos alimentar o amor de Deus, o amor ao próximo e o amor próprio; o cristão deve expulsar do seu íntimo o amor próprio para poder levar em frente o amadurecimento dos outros dois amores. Antônio foi um mestre incomparável pela simplicidade da sua linguagem, pela vivacidade das imagens e pela síntese que permitia ao ouvinte guardar na memória tudo quanto havia escutado. “Jesus Cristo” – dizia Antônio – “nos alimenta cada dia com a doutrina evangélica e com os sacramentos da Igreja”. Ele partia sempre da palavra de Deus como um alimento indispensável, mas, consciente da fraqueza humana, logo acrescentava a graça dos sacramentos. Mesmo em meio às ocupações, Antônio seguia as orientações de são Francisco, gostava de retirar-se por algum tempo nos pequenos eremitérios da ordem, ou até mesmo a pequenas grutas para se dedicar mais intensamente à oração, que ele não definia “uma elevação da mente”, mas sim “uma elevação do coração a Deus”, um relacionamento de amor entre a criatura e o Criador,


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um contemplar e um discorrer entre o amante e o amado. Por isso a primeira coisa que ele ensinava a respeito da oração era “pedir Deus a Deus”. Essa frase parece para nós fazer eco à resposta de santa Clara a são Francisco. Essas coisas Antônio as vivia, ensinava-as aos frades e as pregava ao povo e, para ajudar uns e outros, as escrevia. Assim é que nasceram os Discursos dominicais e os Discursos festivos, que lhe valeram o título de doutor evangélico. Os Discursos festivos ficaram incompletos por causa de seu falecimento.

Reformador da Igreja No imaginário popular, Antônio apresenta um aspecto delicado e juvenil, um caráter paciente e submisso e uma palavra doce e persuasiva. Freqüentemente traz nos braços a imagem de Jesus menino. A realidade histórica é um pouco diversa. Dos exames feitos em seus restos mortais se sabe que ele possuía um rosto com traços decididos ou – como se costuma dizer – uma face que parecia talhada a machado. A aparência física espelhava bem o seu caráter. Conseguiu dominar a si mesmo e tornou-se um homem pacífico, mas no momento oportuno também sabia colocar para fora suas garras, não para defender a sua pessoa mas para afirmar com clareza as verdades evangélicas. Aquilo que ele havia visto quando jovem no mosteiro de Coimbra percebia-o também em muitos outros lugares, porque a vida dos eclesiásticos daqueles tempos não era nada edificante. Se lhe pediam para combater a heresia cátara, primeiro deviam permitir-lhe corrigir os costumes daqueles que eram a causa mais profunda da heresia. Em um de seus discursos ele escreveu: “Os prelados e os clérigos usurpam a ciência do Antigo e do Novo Testamento... quando não a aprendem para a edificação dos outros, mas para receber louvores e honras. Para eles eis o que vem dito nos Provérbios: Um anel de ouro no focinho de um porco, tal é a mulher bonita, mas sem juízo. A mulher bonita e insensata são os clérigos que são indolentes e bem adornados como as mulheres que se entregam por dinheiro: belos pelo luxo das vestes, pelas filas de sobrinhos e talvez até de filhos e pelos muitos rendimentos; insensatos porque o que dizem, nem eles mesmos nem os outros o fazem. Todos os dias gritam nas igrejas e uivam como cães, mas sem se fazerem entender, porque o corpo está no coro, mas a alma está na praça... Eles que possuem o anel de ouro da ciência e da eloqüência não se envergonham de, como verdadeiros porcos, deixá-lo cair no estrume do luxo


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e da avareza... Não procuram a verdade do Evangelho, não vivem segundo as prescrições dos fundadores, mas vivem de maneira dissoluta e falsa”. Antes de tudo recomendava aos religiosos a humildade como virtude fundamental para entrar em comunhão com Deus e empreender um caminho evangélico. Fazia também uma observação muito apropriada a respeito dos pequenos defeitos que acompanham sempre a vida também das pessoas virtuosas que, “junto com as boas coisas que produz, julga serem para a sua humilhação os defeitos. O não sabê-los vencer, não obstante a pequenez deles, é para a pessoa uma advertência contínua a viver na humildade”.26 Referindo-se aos sábios que entravam no convento e que mais facilmente eram tentados a serem soberbos, recordava: “Se em uma comunidade temos sábios, Deus para convocá-los serviu-se dos simples. Por isso ele escolheu o que no mundo é estulto e ínfimo, fraco e desprezível, para associar a si os sábios, os fortes e os nobres, para que ninguém possa se gloriar de si mesmo, mas naquele que em Nazaré estava submisso a eles”.27 No fundo era esta a sua experiência. É interessante também o que ele dizia sobre a obediência: “Não conseguirás jamais ver se não fores obediente... Se fores surdo à voz de quem comanda, serás também cego. Obedece, pois, com todo o afeto do teu coração, para poderes ver com o olho da contemplação... Deus coloca um olho no coração, quando em quem obedece infunde a luz da contemplação”.28 Antônio faz notar aos leigos, que normalmente vivem no matrimônio, que Deus lhes pede a pureza da mente, e aos religiosos a castidade perfeita. Mas a pregação mais eficaz sobre a castidade era a sua própria presença da qual transparecia o divino. Estes três pilares da vida cristã e religiosa, a pobreza, a obediência e a castidade, não possuem nenhuma consistência e são abatidas facilmente pelos primeiros sintomas de luta, se não forem animados sempre pelo amor. Ele gostava de recordar: “Duas coisas, o amor a Deus e ao próximo, tornam perfeito o ser humano”.

Defensor dos pobres Na última etapa de sua vida (1229-1231) percorreu várias cidades e vilas do Vêneto, pregando e repacificando os ânimos, tomando a peito a defesa 26. Id., Discorsi, II. 27. Ibid. 28. Ibid.


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dos mais fracos, mas nem sempre alcançando o fim desejado. O cronista Rolandino de Pádua, contemporâneo do santo, conta que Antônio “quer porque colocasse a sua confiança no Senhor, quer porque lhe fosse pedido pelos amigos do conde Rizzardo, foi a Verona e aí esconjurou os dirigentes da liga lombarda e a suprema autoridade municipal de Verona, senhor Ezzelino, e os seus conselheiros, para que libertassem o conde e os seus amigos. Mas de nada valeram as orações, mesmo que fossem justas, para o coração daqueles que não possuem a caridade. Sem ter sido atendido, o santo retornou para Pádua”. Uma das pragas mais tremendas daquele tempo eram as leis injustas que permitiam não só a usura, mas também a prisão para aqueles que não podiam pagar as próprias dívidas. Sua pregação contra essas injustiças convenceu a cidade de Pádua a emanar uma lei que no dia 15 de março de 1231 conseguiu eliminar essa praga social. “A pedido do reverendo e piedoso frade Antônio, confessor da Ordem dos Frades Menores, nenhum devedor ou fiador poderá ser privado no futuro da sua liberdade, quando estiver impossibilitado de pagar. Em tal caso poderá responder com a sua propriedade, mas não com a sua pessoa e a sua liberdade.”

Dos ramos da nogueira à casa do Pai No mês de maio do ano de 1231, no calor da primavera que estava em andamento, Antônio se transferiu da ermida de Camposampiero, próximo de Pádua, para hospedar-se no castelo do conde Tiso. Aí podia tranqüilamente dedicar-se à oração e continuar a redação dos Discursos festivos. Porém não aceitou viver em um quarto do castelo, mas construiu para si uma pequena cela em cima de uma nogueira para viver imerso em Deus e na natureza. Pouco tempo depois ele adoeceu e precisou descer e ir novamente para Pádua. Em viagem foi forçado a parar na localidade chamada Arcella, onde os frades haviam aberto um asilo. No dia 13 de junho de 1231, Antônio partia deste mundo e o seu corpo era sepultado na igrejinha de Santa Maria Mater Domini (Santa Maria Mãe do Senhor), onde hoje está a famosa basílica em Pádua. O povo que ele instruiu na fé e defendeu contra as injustiças logo o escolheu como seu padroeiro e um ano depois o papa Gregório IX o proclamou santo. Em 1263, são Boaventura fez o reconhecimento dos restos mortais e encontrou incorrupta a língua do santo frade. No ano de 1946, Pio XII o declarou doutor da Igreja.


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19 de junho São Romualdo abade e fundador dos camaldulenses (951?-1027) “[Deus] na vossa benevolência enriquecestes com a alegria da sublime contemplação São Romualdo, pai e mestre dos monges e dos eremitas; vós o enriquecestes de luz profética e o inflamastes de zelo apostólico, assim no silêncio da língua e na eloqüência da vida a muitos reconduziu ao caminho da salvação.” 29

Nos tempos de crise, quando a Palavra não é mais ouvida, surgem gigantes na santidade que a demonstram com a eloqüência da vida. No desejo de reevangelizar a cristandade medieval de seu tempo, Bernardo de Claraval sentiu-se estimulado a reformar a vida cenobítica dos monges, Norberto de Xanten a renovar a vida apostólica do clero diocesano e Romualdo a fazer resplandecer o espírito genuíno dos antigos eremitas. Não conhecemos com exatidão a data do nascimento deste filho do duque Sérgio de Ravena. Seu nascimento deve ter acontecido na segunda metade do século X. Ainda jovem, Norberto presenciou um duelo entre seu pai e um parente. O parente perdeu a vida e seu pai, segundo o costume do tempo, para se purificar por ter causado o homicídio, precisava passar um determinado tempo em um mosteiro para aí fazer penitência. Sérgio não aceitou e Romualdo se ofereceu para ir no lugar do pai e passou quarenta dias no mosteiro beneditino de Santo Apolinário em Classe.

Do cenóbio à ermida O jovem, em contato com a vida monástica, descobriu um mundo novo e fascinante e se tornou beneditino. No seu fervor de neófito não admitia nenhum relaxamento entre os monges e, encontrando-se em dificuldade no meio deles, depois de três anos de vida cenobítica pediu e obteve autorização de seu abade para se retirar para o ermo e viver em solidão perto da laguna vêneta, próximo da ermida de Marino, que acabou se tornando seu mestre. Marino levava uma vida austera com jejuns e penitências, mas não tinha muita experiência em regulamentos e passava todo o tempo recitando cada dia 29. Do Prefácio no Suplemento monástico do Missal Romano.


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o saltério inteiro e andando pela imensa e silenciosa área do ermo. Romualdo aprendeu com Marino o latim recitando e lendo exatamente todo o saltério. Nesse período os dois eremitas conheceram Guarino, célebre abade do mosteiro de São Miguel de Cuxa, nos Pireneus, e o doge de Veneza, Pedro Orseolo I. Este, sentindo remorso pela maneira como conseguiu o cargo, foi se aconselhar com os dois eremitas e, atraído por aquele estilo de vida, acabou se unindo a eles. Por coincidência também o abade de Cuxa lhe havia aconselhado que abandonasse o mundo e se entregasse totalmente a Deus. O exemplo do doge foi seguido também por outros dois nobres venezianos, João Gradenigo e João Morosini. O abandono de seus cargos e a fuga da cidade suscitaram muito alvoroço e os eremitas – então já eram cinco – precisaram se distanciar para evitar as visitas sempre mais numerosas que perturbavam sua vida de contemplação. Primeiramente foram para Lombardia e Provença, e chegaram finalmente até um amigo deles, o abade de São Miguel em Cuxa. Este mosteiro atravessava um momento muito bom sob a influência reformadora de Cluny, ao qual estava afiliado. Romualdo, Marino e os três venezianos retomaram a vida eremítica em Longadera, ligados de certo modo ao vizinho mosteiro segundo a regra beneditina, trabalhando a terra para ganhar o alimento de cada dia. Romualdo lendo Vidas dos padres e as Collazioni, de Cassiano, aprofundou o conhecimento da tradição eremítica e organizou melhor a sua ascese: o abandono mais absoluto do mundo, o amor ao retiro na própria cela, o jejum nas vigílias, mas sobretudo a meditação da palavra de Deus e a oração dos salmos. Passou dez anos nessa experiência de vida. Em 987-988 Pedro Orseolo morria e Romualdo recebeu o comunicado de que seu pai, depois de ter vivido alguns anos no mosteiro de São Severo em Ravena, havia retornado a viver no meio dos seculares. Contemporaneamente Olibano, conde de Cerdagna e feudatário de Cuxa, foi aconselhar-se com Romualdo e acabou pedindo para entrar no mosteiro. Naturalmente precisava escolher um lugar distante da pátria para evitar a intromissão dos parentes. Romualdo e seus amigos retomaram sua peregrinação para Ravena. Depois de ter convencido seu pai Sérgio a retornar para o mosteiro beneditino, o grupo se dirigiu para Montecassino para oferecer a esse mosteiro o conde Olibano. Depois Marino escolheu a Puglia para aí viver como eremita, e onde foi assassinado pelos sarracenos que freqüentemente saqueavam as costas do sul da Itália; Gradenigo estabeleceu-se em uma ermida próxima a Montecassino


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e teve como companheiro e discípulo Bento, um clérigo de Benevento, e aí permaneceu por mais de trinta anos; enquanto o abade Guarino, que os havia acompanhado, empreendeu uma peregrinação para Jerusalém. Romualdo não se sentia muito bem perto de Montecassino e, estando em viagem para Ravena, parava por algum tempo em alguns lugares isolados para depois abandonar o lugar quando os visitantes se tornavam cada vez mais numerosos. Chegando a Pereo, uma ilha existente no pântano do Ravennate, o imperador Óton III nomeou-o abade do mosteiro de Santo Apolinário em Classe, estando esse centro religioso sob o patrocínio imperial. Aceitou de má vontade, mas o seu estilo severo não agradou aos monges que lhe tornaram difícil a vida. Depois de um ano deixou o bastão abacial aos pés do mesmo imperador em sinal de renúncia, declarando-se incapaz de governar quem não acreditava na obediência. Dirigiu-se novamente para Montecassino a consolar-se com o seu grande e fiel amigo João Gradenigo. Ali Romualdo adoeceu e permaneceu por quase um ano. Era o outono do ano 1000. Assim que se restabeleceu, dirigiu-se para Roma, levando em sua companhia também o eremita Bento, um presente precioso que Gradenigo ofereceu de bom grado ao seu querido mestre.

Escutavam-no também personalidades importantes Em Roma ele se encontrou com Óton III, que retornava de uma peregrinação ao sepulcro de Santo Adalberto, apóstolo dos povos eslavos, que há pouco tempo tinha sido martirizado na Polônia. O imperador quis passar com ele um período de vida eremítica e foi com Romualdo para o Pereo, onde construiu uma igreja em homenagem a santo Adalberto. Nesse meio tempo um outro nobre se colocou no seguimento de Romualdo, Bruno de Querfurt, que já havia sido anteriormente cônego em Magdeburgo e depois capelão na corte do imperador. No Pereo foi constituída uma comunidade de vida cenobítica. Bruno convenceu Bento de Benevento e um outro jovem eremita de nome João a aceitar uma idéia predileta do imperador: formar um grupo de monges que, seguindo os passos de santo Adalberto, fossem evangelizar os povos da Europa central, mesmo que tivessem de sofrer o martírio. A idéia foi aceita por Bento e João que logo partiram, enquanto mais tarde Bruno de Querfurt também os seguiu. Bruno, elevado a arcebispo, logo os alcançava com a bênção do papa Silvestre II, após o explícito convite do rei Boleslau da Polônia. Os três, depois de um difícil apostolado, foram martirizados.


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Romualdo permaneceu na Itália. O fato de reunirem-se em torno dele personalidades importantes do mundo político e religioso facilitou a expansão das ermidas na Itália e na península da Ístria. O santo possuía uma personalidade fascinante porque, para onde quer que fosse, ali, logo depois de pouco tempo, nascia uma ermida. Então ele nomeava um responsável e ia para outro lugar, onde exatamente se repetia o mesmo fenômeno. Romualdo percebeu que havia necessidade de dar diretrizes mais precisas sobre a organização dos eremitérios. Começava a clarear a idéia de que a ermida necessitava de uma base e esta era o cenóbio, onde o mundo devia parar totalmente para não perturbar minimamente a vida dos eremitas. Estes viviam isolados nas suas celas e se dedicavam unicamente à oração pessoal e à contemplação, encaminhando-se à igreja do eremitério só para a celebração eucarística e para a recitação do coro. O seu superior vivia no eremitério e era responsável também pelo cenóbio, onde um prior o substituía.

O fundador Falando da atividade de Romualdo em Parenzo, na Ístria, onde “no primeiro ano fundou um mosteiro e aí colocou um abade com os irmãos, ao passo que nos dois anos seguintes permaneceu fechado e retirado”, são Pedro Damião levanta o véu que cobria a vida mística desse santo: “Nesse lugar, a graça de Deus o elevou a tão alto grau de perfeição que, inspirado pelo Espírito Santo, previu alguns acontecimentos que depois se verificaram pontualmente e, com a luz da inteligência, pôde compreender muitos mistérios ocultos do Antigo e do Novo Testamento....”. Experiências semelhantes a essas é que o impeliam a privilegiar a ermida na vida monástica. “A solidão” – gostava de repetir – “é ouro: dá o Deus vivo àqueles que dele estão sedentos”.30 Nos últimos anos reformou o famoso eremitério de Fonte Avellana, na diocese de Gúbio, e fundou o eremitério de Camaldoli, perto de Arezzo. Aí, assim que terminou a construção de cinco celas, pediu ao bispo do lugar, Teobaldo, que consagrasse a igreja do Santíssimo Salvador, colocou Pedro como seu prior e, confiando a obra à proteção de Teobaldo, retirou-se para a solidão mais absoluta no eremitério de Val di Castro, perto de Camerino. São Pedro Damião, na sua obra Vida de São Romualdo, assim descreve os últimos dias do santo: “Construído o eremitério, preparava-se para se 30. Querfurt, Bruno de. Vita quinque fratrum, c. 2.


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enclausurar, quando o seu corpo começou a declinar rapidamente mais pela doença do que pela idade avançada. As forças faltavam-lhe e os males se agravavam. Nessa situação, sentindo que estava próximo o seu ocaso, pediu que saíssem de sua cela os dois irmãos que o assistiam, dizendo-lhes que fechassem a porta e voltassem somente nas matinas do dia seguinte. Eles, porém, lhe obedeceram contra a vontade, preocupados por seu estado alarmante. Em vez de se afastarem, permaneceram ali perto de ouvido atento. Em um certo momento, não ouvindo mais nada, entraram rápido e acenderam a lamparina... A sua bem-aventurada alma havia partido para o céu”.31 Era o dia 19 de junho de 1027. Romualdo não deixava aos seus monges uma lei impressa no papel e estabelecida nos cânones, mas só o exemplo luminoso da sua vida. Foi chamado “pai dos eremitas espirituais, daqueles que vivem segundo uma lei”, a lei do seu luminoso exemplo. Será necessária a existência de uma regra para perpetuar no decorrer dos séculos o carisma de são Romualdo, mas disso cuidarão os seus filhos. Bruno de Querfurt descreve como Romualdo preparava quem desejava entrar para a dura vida eremítica: Permanece sentado na tua cela como se estivesses no paraíso, repele da tua memória tudo aquilo que é do mundo; vigia os teus pensamentos como o pescador quando olha os movimentos dos peixes. Para obter isto existe um ensinamento nos salmos: não abandonar jamais. Se não consegues realizar tudo, enquanto tu estás ainda no fervor de um noviciado, esforça-te por salmodiar em espírito, ora aqui, ora acolá e de compreender a fundo; e quando tu percebes que estás divagando na leitura, não pare, apressa-te a remediar fazendo um maior esforço para entender. Antes de tudo coloca-te na presença de Deus com temor e tremor, como quem se encontra diante do imperador. Trabalha para a destruição total de ti mesmo e permanece quieto como um pintinho, feliz por receber a graça do Senhor: porque se a galinha choca não lhe dá coisa alguma, o pintinho não terá nada para comer nem para saborear. 32

Por certos aspectos pode parecer dura esta forma de vida ascética, mas não se pode esquecer aquele ambiente no qual o santo viveu e quais foram os frutos que ela produziu na renovação da Igreja. Basta pensar em seu filho espiritual que foi são Pedro Damião. 31. Damião, Pedro. Vita di san Romualdo, c. 69. 32. Querfurt, Bruno de. Vita quinque fratrum, c. 12.


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21 de junho São Luís Gonzaga padroeiro da juventude (1568-1591) “Não convém querermos ser grandes por causa do nosso nascimento: porque também os príncipes são cinzas como os pobres.” 33

Se para alguns mártires da antiguidade coube a sorte de permanecerem na história como lendas, que os tornaram mais simpáticos do que eram, outros santos, como Antônio de Pádua e Luís Gonzaga, a tradição popular, alimentada por certo tipo de hagiografia, reservou-nos a surpresa de encontrálos com história desfigurada sem nenhuma vantagem para suas pessoas. Antônio, o douto franciscano, combativo e defensor dos pobres, admi­ra­ do até mesmo por são Francisco por sua santidade e sabedoria, tornou-se na fantasia popular um fradinho de rosto angélico que encontra os objetos perdi­ dos ou o prodigioso mago que arruma casamentos para as moças solteiras. Luís Gonzaga, de caráter decidido e de inteligência aguda, conhecedor do luxo e da magnificência das cortes européias, foi retratado como um jovem imerso em nuvens celestes que, para não perturbar sua pureza, fechava os olhos todas as vezes que encontrava uma mulher pelo seu caminho, mesmo que fosse a sua mãe. Mas a verdadeira história é bem diferente. Luís nasceu no castelo de Castiglione delle Stiviere, entre Bréscia e Mântua, no dia 9 de março de 1568, filho do marquês dom Ferrante Gonzaga e da condessa senhora Marta Tana de Santena, um casal de jovens esposos que voltou da corte de Madri, onde ambos tinham estado a serviço do rei Filipe II e da rainha Isabel.

Um parto difícil Enquanto uma salva de tiros de artilharia no pátio do castelo anunciava a vinda ao mundo do primogênito, na câmara nupcial havia uma grande 33. Palavras atribuídas ao santo. Cit. in: Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1977, p. 345. Cf. também: Cepari. Vita di san Luigi Gonzaga. Roma, 1925, p. 48.


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preocupação em relação à saúde do menino e de sua mãe. O parto tinha sido muito difícil e a mãe, não vendo ainda o seu pequenino, chamara para junto de si o marido para saber o que estava acontecendo, e tomando conhecimento do que sucedia, fez com ele o voto de uma peregrinação a Loreto, se Nossa Senhora salvasse a vida do menino e a sua. Depois o pai, dom Ferrante, providenciou imediatamente o batismo do menino, para que se nos planos de Deus ele não pudesse tê-lo na terra como herdeiro ao menos o teria no céu como anjo protetor. Assim que foi batizado, foi mostrado à sua mãe que o beijou com devoção; fez-lhe o sinal-da-cruz na fronte e o ofereceu a Maria. Nada houve de extraordinário nessa atitude. Assim procediam todas as famílias católicas daqueles tempos e a família dos Castiglione delle Stiviere traziam o cristianismo no sangue. Se o primeiro parto foi difícil, os outros seis, que a seu tempo o seguiram, foram muito bem e a senhora Marta teve a alegria de educar de maneira cristã os seus sete filhos. Duas coisas ela lhes ensinava com muita dedicação: a arte de orar, pois estava convencida de que quem não mantém um bom relacionamento com Deus não pode estabelecer um bom relacionamento com os outros; e depois, o amor para com o próximo, sobretudo para com os pobres, porque neles enxergava uma presença especial de Cristo. O marquês seguia de boa vontade a sua mulher, mesmo quando não conseguia lhe acompanharos os passos.

O destino do primogênito O destino de Luís estava claro para todos: deveria tornar-se um perito na arte militar e em governar, porque seria o herdeiro dos bens e títulos do seu pai. Por isso, já na idade de 4/5 anos, trazia a divisa de pequeno capitão em Casalmaggiore ao sul do rio Pó, onde o pai, por ordem de Filipe, II treinava 3 mil soldados de várias partes da Itália para serem enviados à Tunísia com o exército imperial a fim de exterminar as últimas resistências islâmicas que permaneceram em armas, depois da batalha de Lepanto. O pequeno soldado observava com interesse o movimento disciplinado das tropas e ficava particularmente atraído pela explosão de um disparo. Um dia, aproveitando a distração de uma sentinela, carregou uma colubrina e acendeu a mecha. O tiro por felicidade partiu para o alto sem provocar nenhum dano e o menino foi lançado para trás ficando coberto de pó.


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Quando o levaram ainda todo sujo, mas sorridente, para o seu pai, também o pai sorriu por complacência. Era um soldado precoce. Infelizmente, como sua mãe percebeu, o menino aprendia rapidamente não só o uso das armas, mas também as maneiras nem sempre educadas dos soldados. Quando o pai embarcou para a Tunísia juntamente com os seus soldados em 1573, Luís teve de retornar para casa, onde o aguardava sua mãe com outros dois irmãozinhos. Abandonou a divisa militar e submeteu-se de boa vontade à disciplina materna, que com delicadeza e decisão lhe purificou o linguajar, fazendo-o compreender que certas palavras não ficam bem na boca do cristão.

A conversão Foi nesse período que Luís marcou a data de sua “conversão do mundo para Deus”. Segundo a sua descrição, tinha apenas 7 anos quando durante a oração sentiu um grande desejo de se doar totalmente ao Senhor, e nesse momento ele pronunciou o seu sim! Foi tão forte a intimidade daquele momento que, daí em diante, mergulhar em Deus e contemporaneamente desenvolver os trabalhos ordinários da vida se tornaram para ele atitudes normais. Mais tarde, quando já era estudante de teologia, o seu formador, preocupado pela sua saúde, ordenou-lhe que não se empenhasse demais em procurar uma união ininterrupta com Deus, deixando repousar um pouco a mente; Luís confiou essa orientação a um outro companheiro: “Não sei o que fazer. O padre reitor mandou-me não pensar em Deus para evitar todo esforço, e é isso precisamente que exige de mim o máximo esforço”.34

O parêntese florentino Quando grassou no norte da Itália a famosa peste de 1576, dom Ferrante enviou Luís e Rodolfo, o segundo filho, para Florença, para junto de seu amigo, o grão-duque da Toscana, a fim de escapar do perigo da peste e para estudar. O parêntese florentino foi muito importante para Luís. Inteligente e atento observador, aplicava-se ao estudo e ao mesmo tempo examinava a vida 34. Cf. Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno /VI. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 234.


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que se levava na corte. Era muito diferente daquela que com sua família vivia em seu castelo e muito distante dos ensinamentos maternos. Percebia ali superficialidade, falsidade e muita corrupção. Não tinha dificuldade para criar amizades e gozava de estima e respeito. Todos sabiam que em Luís eles podiam confiar, pois nele não havia falsidade, mas compreendiam também que ninguém poderia enganá-lo, atraindo-o para coisas superficiais. Sua igreja preferida era a da Anunciação. Certo dia, enquanto orava nesta igreja diante da imagem da Virgem, o Senhor lhe mostrou com clareza dois caminhos: aquele do mundo, no qual havia dado alguns passos na sua infância sem nem mesmo se aperceber, e que o teria levado a viver uma vida vazia de valores; e o outro caminho evangélico que havia entrevisto já na idade de 5 anos e que sua mãe muitas vezes lhe havia feito conhecer com o exemplo e com a palavra. Luís tomou sua decisão, fez conscientemente aquilo que hoje se chama de opção fundamental da sua vida: mesmo que tivesse de permanecer na corte e aprender a arte da diplomacia e da política, não aceitaria jamais nenhum compromisso com os costumes corrompidos daquele ambiente.

Voto de castidade aos 10 anos Para selar este propósito ele fez o voto de castidade. Tinha apenas 10 anos. Podia entender as conseqüências de tal empenho? A resposta quem nos dá é são Carlos Borromeu que, dois anos depois, em uma conversa com Luís, não só não o repreendeu por essa sua decisão, mas o encontrou tão amadurecido que quis lhe dar pessoalmente a primeira eucaristia, mesmo não sendo costume fazer a comunhão nessa idade. De Florença Luís e Rodolfo foram enviados para Mântua, à corte do duque, seu parente. Aí Luís sentiu os primeiros sintomas de uma doença que – segundo o parecer dos médicos do tempo – só poderia ser curada com uma rígida e controlada dieta na alimentação e na bebida. Luís se submeteu com docilidade às orientações do médico, enquanto começava a despertar em si a idéia de renunciar ao marquesado em favor do irmão Rodolfo e entrar em uma ordem religiosa.

Príncipe na corte e estudante universitário Mas as convenções sociais, que os seus pais julgavam ser um privilégio e um dever, fizeram que, no ano de 1581, ele fosse para a Espanha como pajem


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de honra do príncipe herdeiro, dom Diego. Contemporaneamente continuou seus estudos de filosofia na Universidade de Alcalá. Em meio às ocupações da corte e dos estudos, Luís encontrava tempo para ler livros de espiritualidade e para orar. Leu meditando o famoso Compêndio da doutrina espiritual, de Luís de Granada, mas mergulhou sobretudo na leitura de um opúsculo de são Pedro Canísio e das cartas escritas pelos missionários jesuítas nas Índias. Compreendeu, então, que o seu lugar era na Companhia de Jesus.

Noviço jesuíta em Roma Não foi fácil para seu pai aceitar sua decisão, ao passo que sua mãe aprovava em silêncio. Enfim, venceu as resistências paternas e renunciou ao marquesado em favor de seu irmão Rodolfo, e no dia 25 de novembro de 1585, depois de uma visita de três dias a Loreto, para cumprir o voto feito pela mãe no dia do seu nascimento, podia finalmente entrar para o noviciado dos jesuítas em Roma. Não era novidade para os jesuítas receber em suas fileiras personagens provenientes da alta nobreza. Disso eram exemplos ilustres, além do fundador, os primeiros companheiros de Inácio e Francisco Bórgia, sucessor de Inácio. Entrava-se na Companhia com a condição de deixar do lado de fora todo sinal de sangue azul, porque passando por aquela porta todos eram iguais. Luís, que havia morado como estrangeiro em várias cortes européias, em Roma sentiu-se em casa: “Se eu tenho” – escreveu – “um país natal aqui, esse é Roma, onde nasci em Jesus Cristo”. Lá, sob a orientação de Roberto Belarmino, terminou brilhantemente o curso de filosofia e iniciou a teologia. Por ordem dos superiores retornou ao castelo paterno para conciliar uma briga que surgiu entre o irmão e o príncipe de Mântua. Realizou essa missão devido ao ascendente moral que gozava junto de todos e pela caridade com que soube tratar cada um. Obteve também a regularização do matrimônio de seu irmão que, infringindo as leis do tempo, havia se unido a uma jovem que não era da sua condição social. Voltando para Roma, iniciou em novembro de 1590 o último ano de teologia para ser depois ordenado sacerdote. Não que isso fosse para ele uma meta cobiçada, porque para ele o que realmente importava era aprofundar sua união com Deus, tantas vezes experimentada, que lhe dava um sentido de plenitude. Amar para dar glória a Deus e para ser amado por ele, simplesmente isso é o que queria, em sintonia com o carisma inaciano.


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A serviço dos atacados por peste Quando em Roma grassou a epidemia que tantas vidas havia já ceifado no norte da Itália, pediu e lhe foi concedido servir aos doentes no hospital de São Sisto. Pouco depois, porém, a permissão lhe foi retirada por temor de que a sua frágil constituição física pudesse correr o perigo de contágio. Todavia foi-lhe permitido, diante de sua insistência, poder visitar os enfermos considerados com menos perigo de contágio, de um outro hospital situado aos pés do monte Campidoglio. Um dia, enquanto se dirigia para o hospital, encontrou abandonado na rua um empestado no fim da vida. Colocou-o sobre as suas costas e o levou ao hospital. Era um doente de peste e Luís contraiu a doença, que em poucos meses o conduziu à morte. Foi no dia 21 de junho de 1591 e Luís tinha apenas 23 anos. Algum tempo antes, talvez prevendo a sua partida iminente, escrevera uma longa carta para a sua mãe, na linguagem pomposa do tempo, dizendolhe: “Os médicos, que não sabem como irá acabar, procuram fazer todo o possível para a saúde do corpo. Mas para mim é mais importante pensar que Deus nosso Senhor queira conceder-me uma saúde melhor do que aquela que possam obter os médicos; e, portanto, estou verdadeiramente feliz, porque espero que dentro de poucos meses Deus nosso Senhor me chame da terra dos mortais para o reino dos vivos”. A esta seguia-se uma outra que traz a data de 10 de junho de 1591: “A separação não será longa. Voltaremos a nos ver no céu e juntamente unidos ao autor da nossa salvação gozaremos alegrias imortais, louvando-o com toda a capacidade da alma e cantando sem fim suas graças... Eu disse estas coisas só para obedecer ao meu ardente desejo de que tu, ilustríssima senhora, e toda a família, considereis a minha partida como um acontecimento jubiloso... Preferi escrever para ti, porque nada me ficou com que possa manifestar de modo mais claro o amor e o respeito que, como filho, devo à minha mãe”.35 Foi proclamado beato no ano de 1605, santo no ano de 1726 e, no ano seguinte, padroeiro da juventude, e para a maior parte dos seminaristas que, depois do concílio de Trento, eram orientados pelos jesuítas ou se inspiravam na espiritualidade inaciana, Luís Gonzaga foi proposto como modelo para todos os aspirantes ao sacerdócio. 35. Acta Sanctorum, junho, 5, 878; cf. também Manns, P. I santi, II. Milano, Jaca Book, 1988, pp. 240-241.


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22 de junho São Paulino de Nola bispo (353/54-443) “Aqui a Trindade brilha no esplendor de seu mistério.” 36

A quem estava se referindo Paulino quando escreveu essas palavras? Em um mosaico da igreja dedicada a São Félix ou à sua comunidade monástica? Talvez a ambos, porque um homem requintado e rico não teria abandonado todas as coisas se não tivesse sido irresistivelmente atraído por estilo de vida superior, ou melhor, por algo tão sublime para reproduzir de algum modo sobre esta terra o esplendor da vida trinitária.

Uma educação invejável Ele nasceu por volta de 353/54 em Bordeaux, onde o pai era funcionário imperial. Os seus pais, pertencentes a uma rica família senatorial romana, eram cristãos. Educado nas letras por Ausônio, mestre incomparável daquele tempo, preceptor imperial e homem bem colocado no mundo da política, Pôncio Merópio Anício Paulino fez grandes progressos nas letras e na magistratura. No ano 381 já era governador da Campânia e teve os primeiros contatos com Nola e com a história do mártir São Félix. Emocionado pela leitura de seu martírio, abandonou o ofício e a dignidade de governador, e empreendeu o caminho de regresso para a Gália, detendo-se por algum tempo em Milão, onde por volta de 384 conheceu o bispo Ambrósio. Desse encontro, Paulino conservou lembrança inesquecível, porque com suas palavras Ambrósio o confirmou na fé cristã e com o seu exemplo o encorajou a abraçar a vida evangélica. De fato Paulino era crente, mas ainda não tinha sido batizado. No seu íntimo travava-se de uma luta consigo mesmo, não sabendo escolher entre um cristianismo “adocicado” que não renunciava aos prazeres oferecidos pela riqueza e amigos da alta sociedade, e uma vida evangélica vivida ao pé da letra, autêntica como nas primeiras comunidades cristãs. 36. É a inscrição que se encontra em um mosaico da basílica construída em Nola por Paulino em honra a São Félix.


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O casamento com a bela Terasia Depois que retornou para a sua pátria empreendeu novamente outra viagem, desta vez para a Espanha, onde conheceu Terasia, que se tornou sua mulher; uma mulher delicada e digna dele, mas verdadeiramente cristã. Dela teve um filho, Celso, que infelizmente morreu oito dias depois. Ele e o irmão que o acompanhava resolveram seguir outro caminho. Foi um duro golpe para os dois, que partiram para Gália e se estabeleceram em Aquitânia em uma bela propriedade. Para esquecer a dor, Paulino se entregou a uma vida social intensa. Reencontrou o seu amado mestre Ausônio que, mesmo respeitando a fé de Paulino, não pensava nem de longe em se tornar cristão; estreitou laços de amizade profunda com um jovem advogado chamado Sulpício Severo, desejoso de fazer carreira em todos os sentidos; nesse círculo de amigos não faltou um filósofo de nome Jóvio e nem mesmo um rico proprietário como Gastídio. Havia todos os ingredientes para viver uma vida feliz segundo a mentalidade da época, se Paulino não estivesse sendo atormentado por uma doença nos olhos, que os médicos não conseguiam curar. O amigo Sulpício havia escutado falar do bispo de Tours, como um homem dotado de poderes taumatúrgicos, e convenceu Paulino a fazer-lhe uma visita. Pediram-lhe uma oração e Paulino ficou curado. Nessa ocasião, seus olhos curados, como os do seu amigo, contemplaram uma realidade que fascinou a ambos: a vida evangélica “na humildade e na pobreza” da comunidade monástica de Martinho.

A decisão do batismo Sulpício Severo, rompendo toda hesitação, entrou nessa comunidade e tornou-se o autor da famosa Vida de São Martinho, enquanto que Paulino decidiu receber o batismo. Depois vendeu os seus bens. Mais tarde, em um escrito em honra a São Félix, ele dirá: “Com todos os meus terrenos eu paguei a esperança do céu, porque a esperança e a fé valem mais do que as riquezas da carne”. Seu gesto suscitou as duras críticas dos bem-pensantes, a começar pelo amigo Ausônio. Paulino, para não perder tempo em contendas, preferiu partir novamente para a Espanha, onde era menos conhecido, para iniciar junto de sua esposa uma vida continente segundo a ascese monástica. “Pela fé deixei o


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mundo” – escreveu mais tarde em uma poesia – “a minha pátria, a minha casa, e me estabeleci em uma terra distante”. Mas também ali a vida não lhe foi fácil, porque o bispo de Barcelona o ordenou sacerdote, embora o deixasse livre de seguir o seu ideal ascético e sem ligá-lo ao clero do lugar. Paulino narra como este episódio aconteceu: “Fui pego de surpresa e à viva força pela multidão – compreendo, porém, que foi por vontade de Deus – e fui ordenado sacerdote. Isso aconteceu com minha relutância, não por desprezo à dignidade sacerdotal (...), mas porque eu me sentia destinado a outra coisa, e tendo a mente voltada e fixa em outro lugar, tive medo deste estranho e inesperado decreto da vontade de Deus”.37 A mente e o coração de Paulino estavam orientados para a Itália e precisamente para Cimitile, perto de Nola, na Campânia. Aí ele havia adquirido uma propriedade quando era governador dessa província e aí se encontrava o túmulo de São Félix por ele particularmente venerado. Era o ano 395.

A permanência em Nola Os dois cônjuges transferiram-se, pois, para a propriedade em Nola. Repetiase nessa cidade da Campânia o que havia acontecido em Vercelli com Eusébio, em Marmoutier na Gália com Martinho, em Milão com Ambrósio, em Tagaste com Agostinho. Nola se tornava um centro florescente da vida monástica, para onde afluíam numerosos os visitantes, atraídos pelo exemplo de Paulino e de Terasia, para viver com eles o evangelho ao pé da letra. Eram homens e mulheres. Sim, havia também mulheres que, seguindo o exemplo de Terasia, se colocavam no seguimento de Cristo pobre e casto, colocando-se todas a serviço dos pobres. De fato, Paulino havia fundado um asilo para acolher os necessitados e peregrinos, para que o amor de Deus, cantado na liturgia, fosse testemunhado no serviço a Cristo nos necessitados. Assim surgiram dois mosteiros: um masculino e outro feminino. Nas duas comunidades os ricos serviam os pobres e os pobres eram sacramento de Cristo para a salvação de todos; além disso, a continência dos casados e a virgindade dos célibes tornavam-se para todos um poderoso apelo a uma vida cristã na qual Deus estava em primeiro lugar. 37. Paulino de Nola. Lettere, a cura di G. Santaniello. Napoli-Roma, LER, 1992, pp. 173-175.


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Nos dois mosteiros conviviam numerosos visitantes de todas as partes da Campânia, sobretudo por ocasião da festa de São Félix, que Paulino celebrava com a máxima solenidade e homenageava cada ano com um poema em honra do santo.

O bispo de Nola Por volta do ano 409 a cidade de Nola ficou sem bispo, e não foi difícil para os cristãos encontrar um outro. Foram para Cimitile e escolheram Paulino. Foi um período difícil, porque Genserico devastava as cidades da Itália e não pouparia nem mesmo Nola. Paulino aceitou o oneroso cargo e conduziu a comunidade de Nola por mais de vinte anos. Mesmo que não saibamos muito o que aconteceu nesse período, sabemos que o santo bispo continuou o seu programa em prol dos pobres e foi instrumento providencial de harmonia nas controvérsias comuns entre os bispos por causa da heresia pelagiana. No ano de 419, o imperador Honório, conhecendo sua influência entre os outros bispos, convidou-o a presidir o Sínodo de Spoleto. Chegavam para Paulino mensageiros de muitas localidades do império, pois ele mantinha uma intensa correspondência com muitas pessoas, como Agostinho de Hipona; Alípio, bispo de Tagaste; Jóvio, o filósofo; Delfim, bispo de Bordeaux; Sulpício Severo, etc. Freqüentemente os mensageiros chegavam no início do inverno e ficavam participando da vida da comunidade para depois partirem na primavera, carregados de cartas de Paulino e de seus amigos. Em uma carta a Agostinho lemos: “Tu vês, ó irmão íntegro, admirável e amável em Cristo Senhor, quanto no íntimo eu te conheça, com muita admiração e muito afeto, eu que cada dia tenho a oportunidade de entrar em contato com os teus escritos e me alimento do espírito da tua boca. De fato justamente poderei dizer que a tua boca é uma fonte de água viva e uma veia da nascente eterna, pois em ti Cristo se tornou uma fonte de água que jorra para a vida eterna. Pelo desejo desta água, a minha alma tem sede de ti e a minha terra clama para ser irrigada pela abundância do teu rio”.38 Também com Ambrósio o relacionamento era particularmente afetuoso. Quando ainda era um simples padre, escrevendo a Alípio, bispo de Tagaste na África, lhe confiava: “Quanto a mim, mesmo tendo sido batizado em Bordeaux por Delfim, e consagrado sacerdote por Lâmpio em Barcelona, na Espanha, 38. Ibid., p. 207.


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pela violência feita pelo povo de improviso inflamado, todavia sempre tenho sido nutrido pela fé e também agora sou sustentado e encorajado na ordem sacerdotal e pelo amor de Ambrósio. Logo ele quis que eu pertencesse ao seu clero, de modo que, mesmo vivendo em lugares diferentes, sou considerado seu presbítero”.39 Paulino estava profundamente convencido da unidade da Igreja e por isso mantinha vivo o contato com os bispos. Ele escrevia a Vitrício, bispo de Rouen, na França: “Mesmo que pela distância de nossas regiões estejamos fisicamente separados, todavia nós como membros de um só corpo, e tendo um só coração e uma só alma, no Deus único, estamos unidos por meio do Espírito Santo do Senhor, difundido em todo lugar e no qual vivemos e permanecemos salvos”.40

O coração do pastor Urânio, padre da Igreja de Nola nos tempos de Paulino, assim descreveu a alma do seu pastor: “Na missão de bispo ele não se preocupou em se fazer temido, mas procurou fazer-se amado por todos. Assim como era insensível às injúrias, nada lhe fazia perder a paciência. Não separava jamais da misericórdia o juízo. Se houvesse necessidade de corrigir, fazia facilmente ver que suas correções eram castigos de um pai e não de um juiz irritado. Sua vida era exemplo de boas obras e a sua residência, o lugar de descanso de todos os miseráveis. Quem implorou o seu auxílio e não recebeu abundantíssima consolação? E qual foi o pecador encontrado sem estender-lhe a mão para levantá-lo da sua queda? Foi humilde, benigno, caridoso, misericordioso e pacífico. Não teve jamais orgulho e desprezo por ninguém. Encorajava os fracos, acalmava aqueles que eram de um certo humor colérico e violento. Ajudava alguns com a autoridade e a confiança que provinham de sua função, a outros com a profusão de seus bens, reservando para si somente o necessário, e a outros ainda com seus sábios conselhos, que se encontram sempre em grande abundância na sua conversa e em suas cartas. Ninguém se afastava dele sem desejar aproximar-se de novo e quem teve a ventura de com ele falar não desejava se separar dele nunca”.41

39. Ibid., p. 199. 40. Ibid., p. 519. 41. Uranius. De obitu; cf. PL 53, 861.


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Comovente é a descrição de sua morte, como a descreveu Urânio: “Sabendo que estava para partir para a casa do seu Senhor, quis que perto de seu leito fosse preparado tudo o que era necessário para celebrar os sagrados mistérios, tanto que, oferecido o divino sacrifício junto com os outros santos bispos, pudesse também recomendar a sua alma. Quis também readmitir na comunhão da Igreja aqueles aos quais, por causa das inobservâncias eclesiásticas, tinha mandado que ficassem distantes do sagrado mistério, reedificando a paz com eles”.42 Depois chamou ao seu quarto os padres, dirigiu-lhes palavras de conforto e saudações, os abençoou e se despediu. Na noite seguinte adormeceu. Corria o ano 431. O bispo poeta agora cantava os seus poemas no céu, deixando na terra, além dos seus escritos preciosos, também o som melodioso dos sinos, dos quais acredita-se ter sido ele o inventor.

22 de junho São João Fisher bispo e mártir (1469-1535) “Como bom pastor, não vai ao rebanho com as mãos vazias, mas sempre o nutre com a pregação da Palavra e com o exemplo de uma vida boa.” 43

João Fisher e Tomás Morus são duas figuras excepcionais do mundo anglo-saxônico, um foi sacerdote e cardeal, o outro foi leigo e conselheiro do reino. Souberam unir ciência e fé, abertura à modernidade e fidelidade à própria consciência. Viveram num momento particularmente difícil para a Igreja na sua pátria, quando foi interrompida a comunhão entre a Igreja da Inglaterra com a Igreja de Roma. Foi para todos uma dolorosa chaga que só nestes últimos tempos começou a cicatrizar. Nos acontecimentos dolorosos e complexos daquele tempo em que viviam, preferiram o martírio para o bem da pátria e por amor à unidade da Igreja. Por isso a Igreja católica os venera como mártires e os une celebrando-lhes a festa no dia 22 de junho. 42. Ibid. 43. Cit. In: Biblioteca Sanctorum, VI. Roma, Città Nuova Editrice, 1968, 997.


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Amante da sabedoria João Fisher nasceu em Beverley, em Yorkshire, em 1469, filho de um rico comerciante e, após ter feito o ginásio em sua terra natal, inscreveu-se na Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde na idade de 22 anos se tornou mestre em artes e, com dispensa papal pela idade, foi ordenado sacerdote. Permaneceu em Cambridge para ensinar e para continuar os estudos. Benquisto por todos pela inteligência não comum e pela honestidade de vida, foi apresentado à mãe do rei Henrique VII, Margaret Beaufort, que o escolheu como seu confessor e conselheiro. Com o apoio dela, para prover convenientemente à formação intelectual e moral dos candidatos ao sacerdócio, fundou a faculdade de teologia em Cambridge e em Oxford. Esta iniciativa se revelou muito útil, ou melhor, indispensável, num tempo em que os bispos e sacerdotes eram quase sempre despreparados para a sua missão e, como conseqüência, o povo vivia em uma profunda ignorância religiosa. João Fisher, tornando-se doutor em teologia, foi ele mesmo um dos primeiros professores a ensinar na nova faculdade de Cambridge.

Um pastor sábio e simples Sagrado bispo em 1504, dirigiu-se para a sua pequena e pobre diocese de Rochester e estabeleceu um relacionamento profundo com o seu clero e com os fiéis do seu rebanho que visitava pessoalmente nas paróquias, instruindo-os nas verdades da fé com habilidade de catequista e encontrando correspondência generosa e um sincero afeto. Também como bispo viveu pobremente, usando para si o necessário e dando o que lhe sobrava aos pobres. Quando, depois de seu aprisionamento, os enviados do rei foram fazer o inventário de seus bens, não encontraram nada de importante na sua casa, a não ser os objetos sagrados usados para o culto em sua capela. O transcorrer do seu dia era metódico, o alimento era frugal, o descanso durava poucas horas em uma pequena rede de palha, mas encontrava sempre tempo para orar e para estudar. Mesmo ocupado com os cuidados pastorais, não abandonou jamais os estudos e manteve sempre um contato direto com a cultura européia. Era amigo de Erasmo de Rotherdam e sob a sua orientação aprendeu tão bem o grego a ponto de poder corrigir as provas de impressão do Novo Testamento. Introduziu o estudo dessa língua na Universidade de


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Cambridge e escreveu diversos livros de teologia que foram muitas vezes citados pelos padres no Concílio de Trento. Sua biblioteca era uma das mais completas da Europa. Dizia-se que a sua casa era um mosteiro pela austeridade e uma universidade pelo saber.

Fiel à sua consciência até o martírio Quando se deflagrou a discórdia entre o seu rei, Henrique VIII, e o papa a respeito da validade ou não do matrimônio do rei com Catarina de Aragão, Fisher se pronunciou a favor da validade do vínculo e da sua indissolubilidade, e não aceitou jurar o Ato de sucessão votado pelo parlamento, no qual se negava a jurisdição papal na Inglaterra nas causas matrimonias. O rei, por sua vez, o prendeu na Torre de Londres com a esperança de dobrar-lhe a vontade. Nesse mesmo ano, o parlamento votou um segundo Ato, no qual o rei era declarado chefe supremo da Igreja da Inglaterra, obrigando todos os bispos a reconhecêlo como tal. Em um período em que tantos sustentavam a teoria do conciliarismo que atribuía ao concílio a suprema autoridade na Igreja, acima da autoridade do papa, e estava ainda viva a recordação da experiência de Avinhão, com o escandaloso cisma do Ocidente que havia denegrido a imagem do papa, não é de surpreender que os bispos ingleses tenham jurado fidelidade ao rei, gerando a igreja anglicana. Mas Fisher, quando foi levado diante do tribunal real, formado por doze grandes proprietários de terras, recusou-se a prestar juramento sobre a supremacia do rei no campo religioso, afirmando que “isto é contrário à Sagrada Escritura e à nossa fé”. Enquanto ele permanecia encarcerado, o papa o nomeou cardeal na esperança de salvá-lo, mas inutilmente. A sentença real o condenou à morte. Subiu ao patíbulo com grande dignidade, voltou-se para a multidão presente e disse: “Povo cristão, estou chegando próximo de morrer pela fé na santa Igreja católica de Cristo”. Em seguida recitou o Te Deum e ofereceu o pescoço ao algoz. Aconteceu no dia 22 de junho de 1535. A sua cabeça foi fixada em uma haste e ficou exposta por quinze dias sobre a ponte de Londres, depois foi jogada no rio Tâmisa e em seu lugar foi colocada a de Tomás Morus. Foi o primeiro de uma série de mártires que esta triste vicissitude da divisão provocou naqueles anos em uma e em outra parte.


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João Fisher foi incluído entre os santos do calendário universal da Igreja católica romana em 1935 por obra de Pio XI.

22 de junho São Tomás Moro mártir (1477-1535) “De todos os ingleses, o melhor.” 44

Com esta frase, o cardeal inglês Pole expressava sua estima e admiração do mundo cultural, político e religioso da Europa, quando se espalhou a notícia da decapitação de Tomás Morus, homem universalmente estimado pela cultura, capacidade política e santidade de vida. Em seu livro Pro ecclesiae unitatis defensione [Em defesa da unidade da Igreja] ele relata que muitos, ao saberem do triste acontecimento, não conseguiam reter as lágrimas, porque Tomás não pertencia só aos anglo-saxões, mas era patrimônio da Europa e do mundo.

Uma inteligência extraordinária Nasceu em Londres em 1477, foi educado na corte de Thomas Morton, arcebispo de Cantuária e cardeal, estudou em Oxford e depois no Lincoln’s Inn, rapidamente tornando-se advogado. O seu saber não se limitava ao direito civil e canônico, mas abraçava livremente todos os campos da literatura antiga com o conhecimento também da língua grega ao humanismo a ele contemporâneo, da história à filosofia, da poesia à teologia. Como advogado foi certamente um dos mais prestigiosos do seu tempo e como estudioso foi colocado, logo depois de Pico della Mirandola, do qual ele fez a comemoração oficial no decênio da morte. Como Fisher, também Tomás estava ligado por profunda amizade a Erasmo de Rotherdam, e sustentava que o humanismo não era um obstáculo, mas podia ser uma preciosa ajuda no estudo da Sagrada Escritura e da teologia. O conhecimento da doutrina dos padres da Igreja e dos concílios ecumênicos permitia-lhe estabelecer sua vida cristã sobre sólidas bases.

44. Palavras atribuídas ao cardeal Pole, contemporâneo do santo.


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Sua carreira política foi muito rápida e em poucos anos foi elevado a cavaleiro, tornou-se membro do parlamento, enviado especial do rei em Flandres, onde deu uma grande contribuição para a paz de Cambrai, e finalmente chanceler do reino. Mesmo envolvido em uma atividade pública intensa, não descurou jamais os deveres para com a família, cuidando com carinho das relações com a primeira e, depois da viuvez, com a segunda esposa, e com as filhas, como nem descurou com seus estudos e com sua vida de oração.

Um asceta moderno Foi um homem de grande equilíbrio e notoriamente expressivo, como testemunha esta oração escrita por ele: Senhor, dai-me uma boa digestão e, naturalmente, também alguma coisa para me alimentar. Dai-me a saúde do corpo, e bom humor para conservá-la. Senhor, dai-me uma alma sadia, que tenha sempre diante dos olhos aquilo que é bom e puro de modo a não se escandalizar diante do pecado, mas saber sempre encontrar os meios para curá-lo. Senhor, dai-me um coração que não conheça aversões, murmurações, ansiedades e lamentações. Não permitais que eu me preocupe muito com aquele ser que tudo quer concentrar e que se chama eu. Senhor, dai-me o sentimento do humor: dai-me a graça de saber sorrir por uma brincadeira, para que eu saiba tirar da vida um pouco de alegria e fazer dela participantes também os outros.

A sua vida diária era muito organizada. Mesmo quando foi chanceler, ia dormir cedo e se levantava às duas da madrugada para orar e estudar até as sete da manhã, quando participava da santa missa e, depois de ter feito o desjejum e ter dado a devida atenção à família, ia cuidar dos seus encargos. Com este horário, ele garantia o tempo necessário para cultivar sua união com Deus, viver com a família e levar adiante os estudos e escrever livros. Em 1501 fez em Londres uma série de conferências aplaudidíssimas sobre a obra Cidade de Deus de Santo Agostinho, que infelizmente se perderam. Enquanto estava em Flandres começou a escrever sua obra-prima, Utopia. Nesta obra expõe sua filosofia política, bem diferente da filosofia exposta na obra contemporânea O Príncipe, de Maquiavel. Em seguida escreveu as Quatro últimas coisas, isto é, a morte, o juízo, o inferno e o paraíso, aplicando as verdades dos novíssimos à vida da corte, e uma Resposta a Lutero e outros


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livros apologéticos. O seu estilo, como o seu caráter, não era polêmico, mas elegante e não raramente também recheado de humorismo. Nos últimos dez anos de sua vida mandou construir na sua casa uma capela, onde passava horas em oração e onde às vezes reunia toda a família, como na sexta-feira santa, quando lia e comentava a paixão de Jesus. No início das refeições uma das filhas lia uma passagem da Sagrada Escritura e o relativo comentário de Nicola de Lyra. Mesmo como chanceler, continuou a freqüentar sua paróquia, cantando no coro, servindo no altar e participando de várias iniciativas. Com o seu ordenado alugava casas e sustentava as despesas dos pobres, doentes e idosos.

Súdito do rei, mas em primeiro lugar cristão O rei Henrique VIII o estimava muitíssimo e contava com seu apoio quando entrou em conflito com o papa, pois a palavra do chanceler Morus era no reino a mais respeitável. Tomás, com muita diplomacia, procurou mitigar as divergências para evitar o choque frontal, mas não conseguiu. Quando o rei o colocou numa situação difícil, ele fez sua escolha de modo claro e decidido, dizendo que, mesmo reafirmando sua plena submissão ao rei nas coisas temporais, não podia em sã consciência reconhecê-lo chefe supremo da Igreja da Inglaterra, porque isso era contrário à fé. O rei mandou prendê-lo e trancou-o na Torre de Londres, onde pelos mesmos motivos se encontrava já o bispo Fisher, com o qual, porém, não pôde ter nenhum contato. Para convencê-lo, o rei recorreu a todos os meios, das adulações às ameaças, até despojá-lo não só dos títulos mas até dos seus próprios bens e a manipular os familiares para pressioná-lo. Tomás sofreu muito, mas nas cartas à filha Margaret explicou claramente porque não podia em consciência consentir nos pedidos do rei, mesmo que todos os bispos tenham jurado. Disseram-lhe que finalmente seu amigo Fisher havia aceitado o Ato de supremacia! Uma mentira que não conseguiu convencê-lo. O único conforto de Morus nesse período foi a oração. Tinha consigo o Livro das Horas e o Livro dos Salmos, unidos em um único volume. Nas bordas desses dois livros ele escreveu em língua inglesa a famosa Devota meditação e outras anotações que refletiam seu estado de alma: uma confiança imensa em Deus que o conforta e o temor de não ser capaz de aceitar a graça do martírio. No tempo que permaneceu prisioneiro, escreveu o Tratado sobre a Paixão com considerações originais. As cartas à filha Margaret são muito comoventes e impregnadas de delicadeza.


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A grandeza de alma Diante do tribunal Tomás permaneceu em um muitíssimo digno silêncio que rompeu só depois da sentença, quando reafirmou que para cada bispo que havia assinado o Ato de supremacia ele podia opor cem santos a seu favor, e ao voto do parlamento inglês os concílios ecumênicos da Igreja por mil anos. Depois continuou: “Por isto não posso, meu senhor, submeter minha consciência às opiniões de um concílio nacional em contraste com o concílio geral de toda a cristandade”; e com ânimo magnânimo, voltando-se para os juízes, concluiu: “Não tenho nada mais a acrescentar, meus senhores, mas como o santo apóstolo Paulo... estava presente e assistia a morte de santo Estêvão... e agora ambos estão na glória dos santos no paraíso, e a amizade deles continuará para sempre, assim eu creio verdadeiramente, e por isto orarei de coração, que, embora vossas excelências estejam na terra como juízes de minha condenação, poderemos no outro lado, no paraíso, todos encontrarmo-nos para nossa salvação eterna”.45 No patíbulo ele pediu à multidão que orasse pelo rei e, recitando o salmo Miserere, voltou-se para o algoz e disse algumas palavras engraçadas e depois colocou sua cabeça sobre o cepo do patíbulo. Foi no dia 6 de julho de 1535 e Tomás tinha apenas 57 anos. Sua cabeça tomou o lugar da de Fisher no mastro da ponte de Londres e permaneceu ali por 30 dias, quando a filha a obteve comprando-a do homem que estava encarregado de jogá-la no rio e a sepultou no túmulo da família. A fama da santidade heróica de Tomás se espalhou por todos os lugares da Europa, até que finalmente em nossos dias Paulo VI introduziu o seu culto no calendário universal, colocando em uma única celebração, no dia 22 de junho, João Fisher e Tomás Morus. No dia 31 de outubro de 2000 João Paulo II o proclamou padroeiro dos governantes e dos políticos.

24 de junho São João Batista precursor do Senhor (século I) “Antes de ser concebido, tu lhe atribuíste um nome profético; antes que nascesse, ficou cheio do Espírito Santo. Ainda no ventre materno, mereceu ouvir a voz

45. Cf. Roper. Vita di San Tommaso More. Oxford, 1935.


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da Mãe do Senhor, e estremecendo de misteriosa exultação, saudou o início da humana redenção. Ele se tornou o precursor de Cristo, que o proclamou o maior entre os nascidos de mulher.” 46

Este texto litúrgico é a síntese mais completa da figura de João Batista. A Igreja celebra duas festas em sua honra: hoje comemora o seu nascimento e no dia 29 de agosto o seu martírio.

O menino Como relata o evangelho de Lucas, Zacarias e Isabel, apesar da idade avançada, não tinham ainda perdido a esperança de ter um filho. Era para eles uma grande dor, pois a esterilidade para os hebreus era considerada uma desventura, uma maldição. Um dia, enquanto Zacarias cumpria o seu ofício de sacerdote no templo e oferecia o sacrifício vespertino no interior do santuário, recebeu um anúncio humanamente inacreditável: em breve teria um filho. Não conseguia acreditar e pediu um sinal. O sinal foi dado: ficou mudo até o cumprimento da palavra do Senhor. Isabel, para a admiração dos parentes e conhecidos, concebeu um filho. Era claramente um dom de Deus. Quando recebeu a visita da sua prima Maria e ficou sabendo das maravilhas que Deus estava realizando para a salvação da humanidade, não pôde senão louvar ao Senhor e abençoá-la, enquanto que o menino, agora já ao sexto mês de sua concepção, estremeceu no seu ventre. Quando ele nasceu, os pais concordaram em chamá-lo João, que quer dizer JHWH [Javé] mostra a sua benevolência. E Zacarias readquiriu a fala para cantar o seu hino de agradecimento e anunciar o destino do recém-nascido, chamando-o de “profeta do Altíssimo”.

O precursor Ciente da sua missão, quando chegou a idade conveniente, João foi viver no deserto: “usava uma vestimenta de pêlos de camelo e um cinto de couro em volta dos rins. Alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mateus 3,4). 46. MA II, 1134.


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Sua vida de penitente impressionava muita gente que de toda a região da Palestina vinha para ouvir o profeta. Ele pregava a penitência e a conversão do coração para se preparar para a vinda do reino messiânico que se aproximava. Em sinal de purificação dos pecados e do nascimento para uma nova vida, mergulhava nas águas do Jordão aqueles que acolhiam sua palavra. Por isso foi chamado de o Batista, isto é, o batizador. Até mesmo os soldados o procuravam para perguntar o que eles deveriam fazer, visto que o trabalho deles era tão miseravelmente malvisto e tão desprezado pela população. João respondeu a eles: “Não pratiqueis violência nem defraudeis ninguém, e contentai-vos com o vosso soldo” (Lucas 3,14). Para os fariseus e saduceus, pessoas que estavam certas de possuir a salvação no bolso, pois eram observantes da Lei, João falou palavras fortes para eles: “Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Daí, pois, frutos de verdadeira penitência...” (Mateus 3,7-8). Muitos começaram a pensar que ele fosse o Messias tão esperado, mas ele falou claramente a todos: “Eu vos batizo com água, em sinal de penitência, mas aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu e nem sou digno de carregar seus calçados. Ele vos batizará no Espírito Santo e em fogo” (Mateus 3,11). E à comissão oficial enviada pelos sumos sacerdotes, ele disse que de fato não era o Messias e acrescentou que o Messias já estava no meio deles, mas eles não o conheciam. Também Jesus se apresentou a João no rio Jordão para ser batizado. Quando João o viu diante dele, lhe disse: “Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim?” E disse Jesus: “Deixa por agora, pois convém que cumpramos a justiça completa”. João consentiu e viu o Espírito Santo descer sobre ele, enquanto que o Pai confirmava que aquele era exatamente o seu “Filho muito amado”, no qual colocava toda sua complacência (cf. Mateus 3,13-17). Daquele momento em diante o Batista, indicando Jesus às multidões, dizia: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1,29). Aos seus discípulos confidenciava: “Nisto consiste a minha alegria, que agora se completa. Importa que ele cresça e que eu diminua” (João 3,29-30).

O mártir Sua missão estava cumprida; Jesus de Nazaré havia iniciado sua pregação e tinha já o grupo dos apóstolos e dos discípulos, e uma grande multidão o seguia. João havia pregado para preparar um povo digno e não havia


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poupado nem mesmo o rei Herodes Antipas. Este, tendo tomado para si a bela Herodíades, mulher de seu irmão, ouviu João Batista dizer-lhe: “Não te é lícito viver com ela!”. Se quiserem tomar parte no banquete da redenção, também o rei e a sua corte deverão mudar de vida. O evangelho relata (cf. Mateus 14,1-12; Lucas 7,18-30) que Herodes tinha profunda admiração por João Batista, mas Herodíades, que o odiava profundamente, conseguiu convencer o rei de enfiá-lo no cárcere. Aos discípulos que tinham ido visitá-lo e lhe perguntavam se deveriam crer em Jesus, ele respondeu que fossem em seu nome e lhe perguntassem: “És tu o Messias ou devemos esperar por um outro?”. Jesus mostrou os sinais inconfundíveis das obras messiânicas e depois comentou que, para ele entre os nascidos de mulher, não havia nenhum que fosse maior que João. O Batista é o primeiro santo canonizado ainda em vida pelo mesmo Jesus. E João mesmo confirmou as palavras do Mestre com o martírio, porque Herodíades conseguiu receber a cabeça de João em uma bandeja, pensando calar para sempre aquele que representava a voz irreprimível da consciência humana. O exemplo suscitou horror e aumentou a fama do Batista. Seu martírio é recordado não só nos evangelhos mas também em Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo, que o chama “homem bom que estimulava os judeus ao exercício da virtude”.47 Para os cristãos João Batista representa aquele que conclui o Antigo Testamento e que abre o Novo, apresentando a todos a figura de Cristo Redentor. Por causa disso inumeráveis igrejas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, foram dedicadas a ele.

27 de junho São Cirilo de Alexandria bispo e doutor (378-444) “O Verbo de Deus se fez carne... de modo que já não é mais apenas Deus, mas também homem semelhante a nós pela união com a nossa natureza. Por

47. Flávio, Josefo. Antiquitates judaicae, XVIII, 5,2.


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conseguinte, o Emanuel [Deus-conosco] possui com certeza duas naturezas: a divina e a humana. Todavia, o Senhor Jesus Cristo é uno, único verdadeiro Filho natural de Deus, juntamente Deus e homem, não um homem deificado, semelhante àqueles que pela graça se tornaram participantes da natureza divina, mas verdadeiro Deus.” 48

Em um período no qual as Igrejas cristãs procuravam encontrar uma terminologia adequada para exprimir com clareza a doutrina trinitária, Cirilo, sem dúvida, ofereceu sua contribuição. Na verdade, seguindo com fidelidade o ensinamento de Santo Atanásio, ele defendeu a doutrina, ainda que com métodos nem sempre partilhados pela nossa sensibilidade moderna. Em geral, no passado, quando se escrevia a vida dos santos, para salientar o desígnio de Deus sobre eles, omitiam-se os limites e as incongruências. Hoje se descobriu que mostrar o verdadeiro rosto dos santos, com suas luzes e sombras, muitas vezes devido à cultura de seu tempo, além de ser mais coerente com a linha do Novo Testamento que não escondeu os defeitos dos mesmos apóstolos, torna o santo mais atraente, porque está mais próximo da nossa real condição humana. Cirilo, durante a sua vida, combinou todas as cores. Com o humour típico dos ingleses, o cardeal Newman escreveu que o bispo alexandrino “não estaria de acordo que sua santidade fosse julgada com base em suas ações”. Mesmo assim foi reconhecido santo primeiramente por seu povo e depois por toda a Igreja, a ponto de ganhar também no Ocidente o título de padre e doutor, mais que pelas virtudes que não lhe faltaram, sobretudo por ter vivido à sombra da santidade de Santo Atanásio, por ter professado com fidelidade a verdadeira fé e por ter escrito tantos livros cheios de sabedoria.

Nascido para lutar Nasceu em Theodosiou, talvez a atual Mahalla el Kobra, por volta de 378 em uma família que possuía prestígio na comunidade cristã de Alexandria. Seu tio, de fato, era patriarca dessa Igreja. Quando jovem, parece ter passado por um período de formação com os monges de Nitria, onde foi instruído nas Escrituras e encaminhado para a vida ascética. 48. Carta l: PG 77,14-18.27-30 passim.


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A inteligência que demonstrava, a cultura que tinha adquirido e a fidelidade à ascese tornavam-no uma pessoa preciosa para a Igreja de Alexandria. Não tardou e seu tio o retirou do mosteiro e o fez seu braço direito. Já no conciliábulo do Carvalho (403), em Calcedônia, ele estava ao lado do tio, que fez depor da sua legítima sede São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla. Depois de alguns anos de treinamento ao lado do tio briguento, sucedeu-o na sede de Alexandria em 412, embora uma parte dos cristãos e dos monges não o aceitasse, o que lhe valeu ter de experimentar a dureza de suas intervenções. Apenas eleito, compreendeu que seu dever, segundo a mentalidade daquele tempo, seria purificar a Igreja de Alexandria de todo “mau odor” de heresia, de judaísmo e de paganismo. Na cidade havia, já há séculos, um forte estabelecimento dos judeus e entre as duas comunidades nasceu uma profunda discórdia, que levou à destruição também material da colônia hebraica. Havia também uma filósofa neoplatônica, uma certa Ipazia, que era uma mulher culta, e foi encontrada morta por ação de um punhado de cristãos fanáticos. E para os hereges novacianos as coisas não se encaminharam de melhor maneira, porque Cirilo tirou deles a igreja e os reduziu ao silêncio. Os historiadores não reconhecem no bispo o autor material desses delitos, mas certamente o seu estilo era o de um inquisidor “ao pé da letra”. Criou confusão também com o prefeito da cidade, Orestes, mas também este foi calado: em Alexandria mandava Cirilo. O patriarca, com a astúcia de um estrategista, controlava os mosteiros e por intermédio dos monges todo o comércio de grãos da cidade. Qualquer movimento contrário a ele implicava o esvaziamento dos celeiros públicos e ter de suportar a revolta dos monges. E os monges eram milhares, gozavam do favor do povo e se revelavam perigosos, porque dependendo da ocasião sabiam usar melhor o bordão que a cruz. Uma vez desceram quinhentos para uma demonstração contra Orestes e, quando este teve a coragem de se apresentar para falar com eles, levou uma pedrada na testa e teve que sair correndo.

A defesa da ortodoxia Mas a controvérsia mais famosa foi aquela que Cirilo sustentou contra Nestório. Já desde os tempos do seu tio o relacionamento com Constantinopla não era bom, também porque, como Roma, ela se preparava para ser considerada


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a primeira sede patriarcal do Oriente, colocando na penumbra a sede egípcia. O leão de Alexandria, guarda vigilante da ortodoxia de todo o Oriente, examinando alguns escritos de Nestório, encontrou neles graves erros de fé. Nestório, partidário da escola antioquena, na qual foi formado para salvar a integridade da humanidade de Cristo, sustentava que a pessoa divina do Verbo coabitava com a pessoa do homem Jesus, com a conseqüência de que em Cristo, segundo ele, há duas naturezas e duas pessoas, e Maria pode ser chamada só mãe de Cristo e não mãe de Deus. Cirilo, da escola alexandrina, remontando a Nicéia e Santo Atanásio, admitia em Cristo a integridade das duas naturezas – humana e divina – mas ensinava que estão unidas em uma única pessoa, a do Verbo. Então Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas é uma só pessoa, é Deus feito homem. Por isto, quem o gerou na sua humanidade, pode ser chamada justamente de mãe de Deus. Conhecido e muito estimado pela maioria dos bispos do Oriente, Cirilo logo escreveu uma carta ao papa Celestino, para que condenasse Nestório. Também Nestório apelou ao Papa, que em um sínodo romano não aprovou a doutrina de Nestório e encarregou Cirilo, que estava presente no sínodo, de notificar ao interessado. As coisas se complicaram, porque, não satisfeito com a decisão papal que não previa nenhuma excomunhão, Cirilo convocou um outro sínodo no Egito e aumentou a dose da condenação de Nestório, provocando grande confusão nas igrejas. Então houve intervenção do imperador Teodósio que convocou um concílio universal em Éfeso no ano 431. Aproveitando da confiança que gozava perante o Papa e sem aguardar a chegada dos enviados papais e dos bispos do patriarcado de Constantinopla, Cirilo antecipou em alguns dias a abertura da assembléia conciliar e fez com que Nestório fosse condenado. A condenação começava com estas duras palavras: “A Nestório, o novo Judas”. Quando os enviados do Papa chegaram, eles foram postos a par dos acontecimentos e confirmaram a doutrina do concílio. Enquanto isso os muitíssimos monges que haviam vindo do Egito prepararam o povo e de noite, quando os padres conciliares saíram da assembléia, foram acolhidos por uma multidão entusiasmada que, cantando hinos, os levou em triunfo pelas ruas da cidade, toda iluminada por uma extraordinária procissão luminosa devido às tochas acesas que levavam. Os outros bispos retardatários, favoráveis a Nestório, encontrando-se diante de um fato consumado, reuniram-se à parte e excomungaram Cirilo.


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Logo depois chegaram os enviados imperiais com uma carta de Teodósio que comunicava: “Confirmamos a deposição de Nestório, Cirilo e Menon, recomendada a nós pela vossa piedade”. Menon era o bispo de Éfeso. A confusão tinha superado todos os limites. Nestório e Menon aceitaram a deposição, Cirilo recusou-a, declarando abusiva a intromissão do imperador na vida interna da Igreja e acabou sendo preso. Cirilo não era severo apenas com aqueles que ele considerava inimigos da verdadeira fé, mas por esta mesma fé também estava disposto a pagar pessoalmente até as últimas conseqüências. Do cárcere ele comunicou: “Nós, pela fé em Cristo, estamos prontos a padecer tudo: sermos acorrentados, sermos levados para o cárcere, todos os incômodos da vida e até a própria morte”. Depois disso os seus souberam negociar com a corte e obtiveram a sua soltura. O concílio foi considerado válido e Nestório, depois de vicissitudes a favor e contrárias, retirou-se da vida pública para se tornar monge no Egito. Cirilo, então, começou a perceber que seu modo de agir muitas vezes havia espezinhado a lei da caridade e que possuir a verdade sem a comunhão com Constantinopla e com Antioquia não era vida evangélica. Foi nesse momento que ele pôs em prática o maior ato de humildade que se pudesse pedir dele: reconciliar-se com os seus adversários doutrinais subscrevendo uma profissão de fé que foi denominada “o símbolo de união”. Cirilo morreu no dia 27 de junho de 444, deixando para a Igreja uma rica produção teológica sobre os mais variados assuntos: desde a exegese bíblica aos tratados sobre a Trindade e sobre a Encarnação, da apologética contra Juliano, conhecido como o Apóstata, e homilias sobre a Igreja como corpo de Cristo. O amor sincero para com a verdade, a vida ascética que marcou toda a sua existência e a condescendência pela reconciliação nos últimos anos, levamnos a admirar muito este homem que, além de lutar contra outros, precisou combater duramente contra si mesmo.

28 de junho Santo Irineu de Lyon bispo e mártir (115/50-202/3) “Guardamos fielmente a doutrina recebida da Igreja e tal doutrina, como um precioso perfume colocado em um bom recipiente, rejuvenesce constantemente


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por obra do Espírito de Deus e faz rejuvenescer o recipiente em que se encontra. Ela é o dom de Deus confiado à Igreja, como o sopro de vida inspirado (por Deus) no barro que foi moldado, e contém o dom de Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor de incorruptibilidade da nossa fé e escada para chegar até Deus... Onde está a Igreja, aí está o Espírito de Deus e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda graça, e o Espírito é verdade.” 49

Bastaria esta página para contemplar, como em um espelho, a estatura espiritual deste padre da Igreja. Apaixonado pela verdade recebida dos apóstolos, ele lutará a vida toda para defendê-la das contaminações das heresias. “Aqueles que não possuem (o Espírito Santo)” – continua no texto supracitado – “não se nutrem do leite materno da mãe (Igreja) para a vida e não recebem nada da puríssima fonte que jorra do corpo de Cristo, mas cavam para si mesmos cisternas imprestáveis e bebem da terra água infectada de esterco, porque fogem da Igreja a fim de não serem convencidos dos seus erros e rechaçam o Espírito para não serem instruídos”.

Do Oriente para o Ocidente Irineu nasceu em Esmirna entre os anos 115 e 150. Do primeiro período de sua vida sabemos somente que já na adolescência era cristão convicto e assíduo ouvinte aos pés de Policarpo, como se lê em uma carta sua dirigida a Florino e que nos foi conservada por Eusébio de Cesaréia em sua História eclesiástica:50 As coisas de então recordo-as melhor que as recentes, porque o que se aprende na infância forma um todo em nossa vida, e se desenvolve e cresce com ela. Eu poderei te descrever ainda o lugar onde o bem-aventurado Policarpo costumava sentar para nos falar, e como começava, e de que maneira explicava um argumento, como conduzia sua vida, qual era a aparência de sua pessoa; os discursos que fazia ao povo, como nos narrava a respeito da sua relação de amizade com João e com os outros que tinham visto o Senhor, dos quais recordava as palavras e as coisas deles ouvidas a respeito do Senhor, dos seus milagres e da doutrina. Tudo isto Policarpo havia aprendido precisamente das testemunhas oculares do Verbo da vida.

49. Adversus haereses 1, III, 38. 50. Eusébio de Cesaréia. História eclesiástica, V, 20,5-7.


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E o anunciava em plena harmonia com as Sagradas Escrituras. Estas coisas que então, por dom da divina misericórdia, atentamente ouvi, conservei-as na memória; não já escritas, mas no íntimo do coração e, graças a Deus, assiduamente e amorosamente as recordo. Sempre na mesma carta escrita a Florino, seu antigo condiscípulo que se tornou presbítero da Igreja em Roma, mas propenso à heresia gnóstica, acrescentava: “Posso afirmar diante do Senhor que, se aquele presbítero bemaventurado e apostólico tivesse escutado aquilo que tu dizes, teria saído em um grito, e teria tapado os ouvidos, e teria exclamado como era costume dizer: ‘Bom Deus, que tempos me reservastes! Eis o que tenho de suportar’, e sem dúvida teria fugido daquele lugar, onde, sentado ou em pé, tivesse ouvido tais discursos!”. Quando ele escreveu isso já fazia tempo que estava em Lyon. Não sabemos quando nem porque Irineu foi viver nesse centro comercial do Ocidente, onde havia uma grande comunidade oriental e onde havia florescido uma igreja cristã muito viva. Em Lyon, o bispo Potino ordenou-o presbítero. No ano 177, a comunidade estava sendo sacudida, de fora, por uma dura perseguição, e, no seu interior, estava sendo perturbada por alguns irmãos vindos da Frígia, os quais pregavam doutrinas estranhas a respeito do iminente fim do mundo e queriam impor um modo de vida tão austero para fechar o céu à maior parte dos pobres mortais. Ao bispo Potino pareceu que eles, para seguir de perto um tal Montano, tivessem abandonado o Cristo dos apóstolos, e enviou a Roma o presbítero Irineu para pedir esclarecimento ao papa Eleutério. Ele levava consigo uma carta da sua Igreja: “Encarregamos Irineu, nosso irmão e companheiro, de levar-te estas cartas; digna-te acolhê-lo como pessoa que tem no coração o testamento de Cristo. Se pensássemos que a posição de uma pessoa é aquela que a torna justa, tê-lo-íamos logo enviado a ti apresentado como padre da igreja, como de fato ele é”.51 Em Roma, Irineu foi bem acolhido e confirmado na fé dos apóstolos, entretanto, contemporaneamente na sua igreja quarenta e oito cristãos foram martirizados, e entre eles também se encontrava o nonagenário Potino. Assim que colocou os pés na sua cidade e anunciou aos cristãos a resposta de Roma, foi aclamado bispo. Aceitar esse cargo, mais que uma honra, era tornar-se candidato ao martírio.

51. Ibid., V, 24,4.


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Dos seus escritos pode-se deduzir que Irineu possuía uma boa cultura clássica. Tertuliano o definia como: “um muitíssimo cuidadoso investigador de toda espécie de doutrinas”.52 Ordenado bispo, com a sua pregação e o seu exemplo converteu quase toda a cidade e enviou missionários para muitos outros lugares, conquistando assim uma autoridade indiscutível em toda a Gália, como resulta da parte que ele teve na questão da data da Páscoa. Todas as igrejas do Ocidente e algumas do Oriente celebravam a Páscoa no domingo depois do dia 14 de Nisã, enquanto que outras igrejas orientais como a de Antioquia celebravam-na no dia 14 de Nisã, qualquer que fosse o dia da semana em que incidisse. A questão vinha se arrastando já desde o tempo de Policarpo, que com este escopo tinha se dirigido a Roma para firmar um acordo com o papa, mas sem obter resultado. Sob o papa Vítor reuniram-se sínodos para tratar desse assunto e a grandíssima maioria dos bispos concordava em seguir a tradição dominical, enquanto que os da Ásia proconsular não quiseram renunciar à tradição deles que diziam ser respeitável e remontava ao próprio apóstolo João. O papa Vítor não aceitou essa exceção e estava propenso a “afastar da comunhão as igrejas da Ásia”. Muitos bispos escreveram ao papa “exortando-o” – diz Eusébio – “para ter cuidado com a paz, com a união e com a caridade. Entre outros estava também Irineu, que escreveu em nome das igrejas da Gália, às quais ele presidia”.53 E o historiador de Cesaréia conclui: “Irineu, cujo nome significa pacificador, foi tal também na sua conduta”.54 O papa não usou de mão de ferro e lentamente as igrejas da Ásia se uniformizaram ao uso da maioria.

Mestre da verdadeira fé Irineu conduziu bem a sua Igreja e, como já dissemos, empenhou-se pela difusão do evangelho na Gália, mas o seu mérito maior foi de ter escrito seus ensinamentos, sobretudo no seu famoso livro Contra as heresias. Nos seus escritos, ele prefere afirmações simples e essenciais, rejeitando toda forma de especulação e procurando ser muito fiel à Sagrada Escritura e

52. Tertuliano, Adv. Valent. 5. 53. Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, V, 24, 9-11. 54. Ibid., V, 24,18.


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à tradição, retomando, sobretudo, os conceitos do Evangelho de João e das cartas paulinas. Está firmemente convicto de que “é melhor e mais útil saber pouco com toda simplicidade e chegar assim a Deus no amor, mais que se julgar douto e se encontrar com todos os mais ricos conhecimentos, e ser perseguidor e inimigo do próprio Deus”.55 Na introdução à sua obra anotava: “Para mim é estranho o escrever, não tenho disso nenhuma prática, mas o que me impulsiona é o amor”, amor à verdade e por seus fiéis. Os gnósticos, de fato, estavam semeando confusão entre os cristãos, não somente no Oriente, habituado às disputas filosóficas, mas também no Ocidente, pouco inclinado naquele tempo para essas diatribes. Segundo os gnósticos, Deus era um ser inacessível e incapaz de criar, e em oposição a ele havia o universo da matéria ruim. Entre esses dois princípios existia um mundo intermediário povoado por eons, seres gerados por Deus e dispostos aos pares. Um destes era o demiurgo, deus do Antigo Testamento, que havia disposto a matéria na forma atual. Uma partícula do mundo intermediário, a alma humana, caiu na matéria, dando início ao grande sofrimento humano. Para nos libertar veio para o nosso mundo material um novo eon, Jesus Cristo, com um corpo aparente. Com semelhantes doutrinas era mandada para o espaço a encarnação do Verbo, a ressurreição da carne, a eucaristia e a ascese cristã. Irineu respondeu a essas elucubrações com a exposição clara da doutrina cristã, da maneira que havia recebido da tradição apostólica. Por isso ele foi denominado “o último homem apostólico e o primeiro teólogo”. O último homem apostólico, porque foi enumerado entre aqueles que tiveram a felicidade de escutar os imediatos sucessores dos apóstolos, como Inácio e Policarpo, e o primeiro teólogo, porque expôs de forma sistemática e também sintética a doutrina cristã na sua genuinidade – como ele mesmo gostava de afirmar – por uma sucessão ininterrupta de bispos e pela assistência do Espírito Santo. Assim, Irineu fala sobre a encarnação: “O Verbo assumiu propriamente aquela humanidade que havia perecido, para salvá-la, atuando tudo o que era necessário para a comunhão com ele e para a salvação nele. Isso que estava perdido tinha carne e sangue, porque o Senhor tinha plasmado a criatura humana, tomando barro da terra e para ela dispôs toda a economia da vinda do Senhor. Por isso teve também ele carne e sangue, não diferentes, mas tais que recapitulassem a primitiva criatura do Pai, procurando aquilo que havia sido perdido. Neste

55. Adversus haereses II, 26.


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sentido, o apóstolo escreve aos colossenses: vós vos reconciliastes no corpo da sua carne. Reconciliados no corpo da sua carne significa que a carne santa reconciliou a carne que estava no pecado e a reconduziu à amizade com Deus”. Deste modo “... o Senhor nosso nos últimos tempos, recapitulando tudo em si mesmo, vem a nós não como ele poderia se apresentar, mas como nós o podíamos ver; ele poderia vir a nós na sua glória indescritível, mas nós não poderíamos suportar o peso da sua majestade. Por isso, como a crianças, ele que era pão perfeito do Pai, se deu a nós como leite – foi esta a sua vinda como homem – a fim de que nutridos por assim dizer pelo leite da sua carne e com esse aleitamento acostumados a comer e a beber o Verbo de Deus, pudéssemos conservar em nós o pão imortal que é o Espírito”.56 E falando da eucaristia ele acrescenta: “E visto que somos seus membros, ele nos nutre por meio das coisas criadas... Ele ainda reconhece como próprio sangue a bebida tomada da natureza criada e a transformou no seu sangue, e afirmou ser seu próprio corpo o pão tomado da natureza criada e com o qual faz crescer nossos corpos. Todas as vezes que a bebida que preparamos e o pão que nós fizemos, recebendo a palavra de Deus, torna-se eucaristia, sangue e corpo de Cristo, a substância da nossa carne cresce e se fortifica. Como podem negar que a carne, nutrida pelo sangue e pelo corpo de Cristo e membro seu, seja incapaz de receber o dom de Deus que é a vida eterna?...”.57 E o Espírito de Deus, através do batismo e da eucaristia, opera a nossa assimilação a Cristo até levar-nos ao seio do Pai. “Mediante o Espírito Santo (os batizados) sobem ao Filho, e por meio do Filho ao Pai, e o Filho leva enfim a sua obra ao Pai”.58 Um outro ponto da doutrina que Irineu expõe com muita clareza é como chega até nós a verdadeira fé. A Escritura “é ditada” – diz ele – “pelo Verbo de Deus e pelo Espírito Santo e por isso é perfeita”, mas os escritores primeiro pregaram e depois fixaram uma parte da sua pregação. Quem nos assegura agora a respeito da veracidade das Escrituras? Irineu responde que é a tradição que nós encontramos nas igrejas, sobretudo naquelas que foram fundadas pelos apóstolos e de modo especialíssimo na Igreja de Roma, “pela

56. Adversus haereses IV, 52. 57. Adversus haereses II, 2. 58. Adversus haereses IV, 36.


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sua mais elevada preeminência”, por ter sido fundada pelos gloriosos apóstolos Pedro e Paulo”.59 As obras de Irineu já no seu tempo foram roubadas e ele precisou escrever uma pequena obra, mais breve, para o uso das pessoas simples, quase que um catecismo ante litteram (introdução), intitulada Exposição da pregação apostólica, descoberta na Armênia em 1904. Não é sem motivo que ele veio a ser chamado de “a luz do Ocidente”, não porque tivesse iluminado só essa parte da cristandade – ele entre outras coisas escreveu em grego –, mas porque esse sol tinha se levantado no Ocidente. Segundo o testemunho de Gregório, que foi presbítero em Lyon e depois bispo de Tours, Irineu morreu mártir sob Setímio Severo e como tal é venerado ainda hoje na Igreja.

29 de junho Santos Pedro e Paulo apóstolos (século I) “Um só dia da paixão para os dois apóstolos, mas aqueles dois eram uma só coisa; sim, embora tenham sofrido em dias diferentes, eram uma coisa só. Pri­ mei­ro precedeu Pedro, seguiu-o depois Paulo. Celebramos o dia festivo dos após­ tolos consagrado para nós pelo seu sangue. Amemos a fé, a vida, as fadigas, as confissões, as pregações.” 60

O martírio dos dois grandes apóstolos em Roma foi sempre recordado com veneração pelos cristãos de todo o mundo. Já no ano 200 o presbítero romano Caio escreveu para um amigo: “Eu posso mostrar-te os despojos dos apóstolos. Se de fato quiseres dirigir-te ao Vaticano ou à via Ostiense encontrarás os despojos daqueles que fundaram a Igreja”.61 E as escavações que foram realizadas debaixo da basílica do Vaticano confirmaram a existência dos despojos de Pedro.

59. Cf. Adversus haereses III, 3,2. 60. Agostinho. Discursos, PL 38,1358. 61. Eusébio de Cesaréia. História eclesiástica, II, 25,5-7.


Santos Pedro e Paulo

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Para as informações referentes ao apóstolo Paulo, ver a data de 25 de janeiro. Aqui apresentamos apenas a figura de Pedro.

O chamado Pedro nasceu em Betsaida, na Galiléia, filho de João ou Jonas, irmão de André, casado, e morava em Cafarnaum quando conheceu o Mestre. Nos evangelhos não se faz menção do nome da esposa ou dos filhos, entretanto faz referência à sogra que milagrosamente foi curada por Jesus. Pedro e André haviam constituído com Tiago e João o que hoje chamaríamos de uma pequena, mas eficiente, indústria de pesca. Escavações recentes em Cafarnaum trouxeram à luz aquela que poderia ter sido a casa de Pedro. É muito ampla, próxima do lago e, como a sinagoga, está situada fora do aglomerado de pequenas casas que formavam a cidadezinha. Sinal de que a família de Pedro vivia muito bem economicamente. Em seu primeiro encontro com Jesus ouviu-o dizer: “Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas (que quer dizer pedra)” (João 1,42). Dar-lhe um novo nome queria indicar-lhe a missão a que estava destinado. Não sabemos o que pode ter ele entendido. Certamente aquele encontro confirmou tudo o que o irmão havia lhe dito: “Achamos o Messias!” (João 1,41). Os dois voltaram a pescar, pois precisavam levar adiante a pequena empresa familiar, mas, assim que podiam, iam ouvir o Mestre.

O seguimento Um dia, enquanto Pedro e André estavam na margem do lago consertando as redes junto com o pai e os filhos de Zebedeu, depois de uma noite de trabalho exaustivo e inútil, chegou Jesus e subiu à barca de Pedro e começou a ensinar as pessoas que se aglomeravam nas margens do lago. Quando terminou, convidou os pescadores a lançar as redes ali mesmo, próximo da praia. Que absurdo!, devem ter pensado muitos. Pedro ao contrário disse: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada apanhamos; mas por causa de tua palavra, lançarei a rede” (Lucas 5,5). E a pesca foi milagrosa. Pedro, mais que pensar na enorme felicidade que de improviso aconteceu e que estava em suas mãos, olhou para Jesus e, consciente de sua indignidade, prostrou-se aos pés de Jesus e lhe disse: “Retira-te de mim, Senhor, porque


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sou um homem pecador” (Lucas 5,8). E a resposta foi imprevista ainda mais que a pesca: “Não temas, doravante serás pescador de homens”. O evangelista comenta que Pedro e André “atracando as barcas, deixaram tudo e seguiram Jesus” (Lucas 5,11). A vida deles agora estava ligada para sempre à vida de Jesus, com­ partilhando com ele as alegrias e as fadigas, mas sobretudo vivendo como ele vivia e descobrindo horizontes jamais antes imaginados. Quando mais tarde o Mestre, depois de uma noite em oração, escolheu e constituiu os Doze, Pedro foi o primeiro da lista, e dessa forma é que permaneceu em todas as citações do Novo Testamento. Ele soube corresponder ao amor particular de Jesus com uma fé sincera. Depois do discurso sobre “o pão da vida”, enquanto todos se distanciavam, o Mestre perguntou se também os apóstolos queriam ir embora, Pedro respondeu: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna. E nós cremos e sabemos que tu és o santo de Deus!” (João 6,68-69). Em outra ocasião, à pergunta de Jesus sobre o que as pessoas pensavam a seu respeito, Pedro respondeu: “Tu és o Cristo o Filho de Deus vivo”. Jesus então lhe disse: “... tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. (...) Eu te darei as chaves do reino dos céus...” (cf. Mateus 16,16-19). Quando a mãe dos filhos de Zebedeu pediu para eles os primeiros lugares no reino messiânico, os outros apóstolos não esconderam o descontentamento; aqui, ao invés, todos aceitam as palavras de Jesus que reconhecia em Pedro pessoa que lhe fora dada pelo Pai para o cumprimento de uma missão especial. Pedro, com Tiago e João, formavam aquele grupo dos mais íntimos que o Mestre quis que participassem dos acontecimentos extraordinários, como a ressurreição da filha de Jairo, a transfiguração, a oração no horto das Oliveiras.

As fraquezas de Pedro Sobretudo são Marcos, o seu evangelista, não escondeu as fraquezas de Pedro. Na transfiguração fez esta intervenção: “Mestre, é bom para nós estarmos aqui; faremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias” (Marcos 9,5), e o evangelista, evocando quase que certamente um comentário de seu Mestre, acrescenta argutamente que Pedro não sabia o que estava dizendo...


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Descendo do monte, Jesus preanunciou sua iminente paixão e morte. O Mestre deve morrer? Absurdo!, pensou Pedro e o disse abertamente. A censura de Jesus foi dura, mas Pedro aceitou. Não compreendia, mas sabia que estava diante da verdade. Por seu lado, Pedro era desse jeito. Vê-se que tinha uma tal confiança em Jesus, a ponto de poder dizer-lhe tudo o que lhe vinha à mente sem pensar duas vezes. Por isso teve de tomar mais uma repreensão durante o Lava-pés antes da última ceia. Como podia permitir que seu Mestre se inclinasse diante dele como um escravo e lavasse os seus pés, ele um mísero pecador? Opôs-se decididamente, mas igualmente decidida foi a resposta de Jesus: “Se eu não os lavar, não terás parte comigo” (João 13,8). Era o mesmo que dizer: podes ir embora! E Pedro respondeu que estava disposto não só a lavar os pés, mas as mãos e também a cabeça. Quando Jesus anunciou que naquela noite ele seria abandonado por todos, Pedro contestou dizendo que morreria com ele. Palavras sinceras, mas que não levavam em conta a fraqueza humana. Jesus então, com infinita delicadeza, depois da profecia da tríplice negação, lhe confirmou que Deus não o abandonaria e que ele, uma vez arrependido, deveria confirmar na fé os seus irmãos. Naquela noite, as coisas se precipitaram e Pedro fez a mais dura experiência de sua vida. No horto das Oliveiras não conseguiu vigiar e orar ao lado de seu Mestre; acordado pela chegada dos guardas, quis defendê-lo com a espada e errou novamente. Privado de todos os recursos humanos, ele não soube fazer outra coisa senão fugir. Com João, teve coragem de entrar no palácio do sumo sacerdote, onde o sinédrio estava julgando Jesus e ali também fez aquilo que ele jamais teria feito: diante de uma porteira e depois diante dos guardas, que se esquentavam perto de uma fogueira no pátio, por bem três vezes negou que conhecesse o seu Mestre. Naquele momento, Jesus atravessava o pátio acorrentado e olhou para Pedro. O apóstolo compreendeu que não estava pronto para o martírio e fugiu daquele lugar. O evangelista relata que ele chorou amargamente, mas não se desesperou como Judas. Consciente talvez de sua fraqueza, não teve coragem de se expor ainda em primeiro lugar ao lado de Maria e João aos pés da cruz, mas acompanhou a paixão do cenáculo junto com os outros apóstolos que, assustados como ele, estavam em um lugar fechado. Quando as mulheres lhes levaram o primeiro anúncio da ressurreição, Pedro e João foram correndo ao sepulcro e constataram que elas haviam dito a


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verdade. Em seguida, o Ressuscitado apareceu muitas vezes aos apóstolos, mas antes ainda apareceu somente a Pedro, segundo o testemunho de Lucas (Lucas 24,34) e de Paulo (1Coríntios 15,5). Para que no coração de Pedro não permanecesse nenhuma sombra e entre os discípulos não surgisse no futuro nenhuma dúvida a respeito da sua idoneidade em conduzir a Igreja, o Ressuscitado, segundo o evangelho joanino, quis confirmar diante dos outros apóstolos a missão que havia confiado a Pedro, e à tríplice profissão de amor repetiu por três vezes: “Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas” (João 21,16-17). Na última conversa de Jesus com Pedro, Jesus lhe profetizou o martírio. Enfim, vazio de si mesmo e revestido do Espírito do seu Senhor, podia edificar a Igreja – a casa que o Ressuscitado habitaria até o fim do mundo – e testemunhar com o sangue a própria fé.

A obra de Pedro Antes ainda da solene vinda do Espírito Santo, olhando ao seu derredor, Pedro percebeu que o colégio apostólico não estava completo como havia estabelecido o Mestre, e reunidos em assembléia fez eleger Matias para o lugar de Judas Iscariotes. No dia de Pentecoste Pedro tomou a palavra e explicou ao povo de Jerusalém e aos vindos de todas as partes o que havia acontecido na história da salvação. Nasceu assim a primeira comunidade cristã. Na porta do templo realizou o milagre da cura de um pobre aleijado, suscitando entusiasmo entre o povo e preocupação no sinédrio. Levado mais de uma vez à prisão e depois solto, afirmou com clareza que ele devia obedecer a Deus e não aos homens. Na comunidade cristã, Ananias e Safira caíram mortos aos seus pés, depois de terem mentido, e Simão, o Mago, que queria comprar com dinheiro o poder de fazer milagres, precisou ouvir palavras duríssimas. Sua pregação foi também realizada fora dos confins de Jerusalém: em Jope ressuscitou Tabita para a alegria da comunidade local; em Cesaréia, onde pela primeira vez admitiu na igreja toda uma família que não pertencia ao povo eleito, a família do centurião Cornélio, sem exigir que eles se submetessem às práticas da lei mosaica. Uma decisão revolucionária para a mentalidade dos judeu-cristãos da época, que continuou por alguns anos a agitar os cristãos


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até provocar o assim chamado primeiro concílio da Igreja, no qual Pedro confirmou esse modo de agir. No concílio, de fato, “ao fim de uma grande discussão, Pedro levantouse” e proclamou o seu pensamento: “... Por que, pois, provocais agora a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportar? Nós cremos que pela graça do Senhor Jesus seremos salvos, exatamente como eles” (Atos 15,7.10-11). Esse ensinamento de Pedro foi o cavalo de batalha de Paulo para defender a liberdade evangélica dos convertidos do paganismo. Quando a incompreensão dos judaizantes para com os outros cristãos estava para dividir a comunidade de Antioquia, Pedro, encontrando-se naquela cidade com Barnabé, para não aumentar a polêmica, abstinha-se de freqüentar as casas dos pagãos convertidos. Paulo o advertiu a respeito das conseqüências negativas que esse comportamento estava produzindo: pela sua posição de preeminência entre os apóstolos, alguns poderiam aproveitar de seu exemplo para negar tudo aquilo que ele havia declarado na assembléia de Jerusalém. E Pedro acolheu com humildade a correção fraterna. Em 44, Herodes Antipas mandou matar Tiago, o Maior, e aprisionou Pedro. A perseguição tornava-se cada vez mais perigosa. A comunidade se recolheu em oração para pedir a Deus a libertação de Pedro, e quando este saiu miraculosamente da prisão, e bateu à porta, a comunidade não acreditou no que via. Desta forma a vida em Jerusalém tornava-se cada vez mais perigosa e Pedro resolveu partir para Antioquia e depois para Roma. Não sabemos quantos anos permaneceu na capital do império. Em Roma ele permaneceu até a morte. Teve como ajuda no ministério o evangelista Marcos, pelos antigos chamados de seu “intérprete”, pois dizem que ele escreveu seu evangelho extraído da catequese petrina. Duas cartas, que fazem parte da Bíblia, trazem o nome de Pedro como autor, mas segundo os críticos trata-se de um uso freqüente naqueles tempos, de uma atribuição de honra aos príncipes dos apóstolos, pois foram escritas naquele ambiente da comunidade cristã de Roma, ou pelo fato de refletirem o ensinamento de Pedro. Parece que a Primeira carta de Pedro foi escrita por volta do ano 70 e 80 depois de Cristo por um certo Silas ou Silvano, dos quais se fala nos Atos dos Apóstolos, enquanto que sobre o autor da Segunda carta de Pedro se pensa que foi escrita por um cristão de Roma por volta dos anos 100 e 110 do qual, porém, não conhecemos o nome.


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Um autor espanhol contemporâneo62 resume desta maneira as várias figuras de Pedro no Novo Testamento: “Ele é discípulo de Jesus, o primeiro a ser chamado (tradição sinótica), o primeiro na lista dos Doze e porta-voz deles, rocha [pedra] da Igreja (Mateus). Fraco e pecador, representa a incapacidade dos discípulos em compreender e em seguir Jesus no caminho da cruz. É exemplo de conversão. É apóstolo e missionário (Paulo e Atos), testemunha da ressurreição (Kerigma primitivo), testemunha e mártir (1Pedro; João 21), copresbítero (1Pedro) aquele que acolhe, transmite e interpreta de maneira ortodoxa a revelação (2Pedro)”. Talvez tenha sido martirizado no ano 64, durante a perseguição de Nero, Pedro foi sepultado com honras no cemitério na colina do Vaticano, onde mais tarde o imperador Constantino construiu uma basílica, que foi muitas vezes renovada até chegar à atual estrutura monumental. A grandeza de Pedro não depende, obviamente, da magnificência dos monumentos, mas da sua generosidade e da sua fidelidade ao Senhor. E ainda hoje ressoam como um testamento estas palavras, que se não saíram materialmente da sua pena parecem que saíram genuinamente de seu coração: “Em obediência à verdade, tendes purificado as vossas almas para praticardes um amor fraterno, sincero. Amai-vos, pois, uns aos outros, ardentemente e do fundo do coração. Pois fostes regenerados não de uma semente corruptível, mas pela palavra de Deus, semente incorruptível, viva e eterna” (1Pedro 1,22-23).

30 de junho Protomártires da Igreja de Roma (século I) “Colocamos diante dos vossos olhos os valorosos apóstolos: Pedro e Paulo. (...) A estes (...) veio juntar-se uma grande multidão de eleitos, os quais tendo sofrido ainda por causa de outrem, ódio, muitos ultrajes e tormentos, ofereceram para nós um magnífico exemplo.” 63

São Clemente Romano, papa, falando de uma grande multidão de mártires, referia-se à terrível chacina deflagrada em Roma pelo imperador 62. Aguirre Monastério, R. Pedro en la Iglesia primitiva. Estella (Navarra), Editorial Verbo Divino, 1991, p. 15. 63. Clemente Romano. Carta aos Coríntios, in: Funk 1,67-68.


Protomártires da Igreja de Roma

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Nero, depois do pavoroso incêndio da cidade em 16 de julho de 64. Naquela ocasião não foi difícil deixar plena liberdade à raiva popular, atribuindo a autoria do crime aos cristãos. A tradição não nos transmitiu o nome de nenhum desses mártires, mas a memória deles permaneceu viva na comunidade cristã de Roma sendo que, depois de quase meio século, o papa Clemente os indicava como exemplo e os associava ao martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. A respeito deles, porém, temos um testemunho especial, o do historiador romano Tácito, que, mesmo se associando à crença comum, não pôde deixar de deplorar a crueldade desumana dos fatos. Talvez o autor do incêndio, pensa Tácito, tenha sido o próprio imperador, mas ele, “para eliminar as suspeitas, descarregou a culpa sobre outros, submetendo-os às mais terríveis torturas. Eram gente odiosa por causa das suas abominações; o populacho os chamava cristãos. O nome vem de Chrestos, o qual sob Tibério tinha sido supliciado pelo procurador Pôncio Pilatos. Por algum tempo contida, a execrável superstição novamente transpunha os limites não somente da Judéia, onde teve sua origem funesta, mas da Urbe, cloaca percorrida por todas as infâmias e por tudo o que envergonha. Primeiramente foram presos aqueles que confessaram; depois de suas delações, foi presa uma multidão imensa, menos como incendiária que como inimiga da humanidade. A morte deles foi considerada uma diversão pública. Alguns, cobertos por peles de animais, foram dilacerados pelos cães; outros foram suspensos em cruzes; e tornaram-se tochas ardentes quando o dia escureceu, para iluminar a noite. Para esses espetáculos Nero havia oferecido seus próprios jardins”.64 É certo que os cristãos não tiveram nenhuma culpa do incêndio, mas tornaram-se o bode expiatório pela acusação feita contra eles pelos delinqüentes comuns, que assim esperavam ser libertados das prisões. A Igreja quis dedicar um dia para a memória litúrgica desta multidão de mártires anônimos. Eram pais e mães de família, jovens e idosos de ambos os sexos, muitos deles de condição social humilde. Não cometeram nenhum delito, mas foram considerados responsáveis pelo incêndio só pelo fato de serem cristãos. Mesmo que a perseguição de Nero tenha sido circunscrita somente à cidade de Roma naquele determinado episódio, sua repercussão chegou a todos os lugares e os cristãos ficaram sabendo que não teriam vida fácil no império.

64. Cit. in: Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1988, p. 363.


JULHO

3 de julho São Tomé apóstolo (século I) “Quando reconheceu as chagas do Mestre, Tomé proclamou: “Meu Senhor e meu Deus” e pôde testemunhar com privilegiada certeza a verdade da ressurreição.” 1

Tomé era chamado o dídimo, que quer dizer gêmeo. As poucas informações deste apóstolo que encontramos no Novo Testamento são particularmente interessantes. Ele foi um apóstolo que teve muita dificuldade para crer, quis verificar pessoalmente. Mas sua incredulidade – como nos relata são Gregório Magno – nos ajudou mais do que a credulidade dos outros apóstolos. Quando no último período de sua vida pública, Jesus quis ir para Jerusalém, mesmo sabendo o que o esperava, os apóstolos não compreendiam aquela decisão do mestre. Tomé então tomou a iniciativa e lhe disse: “Vamos também nós para morrer com ele” (Jo 11,16). Disse aquilo sem muito entusiasmo, mas com convicção. Enfim que significado poderia ter a vida deles sem o Mestre ou longe dele? Era aquela a decisão mais sábia para um

1. MA II, 1159.


São Tomé

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discípulo. Não tinha dito Jesus: “Quem quiser ser meu discípulo tome a sua cruz e me siga”? Depois da última ceia falava do lugar para onde ele iria e dizia aos apóstolos que eles já deviam conhecer o caminho. Tomé o interrompeu pedindo-lhe: “Senhor nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” E isso deu oportunidade à resposta que particularmente iluminou os cristãos de todos os tempos: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis, conheceríeis também o Pai” (Jo 14,5-6). Mas o episódio que tornou Tomé famoso veio depois da ressurreição de Jesus. Isso nos conta o capítulo 20 do evangelho de João. Tomé não acreditou nos apóstolos quando lhe disseram que tinham visto o Senhor ressuscitado. “Ele” – relata o evangelho – “disse-lhes: ‘Se eu não vir em suas mãos o sinal dos cravos e não colocar o meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado não acreditarei’”. Era difícil acreditar, era bom demais que o Mestre tivesse ressuscitado. O seu amor por ele era grande e a dor do seu desaparecimento era sem tamanho. Ele, diferentemente de Judas Iscariotes, tinha voltado para junto dos apóstolos, pois a vida fora, distante deles, tinha-se tornando impossível. Continua o evangelista: “Oito dias depois, os discípulos estavam novamente em casa e estava com eles também Tomé. Jesus apareceu, estando fechadas as portas, e lhes disse: ‘A paz esteja convosco’. Depois disse a Tomé: ‘Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas, crê!’ Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ Jesus lhe disse: ‘Porque me viste, acreditaste, felizes aqueles que acreditaram mesmo sem ter me visto’”. O pedido de Tomé de tocar com suas próprias mãos para crer é a invo­ cação de quem pensa que não tem fé, mas no coração tem o amor e, com o amor, também a fé. Segundo escritos apócrifos, porém com fundamentos históricos, Tomé é considerado o evangelizador da Índia. Teria sido morto naquela terra, em Salamina, uma cidade ainda não identificada. Suas relíquias são veneradas em Ortona, uma cidade ao sul do Mar Adriático, no centro-sul da Itália, transportadas para lá nos tempos das cruzadas.


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4 de julho Santa Isabel rainha de Portugal (cerca de 1271-1336) “A paz entre irmãos é vontade de Deus, alegria de Cristo. A perfeição da santidade, norma da justiça, mestra da doutrina, salvaguarda dos costumes e a louvável disciplina em todas as coisas.” 2

A beatitude da paz foi a palavra evangélica que encheu de zelo toda a vida de Isabel a ponto de merecer o nome de “anjo da paz”. Nasceu por volta de 1271, de Pedro III de Aragão e Constância, filha dos Manfredi, rei da Sicília. Foi bisneta de santa Isabel da Hungria e isso explica seu nome de batismo.

Rainha por razão política Não teve nem tempo de sonhar sobre o que gostaria de fazer na vida, pois na idade de apenas 12 anos, por motivos políticos, tornou-se esposa de Dionísio, rei de Portugal. Ainda bem que ela havia recebido uma profunda formação cristã, que lhe deu forças para enfrentar com equilíbrio excepcional as vicissitudes complicadas de uma vida cheia de riscos. De seu matrimônio nasceram dois filhos: Afonso, que sucederia ao pai no trono português, e Constância, que se tornaria esposa do rei Fernando IV de Castela. Constância foi uma mulher muito prudente e trabalhou muito para acalmar as desavenças entre os políticos, infelizmente morreu antes que sua mãe. Isabel amava o rei, seu esposo; a mesma coisa não se podia dizer do rei, pois ainda que estimasse a rainha, não lhe poupava amarguras. Isabel jamais perdeu a calma, e deu sempre o melhor de si para haver harmonia, até mesmo cuidando pessoalmente da educação dos filhos que o marido teve com cortesãs.

Construtora da paz Ainda mais dolorosa foi para ela a discórdia entre o rei e o herdeiro ao trono, o filho Afonso. A controvérsia estava levando Portugal a uma vergonhosa guerra 2. Pedro Crisólogo, Discorso 53: PL 52,347.


Santa Isabel

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interna. Isabel interveio para afastar o infortúnio. Em um primeiro momento, o rei pensou que ela estivesse do lado do filho e a confinou em Alenquer, mas depois reconheceu sua inocência, aceitou sua mediação e fez as pazes. Daquele momento em diante, entre os dois iniciou-se um novo relacionamento, pois o rei descobriu, talvez pela primeira vez, as qualidades humanas e a grandeza moral da rainha. Abandonou a vida mundana e quis para sempre junto de si sua esposa com todas as honras reais que lhes cabiam. Ela retribuiu esse afeto com mais amor. Quando o rei adoeceu gravemente, Isabel não quis deixá-lo aos cuidados de pessoas estranhas, ela mesma cuidou dele pessoalmente dia e noite, até a sua morte em 1325. Agora viúva, vendeu os seus bens e as próprias jóias de rainha para ajudar as obras sociais em favor dos pobres. Depois vestiu o hábito da Ordem Terceira de são Francisco e fez uma peregrinação a pé ao santuário de São Tiago de Compostela, para pedir a Deus sobre o que fazer do resto de sua vida.

Clarissa, mas nem tanto Ao retornar da peregrinação resolveu viver entre as clarissas em Coimbra, no mosteiro por ela fundado, mas desta vez por razões de estado, houve forte oposição. Sua pessoa era muito importante para desaparecer do cenário político do tempo. Foi-lhe concedido então viver com um grupo de clarissas em uma casa vizinha ao convento, participando da vida monástica, mas livre para sair, caso houvesse necessidade, a qualquer momento. Não hesitou, de fato, em deixar aquele lugar de tranqüilidade para enfrentar uma longa e penosa viagem: o filho Afonso e o genro Fernando, rei de Castela, estavam em discórdia e podiam dar início a uma guerra. Quando Isabel chegou a Estremoz abatida pelo cansaço da viagem, começou a ter febre e morreu entre os braços do filho e da nora aos 4 de julho de 1336. Não conse­ guiu superar a enfermidade, mas mais uma vez ainda tinha restabelecido a paz entre os contendores. Antes de morrer obteve finalmente a permissão de fazer sua profissão religiosa de monja clarissa. Seu corpo foi levado para Coimbra e os portugueses, que em vida a tinham admirado e amado como sua rainha, agora a proclamavam e veneravam como a “rainha santa” e a ela recorriam em todas as adversidades de sua história. Seu culto foi reconhecido pela Igreja e mais tarde, no ano de 1625, depois de um regular processo de canonização, o seu nome foi inserido no calendário romano universal.


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5 de julho Santo Antônio Maria Zaccaria fundador dos barnabitas (1502-1539) “Colocar-se a serviço dos outros sem esperar recompensa é próprio dos corações grandiosos.” 3

Antônio Maria Zaccaria faz parte daquele grupo de santos que precederam e seguiram ao Concílio de Trento, dando um grande impulso à reforma da Igreja Católica com a santidade de sua vida e amiúde também com a fundação de congregações religiosas. Nasceu em Cremona em 1502 de família nobre dos Zaccaria, de origem genovesa e, com poucos meses da vida, ficou órfão de pai. A mãe, ainda muito jovem, tinha apenas 18 anos – não se quis casar novamente. Possuía o necessário para viver e desejava dedicar-se plenamente à educação do filho e às obras de caridade. Não era uma viúva fechada em sua dor para viver de saudosas lembranças, mas uma mulher social e independente.

Médico por amor aos pobres Antônio crescia sadio e tranqüilo, sob a guarda da mãe e quando terminou os estudos em Cremona precisou mudar-se primeiro para Pavia e depois para Pádua, onde se formou em medicina com apenas 22 anos. Seguindo o exemplo de sua mãe, seu sonho era se dedicar aos pobres. Gratuitamente os visitava, medicava e consolava. Uma outra atividade de que ele gostava era a de reunir os rapazes na paróquia e ensinar-lhes o catecismo. Agora que tinha em mãos o diploma e um bom campo de trabalho, a quem ele escolheria para esposa? Era normal que a pergunta corresse entre as pretendentes, pois somente sua mãe sabia que Antônio havia feito voto de castidade antes ainda de entrar na universidade. Aliás, ele havia iniciado o estudo da medicina exatamente para poder dedicar-se em tempo integral e com competência profissional a serviço dos pobres. Compreende-se agora a frase que ele constantemente repetirá a seus filhos espirituais como programa de vida: “Colocar-se a serviço dos outros sem esperar recompensa”. 3. Máxima do Santo. Cf. Pe. Bargellini, Mil santos do dia, Vallechi Editora, Firenze 1988, p. 372.


Santo Antônio Maria Zaccaria

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Ensinando as verdades da fé às crianças, mas depois, a pedido dos interessados, também as pessoas de certa cultura, na capela do palácio dos Zaccaria, percebeu a ignorância religiosa que dominava entre os cristãos por causa da falta de sacerdotes à altura do ministério da Palavra. O clero e os conventos necessitavam também de uma reforma. Antônio, a bem da verdade, não tinha jamais pensado em se tornar sacerdote, mas seu diretor espiritual colocou-lhe na mente esta idéia para que ele refletisse um pouco. Certamente era necessário curar as enfermidades físicas, mas mais urgente era formar verdadeiros cristãos. Aceitou a sugestão do confessor e em 1528 tornou-se sacerdote.

Sob uma luz que superava toda a teologia No dia da primeira missa lhe aconteceu um fato extraordinário que o marcou para o resto da vida. Recebeu de Deus uma luz que lhe valeu mais do que toda a teologia que ele tinha estudado quando se preparava para o sacerdócio. Compreendeu de um modo novo e profundo a redenção de Cristo na cruz, sua presença real na eucaristia e o valor da palavra de Deus para a humanidade. Deixando-se guiar sempre por aquela luz, bem depressa pôs mãos à obra, criando a seu redor grupos de colaboradores leigos que o ajudavam na evangelização, visando diretamente à mudança dos costumes. Seu zelo chamou a atenção da condessa de Guastalla, Ludovica Torelli, mulher profundamente cristã, preocupada com a situação moral da Igreja, quando chegava à Itália os ecos do mal-estar que havia além dos Alpes. Os dois se entenderam muito bem e organizaram um plano de renovação: Antônio se ocuparia sobretudo do clero secular e religioso e ela, dos conventos femininos. Para isso, deslocaram-se para Milão. Antônio renunciou aos gordos proventos da Paróquia de São Jorge e foi nomeado capelão da condessa e acompanhou-a a sua nova sede em Milão, onde os dois estabeleceram seu quartel-general. Em Milão, encontraram outras pessoas de boa vontade na Associação do Oratório da Eterna Sabedoria entre as agostinianas de santa Marta. Daquela pequena semente em pouco tempo nasceram três famílias espirituais: um ramo masculino que se chamou filhos de são Paulo, aprovado pelo papa com o nome de clérigos regulares de são Paulo, chamados pelo povo de barnabitas, por causa de sua primeira igreja dedicada a são Barnabé; um ramo feminino, as angélicas de são Paulo, pelas quais se interessava de maneira especial a condessa Torelli; e, enfim, também um setor para os casados que, mesmo permanecendo em


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suas famílias e com todas as obrigações de seu estado, se empenhavam em colaborar com os barnabitas e com as angélicas, e se chamaram os casais ami­ gos de são Paulo. A missão dos filhos de são Paulo era bem recebida nos ambientes eclesiásticos, mas a missão das angélicas estava fora dos esquemas tradicionais, pois se tratava de mulheres consagradas a Deus, com votos, que viviam sem clausura e em contato direto com o mundo. Coisa inconcebível para a mentalidade do tempo. Além do mais, elas se propunham como finalidade não só instruir o povo na fé, mas até mesmo reformar os conventos.

Acusado pelos conservadores, mas aprovado pelo papa Por causa daquelas idéias renovadoras, Antônio foi acusado junto à cúria romana e por duas vezes foi processado e teve que ir a Roma para se defender. No final, o papa aprovou a nova obra nas suas três ramificações, mesmo porque Antônio tinha a seu lado o jovem cardeal Borromeu, que compartilhava plenamente do seu ideal de santidade e de seu zelo para renovação da igreja. Daquele momento em diante, foi um desabrochar de iniciativas que caracterizaram para sempre o carisma de seus filhos: a devoção à Eucaristia com a prática das Quarenta horas, e a comunhão freqüente e, para os seus, até mesmo diária; a divulgação da palavra de Deus, falada e escrita, nas igrejas, nos salões públicos e mesmo nas encruzilhadas das estradas; as missões populares; a reforma do clero e dos mosteiros, o som dos sinos todo dia às 15 horas para recordar a todos a agonia e a morte de Jesus na cruz. Nos últimos anos, o fundador passou para outros a direção dos barnabitas para se dedicar à formação das angélicas, a primeira Ordem feminina sem clausura e então mais necessitada de solidez espiritual. Estava dando o seu último toque magistral neste campo, quando foi enviado a Guastalla, atingida por interdição, para pô-la em paz. Foi uma obra laboriosa e difícil, mas coroada de sucesso embora sua saúde, já debilitada, tivesse ficado muito comprometida. Assim que adoeceu, procurou rapidamente voltar a Milão, mas chegando em Cremona precisou parar em sua casa natal, onde morreu entre os braços da mãe, que desde pequeno o havia entregue a Deus. Era 5 de julho de 1539 e Antônio Maria Zaccaria não havia ainda completado 37 anos de idade.


Santa Maria Goretti

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As linhas da sua espiritualidade Embora não tenha deixado muitos escritos, mas só Cartas, alguns Sermões e as Constituições, podemos por estes entrever as linhas essenciais de sua espiritualidade. Seus filhos e suas filhas deveriam todos buscar a santidade: “Quero que todos sejam santos, e não pequenos santos”. O modelo a olhar é Jesus crucificado que se entregou por nós e, como resposta a seu amor, devemos nos doar aos irmãos como fez são Paulo: “Pois não seria conveniente que, sob as ordens de tão insigne chefe fôssemos soldados covardes ou desertores, ou filhos indignos de um tão ilustre pai”.4 Mas, quem pode transformar um homem ou uma mulher em apóstolo? A Eucaristia!, responde o fundador e insiste sobre a comunhão freqüente e sobre a adoração eucarística, pois este alimento divino transforma a pessoa, esvaziando-a de si mesma e enchendo-a do Espírito Santo, como fez com Maria. E oferece aos seus como modelo a virgem aos pés da cruz. Quem é formado assim pode anunciar ao mundo a mensagem evangélica, pois testemunha a Palavra com a vida. Vida contemplativa e vida ativa, maravilhosamente harmonizadas: este foi o ideal que ele deixou em herança a seus filhos e filhas, e que queria que resplandecesse sempre na Igreja.

6 de julho Santa Maria Goretti virgem e mártir (1890-1902) “Sustentada pela graça celeste, com vontade forte e generosa, sacrificou sua vida para não perder a glória da virgindade.” 5

No dia 24 de junho de 1950, antes de descer para a praça de São Pedro para a canonização de Maria Goretti, diante de uma multidão incalculável, Pio XII quis se encontrar com a mãe da pequena mártir, a mamãe Assunta, que assistiria à solene cerimônia de uma janela do palácio vaticano. O Papa se

4. Discurso aos confrades. Cf. J. A. Gabuzio, História da Congregação dos Clérigos Regulares S. Paulo, 1,8, Roma 1852. 5. Pio XII, Homilia no dia da canonização: AAS 42, 1950, 581.


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inclinou diante dela, sentada em uma cadeira de rodas e lhe beijou a mão para testemunhar com este gesto que a heróica santidade da filha tinha sua raiz na santidade, não menos heróica, da mãe. A família Goretti era de Corinaldo, na região de Marche. Quando Luís e Assunta se casaram, eram pobres. Maria, a primeira filha, nasceu no dia 16 de outubro de 1890, e foi batizada no mesmo dia de seu nascimento. Seis anos depois o bispo, em visita pastoral à cidade, deu-lhe o sacramento da crisma.

Imigrantes à busca de pão Com o passar dos anos e com o nascimento de outros quatro filhos, o casal Goretti precisou procurar trabalho em outro lugar. Enquanto muitos conterrâneos tentavam a aventura da imigração para a América, eles aceitaram trabalhar em uma fazenda do Agro Pontino, Ferriere di Conca, a dez quilômetros de Nettuno. Um lugar onde ninguém queria ir, pois estava infestado de malária; mas os Goretti não tinham escolha melhor e se mudaram para lá. Enquanto os pais trabalhavam no serviço pesado do campo, Maria cuidava de seus irmãozinhos e punha em ordem a casa, pondo em prática tudo o que a mãe lhe ensinava sobre os afazeres domésticos. Infelizmente, em uma noite o pai não voltou para casa. Estava caído no pântano, morto pela malária. Era o ano de 1900 e Goretti tinha apenas 10 anos. O proprietário do sítio convidou a viúva a ir embora, não a achando capaz de dar conta do trabalho sozinha. Mas para onde ir com cinco filhos, todos menores? Suplicou ao patrão que lhe desse a chance de fazer uma experiência por um ano, enquanto ela cultivaria o terreno e cumpriria as obrigações do contrato. Na época da colheita, que naquele ano tinha sido abundante, Assunta fez as contas com o proprietário e verificou que lhe devia quinze liras por causa das despesas que teve com a morte do marido. Infelizmente a lei de mercado era sem coração e o patrão permitiu que ela permanecesse no trabalho com a condição de que ela se associasse a Serenelli, que morava na mesma casa de colonos e cultivava outras partes de terreno do mesmo proprietário. A pobre Assunta passou a ter assim dois patrões: um distante, mas exigente; e o outro junto dela, mas ainda pior.


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As duas famílias passaram a trabalhar juntas, e aos olhos de todos parecia uma solução ideal, pois também o Serenelli era viúvo e tinha filhos. Enquanto ele e o seu filho mais velho, Alessandro e Assunta trabalhavam nos campos, Maria permanecia cuidando da casa e das crianças das duas famílias e cozinhava e cuidava das roupas de todos.

Sem escola, algumas missas e muito trabalho Ir à escola para ela foi sempre um sonho. Quando era possível ia com a mãe e os irmãos à missa dominical em Nettuno. Carregava o peso da responsabilidade da família juntamente com a mãe e quando via a sua mãe preocupada lhe dizia: “Coragem mamãe! Deus nos ajudará!” Não demorou muito para que o senhor Serenelli insinuasse à Assunta que se ela queria dar de comer aos filhos, primeiro deveria se submeter a seus caprichos desonestos. Como Assunta não estava disposta a ceder, o senhor Serenelli começou a controlar até mesmo os ovos do galinheiro e a dar os alimentos aos Goretti à conta-gotas. Assunta preferia passar fome, antes que lançar a desonra sobre si e seus filhos. Com muito sacrifício Maria freqüentou o catecismo e fez a primeira comunhão, muito provavelmente no dia da festa de Corpus Christi de 1902. Naquele dia pediu a Jesus duas coisas: o paraíso para o seu pai e para si a graça de ser sempre bondosa. Tinha 12 anos ainda incompletos e era muito bonita. Não tivera ainda tempo de sonhar com o seu futuro: por ora procurava amar a Deus com todo o seu coração e ajudar a mãe e os irmãozinhos. Um dia, quando foi buscar água da fonte, ouviu uma jovem e um jovem que falavam indecências. Ficou perturbada e contou à sua mãe. “E você” – disse Assunta – “por que permaneceu lá para ouvi-los?” Respondeu Maria: “Antes que se enchesse o cântaro, o que eu devia fazer?”. A mãe disse: “O que entrou por um ouvido faça sair pelo outro. Veja, minha filha, assim como você se admira com o que ouviu outros falarem, assim também poderão se admirar com você se disser as mesmas coisas”. Maria respondeu à sua mãe: “Se tivesse que falar essas coisas, preferiria morrer!”. O filho mais velho de Serenelli, Alessandro, já tinha 18 anos, era o orgulho do pai não só porque possuía um físico robusto e sabia trabalhar no campo, mas também porque – coisa rara entre os componeses naquele tempo – sabia também ler e escrever. Quando ia à cidade, comprava sempre alguma


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revista pouco recomendável e diante das admoestações de Assunta seu pai o defendia, dizendo que devia se exercitar na leitura.

Não podia acreditar Certo dia, o jovem fez abertamente propostas más a Maria e diante da sua recusa, temendo que ela falasse disso à mãe, ameaçou-a de morte e de expulsão. A menina não queria acreditar no que ouvia: sempre tinha considerado Alessandro como um irmão e não compreendia como ele pudesse ter tais sentimentos. Não disse nada à mãe para não piorar o relacionamento já muito tenso entre as duas famílias. Alessandro voltou à carga uma segunda vez, mas inutilmente. Cego pela paixão, pensou que a convenceria ameaçando-a de morte com um estilete. Era 5 de julho de 1902. Os Goretti e os Serenelli estavam todos trabalhando na eira diante do curral para separar as vagens em um clima alegre e festivo, como era costume naquelas ocasiões. Maria, como de costume, estava entretida com os trabalhos domésticos e depois de ter arrumado a casa estava no patamar da habitação e consertava uma camisa de Alessandro.

O martírio Alessandro com uma desculpa banal deixou o trabalho e subiu as escadas. Mas, vamos dar a palavra ao próprio Alessandro que assim relatou o doloroso episódio durante o processo de beatificação: “Eu me aproximei de Maria e a chamei para entrar. Ela não respondeu nem se mexeu. Então a puxei pelo braço e, como resistisse, arrastei-a para dentro da cozinha... Ela percebeu muito bem o que eu queria e me dizia: ‘Não, não, Deus não quer; se fizer isto, irá para o inferno’. Vendo que não queria aceitar ..., fiquei furioso e peguei um estilete e comecei a golpeá-la... Ela me reprovava e se debatia exclamando sempre: ‘O que você está fazendo, Alessandro? Assim você vai para o inferno...’. Eu me lembro de ter visto também sangue em suas vestes e de tê-la deixado enquanto ainda se debatia, mas compreendi bem que a havia golpeado mortalmente”. Mal e mal os gritos da vítima foram ouvidos em meio do barulho na eira e quando a mãe correu para casa encontrou-a em uma poça de sangue. Foi levada ao hospital de Orsenico de Nettuno, mas devido à perda de muito sangue e à ocorrência de uma peritonite séptica, provocada pelas catorze perfurações do estilete, os médicos não conseguiram salvá-la.


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Mesmo em meio a dores atrozes, Maria Goretti nos ombros da mãe conservou a serenidade e um domínio de si mesma que deixavam os médicos e as enfermeiras impressionados. Assim, ela contou para sua mãe o que havia acontecido: “Alessandro me queria fazer coisas erradas, e eu não aceitei”. Para com o jovem não demonstrou nenhum ressentimento, e à pergunta se lhe perdoaria, ela respondeu: “Por amor a Jesus lhe perdôo!”. Depois, acrescentou: “Quero que ele esteja comigo no paraíso”. Morreu um dia depois do atentado, em 6 de julho de 1902, depois de ter recebido Jesus na eucaristia. Assim que Alessandro saiu da cadeia em 1928, foi procurar a mãe da mártir para lhe pedir perdão e os dois, em sinal de reconciliação, aproximaramse juntos da comunhão na noite de Natal daquele ano. Mas, já em 1910, Alessandro tinha-se arrependido e sonhara com “Marietta” no paraíso colhendo flores que lhas dava com seu sorriso inconfundível. A respeito de Maria Goretti ficou escrito: “Esta menina santa, martirizada por causa de sua pureza, é a santa mais típica do nosso tempo, a mais antiga e a mais nova”.6 Hoje a sua história é conhecida e admirada em todo o mundo católico e também fora dele.

9 de julho Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus religiosa (1865-1942) “Sede bem humildes; é nosso Senhor quem faz tudo; nós somos seus simples instrumentos. Confiai sempre e muito na Divina Providência; nunca, jamais, desanimeis, embora venham ventos contrários. Novamente vos digo: confiai em Deus e em Maria Imaculada; permanecei firmes e adiante!” Recomendo-vos muito e muito a santa caridade entre vós e especialmente para com os doentes das santas casas, dos asilos, etc. Tende grande amor à prática da santa caridade. Está terminada minha missão; morro contente e dou, de todo coração, a vós toda a minha bênção.” (Testamento espiritual de Santa Paulina) 6. Bargellini, P. Mil santos do dia, Firenze, Vallechi Editore, 1988, p. 376.


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Amabile Lucia Visintainer, em religião, Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus, fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, nasceu em Vigolo Vattaro, Diocese de Trento (Itália), filha de Antonio Napoleone e Anna Pianezzer, a 16 de dezembro de 1865, segunda, de catorze filhos (nove homens e cinco mulheres). Foi batizada no dia seguinte ao nascimento e, segundo o uso do tempo, foi crismada a 27 de abril de 1874, durante a Visita Pastoral do bispo de Trento. Pela pobreza dos familiares, como as outras meninas da localidade, já aos 8 anos, ajudou os pais no trabalho da “filanda” (fábrica de tecidos), atividade comum naquela região do Trento. Durante a emigração sul-tirolesa de 1875 para o Brasil, a família de Napoleone Visintainer e Anna Pianezzer emigrou juntamente com cinco filhos, entre os quais Amabile, que contava com 10 anos.

Vida nova em Vígolo, Santa Catarina Para o grupo trentino, foram assinaladas terras para colonizar na Província (hoje Estado) de Santa Catarina, ao sul do Brasil, onde logo nasceram vilas que, tendo no centro Nova Trento, tomaram os nomes das terras deixadas: Vígolo, Bezenello, Valsugana, etc. Religiosamente, a região era confiada ao pároco de Brusque, região alemã, mas, em 1879, por causa da presença de imigrantes italianos, foi confiada aos padres jesuítas da Província Romana. Amabile, tendo mais ou menos 12 anos, fez a Primeira Comunhão e começou a ler. Logo depois de sua chegada, o padre Augusto Servanzi, superior da Residência de Nova Trento, confiou a Amabile, de 15 anos, e a uma sua amiga a limpeza da Capela de São Jorge, a leitura do Catecismo às crianças e a visita aos doentes. Durante dez anos, dos 15 aos 25, foi fiel ao mandato recebido do padre Servanzi, embora em 1887, ano da morte da mãe, devesse acudir à família: pai e sete irmãos, dos quais três em tenra idade, porque nasceram no Brasil.

O hospitalzinho, o início de tudo Em 1890, o padre Marcello Rocchi, missionário da Residência de Nova Trento, transformou a assistência aos doentes em domicílio naquele tipo


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hospitalar, naturalmente nos limites do possível, confiando – a pedido do povo – o serviço a Amabile e à sua amiga. Com a transferência de Amabile e da companheira da casa paterna à limitadíssima habitação (4 x 6 m), já batizada pelo povo “hospitalzinho” e onde foi recolhida a primeira cancerosa, a 12 de julho de 1890, nasceu aquela que, nos planos da Providência, devia se tornar a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição. O Instituto começou na extrema pobreza, pelo que as primeiras Irmãs, além do cuidado dos doentes e das órfãs e dos trabalhos na paróquia, para viver, deviam trabalhar na roça (à meia) e na pequena indústria da seda, muito conhecida, segundo a tradição e a capacidade trentinas. O Instituto nasceu e permaneceu sob a direção dos padres da Companhia de Jesus: de 1890 a 1895, padre Marcello Rocchi; de 1895 a 1921, padre Luigi Maria Rossi; de 1921 em diante, padre Giuseppe Gianella, etc...

A primeira aprovação O primeiro ato do padre Rossi foi obter do bispo de Curitiba a aprovação do nascente Instituto (25 de agosto de 1895) e regularizar a profissão dos votos a 7 de dezembro de 1895, quando Amabile tomou o nome religioso de Irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus. Quando, em 1903, padre Rossi foi transferido de Nova Trento para a cidade de São Paulo, quis constituir Madre Paulina, Superiora-Geral das duas comunidades: Vígolo e Nova Trento, já com cerca de trinta religiosas. No mesmo ano, padre Rossi chamou Madre Paulina para São Paulo e lhe confiou a direção de um orfanato na colina do Ipiranga.

A dura prova de Madre Paulina em São Paulo De 1903 a 1909, o Instituto passou para São Paulo com novas fundações (quatro), sob o governo de Madre Paulina. Em 1909, Madre Paulina precisou afrontar uma prova, que durará até sua morte. Por artimanhas de uma irmã, secretária e assistente e, pela ingerência de uma benfeitora, a autoridade da fundadora foi, dia por dia, diminuída. Em agosto de 1909, por ordem do arcebispo de São Paulo, dom Duarte Leopoldo e Silva, e com a aprovação do padre Rossi, Madre Paulina não foi


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reeleita pelas Irmãs, artificiosamente preparadas e convocadas para o Capítulo Geral, que foi chamado o primeiro do Instituto. De 1909 a 1918, Madre Paulina foi designada para Bragança Paulista (SP), como súdita, mas sempre tratada como “Veneranda Madre Fundadora”. A nova superiora-geral, madre Vicência Teodora da Imaculada Conceição, serviu-se dela não somente no governo mas também nas novas fundações e nas visitas canônicas, especialmente quando, depois de 1918, Madre Paulina foi chamada pela superiora-geral com a permissão do padre Rossi para a CasaMãe em São Paulo.

Um exemplo de vida religiosa Seja na vida de família, seja na vida religiosa, como fundadora, superiorageral e súdita, Madre Paulina deu provas de intenso espírito religioso e de heróicas virtudes sendo exemplo às religiosas no serviço aos doentes, às órfãs, aos idosos, na aceitação dos sofrimentos físicos, causados pelo diabetes, em razão do qual precisou sofrer a amputação do braço direito. Morreu piamente no dia 9 de julho de 1942. Em 31 de maio de 1967, seus restos mortais foram transladados do Cemitério Santíssimo Sacramento, em São Paulo, onde fora enterrada, para a “Casa Geral” no Ipiranga, na mesma cidade. Foi beatificada pelo papa João Paulo II, em Florianópolis (SC), aos 18 de outubro de 1991. Pelo mesmo sumo pontífice, foi canonizada, em Roma, Itália, aos 19 de maio de 2002. Sua festa litúrgica é no dia 9 de julho.

11 de julho São Bento abade, padroeiro da Europa (470-547) “Tu o tornaste ilustre pela santidade e insigne pelos milagres, tornaste-o eminente mestre da vida monástica, e o indicaste a todos como doutor da sabedoria espiritual no amor à oração e ao trabalho. Guia iluminado dos povos à luz do Evangelho, e elevado aos céus por uma senda luminosa, ele ensinou aos homens


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e mulheres de todos os tempos a te procurar, ó Pai, no caminho reto e às riquezas eternas por ti preparadas.” 7

Gregório Magno é o único escritor que nos conta, nos seus Diálogos, com credibilidade a vida de Bento, mesmo que com critérios históricos diferentes dos nossos. “Havia um homem” – diz o cardeal beneditino Shuster – “que selecionava o que lhe contavam, este era certamente Gregório, acostumado a desconfiar, a peneirar, avaliar suas palavras e as dos outros”.8 Bento nasceu por volta de 470 em Núrsia a cerca de oitenta quilômetros de Roma, de uma família rica, que pôde enviá-lo para a capital, acompanhado de sua ama-de-leite de confiança, para se aperfeiçoar nos estudos sem perder os bons costumes.

Estudante em Roma Se na cidade eterna reinava um pouco de paz e se tinha sido reacendida a esperança de um retorno ao antigo esplendor, era devido a Teodorico, ou melhor a seus conselheiros como Boécio e Cassiodoro. Em maio do ano 500, o rei ostrogodo visitou Roma e fez o seu brilhante discurso no fórum, talvez entre os numerosos estudantes curiosos estivesse também Bento. Certamente estava o africano Fulgêncio, futuro bispo de Ruspe, que ficou tão admirado com o espetáculo que acabou exclamando: “Como deverá ser esplêndida a Jerusalém celeste, se Roma imperial é tão bonita!”. Mas, o encanto durou bem pouco, por causa das lutas internas entre os romanos e o rei ostrogodo que mandava matar os personagens mais conceituados da cidade. O que dizer das intrigas e da inveja dos eclesiásticos que alternadamente se acusavam uns aos outros junto ao rei ariano? Valia a pena continuar os estudos – deveria pensar Bento – para depois se colocar a serviço dos corruptos? Escapou sorrateiramente juntamente com a ama-de-leite e foi para Enfide, hoje Affile, a cerca de nove quilômetros de Subiaco, e se hospedou na casa do pároco do lugar. Mas permaneceu lá por pouco tempo, pois sem que a ama-deleite soubesse, sumiu, retirando-se para uma gruta entre os bosques do Subiaco, 7. Do Prefácio do santo no suplemento monástico em MR, 1980, 153. 8. A. I. Schuster, História de são Bento e do seu tempo, Milão, Ed. Abadia de Viboldone, 1965, p. 11.


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conhecida hoje como a Gruta Sagrada. De sagrada, porém, não havia nada, pois era só um casebre entre despenhadeiros. Sorte sua que um monge, de nome Romano, descobertas sua presença e suas santas intenções, visitava-o regularmente, dandolhe com os bons conselhos também um pouco de alimento. Para Bento, foram três anos de meditação e de oração profunda. Teve momentos de tentações fortes, seja de voltar ao mundo, seja de que não conseguiria viver na castidade como sinal de sua total entrega a Deus. Conseguiu superá-las implorando a ajuda do alto com oração incessante e duras penitências. Mesmo tendo Romano mantido segredo sobre seu esconderijo, foi descoberto pelos pastores do local e acabou a paz em sua caverna. Depois de algum tempo, de fato, o mosteiro de Vicovaro, uma cidadezinha não muito distante do Subiaco, escolheu-o como abade. A experiência foi péssima: aqueles monges matreiros quiseram Bento como superior só para aparecer diante do bispo, que exigia deles uma séria reforma dos costumes nada recomendáveis, mas quando perceberam que o abade, mesmo jovem, exigia obediência, tentaram envenená-lo. Bento escapou do perigo e retornou diretamente para o seu retiro em Subiaco. No entanto, para acolhê-lo havia jovens que, como ele, queriam viver só para Deus e afastados das vaidades e da corrupção do mundo. Imediatamente teve que lhes preparar doze pequenos mosteiros, e para cada um nomeou um abade com doze monges, enquanto que ele tinha a vigilância de todos e cuidava de maneira especial dos noviços. Naquele período, vieram de Roma dois rapazes de famílias nobres, Mauro e Plácido, que se tornaram colaboradores valiosos. A presença daquele grande grupo junto a Bento começou a incomodar o padre Florêncio, o pároco do lugar, pois a vida deles era uma contínua reprovação a seus costumes. O infeliz pároco acabou tornando impossível a vida dos jovens monges: aproveitava todas as oportunidades para mostrarlhes moças descaradas, com a finalidade de perturbá-los. Bento decidiu mudar de local, mesmo porque já havia amadurecido para seus monges um projeto melhor em Montecassino. Enquanto ia com um grupo de monges mais corajosos e já estava a caminho para o novo destino, foi alcançado por um grupo de monges que tinham permanecido em Subiaco para convidá-lo a voltar atrás, pois Florêncio tinha morrido, soterrado debaixo dos destroços de sua casa que ruíra durante uma festa dançante. Mas os dados já tinham sidos jogados, e Bento continuou seu caminho.


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Uma nova meta Em uma data, entre 525 e 529, tomou posse daquele pico de montanha entre o Lazio e Campania, chamado Monte de Cassino, por homonímia com a cidadezinha ao seu sopé naquele lugar rupestre, recebido não sabemos de quem, quis construir despreocupado a cidade sobre o monte da qual fala o Evangelho. As transformações que aconteceram por obra de Bento foram verda­ deiramente milagrosas. Ao redor das primeiras construções sobre as ruínas dos antigos templos pagãos desenvolveu-se rapidamente aquele modelo de abadia que, multiplicando-se por toda a Europa, deu a esta uma alma cristã. Entende-se justamente que a obra-prima de Bento foi a Regra dos monges. Mesmo que ainda não se saiba se a redação que traz seu nome foi escrita totalmente por ele, ninguém duvida que reflete bem o seu verdadeiro espírito. Ela não foi escrita para ascetas à busca de heroísmos excepcionais, mas para todos aqueles que querem seguir fielmente a extraordinária aventura do Evangelho na normalidade do dia-a-dia. Por isso seus monges – e isso vale também para sua irmã santa Escolástica e suas monjas – não se retiraram em celas isoladas como os orientais, mas vivem em comunhão fraterna não só durante as celebrações litúrgicas no coro, mas também no trabalho, no refeitório e no dormitório comum. Observam o silêncio nos lugares e tempos estabelecidos, mas também conversam e se instruem mutuamente. Bento concebeu o mosteiro como um lugar onde se realiza em plenitude, quanto é possível sobre a terra, o reino dos céus. Os monges são homens livres submetidos à “escola do serviço divino”, sob a direção sábia e paterna do abade que deve ter por sua parte uma longa e profunda experiência das coisas divinas e humanas. No mosteiro, o tempo é sabiamente dividido entre a oração e o trabalho. Os sucessores de Bento cunharam a expressão que se tornou famosa: ora et labora (ora e trabalha). Para o monge, o livro do estudioso ou do copista, a forja para o ferreiro e a enxada para o agricultor são instrumentos sagrados para o serviço divino. Os monges tornaram-se os mestres de todas as artes e profissões, para si e para o povo. Se, em sua maioria eram analfabetos como as pessoas do seu tempo, instruíam-se, escutando no coro e no refeitório as leituras da Sagrada Escritura e dos santos padres; se provinham de povos, chamados bárbaros, pela sua


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crueldade e rudeza, no mosteiro tornavam-se educados e iguais a todos os outros, comendo na mesma mesa o pão material e o intelectual. O abade era o guardião da vida cristã, cuidando de cada monge, sobretudo daqueles mais jovens que eram apresentados pelos pais na esperança de futuramente se tornarem monges. Uma instituição como aquela nos causa hoje admiração e naquele tempo era considerada como providencial. Que melhor oportunidade haveria para um jovem ser levado para um lugar assim, tão socialmente adiantado, e espiritualmente tão elevado? No futuro, ele poderia escolher entre permanecer no mosteiro ou voltar para o mundo. Mesmo, nesta segunda hipótese, ele teria adquirido uma formação humana invejável em relação a seus conterrâneos. A lei fundamental que devia reinar soberana entre os monges era a caridade fraterna, como se lê nos capítulos da regra que tratam do ofício do abade e do relacionamento entre os monges. A raiz dessa convivência era a oração e a palavra de Deus. Não só a oração comum feita no coro, mas também a meditação pessoal e a que cada um podia repetir livremente em breves intervalos com simples invocações. A palavra de Deus, pois, não se limitava à escuta respeitosa, mas era interiorizada para ser encarnada concretamente no comportamento cotidiano normal. Era este o sentido profundo da Lectio Divina (leitura atenta da Bíblia).

A fama de Montecassino De Montecassino já se falava em toda parte e personagens ilustres subiam a santa montanha para admirar o prodígio e para falar com Bento. Chegavam os camponeses de Cassino, muitos dos quais ainda imersos no paganismo e se convertiam; vinham de regiões distantes também bispos importantes como são Sabino de Canosa, que já havia sido legado papal no concílio Constantinopolitano no ano de 525, e são Germano, bispo de Cápua, amigo íntimo de Bento, que viu sua alma subir ao céu em forma de um globo de fogo na noite em que Bento morreu. Ao monte sagrado quis subir também o rei Totila, enquanto viajava para Ravena na conquista de Nápoles. Para preparar o terreno enviou antes, simulando uma visita real, o seu chefe da guarda vestido de rei e acompanhado por três condes. Os quatro já haviam ultrapassado a primeira cerca dos muros do mosteiro e se aproximavam já da segunda, quando do alto ouviram a voz do abade que os observava. Este, dirigiu-se a Rigo, o falso rei, e lhe disse: “Depõe,


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ó filho, essas roupas, pois elas não te pertencem”. Descoberto e aterrorizado, não teve coragem de ir adiante, e os quatro retornaram ao rei para contar o que havia acontecido. O rei, que dizia não ter medo nem mesmo do diabo, ainda com mais curiosidade foi procurar o santo. Quando chegou diante dele, caiu de joelhos sem querer. Bento o levantou e o conduziu à sua cela onde, reservadamente, disse-lhe sem meios-termos: “No passado, cometeste muitos delitos. Também o teu caminho é todo ele semeado de crimes. Agora é tempo de parar com essa má vida. Tu tomarás Roma e conquistarás também a Sicília, e reinarás por apenas nove anos, mas no décimo quem te espera é a morte”. Gregório relata que o rei acolheu a lição e se tornou um pouco mais humano, mas não por muito tempo.

O “paraíso” de Bento Mas, houve um acontecimento verdadeiramente extraordinário na vida deste patriarca do monaquismo, que não pode ficar oculto. Não só porque Gregório Magno fala dele claramente, e o seu testemunho é digno de fé, mas também porque explica o sucesso que teve nos séculos o espírito beneditino. Fazemos aqui o relato segundo a reconstituição feita pelo cardeal Shuster9: No dia 29 de outubro de 540, em um bonito dia de outono, chegou a Montecassino o diácono Servando. Era abade do mosteiro de São Sebastião de Alatri... Acompanhavam-no alguns monges daquele mosteiro... São Gregório nos informa que Servando se distinguia pela eminente doutrina espiritual. Compreende-se agora facilmente a amizade santa que havia entre aquelas duas grandes almas. Discorrendo sobre o paraíso e a Trindade augusta, os dois abades passaram santamente juntos aquele suave dia de outono. Ao anoitecer, Bento preparou para os hóspedes monges camas no dormitório comum monástico: estavam cansados da viagem; ao diácono Servando, porém, ele ofereceu o seu próprio quarto no primeiro andar da torre. Era como o escritório particular do santo, onde uma simples escada de mão dava acesso à cela superior onde ele tinha o leito de palha. Enquanto a noite ainda estava alta e os monges dormiam agradavelmente no dormitório em frente da porta de entrada da torre, o santo patriarca havia já antecipado por conta própria a hora da oração em vigília. Por aquele gosto pela natureza que possuem os grandes amigos de Deus, orava junto à janela.

9. Ibid., pp. 365-373.


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Pouco a pouco, com os olhos fixos nas estrelas, aprofundando-se na divina contemplação, o santo sentia que seu coração se inflamava. Estava na janela, porque agora na pequena cela se sentia sufocado. Para ele, o firmamento estrelado era como a cortina bordada que velava o Santo dos Santos. Em um certo momento, sua alma se sentiu transportada para a outra parte do véu para contemplar sem mistérios o rosto daquele que ‘habita numa luz inacessível’...

Aqui os autores místicos, a começar por Gregório Magno, trataram longamente sobre a natureza desta elevação do santo patriarca. São Boaventura afirma que o vidente contempla Deus, e tudo conhece nele.10 O papa Urbano VIII em uma bula sobre são Bento afirma que o santo, embora estando aqui na terra, mereceu ver seu Criador e cada criatura em Deus.11 Lendo a narração do biógrafo (são Gregório), são Bento não se referiu a outra coisa que a de ter visto o orbe inteiro como imerso pelo mar de luz do Criador. Para contemplar aquela visão, já não foi a criatura que se tornou menor como diante de um mapa-múndi escolar: mas a alma por si mesma se sentiu como que imersa em Deus e dilatada; de maneira que em um único olhar, pôde contemplar, como que recolhida sob si e em um simples raio de luz, toda a obra divina no mundo criado. Deve-se destacar que são Bento era de tal modo preparado e fortalecido para este altíssimo gênero de mística comunicação com o céu, que seu organismo não foi submetido nem ao êxtase nem ao desfalecimento. Ele permaneceu de pé diante da janela, muito consciente, tanto que chamou várias vezes e com voz forte o diácono que dormia no quarto inferior, para que corresse e também ele pudesse contemplar a visão. A voz alterada do santo patriarca despertou-o rapidamente e maravilhou a Servando, o qual sempre o tinha conhecido como uma pessoa calma e sempre igual a si mesmo. Compreendeu que deveria ter acontecido alguma coisa extraordinária; tanto que, impressionado, levantou-se da cama, subiu a escada e correu para perto do santo. Este, da janela, mostrou-lhe a luz que ainda clareava o céu do lado de Cápua, e lhe falou tudo o que havia visto. Acrescentou que, naquele mesmo 10. Cf. São Boaventura, De luminar. Eccl., Serm. XX. 11. Tamburrin, tom. II, disput. XXIV, quaest. 5.


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momento, os anjos haviam levado para os céus, em forma de um globo inflamado, a alma do metropolita Germano. Como são Paulo, depois do seu arrebatamento ao céu, deve ter-se sentido profundamente transformado na mente e na vontade, assim também aconteceu com o patriarca cassinense, depois de ter contemplado em um único e simples raio da luz divina tudo quanto está abaixo do Bem infinito, ele também deve ter começado uma vida nova. Agora compreendia a natureza humana na sua única e simples causa, que é Deus. Sua alma se dilatou no Senhor, como bem explica são Gregório: Arrebatado em Deus, sua mente se dilatou e ele viu sem dificuldade toda a criação. A visão foi breve, mas os efeitos não puderam mais ser apagados de seu espírito. Ele, na regra, faz referência precisamente a esta espécie de impossibilidade de traduzir em fala humana tudo aquilo que sentia em seu coração. Também o abade cassinense viu, como Paulo, coisas inenarráveis. É importante registrar como são Gregório, depois daquele sublime rapto do patriarca, logo faça seguir a prodigiosa Regula monasteriorum (Regra dos Mosteiros), quase que insinuando que foi por causa daquela suprema luz que o códice monasterial primeiro foi contemplado e depois escrito sobre folhas de papiro. Depois daquele tempo, em são Bento cresce a saudade do céu. Durante os sete anos que ainda viveu, não fazia outra coisa que falar e suspirar pelo paraíso; tanto que outros santos seus contemporâneos, apesar dos muitos perigos, viajavam a Montecassino, simplesmente para ter a satisfação de saborear as alegrias do céu, conversando com o pai Bento. Desde a noite em que contemplou a divina luz no céu, sua fisionomia também foi transformada... O homem de Deus tinha aspecto sereno e um porte angelical. Envolvia-o uma atmosfera de luz celeste, de tal modo que, vivendo ainda na terra, compreendia com afeto que sua casa estava no céu. Se Bento foi favorecido por uma visão celeste, isso não foi para premiar sua virtude heróica, ou para satisfazer sua curiosidade intelectual, mas para que seu carisma tivesse a força de reproduzir no mosteiro a vida do céu e contribuir para restabelecer a harmonia da criação.

A virgem Escolástica Entre as pessoas que visitavam Bento, havia uma que ele acolhia com especial carinho, porque mais do que qualquer outra entendia seu carisma: a


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irmã Escolástica. Ela, que dirigia um mosteiro de virgens próximo ao monte, uma vez ao ano, antes de iniciar o jejum quaresmal, visitava o amado irmão que, com sua luz lhe enchia o coração. Quantas vezes falaram do paraíso que ele havia contemplado? E Escolástica ouvia, compreendia mais que todos os outros monges, antes até parecia que ela via o que o irmão lhe contava. Tanto que, na última vez, embora estivesse caindo a noite, não quis partir e obrigou o irmão a ficar com ela para contar de novo, e para isso tinha rezado a fim de que uma tempestade o impedisse de voltar ao mosteiro. Poucos dias depois, o santo contemplava a alma virginal de Escolástica subir ao céu como uma pomba e mandava seus monges sepultá-la no túmulo que tinham preparado. Não demorou muito e, aos 21 de março de 546, também Bento repousava ao lado da irmã. A quem quisesse saber mais, são Gregório no seu tempo dava este conselho: “Verdadeiramente se alguém quiser conhecer os costumes e a vida do santo com mais detalhes pode descobrir no ensinamento da regra todos os documentos de seu magistério, porque o homem de Deus não ensinou diferente do que viveu”.12

13 de julho Santo Henrique imperador (973-1024) “Este santo servo de Deus, depois de ter sido sagrado rei, não se contentou apenas com as limitações do reino temporal, mas, querendo obter a coroa da imortalidade, decidiu combater pelo sumo Rei, a quem servir é reinar.” 13

Conta-se que Henrique, quando ainda era rei da Baviera, foi à abadia de Saint-Vanne em Verdun para depor a coroa e tornar-se monge. O abade, depois de tê-lo escutado atentamente, alertou-o de que na vida monástica é preciso obedecer sempre e lhe perguntou se estava disposto a submeter-se 12. São Gregório Magno, Diálogos, livro II, c. 36. 13. De uma Vida Antiga in MGH, Escritores 4, 792.


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àquela disciplina. Obtida a resposta afirmativa, respondeu-lhe: “Continua sendo rei, meu filho, mas por obediência”. Mesmo que esse episódio não pareça ser histórico, seu relato é significativo. Em um período muito turbulento para a vida da Igreja, os mosteiros eram centros luminosos da vida cristã, atraíam pessoas nobres de patrimônio e de espírito e com seu carisma próprio constituíam a esperança de uma profunda renovação religiosa e social. Mas, devido à estreita unidade que existia ainda entre o poder eclesiástico e o civil, o imperador era reconhecido rex et sacerdos (rei e sacerdote), guardião dos bens materiais e espirituais da cristandade. Naquele contexto era sumamente útil que sobre o trono se sentasse um homem bem intencionado e que vivesse segundo os ditames do evangelho.

Rei com o coração de monge Henrique nasceu aos 6 de maio de 973, filho de Henrique, o Litigioso, duque da Baviera, e de Gisela de Borgonha. Foi educado por Wolfang, monge e depois bispo de Ratisbona, e pelo abade Ramvolto de Sant’Emmerano. Quando seu pai faleceu, ele o sucedeu como duque da Baviera e, com o desaparecimento de seu primo Óton III, tornou-se rei da Germânia (Alemanha). Na verdade, aquela coroa era muito cobiçada, mas o arcebispo Villigio de Magonza conseguiu acalmar os numerosos adversários, e aos 8 de setembro de 1002 Henrique e sua esposa (Cunegonda) Cunegundes foram coroados rei e rainha em Aquisgrana. Cunegundes era filha do conde de Luxemburgo, de condição social inferior à do marido, mas os dois se amavam verdadeiramente. Quando se descobriu que ela era estéril, o rei teria podido repudiá-la segundo o direito vigente na Germânia, mas não o fez pela estima e amor que tinha por ela. Isso desencadeou uma luta entre os parentes que pretendiam no futuro a sucessão. Com astúcia e autoridade moral, a irmã do rei, Gisela, conseguiu que a paz voltasse a reinar entre os parentes. Em conseqüência, um deles, Bruno, tornouse bispo de Augsburgo, um outro, Arnolfo, bispo de Ravena, Brígida abadessa do mosteiro de São Paulo de Ratisbona e Gisela tornou-se esposa de santo Estêvão da Hungria. Apaziguadas as divergências internas, Henrique precisou pensar nas externas para que todos pudessem reconhecer sua soberania e fosse coroado imperador. Em 1004, foi chamado à Itália, pois os feudatários, que em Pavia haviam eleito o marquês d’Ivrea, Arduíno como rei da Itália, revoltaram-se contra seu despotismo e ofereciam a Henrique a corona férrea (coroa de ferro) dos lombardos.


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Mais demorada e difícil foi a luta contra o duque da Polônia, Boleslau Chobry, durante a qual chamou para ajudá-lo os Liutzi e os Redari, que ainda não tinham sido evangelizados. Por isso, foi repreendido duramente já por seus contemporâneos, porque daquele modo tinha destruído toda a confiança dos povos eslavos para com os cristãos, colocando seriamente em perigo sua evangelização. Finalmente, em 1008 fez-se a paz e foi reconhecida a independência da Polônia como antes havia acontecido com a Hungria.

Imperador da cristandade Enfim, tendo colocado ordem em seus vastos territórios que compreen­ diam a atual Alemanha, a Bélgica, os Países Baixos, a Suíça, a Áustria e o Norte da Itália, e tendo fundado a diocese de Bamberga, dedicada a Santa Maria e aos santos Apóstolos Pedro e Paulo, e tendo-a escolhido como centro missionário e sede de seu governo, Henrique e sua esposa fizeram acordo com o Papa para receber a coroa imperial. A solene coroação foi logo em São Pedro aos 14 de fevereiro de 1014 pelas mãos do papa Bento VIII. Daquele momento em diante, Henrique se sentiu ainda mais responsável pelos bens da cristandade e, vendo o abandono em que estava a Igreja em muitos postos com os bispos simoníacos e padres com costumes dissolutos, iniciou a reforma apoiado por personalidades de grande elevação moral como santo Odilo de Cluny, o beato Ricardo de Saint Vanne e são Romualdo, fundador dos camaldulenses, com os quais quis se encontrar em Verona, quando retornava de Roma. Na mesma ocasião, elevou a bispado o mosteiro de Bobbio. Nos mosteiros e nos bispados via centros importantíssimos para o bem da população e deu todo o seu apoio às reformas promovidas pelos mosteiros de Gorze, de são Máximo de Treviri e de santo Emmerano de Ratisbona. Despojou as igrejas mais ricas para prover as mais pobres, indicou como bispos pessoas dignas e preparadas e reuniu sínodos, incentivou os bispos a promulgar leis oportunas para a reforma dos costumes. O que mais se podia pretender de um imperador naquele século de ferro? Sua vida exemplar com desapego dos bens terrenos permitiu-lhe envolver-se na política sem favoritismos, tratando todos os súditos bem colocados, ou cidadãos simples, com o mesmo tratamento.

A presença prudente de Cunegundes Foi uma grande felicidade ter ao seu lado uma mulher como Cunegundes que, além de tudo, possuía uma rara capacidade e um refinado


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gosto pelas construções. Ela orientou pessoalmente a edificação da catedral de Bamberga e do mosteiro das clarissas de Kaufungen. Para este mosteiro, ela se retirou depois que ficou viúva, doando seu riquíssimo guarda-roupas de vestes imperiais para os pobres, vestiu o hábito de monja e passou a fazer os serviços mais simples. Diz-se que ela reinou junto com o marido não porque fosse intrometida e voluntariosa, mas porque sabia dar sempre um toque de humanidade a todas as atividades do imperador, tornando doces os relacionamentos oficiais mais difíceis. Se Henrique empenhou-se na vida da santidade pessoal e da reforma da Igreja, isso se deveu em grande parte àquela presença feminina de coração profundamente delicado. Em 1021, Henrique, aconselhado pelo papa, também convidou Roberto, o Pio, rei da França, a promover a reforma eclesial. Em 1022, veio novamente à Itália meridional para apaziguar os gregos, confirmando a concessão do feudo daquela terra, feita pelo Papa aos normandos. Naquela ocasião, visitou Montecassino, onde expeliu um cálculo do rim, acontecimento que ele interpretou como milagroso e o atribuiu à intercessão de são Bento. Retornando à Germânia, adoeceu e veio a falecer em 13 de julho de 1024. Completaria 51 anos. Em uma carta endereçada a seu povo escreveu: “As determinações salutares da Sagrada Escritura nos ensinam e nos advertem a abandonar os bens temporais e as comodidades terrenas, e a ter em mira alcançar as moradas eternas nos céus”.14 Esse foi o seu programa de vida.

14 de julho São Camilo de Lélis fundador dos ministros dos enfermos (1555-1614) “Camilo era um homem de tão grande caridade que tinha piedade e compaixão não somente dos doentes e moribundos, mas também, de modo geral, de todos os outros pobres e miseráveis.” 15 14. Ibid., 794. 15. S. Cicatelli, Vida do Pe. Camilo de Lellis, Viterbo 1615.


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Não tendo sido por natureza nenhum santo, a figura de Camilo de Lellis foi avaliada de muitas maneiras em vários processos canônicos antes de ser inscrita no rol dos santos. Nasceu em Bucchianico, uma pequena aldeia nos Abruzos perto de Chieti, do marquês João de Lellis e Camilla Campeli aos 25 de maio de 1555, festa de pentecostes.

Um filho tão esperado Sua mãe já tinha tido um primeiro filho quando era jovem, mas o tinha perdido ainda criança. Depois, passaram-se muitos anos sem que ela tivesse outros filhos e já havia perdido toda a esperança. Quando ficou grávida, não queria acreditar e só depois de ter ficado bem certa resolveu dar a boa notícia ao marido. A espera transcorreu entre a alegria, o dom esperado e o temor de não dar à luz por causa da idade avançada. À noite, freqüentemente sonhava com uma criança e levava um susto quando a via grande e forte – por felicidade sempre em sonho – com uma túnica longa até os pés e com uma cruz no peito. Ao acordar, pensava: “Não será um bandido condenado à morte?” De fato, a túnica era uma veste usada pelos condenados quando eram conduzidos ao patíbulo. Na manhã de 25 de maio, festa de pentecostes, o tempo era bonito, mas sobre a colina de Bucchianico o ar estava frio, pois o cimo do monte Gran Sasso, ainda estava coberto com a branca neve. A senhora Camila, por prudência, não quis sair de casa muito cedo para ir à primeira missa, mas escolheu a missa solene das dez horas, quando o tempo estaria mais ameno, pois, enfim, o menino – ou a menina? – estava para nascer e não podia correr o risco de pegar alguma doença.

Nasce em um estábulo Já estava na igreja e o sacerdote havia apenas iniciado a liturgia quando sentiu de repente as dores do parto. Disse-o a duas amigas mais próximas e juntas saíram rapidamente da igreja. Por sorte, a casa delas era próxima, mas mesmo assim aos pés da escada as dores aumentaram, e as duas amigas carregaram-na até um estábulo, onde de um lado havia um belo cavalo e do outro feno e palha. Embora o estábulo estivesse em ordem, não deixava de ser um estábulo, onde em pouco tempo veio à luz, sadio como um peixe,


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um menino bonito, enquanto que da igreja se ouvia o soar dos sinos que advertiam que era o momento da elevação. Quando o pai recebeu a notícia de que havia nascido um robusto menino, ficou duplamente feliz e, em honra da esposa que tanto amava, pôslhe o nome de Camilo. João de Lellis era um homem muito bom, mas apaixonado pela arte da guerra. Havia servido todo o tempo às ordens do rei da Espanha, alcançando o grau de coronel. Agora que não havia guerra em nenhum lugar, estando em casa, comandava o distrito militar do quartel no castelo de Pescara. A paixão do pai foi transmitida rapidamente ao filho. De fato, Camilo ainda não tinha aprendido a escrever e já usava com destreza as armas e, quando a senhora Camila faleceu, ao coronel viúvo não restou outra escolha que trazer sempre junto de si o menino de 13 anos que cresceu junto aos soldados.

Órfão e de cabeça quente Encontrava-se exatamente em Ancona junto com seu pai para alistar-se na Aliança a fim de ir para Lepanto lutar contra os turcos, quando o coronel de repente morreu e Camilo ficou órfão. Voltou para casa a tempo de colocar em ordem a herança paterna e depois, habituado à vida agitada das armas com o jogo de dados e das cartas, quando não tinha de empunhar o arcabuz, juntamente com seus amigos, dissipou todos os seus bens e caiu na miséria. Se antes ser soldado era para ele uma paixão, agora se tornava uma dura necessidade. Em 1571, foi a Roma, pois tinha uma maldita ferida em sua perna que se fechava e reabria constantemente e haviam-lhe dito que na cidade dos papas havia um hospital geral que fazia milagres de curas. Permaneceu em São Tiago dos Incuráveis até o final do ano, pois assim que se sentiu curado se alistou novamente na segunda aliança e combateu antes na Dalmácia e depois na Tunísia. Tendo dado baixa em 1574, retornou a Roma, e não tendo mais em mãos o fuzil, retomou os dados e as cartas, jogando sempre até apostar a própria camisa do corpo.

Uma luz lhe atingiu o coração Encontrou-se por acaso com um frade capuchinho, que lhe deu uma enérgica repreensão, e como ele sempre fora um gigante com um bom coração,


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arrependeu-se de seus pecados, e aceitou ganhar o pão e recomeçar a vida como ajudante de cozinha no convento dos capuchinhos próximo de Roma. Um dia retornando da cidade eterna, em um asno do convento, trazendo alimentos para os frades, uma luz penetrou-lhe na mente e aqueceu-lhe o coração: de um lado viu a estupidez da sua vida passada e do outro descobriu que Deus, não obstante tudo aquilo, amava-o imensamente. Não podia mais viver como antes. Disse aos frades que gostaria de seguir como eles o exemplo do Poverello (Pobrezinho) de Assis, e vestiu com alegria o hábito franciscano. Infelizmente, a alegria durou pouco, porque a ferida na perna se reabriu novamente, e os padres enviaram-no para um hospital de Roma. Ficou em São Tiago por aproximadamente quatro anos, mas com um comportamento diferente: estava mais atento às necessidades dos outros do que à sua ferida. Quando disseram que ele estava curado, retornou ao noviciado capuchinho. Mas a ferida reabriu-se novamente e, desta vez, os capuchinhos lhe disseram claramente que, para um homem tão adoentado, não havia lugar em uma ordem muito severa como a deles. Foi dispensado definitivamente. Retornou a São Tiago e compreendeu que aquela era sua casa: dedicouse à assistência aos doentes, sentindo inundar o coração com a mesma luz radiante que um dia tinha brilhado para ele quando retornava de Roma para o convento em que fora ajudante. E o fenômeno se repetia freqüentemente, nos momentos mais inesperados. Um dia, enquanto lavava os pés de um doente, compreendeu que era Jesus, Jesus que sofria, e sentiu a alegria de poder cuidar de seu Senhor. Gravaram-se com letras ardentes, em seu coração, aquelas palavras do evangelho: “Todas as vezes que fizestes isto a um só destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes” (Mateus 25,40).

O amigo Filipe e o Crucifixo Nos momentos livres, Camilo ia ao Oratório de Filipe Néri, que bem depressa se tornou seu amigo e conselheiro. Observando no hospital o grande número de doentes e o estado miserável no qual se encontravam, pois os enfermeiros trabalhavam só por dinheiro, pensou em reunir um grupo de homens, de boa vontade, para os quais ele transmitiria a luz que tinha no coração para se dedicar à assistência dos enfermos, só por amor de Deus. A idéia era ousada e para alguns até mesmo absurda. Enquanto rezava diante de um crucifixo, Camilo teve a resposta:


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“Esta obra não é tua” – disse-lhe Jesus Cristo –, “mas minha!”. Também Filipe Néri o confirmou. Nasceu assim a Congregação dos Ministros dos Enfermos. Mas os enfermos não tinham só necessidade de assistência corporal e ele foi aconselhado a estudar teologia para ser ordenado padre. Voltar à escola, pegar nas mãos os livros, escutar os professores que falavam em latim, uma língua complicada e para ele desconhecida? As coisas de Deus, mais do que nos bancos da escola, Camilo aprendia daquela luz que brilhava dentro do seu coração, enquanto cuidava dos doentes. Mesmo assim, aceitou o conselho, passou nos exames não se sabe como e foi ordenado sacerdote em 26 de maio de 1584. No dia 8 de setembro do mesmo ano foi autorizado a entregar o hábito religioso a seus primeiros companheiros e o novo grupo partia toda manhã com alegria imensa da casa para o hospital para servir a Jesus nos doentes.

O quarto voto Dois anos depois, Sisto V aprovava a nova congregação e em 1591 Gregório XIV reconhecia-a como ordem religiosa, na qual os membros, além dos três votos tradicionais, emitiam um quarto voto de “perpétua assistência corporal e espiritual aos doentes, mesmo que estivessem com peste”. Seria como se hoje alguém fizesse o voto de se dedicar aos cuidados com os doentes de AIDS. E pior ainda, pois hoje sabemos nos proteger mais facilmente do contágio, mas naquele tempo se alguém cuidasse de um pesteado, facilmente poderia pegar a doença. A ordem se espalhou rapidamente em outras cidades italianas e Camilo procurou dar uma formação profunda espiritual a seus filhos com cartas e exortações, com visitas às várias casas, mas, sobretudo, com o seu exemplo. Na época da terrível inundação do rio Tibre em Roma em 1598, enquanto Camilo procurava salvar os doentes, percebeu que estava faltando um religioso. Ele, chamado pelos companheiros para o trabalho pesado, havia se desculpado dizendo que estava fazendo o seu turno de adoração diante do Santíssimo Sacramento. Camilo lhe mandou dizer que, se ele não descesse imediatamente até o térreo que estava inundado para carregar nas costas os doentes e salvá-los, poderia sair imediatamente da ordem, pois ele não sabia o que fazer com um religioso que adorava Cristo presente na Santa hóstia, pois não conseguia reconhecê-lo presente nos irmãos necessitados.


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Camilo tinha um sentido muito prático da vida. Em um tempo em que muitos falavam de reformas, mas nem sempre arregaçavam as mangas, ele deu aos seus esta norma: “Cada um cuide de não querer ser reformador, diretor ou fiscal do hospital, mas se esforce para ensinar com ações mais do que com palavras, e conservar-se amável com todos aqueles que trabalham nos hospitais!”.

Cuidar do ser humano em sua globalidade Tendo consciência de que é inútil falar de amor a Deus sem socorrer quem está precisando de ajuda, ele estabeleceu para os seus esta hierarquia no agir: cuidar do corpo antes que da alma, do corpo para a alma, um e outro para Deus, e realizá-lo sabendo que se está fazendo diretamente ao próprio Jesus. Desejava que seus filhos fossem preparados também humanamente, para poder socorrer a criatura humana em sua totalidade. A experiência pessoal da condição miserável de pecador, não só a de enfermo incurável, havia-lhe ensinado o caminho certo para se aproximar dos doentes. Freqüentemente, estes, além das feridas físicas, trazem escondidas no seu íntimo as feridas bem mais profundas que só o amor verdadeiro pode curar. Por isso, ele gostava de repetir que é preciso servir a todos os enfermos com uma caridade especial, com o mesmo amor de uma mãe pelo seu único filho, com o amor de Maria aos pés do crucificado. Nos últimos anos, Camilo deixou para os outros o governo de sua ordem e, como o último dos irmãos, dedicava-se exclusivamente ao serviço dos enfermos. Morreu em Roma aos 14 de julho de 1614, mas sua obra difundiu-se pelo mundo inteiro, levando a todos os cantos o amor a Cristo presente no enfermo. Assim se confirmava sua oração: “Quero um coração tão grande como o mundo”. Em 1746, Camilo foi proclamado santo e em 1886, patrono dos hospitais juntamente com são João de Deus. Atualmente é considerado também o precursor da Cruz Vermelha.

15 de julho São Boaventura de Bagnoregio bispo, doutor seráfico (1217/18-1274) “Se, portanto, queres saber como isso acontece (o caminho da alma para Deus), pergunta à graça e não à ciência, ao desejo e não à inteligência, ao gemido


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da oração e não ao anseio de ler, ao esposo e não ao professor, a Deus e não ao homem; à obscuridade, e não aos holofotes, não à luz, mas ao fogo que inflama todo o ser e o entranha em Deus, com sua suavíssima unção e com os afetos mais ardentes.” 16

Escreve Piero Bargellini: “Conta-se que certo dia frei Boaventura foi a Monteripido, perto de Perúgia, para visitar um dos mais simples e brincalhões companheiros de são Francisco, frei Egídio, um ex-camponês da velha guarda, e por isso preocupado com a nova orientação cultural da ordem. “Quando ele o viu, o velho e esperto companheiro de são Francisco disse ao mestre Boaventura, com intenção quase polêmica: ‘Mestre, a vós Deus deu grandes dons de inteligência, mas nós com pouco talento e sem estudos, que não temos ciência alguma, como faremos para nos salvar?’ “Frei Boaventura respondeu imediatamente: ‘Se Deus der ao homem somente a graça de poder amar, isto é suficiente’. Era a resposta que frei Egídio esperava, mas quis aprofundá-la ainda mais perguntando: ‘É possível então um ignorante amar a Deus como se fosse um sábio?’ E Boaventura redargüiu: ‘Uma velhinha pode amá-lo também mais do que um mestre de teologia’. Egídio, satisfeito de encontrar na doutrina de Boaventura o espírito de são Francisco, saiu correndo para o quintal, gritando e dirigindo-se a uma pessoa imaginária: ‘Velhinha, pobrezinha, simples e ignorante, ama o Senhor e poderás tornar-te maior que frei Boaventura, mestre de teologia!’.”17 À parte da historicidade, ou não, desta narração, Boaventura soube unir de maneira admirável na sua vida a genuína simplicidade franciscana com uma preparação científica invejável. Nele, Paris não destruiu Assis em nada, pelo contrário, a ciência foi a escada para a sabedoria. Nasceu em Civita di Bagnoregio perto de Viterbo em 1221, de João de Fidanza, médico, e de Maria de Ritelo. Quando criança, adoeceu e correu perigo de morrer. Sua mãe atribui a são Francisco o milagre da sua cura. Estudou no convento franciscano da cidade e depois continuou o estudo em Paris, tornando-se logo mestre nas Artes.

16. Boaventura de Bagnoregio, Itinerarium mentis in Deum, 7,5. 17. Pe. Bargellini, Mil santos do dia, Vallechi Editora, Firenze 1988, p. 394.


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Há alguns anos estavam em Paris os chamados “mendicantes”, franciscanos e dominicanos, que, com seu exemplo, estavam causando agitação na Universidade. Não só os alunos, mas até mesmo professores renomados como Alexandre de Hales e Haymòn di Farveshan, além de apoiá-los, tornaram-se também franciscanos. E não eram os únicos que renunciavam às honras e ao dinheiro para escolher o caminho da humildade e da pobreza evangélica.

Como nos primeiros tempos do cristianismo Boaventura sempre tinha admirado o Pobrezinho de Assis, mas agora já com 25 anos e mestre das Artes, deveria decidir o futuro de sua vida. Ele era apaixonado pela vida de são Francisco, pois via reviver nele e no movimento franciscano a figura de Cristo e a experiência dos primeiros tempos da Igreja. Jesus havia iniciado com simples pescadores, demonstrando assim que sua obra não era invenção humana, mas depois da experiência por ele iniciada havia atraído pessoas doutas e de alto valor, como tantos padres da Igreja. Não estava acontecendo a mesma coisa com o franciscanismo? Ele não tinha a felicidade de poder seguir o ideal do seu bem-aventurado Francisco? Entrou para o noviciado e recebeu o hábito dos menores, iniciou o estudo de teologia sob a orientação de Alexandre de Hales. Por sua inteligência extraordinária e o amor ardente para com Deus, Boaventura vivia o estudo como uma maravilhosa aventura, onde a experiência franciscana e a atividade intelectual não eram dois campos separados, mas uma iluminava a outra e vice-versa.

Mestre em Paris Seguindo o currículo da universidade, tornou-se bacharel bíblico, sen­ tenciário e depois, em 1253, mestre. Infelizmente os dirigentes da Univer­ sidade, tendo em mente a figura tradicional do monge, fechado nos limites do mosteiro, não conseguiam compreender como homens consagrados a Deus pudessem viver em casas no meio do mundo e dedicar-se aos estudos e às pregações. E não só isso, mas gozando de privilégios papais, subtraíamse à autoridade dos bispos e, recolhendo esmolas entre o povo, diminuíam a contribuição de ofertas às igrejas dos padres diocesanos. Não era isso invadir o campo reservado aos legítimos pastores das dioceses?


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Às acusações responderam Tomás pelos dominicanos e Boaventura pelos franciscanos, mas só a intervenção pontifícia acalmou a duras penas os ânimos, e a universidade de Paris, mesmo a contragosto, teve que conferir o título de mestre aos dois futuros doutores da Igreja. Mas a disputa lançou raízes até mesmo no interior do mundo franciscano. Muitos saudosistas dos tempos de são Francisco acreditavam que a ordem estivesse resvalando na vida complicada do estudo, quando – do ponto de vista deles – bastava vestir o hábito do Pobrezinho de Assis para ser testemunha alegre da senhora Pobreza. Lançavam, pois, injúrias contra aqueles frades “envaidecidos pela ciência”, uma vez que pensavam em evangelizar o mundo mais com suas palavras do que com o carisma do fundador. Outros replicavam que uma ordem que se dedicava à evangelização não podia ser formada por uma massa informe de alegres ignorantes. Nessa desavença, freqüentemente áspera e dolorosa, Boaventura conse­ guia com a palavra e com o exemplo fazer vislumbrar o caminho justo: o carisma de Francisco não só não tinha sido apagado pelos estudos, mas podia agora iluminar a todos, analfabetos e doutores.

Geral e reformador da ordem Mas como fazer compreender tudo isso a um exército de cerca de 30 mil frades, espalhados por todos os cantos e quase ingovernáveis? Frei João Buralli de Parma havia tentado como ministro-geral; embora sendo um homem de vida santa e inteligência incomum, não tinha conseguido. Pensou-se então em Boaventura e no capítulo que aconteceu em Roma, em 1257, foi eleito por unanimidade geral da ordem. Tinha apenas 40 anos. Boaventura em abril do mesmo ano enviava uma carta a todos os frades, propondo-lhes escolher decididamente: permanecer na ordem, vivendo em paz nos conventos segundo o espírito franciscano ou retomar o caminho do mundo. A carta, destemida no conteúdo, mas cheia de unção, levou quase todos os frades a uma séria reflexão. Da sua parte, ele não ficou em Paris com seus amados livros, mas rapidamente fez uma longa série de viagens. Primeiramente, foi à Itália e em Viterbo encontrou-se com o papa Alexandre IV, que apoiou plenamente seus planos de reforma. Em seguida, visitou os frades em todos os países da Europa onde eles estavam espalhados. Fez reflorescer em todos os lugares a vida espiritual, organizou os estudos de forma que não perturbassem mas


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ajudassem a disciplina religiosa e, sobretudo, colocou em ação o seu dom de semear a harmonia por onde passava. No momento oportuno, fez uso da mão forte, banindo de um mosteiro alguns frades um pouco rebeldes que prejudicavam a paz das comunidades. Na primavera de 1260, celebrou-se o capítulo geral em Narbona, onde propôs as famosas Constituições narbonenses que se tornaram normativas para todos os conventos. Elas deveriam salvaguardar e fazer reflorescer o carisma de Francisco. Mas ainda restava o problema de saber qual seria realmente o verdadeiro espírito franciscano, pois existiam tradições diversas e às vezes até mesmo conflitantes. Os capitulares encarregaram Boaventura de reescrever a vida autêntica de Francisco. Boaventura retornou à Itália, visitou os lugares onde Francisco tinha vivido, interrogou testemunhas, sobretudo os primeiros companheiros do fundador ainda em vida, recolheu documentos e, tendo retornado à França, escreveu a Leggenda del beato Francesco (Vida do beato Francisco) e a Leggenda minore, para serem lidas em coro. Enfim, parecia que já tivesse cumprido sua missão, quando foi envolvido no processo contra o seu predecessor, frei João de Parma, acusado de propagar as idéias heréticas de Gioachino da Fiore. Felizmente, a intervenção do cardeal Ottoboni Freschi desculpava frei João das acusações e poupava a Boaventura o ingrato trabalho de levar adiante o processo. Assim, o acusado pôde concluir santamente sua vida em Verna. Em 1263, Boaventura apresentou ao capítulo geral de Pisa a nova vida de são Francisco. As duas Leggende foram aceitas por todos com imensa gratidão e enviadas a todos os conventos. Naquele capítulo, por sugestão sua, foi incrementada a devoção a Maria, ordenando, talvez, pela primeira vez na ordem, celebrar a festa da Conceição de Maria e de tocar toda a noite o sino, na hora das Completas, para convidar o povo a recitar a ave-maria. Deste ato, teve origem a recitação do Angelus Domini (O anjo do Senhor). A reforma promovida por Boaventura, que fez dos franciscanos uma verdadeira ordem conventual, renovou um pouco o espírito genuíno do movimento que tinha nascido no coração de Francisco? Talvez o caminho percorrido por Boaventura tenha sido o único para salvar, na medida do possível, o carisma do Poverello (Pobrezinho), assegurando-lhe a sobrevivência e a influência no mundo ao longo dos séculos.


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Bispo e cardeal Encontrava-se novamente em Paris em 1265, quando o papa Clemente IV lhe fez chegar a bula de nomeação para arcebispo de York, na Inglaterra. Boaventura apressou-se a ir até o Papa e conseguiu ser dispensado daquela incumbência, para a qual não se sentia digno. Tendo conseguido a paz em sua ordem, pôder dedicar-se mais ao estudo até o ano de 1271. Em setembro daquele ano estava em Viterbo e falou aos cardeais que há dois anos não conseguiam consenso para escolher o novo Papa depois da morte de Clemente IV. Finalmente aceitando seus conselhos, elegeram Gregório X. Este o escolheu como colaborador para preparar o concílio de Lyon e em 1273 nomeou-o bispo de Albano e cardeal, obrigando-o a aceitar a nomeação. Em maio de 1274, iniciou-se em Lyon o concílio. Boaventura teve um papel fundamental na reunificação da Igreja do Oriente e fez uma homilia na missa que concluía a assinatura da união. Foi seu último discurso, pois uma febre repentina tirou-lhe a vida em poucos dias. Tinha 53 anos, e era 15 de julho de 1274. O papa e todos os participantes do concílio estavam presentes ao funeral e muitos choravam. Havia morrido um santo, um doutor e um autêntico filho de são Francisco.

Doutor seráfico Em 1482, quando Sisto IV o canonizou, atribuía-lhe o ofício dos “santos confessores pontífices e doutores”, reconhecendo-o implicitamente como doutor da Igreja. Mas o reconhecimento solene lhe foi dado por Sisto V em 1588, proclamando-o “doutor seráfico” ao lado de Tomás, o “doutor angélico”. Há 45 obras de Boaventura, sem contar aquelas cuja autoria ainda são discutidas. Sua doutrina, menos conhecida que a de Tomás, mas não menos profunda, está sendo hoje redescoberta. Inspira-se na corrente agostiniana, mas aprofunda, sobretudo, as raízes do carisma de seu fundador. “Os mesmos sentimentos que são Francisco exprimia nos seus cânticos, são Boaventura traduziu-os em argumentos científicos. A força imensa do amor de Deus, que fez de são Francisco um serafim (anjo) entre os santos, aquela mesma força norteou a pena de são Boaventura, e o coloca como serafim entre os doutores.”18 18. Obras de são Boaventura, I BAC 1968, p. 94.


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Todo o pensamento de Boaventura é condicionado por aquela experiência franciscana. Para ele cada criatura traz a marca do Criador, o Deus Uno e Trino, do qual saiu e é chamada a retornar através de Cristo na experiência vital do Espírito Santo. No Itinerário della mente in Dio escreve: “Quem não se deixa iluminar pela beleza das coisas criadas é um cego, quem não acorda com seus cantos é surdo, quem não louva a Deus por tudo o que foi criado é mudo, quem não reconhece a origem primeira com todos estes testemunhos é um insensato. Abre então os olhos, escuta com a alma, descerra os lábios e prepara teu coração para que possas ver, louvar, adorar e exaltar o teu Deus em todas as criaturas”.19 Mas a imagem mais clara e perfeita de Deus temos no Verbo encarnado e quem quiser conhecer verdadeiramente Cristo deve dessedentar-se na Sagrada Escritura no seio da Igreja, não para se sair bem com discursos inúteis, mas para que o Verbo se encarne em sua pessoa. Quando a pessoa humana alcança o auge da identificação com o Verbo – e isto só é possível quando se entra pela porta secreta que é o Crucifixo, como aconteceu com são Francisco – então entra em Deus e todas suas faculdades humanas silenciam e na experiência da intimidade divina, até o ponto de a teologia ficar sem palavras. A quem quiser tomar este caminho, Boaventura faz um convite “de não crer que baste apenas a leitura sem a unção, a especulação sem a devoção, a pesquisa sem a admiração, a observação sem a alegria, o empenho sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, a reflexão sem a sabedoria divinamente inspirada”.20 “Isto é um fato místico e extraordinário que ninguém conhece a não ser quem o recebe. Recebe-o somente quem o deseja, não o deseja senão aquele que está inflamado pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo trouxe à terra. Eis, por que o apóstolo afirma que esta mística sabedoria é revelada pelo Espírito Santo”.21 Boaventura havia chegado a esse ápice e assim dialogava com Cristo: “Ó bom Jesus, é coisa bela e agradável habitar em teu coração! Esse é rico tesouro,

19. Boaventura de Bagnoregio, Itinerarium mentis in Deum, 1,15. 20. Ibid., Prólogo, 4 21. Ibid., 7,4.


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a pérola preciosa que descobrimos no segredo do teu corpo traspassado, como no campo escavado... Eu encontrei o teu coração... ó Jesus benigníssimo: coração de rei, de irmão, de amigo. Escondido em ti, não rezarei? Sim, rezarei. Já o teu coração – digo-o francamente – é também meu coração. Se tu, Jesus, és o meu Senhor, então, como aquilo que é do meu Senhor, não poderá ser meu também?... Que alegria para mim! Eis: tu, ó Jesus, e eu temos um só e mesmo coração”.22 Contemplando seu pai Francisco, que no monte de Verna se tinha deixado identificar com o Crucifixo, Boaventura através da chaga aberta do seu lado encontra-se no próprio coração de Cristo tornado agora uma só coisa com o seu.

21 de julho São Lourenço de Bríndisi sacerdote, doutor apostólico (1559-1619) “A palavra de Deus é de tal modo rica de todos os bens que é um tesouro de todos os bens. Daí brotam a fé, a esperança e a caridade. Daí derivam todas as virtudes, todos os dons do Espírito Santo, todas as bem-aventuranças evangélicas, todas as boas obras, todos os méritos da vida, toda a glória do paraíso.” 23

João XXIII, em 1959, quis conferir-lhe o título de “doutor apostólico”, pois frei Lourenço de Bríndisi, autêntico apóstolo de seu tempo, dedicou toda sua vida à pregação do evangelho, confirmando na fé populações inteiras em várias partes da Europa.

Júlio César, mas sem glória Seu nome de batismo era Júlio César da nobre família, então decaída, dos Russo. Nasceu em Brindisi aos 22 de julho de 1559, perdeu o pai ainda pequeno. A boa mãe levou-o aos frades menores conventuais que acolhiam os

22. Id., A vida mística, 3,3-4. 23. São Lourenço de Bríndisi, Opera Omnia, 5,1, nº 50; cit. na Liturgia das Horas.


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chamados pueri oblati, isto é, meninos que, crescendo à sombra do convento, recebiam uma instrução, que dificilmente teriam encontrado em outro lugar, e tornavam-se possíveis candidatos à vida religiosa. Separar-se do filho para uma mãe viúva foi uma grande dor, mas ela preferiu levá-lo ao convento onde ele teria uma boa formação, do que vê-lo como um empregado em alguma família rica da cidade. O rapaz sentiu-se realizado em meio aos frades e iniciou com muito interesse e proveito os estudos humanísticos. De vez em quando a mãe ia visitá-lo, mas sem intenção de desviá-lo de seu ambiente, antes, pelo contrário, encorajava-o a perseverar na família franciscana. Quando Júlio completou 14 anos e começava a se interrogar sobre os problemas típicos da adolescência, também sua mãe faleceu. Foi uma dor inesperada e duríssima. Naquela ocasião, um tio, vindo de Veneza, pediu aos frades para levá-lo consigo, pois em Brindisi ele não tinha nenhum parente mais chegado.

Frei Lourenço Júlio, ainda aturdido pela dor, foi com o tio, mas apenas se ambientou na nova cidade, que o deixava cada vez mais admirado, e foi à procura dos frades, conhecendo os capuchinhos. Eles perceberam a rara capacidade daquele jovem e o aceitaram logo entre os noviços. Aos 17 anos, Júlio César Russo tornava-se frei Lourenço de Brindisi e iniciava os estudos em preparação ao sacerdócio, primeiro em Pádua e, depois, em Veneza. Possuía uma inteligência extraordinária e uma sede insaciável de conhecer as ciências humanas e as religiosas. Aos 23 anos, tornou-se sacerdote. Naquele período pós-tridentino, o cristianismo ocidental atravessava uma fase particularmente difícil, pois de um lado estava acontecendo uma grave divisão em seu interior com o nascimento de várias igrejas protestantes e, contemporaneamente, apresentava-se ameaçador o avanço do mundo muçulmano que, expulso da península ibérica, subia para os Bálcãs. Lourenço sentiu profundamente aquele problema de seu tempo: para compreender o fenômeno protestante quis estudar a fundo a Sagrada Escritura e para reter o avanço das armadas islâmicas, aceitou tornar-se capelão militar. Para poder ler na língua original o Antigo e o Novo Testamento, aprendeu com perfeição o Hebraico e o Grego. Tornou-se de tal maneira perito na língua e nas tradições hebraicas que despertou a atenção dos rabinos a ponto de o


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convidarem para dialogar nas sinagogas. Sua competência nas coisas hebraicas levou alguns a pensar que ele fosse um judeu convertido ao cristianismo. Mesmo procurando, segundo a mentalidade da época, a conversão dos judeus para o cristianismo, ele tinha um grande respeito pelo “povo eleito”. Escolhido pelo papa para “pregador pontifício” para os judeus em Roma, estes o consideravam não como um zeloso “convertedor” mas como um sincero protetor.

No coração da Europa Em 1599 foi enviado a Praga, então capital do Sacro Império Romano, para relacionar-se com a corte e para pregar a doutrina católica. Naturalmente também para fundar o primeiro convento capuchinho. A facilidade em aprender línguas – conhecia bem as principais línguas européias – permitia-lhe falar tanto em latim para ambientes cultos como na língua do lugar para o povo. Além disso, seu estilo vivaz e colorido, que refletia a simplicidade evangélica típica de sua ordem, tinha também a solidez de quem dominava as ciências teológicas. Em Praga era tão apreciado que precisava pregar não só aos domingos e nas festas, mas bem três vezes durante a semana. Aconteceu naquele período o incidente com Laisero, o famoso pregador protestante da corte do eleitor da Saxônia. Enquanto Lourenço estava momentaneamente ausente, este, que acompanhava seu príncipe em visita ao imperador, pregou em Praga sobre a justificação segundo a visão protestante. O capuchinho, retornando à cidade, convidou-o para um debate público na presença de pessoas cultas, mas Laisero achou mais oportuno deixar passar o desafio e, retornando para Saxônia, publicou em Dresda suas pregações com uma introdução e uma conclusão nas quais atingia o capuchinho e um padre jesuíta. Lourenço preparou uma refutação, Lutheranismi Hypotyposis, mas, quando soube que seu interlocutor tinha morrido, não quis publicá-la “para não dar a impressão de que ele queria combater contra os mortos e fazer guerra às sombras”. O bom sucesso de suas ações em Praga junto à corte do imperador convenceu o papa a confiar-lhe várias missões diplomáticas, junto a reis e príncipes católicos da Europa. Foi a Madri, a Mônaco, a Nápoles, a Turim. Embora ele nem sempre tenha conseguido totalmente convencer os políticos de que a melhor coisa era resolver pacificamente as controvérsias,


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certamente teve uma influência muito positiva sobre a política na Europa de seu tempo. Lourenço percebeu em toda sua gravidade também o perigo que provinha do mundo islâmico já às portas de Viena, e não hesitou em acompanhar as tropas dos príncipes cristãos na batalha de Alba Real na Hungria em 1601. É difícil para nós hoje imaginar um filho de são Francisco que avançava para a batalha montado a cavalo, levantando o estandarte da cruz e incitando os soldados aos gritos: “Avante! Deus o quer, Deus está conosco!” Não era ainda o tempo do diálogo e a lei islâmica, onde chegava, marcava o fim do cristianismo.

Educador dos frades Um outro campo de grande importância nas atividades de Lourenço foi sua própria ordem, em que pôde trabalhar primeiro como mestre de noviços, depois como guardião, superior provincial e finalmente como geral. Em três anos, visitou todas as comunidades de capuchinhos da Europa indo a pé de um convento a outro, afervorando os seus, corrigindo eventuais erros e suscitando em todos os lugares admiração. Não era à toa que era chamado de “a consolação dos frades”. Sob sua orientação os capuchinhos multiplicaram sua presença sobretudo naquelas regiões que tinham maior necessidade de missionários para a instrução religiosa do povo como no Tirol, na Áustria, no sul da Alemanha, na Boêmia. Reordenou também os estudantes da ordem, a fim de que os frades fossem culturalmente preparados. Era um modelo de sacerdote não só para os seus, mas também para o clero diocesano. O contínuo peregrinar de um país a outro, a ascendência sobre seus príncipes e bispos, a pregação que encantava as multidões, tudo concorria para suscitar à sua passagem um fervor de renovação evangélica.

Doutor da Igreja Uma outra característica de Lourenço foi sua atividade de escritor. Não era um teólogo inclinado à especulação, mas um pastor muito sábio e extremamente prático. Nunca pensou em escrever tratados, mas preparou sempre com muito cuidado suas pregações para ir ao encontro das necessidades concretas de seus ouvintes. Não escrevia, portanto, com a intenção de publicar,


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a não ser a única obra destinada à impressão, a mencionada Lutheranismi Hypotyposis, que ficou, como dissemos, em sua gaveta. Somente em 1956 os capuchinhos publicaram a Opera omnia, que compreende bem dez obras em quinze volumes e que deu ao santo o título de doutor apostólico da Igreja. Mas qual era a vida interior deste frade que tratava habitualmente com o papa, com o imperador, com os príncipes; que não tinha medo de entrar com os soldados em uma batalha; que se sentia à vontade não só entre os doutos, mas também no meio das pessoas humildes, e em todos os lugares obtendo estima e admiração? A fecundidade de seu ministério e a grande influência exercida sobre seu tempo não podem ser explicadas somente pelos seus dotes naturais e por seu saber teológico.

Um segredo que levou para o túmulo Lourenço era, sem dúvida, um autêntico franciscano, apaixonado por Cristo crucificado, modelo de pobreza, e de Maria, mãe de cada cristão, mas na sua vida íntima há algo que nos escapará para sempre. Sabemos apenas que ele recebia uma luz especial que o guiava no agir e no falar, e que a fonte desta luz era a eucaristia. Nos períodos de descanso da febril atividade, acontecia-lhe freqüentemente, depois dos 40 anos, que a celebração da missa se prolongasse por duas, três horas. Ele mesmo se preocupava com isso e pôs o papa Paulo V a par disso. Este lhe deu um indulto especial para que pudesse celebrar com a consciência tranqüila durante todo o tempo em que o Senhor o quisesse manter em tais colóquios. E Lourenço chegou a oito e até a doze horas de contemplação contínua durante a celebração eucarística. Foram graças extraordinárias de luz que o santo, talvez por humildade, não achou oportuno colocá-las por escrito, mas que tiveram uma influência determinante em sua vida e, por reflexo, em sua ação. O último trabalho de Lourenço foi um gesto de amor pelos napolitanos. Estava em viagem para Brindisi, sua cidade natal, para os afazeres da sua ordem, quando em Nápoles ficou doente e precisou parar. A cidade, então sob o domínio espanhol, estava revoltada contra o vice-rei, e escolheu-o como embaixador junto a Felipe III da Espanha. Como ele poderia deixar de ajudar um povo oprimido? Lourenço mudou de caminho e dirigiu-se para a corte espanhola. Chegando a Gênova, precisou parar por obstáculos graves colocados pelo vice-rei de Nápoles. Esperou com paciência e no momento oportuno continuou a viagem. Em maio de 1619 foi falar com Felipe III.


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Enquanto conduzia com sucesso as negociações com o rei, foi surpreendido pela “irmã morte corporal”. Era 22 de julho, dia em que completava exatamente 60 anos.

22 de julho Santa Maria Madalena (século I) “Tu, (ó Pai), acendeste-lhe no coração um fogo de imenso amor por Cristo, que lhe tinha restituído a liberdade do Espírito, e lhe infundiste a coragem de segui-lo fielmente até o Calvário. Também depois da morte de cruz procurou o seu Mestre com tanta paixão, que mereceu encontrar o Senhor ressuscitado, e de anunciar por primeira aos apóstolos a alegria pascal.” 24

Maria de Magdala não é apresentada no evangelho como a grande pecadora convertida por Jesus, mas como a apóstola da ressurreição. A tradição latina, seguindo a opinião de são Gregório Magno, identificou em uma só pessoa Maria Madalena, Maria de Betânia e a mulher pecadora que na casa de Simão, o fariseu, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com seus cabelos. No Ocidente só pouquíssimos autores, entre os quais são Bernardo de Claraval, distanciaram-se dessa interpretação. A tradição oriental, ao contrário, sempre entendeu que se tratava de três mulheres diferentes. Os estudos mais recentes concordam com a interpretação dos orientais.

A discípula fiel Então, quem era Maria Madalena? As poucas informações seguras que temos estão nos evangelhos. Maria era de Magdala, pequena cidade da Galiléia. Jesus a curou de seus problemas espirituais e ela se tornou discípula, passando a fazer parte daquele grupo de mulheres que seguiam Jesus: “Estavam com ele os doze e algumas mulheres que foram curadas dos espíritos maus e de enfermidades: Maria de Magdala, da qual saíram sete demônios; Joana, mulher de Cusa, administrador de Herodes; Susana e muitas outras, que lhe assistiam com seus bens” (Lucas 8,1-3). 24. MA II, Prefácio, p. 1179.


Santa Maria Madalena

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As expressões “curadas dos espíritos maus” ou “expulsou sete demônios” não significavam necessariamente que antes aquelas mulheres estivessem endemoniadas, porque na mentalidade daquele tempo qualquer distúrbio físico era atribuído aos espíritos maus que, se pensava, entrassem nas pessoas, tanto mais numerosa quanto mais grave era a enfermidade. Então as mulheres da qual estamos falando certamente foram curadas por Jesus das suas enfermidades, e no caso de Madalena devia tratar-se de enfermidade grave. Ao se pensar no papel secundário reservado à mulher na cultura antiga – e também na judaica –, o comportamento de Jesus, que ao lado dos apóstolos admitiu que seguisse aquele grupo de mulheres, foi algo certamente inusitado para não dizer revolucionário. Considere-se que com elas estava também a mãe do Mestre e se constituía seu arrimo, como aparece também na narrativa da Paixão. De outra parte, quem mais do que a mãe poderia compreender as necessidades do filho? Todas as vezes que nos evangelhos se faz menção daquele grupo de discípulas, Madalena é sempre citada primeiro, indicando a estima de que ela gozava na primitiva comunidade cristã.

Aos pés da cruz Ela também seguiu Jesus até Jerusalém e tomou parte ativa nos acontecimentos da Paixão e da Ressurreição. O evangelho de Marcos (15,40-41) faz notar que no lugar da crucifixão “havia algumas mulheres que estavam a observar de longe, entre as quais Maria de Magdala, Maria mãe de Tiago, o Menor, e de José, e Salomé... e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém”. Elas observavam “a distância”, até que os soldados, terminada a crucifixão, permitiram que se aproximassem. O evangelho de João (19,25) nos recorda que naquele extraordinário momento “estavam junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria de Magdala”. Jesus morto foi sepultado em tempo de não violar o rigoroso repouso sabático, que proibia qualquer trabalho. Madalena e as outras mulheres permaneceram até o fim para ver onde eles tinham depositado o corpo de Jesus, e depois retornaram a Jerusalém. Ao amanhecer do primeiro dia da nova semana, o nosso domingo, Madalena estava à frente do grupo de mulheres que correram ao sepulcro com a mirra – por isso são chamadas pelos orientais de as mirrofore (carregadoras de mirra) – e outros perfumes para embalsamar o corpo do crucificado, segundo os costumes dos hebreus.


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A apóstola No sepulcro esperavam-nas espanto e surpresa, pois não tinham encon­ trado o corpo de Jesus. Enquanto as outras tinham ido levar a notícia aos apóstolos, e Madalena permanecido no local desconsolada à procura daquele que tanto amava, teve a aparição do Ressuscitado. Em um primeiro momento não o reconheceu e o confundiu com o jardineiro, mas quando Jesus a chamou pelo nome, seus olhos se abriram e do fundo do coração saiu a exclamação: “Mestre!” e se jogou aos seus pés. Certamente ela terá querido permanecer longo tempo com ele e escutá-lo como nos tempos passados, mas Jesus lhe disse: “Não me retenhas, pois ainda não subi a meu Pai, mas vai e dize aos meus irmãos: Eu subo para meu Pai e vosso Pai, ao meu Deus e vosso Deus”. E Maria foi correndo anunciar aos apóstolos que o Senhor havia ressuscitado. Madalena, escolhida por Jesus, tendo-o seguido desde o início da vida pública e tendo-o contemplado ressuscitado, tornava-se, segundo a tradição da Igreja, apóstola. Quantas vezes, ao longo da história, mulheres escolhidas pelo Senhor repetiram com seu amor a história de Madalena! Santas, profetizas, carismáticas levaram a todo o povo cristão, incluídos os sucessores dos apóstolos, o anúncio do Ressuscitado, fazendo cada vez mais reflorescer na Igreja uma nova primavera.

23 de julho Santa Brígida da Suécia co-padroeira da Europa (1303-1373) “Dado que o papa hesita em vir restaurar a paz e reformar minha Igreja, eu declaro que é minha vontade que ele venha neste outono e venha para ficar. E o papa deve também saber que nenhuma coisa que ele possa fazer me tornará mais feliz que seu retorno para a Itália.” 25

Foi essa uma das mensagens que Brígida tinha recebido de Cristo em uma visão, e ela a transmitia ao Papa para convencê-lo a não demorar mais,

25. Santa Brígida da Suécia, As Revelações, IV, 143. Cf. Santa Brígida da Suécia, As celestes revelações, aos cuidados de A. Mancini, Roma 1960.


Santa Brígida da Suécia

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abandonando Avinhão e voltando para Roma para sempre. Mulher de excepcional valor, ampliou sempre mais seus horizontes da família à casa reinante, e de seu país a toda a Europa, enfrentando os problemas mais difíceis de seu tempo.

Em conversa com Jesus Nasceu em Finstad, na Suécia, perto de Uppsal ou Uppland, em junho de 1302 ou 1303, de uma família nobre e profundamente cristã. Seu pai, Birgen Persson, era lagmann, isto é, juiz e governador da região da Upplan. Foi também o autor da primeira legislação cristã do reino da Suécia. Sua mulher se chamava Ingeborga, e ela também era de nobre estirpe. Tiveram sete filhos, e a uma delas deram-lhe o nome de Brígida em honra de santa Brígida da Escócia, por eles admirada de modo especial. Ainda criança, Brígida, depois de ter escutado um sermão sobre a paixão de Jesus, teve com ele um colóquio profundo que lhe ficou impresso para sempre na memória. À pergunta: “Meu querido Senhor, quem te reduziu a isto?”, ela ouviu a resposta: “Todos aqueles que me esquecem e desprezam o meu amor!”. Então, a menina decidiu amar Jesus com todo o coração e para sempre. Aos 12 anos, a mãe faleceu. O pai, para prover de maneira digna sua formação, enviou-a para sua tia materna, Karin, madrinha de batismo, que acabou cumprindo com muito zelo a educação da menina. Brígida, além de outras boas maneiras das famílias nobres, aprendeu também a leitura, a escrita e a arte do bordado à mão. Aos 14 anos, segundo o costume do tempo, o pai a julgou pronta para dá-la como esposa a Ulf Gudmarsson, filho do governador de Västergötland. Ela, na verdade, tinha desejado entregar-se a Deus na vida religiosa, mas viu no desejo paterno um sinal da vontade divina e disse seu sim com serenidade. Deu-se muito bem com o esposo, pois – contrariamente ao significado do nome do marido que quer dizer lobo – ele era um homem calmo e desejoso de levar uma vida o máximo possível conforme o Evangelho. Segundo o testemunho da filha Catarina, que coletou as confidências maternas, os dois cônjuges quiseram oferecer a Deus, de comum acordo, as primícias do matrimônio, vivendo, por certo tempo, na virgindade.

Um casal exemplar Para Ulf, Brígida não foi somente esposa mas também mestra, pois lhe ensinou a ler, a escrever e a recitar as orações dos franciscanos terciários. Ele


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aproveitou o impulso cultural da esposa e aprofundou-se também no estudo do direito, tornando-se assim um lagmann da província de Nerícia. No castelo de Ulfasa, Brígida não assumiu com soberba o papel de prin­ cesa de Nerícia, mas o de ótima doméstica: não só acompanhava os trabalhos das pessoas sob sua responsabilidade, mas se colocava junto aos servos, realizando várias atividades domésticas e criando entre todos um clima de família. Ocupava-se de maneira especial com os pobres e as jovens, ajudandoas a encontrar um trabalho honesto para não caírem na prostituição. Além disso, fez construir um pequeno hospital onde diariamente ia para cuidar dos doentes, lavando-os e costurando suas roupas.

Além dos confins da família Nessa época, conheceu o mestre Matias, homem de vasta cultura e especialista em Sagrada Escritura, além de ótimo sacerdote. Escolheu-o como seu confessor e lhe pediu que traduzisse, pelo menos em parte, a Bíblia Sagrada para poder ler a palavra de Deus diretamente na própria língua. O contato com aquele mestre, que havia estudado em Paris e estava se comunicando com as correntes de pensamento de toda a Europa, foi muito importante para Brígida, pois lhe abriu vastos horizontes a respeito dos problemas de seu tempo e assim a preparou para sua futura missão. Para ele também foi preciosa a aproximação de Brígida, pois o ajudou a permanecer na ortodoxia em um mundo no qual circulavam muitas idéias contrastantes, todas com a pretensão de possuir a verdade plena. No entanto, a família estava satisfeita com o nascimento dos oito filhos. Brígida, juntamente com o esposo, colocava em prática uma sugestão que ela dizia ter tido um dia de Nossa Senhora: “Faz que teus filhos sejam também meus”. Enquanto estava ocupada com sua missão materna, a corte da Suécia escolheu-a como conselheira do jovem casal real, o rei Magnus Eriksson e a jovem rainha Bianca de Namur. Com esta finalidade, Brígida, depois de ter acomodado da melhor maneira os filhos nos mosteiros, deixou em casa, com o pai, dois filhos com um ótimo preceptor e levou consigo o menor, ainda necessitado de cuidados maternos. Separou-se temporariamente, mas com grande dor do marido, e foi para Estocolmo junto à corte. Foi em 1336. Lá permaneceu por dois anos. Enquanto o rei e a rainha deram ouvidos a seus conselhos, na corte tudo correu muito bem e a Suécia teve ótimas leis, mas, em seguida, foi colocada de lado e a vida da corte tornou-se mundana.


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Naquele momento, sem romper a amizade com os reis, mas esperando por dias melhores, percebeu que seria melhor voltar para casa. No castelo de Ulfasa, na Nerícia, a família reencontrou a alegria da convivência. Quando, em 1340, o casal fez vinte e cinco anos de matrimônio, ambos agora experientes na vida e desejosos de percorrer o caminho da santidade, decidiram fazer uma peregrinação a São Tiago de Compostela. Quando retornaram, Ulf foi para o mosteiro dos monges cistercienses de Alvastra e Brígida, depois de dois anos; quando já havia completado todas as responsabilidades da família e havia assistido à santa morte do marido, retirou-se também para uma casa próxima do mosteiro para se dedicar inteiramente à oração.

Dois anos de luz Lá teve início o período mais extraordinário de sua vida. Por dois anos, Deus a favoreceu com iluminações particulares a fim de prepará-la para sua futura missão, declarando-a sua esposa e mensageira do grande Senhor. Naquela experiência, Brígida, mulher muito objetiva e não influenciável por entusiasmos passageiros, quis submeter cada coisa ao mestre Matias. Ele manifestou-se persuadido de que as iluminações vinham de Deus com o objetivo de lhe indicar com clareza um caminho de renovação da Igreja. Atraídas pela luz que Deus concedia de maneira extraordinária a Brígida, não somente por ela, mas porque a dava à Igreja, algumas personalidades juntaram-se em torno dela como discípulos. Entre esses, recordemos, além de Matias, Pedro Olavo, depois seu confessor, e um outro Pedro Olavo, que em seguida foi seu secretário. Da casa de Alvastra, Brígida, pela luz que recebia de Deus, abrangia já toda a Europa. Não só retornou a Estocolmo para levar pessoalmente ao rei e à rainha “as advertências do Senhor”, mas enviou cartas e mensagens ao rei da Inglaterra e da França para que pusessem fim à Guerra dos Cem Anos.

Trazer de volta o papa para Roma Em seguida, enfrentou o gravíssimo problema que afligia a cristandade ocidental: o retorno do papa de Avinhão para a sede de Roma. Aproveitando a visita ad limina do bispo de Abo na Finlândia, entregou-lhe uma carta endereçada ao papa Clemente VI, encorajando-o, em nome de Cristo, a voltar o mais rápido possível para sua sede e iniciar corajosamente a reforma da Igreja.


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Tendo em mira aquela reforma, Brígida teve a inspiração de fundar uma ordem religiosa que fosse um pequeno modelo de Igreja renovada. Chamou-a Ordem do Santo Salvador. Ela deveria se inspirar na igreja primitiva recolhida no cenáculo ao redor de Maria. A ordem era formada por monges e monjas. A parte feminina era formada por sessenta religiosas e a masculina por vinte e cinco religiosos, dos quais treze eram sacerdotes, lembrando os doze apóstolos e são Paulo, mais dois diáconos e dois subdiáconos para representar os primeiros quatro padres da Igreja. As sessenta monjas e os doze monges não-sacerdotes deviam representar os setenta e dois discípulos do Evangelho. Não nos admiremos com este jogo de números, se reconhecermos um pouco o gosto daquele tempo pelo simbolismo: representar os discípulos ou os apóstolos constituía um apelo concreto a viver como eles viveram. Naturalmente as monjas e os monges habitavam em mosteiros separados, mas tinham em comum a igreja para as celebrações litúrgicas e, o fato mais singular, uma única autoridade. Todos, sacerdotes e leigos, homens e mulheres, obedeciam por causa disso, no que tocava à vida religiosa à única abadessa e o faziam para honrar a santa mãe de Deus. Enquanto Brígida estava envolvida com a fundação daquela ordem tão original, escrevendo sua regra, formando as pessoas e construindo também os muros materiais, o Senhor falou-lhe durante a oração e lhe disse: “Vai a Roma e permanece lá até o retorno do Papa e do imperador, e lhes dirás da minha parte tudo o que eu te sugerir”. Ver a Europa unida e em paz, governada pelo imperador e guiada espiritualmente pelo papa, era o sonho de Brígida e dos grandes espíritos do seu tempo.

Apóstola da unidade Brígida, seguindo aquilo que lhe parecia a voz de Deus, partiu para Roma, com a intenção também de obter do Papa a aprovação da sua ordem. Viajaram juntos o confessor e o secretário, Pedro Magno, que depois se tornou o promotor da sua beatificação, e um outro sacerdote, Gudmaro de Federico, que a acompanharia também na peregrinação à Terra Santa. Chegou a Roma no outono de 1349 e pôde assistir à abertura da porta santa para o início do jubileu, que ela mesma havia pedido ao Papa como início de uma profunda reforma na Igreja. Depois de ter uma breve estadia no albergue dos peregrinos, próximo a Castel Sant’Angelo, foi para o palácio que o cardeal Ugo Roger, irmão do Papa, colocou à sua disposição. De lá, depois de quatro anos de


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permanência, passaria para a casa oferecida por uma nobre senhora romana, Francisca Papazzurri. Brígida passou a estadia em Roma estudando, rezando e escrevendo. Já durante a viagem quis aprender a língua latina e continuou seu estudo em Roma, depois rezava porque a oração era como a respiração de sua vida, e enfim escrevia na sua língua as iluminações que o Senhor lhe dava continuamente, logo em seguida passava os escritos a Pedro Olavo, o secretário, para que os traduzisse para o latim. Da casa romana, enviava cartas ao Papa, aos reis da Suécia, à rainha de Nápoles e de Cipro, e também a seus filhos espirituais, deixados em Vadstena. Ocupou-se também da famosa abadia imperial de Farfa na Sabina, próximo a Roma, onde o abade com os monges “amava mais as armas que o claustro”. Infelizmente, eles não escutaram a mensagem da santa e isso a convenceu ainda da necessidade de dar à Igreja uma nova ordem, feita de pessoas que tomassem Maria por modelo. Enquanto estava ainda em Farfa, sua filha Catarina veio juntar-se a ela pois havia ficado viúva, e permaneceu ao seu lado para sempre, compartilhando plenamente o ideal de sua mãe. Retornaram a Roma, aquela Roma que Jesus lhe havia mostrado, na sua vocação ideal, toda “pavimentada com pedras de ouro e banhada pelo sangue dos mártires”, agora a via em um estado de extremo abandono e de grande miséria moral. Brígida continuou a enviar as mensagens ao papa e comunicou seus pedidos a outras pessoas influentes e ao próprio povo de Roma, mas inutilmente. Alguns se ressentiram lançando acusações graves contra ela, até chamá-la de a bruxa do norte e a reduzi-la à extrema pobreza. A perseguição chegou a tal ponto que ela e a princesa de Nerícia foram obrigadas a pedir esmolas para si e para os seus às portas das igrejas. Mas Brígida, fiel ao que lhe parecia ser a vontade divina, não perdeu o ânimo e continuou a missão de consciência crítica do seu tempo. Naquele período, visitou alguns santuários que ela considerava muito importantes. Quis honrar são Francisco de Assis, como terciária franciscana, e os apóstolos santo Tomás de Ortona, são Bartolomeu de Benevento, são Mateus de Salerno e santo André de Amalfi. Foi também venerar a são Miguel em Gargano e são Nicolau em Bari. Em cada uma dessas visitas, o santo do lugar tinha uma especial mensagem para Brígida. Por exemplo, são Mateus, “o prudente arrecadador de impostos”, depois de lhe ter recordado a sabedoria com a qual ela tinha abandonado os bens terrenos pelos celestes, acrescentava: “Infelizmente aquilo que eu escrevi por amor e


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com a humildade, muitos procuram desvirtuá-lo... e preferem mais discutir o Evangelho do que vivê-lo”. Em 1365, Brígida foi a Nápoles. Lá sua missão de reforma moral foi bem acolhida tanto pelo bispo como pela rainha Joana que, seguindo os conselhos da santa, fez uma radical conversão em seus costumes e nos da corte.

Um breve retorno do papa a Roma Em 1367 estava novamente em Roma, onde foi a primeira a assistir o retorno do papa Urbano V e depois a vinda do imperador Carlos IV. Quando o papa se mudou para Montefiascone, próximo a Roma, Brígida também foi para aquela cidadezinha: desejava apresentar ao papa a regra da ordem e pedirlhe aprovação. Lá conheceu o bispo Alfonso de Jaén, que foi muito útil à santa, não só para levar adiante as práticas para a aprovação da regra, mas também porque ela, tendo-lhe admirado a ciência unida à virtude, escolheu-o para seu confessor e conselheiro, e ele, por sua vez, reconhecendo e apreciando o carisma de Brígida, tornou-se seu fiel discípulo. Sendo ele um especialista em espiritualidade, Brígida gostava de consultá-lo sobre suas inspirações e ele as revisava e ordenava. Um dia, Jesus disse a Brígida: “Entrega todos os livros que contêm minhas revelações ao bispo eremita... Ele será o meu evangelista”. Alfonso de Jaén, que havia renunciado ao episcopado e se tinha tornado monge eremita, já gozava de total confiança da santa, mas daquele momento em diante Brígida colocou em suas mãos também as revelações que até então estavam ocultas. Na causa de beatificação, o bispo Alfonso foi uma testemunha preciosa. Em 1369, os filhos Carlos e Birger, estes cavaleiros da Suécia, vieram a Roma para visitar a mãe e ela aproveitou a oportunidade para apresentá-los à corte pontifícia e ao papa, na esperança de impressionar favoravelmente a corte papal na aprovação de sua ordem. Com eles fez uma nova peregrinação a alguns santuários italianos. Quando os filhos partiram, Brígida retornou ao trabalho habitual. Infelizmente, a alegria de Brígida pelo retorno do papa a Roma durou pouco. Ele, não obstante as sérias advertências da santa, impressionado pelos acontecimentos políticos da Guerra dos Cem Anos, achou ser oportuno retornar à França e lá faleceu, como Brígida já havia predito, em dezembro de 1370. Sucedeu-o o cardeal Pedro Roger com o nome de Gregório XI, parente do cardeal Ugo, que havia emprestado seu palácio a Brígida. Ele a conhecia


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muito bem, estimava-a como uma santa, muitas vezes havia ajudado a resolver os trâmites para a aprovação da sua ordem e tinha sido o portador das suas mensagens ao Papa precedente. A ele, Brígida escreveu uma carta inflamada, dizendo-lhe em nome do Senhor: “Retorna não com a soberba que se usa nestes casos e com a pompa do mundo, mas na humildade e na ardente caridade. E assim que chegares erradica e destrói os vícios da tua cúria...” Foi o próprio Alfonso, o bispo eremita, o portador dessa carta. O papa ficou profundamente abalado, quis se certificar de que ela fosse realmente escrita pela santa, mas depois não teve a coragem de realizar tudo quanto Brígida lhe sugeria.

Peregrina na Terra Santa Sem renunciar ao seu propósito de fazer o papa retornar para sua sede, Brígida, já quase septuagenária, fez a última e a mais desejada peregrinação à terra de Jesus. Acompanharam-na o bispo Alfonso, os dois Olavos, Magno e os filhos Catarina, Birger e Carlos, e alguns outros em um total de doze pessoas. No final do ano de 1371, a comitiva partiu de Roma para Nápoles, onde passou o inverno. Em março de 1372, na véspera da partida, Brígida perdeu o filho Carlos, que morreu de peste. Depois de ter rezado por ele, não quis adiar a viagem e zarpou para Cipro. Lá foi acolhida pela rainha Eleonora de Aragão, que aproveitou sua passagem para fazer uma profunda reforma em seu pequeno reino. Em maio daquele mesmo ano, finalmente Brígida estava em Jerusalém. Visitou os principais lugares santos, recebendo contínuas iluminações sobre a vida de Jesus e de Maria. Lá permaneceu somente quatro meses. O Senhor a queria de volta a Roma o mais rápido possível: “Pois ainda havia muitas coisas para serem escritas e enviadas ao Papa”. Assim que chegou a Roma com o coração cheio de recordações da Terra Santa, enviou de Avinhão o bispo Alfonso com outra mensagem ao Papa para lhe apressar o retorno.

A última prova Em Jerusalém, Brígida tinha contraído uma enfermidade que perio­ dicamente foi se agravando sempre mais. Seu pensamento, além do papa, era dirigido ao seu mosteiro em Vadstena. Havia obtido a aprovação da ordem do papa Urbano V em 5 de agosto de 1370, mas conseguiriam seus filhos e filhas caminhar segundo as indicações sugeridas a ela pelo Senhor? O que


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fazer para assegurar o futuro deles? Além dessas preocupações, sobrevieram provas bem mais difíceis. As revelações recebidas vinham verdadeiramente de Deus ou era um engano do demônio? Confiou-se a seu diretor espiritual mais seguro e mais bem preparado, o bispo Alfonso, autorizando-o a rever, ordenar e publicar os escritos só se fossem úteis para o bem da Igreja. No quarto, onde todos os dias se celebrava a eucaristia, Brígida, antes de morrer, recebeu o véu de monja da ordem por ela fundada e confiou o governo à filha Catarina, que mais do que nenhuma outra conhecia o espírito de sua santa mãe. No coração de Brígida, porém, restava a dor de uma missão incompleta, por não ter conseguido trazer de volta o Papa para Roma. O Senhor quis consolá-la, dizendo-lhe que do céu bem cedo poderia contemplar o retorno definitivo do pontífice. De fato, enquanto ela concluía sua última peregrinação, desta vez para o céu, uma outra grande mulher, Catarina de Sena, ocupava seu lugar para continuar com a mesma firmeza a obra renovadora da Igreja e para trazer definitivamente para Roma o Papa, como aconteceu aos 17 de janeiro de 1377. Aos 23 de junho de 1373, Brígida terminava sua vida terrena. Já em 1391 era proclamada santa e rapidamente seu culto e seus escritos se espalharam em toda a Igreja. Seu corpo foi levado para a Suécia e sepultado no mosteiro de Vadstena. De lá, a Ordem do Santo Salvador teve por dois séculos uma grande influência sobre a vida religiosa dos países escandinavos, até o advento da reforma luterana. Atualmente as irmãs brigidinas estão novamente estabelecidas em Vadstena para torná-lo centro de irradiação espiritual. As Revelações de santa Brígida foram recolhidas por seus discípulos em oito livros, mais um escrito suplementar. São fiéis transcrições de tudo quanto a santa tinha recebido nas suas visões ou iluminações, além das cartas e mensagens enviadas às personalidades da época. A esses escritos a Igreja dá o valor que têm as revelações privadas: são confiáveis pela santidade da pessoa que as propõe, levando em conta sempre os condicionamentos do tempo e da própria pessoa. As Revelações de Brígida mostram grande equilíbrio e sólida espiritualidade cristocêntrica e mariana. Como tantas espiritualidades do fim da Idade Média, essa tem o mérito de colocar as verdades da fé à altura do povo com linguagem visível que estimula a fantasia, toca o coração e leva à conversão. Isso explica sua influência por longo tempo na vida cristã, não só dos povos escandinavos mas


São Tiago

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também dos latinos. Hoje, a herança espiritual de santa Brígida adquire uma especial relevância ecumênica. Por intermédio de seus escritos e, sobretudo, da obra cuidadosa e amorosa das suas filhas e de seus filhos espirituais, católicos e luteranos, ela convoca todos a procurarem o caminho da plena comunhão entre as Igrejas, para que resplandeça entre os cristãos aquela unidade pela qual ela consumiu toda sua vida. João Paulo II proclamou-a co-padroeira da Europa em 1º de outubro de 1999 “pelo carisma vivido com plena docilidade... e em plena conformidade com as exigências da comunhão eclesial”.

25 de julho São Tiago apóstolo (+42) “Jesus Redentor retirou são Tiago do humilde trabalho das redes, constituindo-o pescador de homens para a salvação deles. Respondeu ao divino chamado com ânimo pronto e fiel; mereceu assim enfrentar o tormento do martírio e obter a glória, antes dos outros apóstolos do Senhor.” 26

Tiago é chamado “o maior” para distingui-lo do outro apóstolo, seu homônimo. Era filho de Zebedeu e Salomé, e irmão mais velho de João. Fazia parte dos três apóstolos privilegiados – Pedro, Tiago e João. Escolhidos por Jesus para participar do episódio do estabelecimento instantâneo da sogra de Pedro, da ressurreição da filha de Jairo, da transfiguração do Salvador no monte e de sua agonia no horto das oliveiras. Seu chamado aconteceu enquanto estava no lago absorto no trabalho de pescar juntamente com seu pai e o irmão João. A resposta dos dois foi imediata. Os dois apóstolos foram chamados Boanerges, filhos do trovão, por seu caráter decidido, revelado no seguinte episódio narrado por Lucas: Durante a última viagem de Jesus a Jerusalém, um grupo de apóstolos, entre os quais Tiago e João, precederam o Mestre numa aldeia de samaritanos para

26. MA II, 1183.


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preparar a chegada dos outros. Os samaritanos, assim que souberam que se dirigiam para Jerusalém, recusaram-se a recebê-los. Quando contaram o que havia acontecido a Jesus, os dois irmãos disseram: “Senhor, quer que peçamos que desça fogo do céu e os destrua?”. Queriam que se repetisse o episódio do profeta Elias que reduziu a cinzas os cinquenta homens enviados contra ele pelo rei Ocozias. “Mas, Jesus se voltou para eles e os repreendeu”. (Cf. 9, 51-56)

Deles, o Evangelho relata um outro acontecimento que suscitou a indignação dos outros apóstolos (Mc 10,35-45). A mãe deles dois foi até Jesus e lhe pediu para que os seus dois filhos se sentassem um à direita e outro à esquerda no Reino que ele estava para estabelecer no mundo. Jesus perguntou-lhes se estavam dispostos a beber o cálice que ele beberia e, diante da resposta afirmativa, profetizou que aquilo aconteceria, mesmo que não pudesse lhes garantir um lugar de honra. E acrescentou: “O Filho do homem, de fato, não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate de muitos”. Depois de Pentecostes, a rápida difusão do cristianismo na Judéia e fora suscitou a preocupação do sinédrio e de Herodes Agripa I que, para agradar ao chefe do povo, prendeu e decapitou o apóstolo Tiago (At 12, 2). A causa da condenação não terá sido de caráter religioso, porque a pena correspondente teria sido a lapidação; foi condenado por acusações de caráter político, como a de reunir o povo para sublevá-lo contra o poder constituído. Segundo uma tradição que nos foi passada por Clemente de Alexandria e por Eusébio de Cesaréia27, enquanto o apóstolo ia para o martírio, aproximouse dele aquele que tinha falsamente testemunhado contra ele e pediu-lhe perdão. Tiago, parou, pensativo – talvez para reprimir a exigência da justiça imediata que O filho do trovão trazia sempre no peito – mas depois o abraçou dizendo-lhe: “A paz esteja contigo”. Segundo a tradição, foi o primeiro apóstolo a sofrer o martírio em torno do ano 42. Seu culto se difundiu de maneira extraordinária na Espanha, onde foi construído o famosíssimo santuário de Compostela, que do século XI ao XV 27. Clemente Aless., Hypot. VII; Eusebio, História Eclesiástica, II, 9, in PG 20,157.


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se tornou, para a cristandade ocidental, a meta desejada por numerosíssimas peregrinações.

26 de julho São Joaquim e Sant’ana pais da bem-aventurada virgem Maria “Ó casal feliz, Joaquim e Ana! A vós toda a criação se sente devedora, porque foi por vosso intermédio que a criatura ofereceu ao Criador o mais valioso de todos os dons, isto é, a mãe pura, a única que era digna do Criador.” 28 Em uma oração litúrgica do missal ambrosiano eleva-se a Deus todo ano este louvor: “Nós te exaltamos na alegre memória dos santos Joaquim e Ana, adorando o desígnio de amor com o qual tua misericórdia realizou a redenção da humanidade. Tu escolheste com predileção especial um povo para que fosse teu e estabeleceste com ele desde os tempos mais antigos uma íntima aliança, figura daquela nova e perfeita, oferecida a todos os povos da terra. E quando veio a plenitude dos tempos, doaste aos cônjuges que hoje honramos uma filha puríssima e santa, a virgem Maria, que, por tua graça, à humanidade perdida geraria o Salvador”. 29

Narrar com precisão histórica a vida dos avós de Jesus é impossível, pois deles os evangelhos não dizem nada. Se quisermos satisfazer um pouco nossa curiosidade devemos nos contentar com um texto apócrifo do século II, o Protoevangelho de Tiago, chamado também de História do nascimento de Maria. Mesmo que estes escritos não sejam inspirados, hoje são estudados mais a fundo para se encontrar neles alguma informação. Transcrevemos algumas frases, para sentir sua candura. Joaquim era pastor, muito rico, e morava próximo de Jerusalém, nos arredores da famosa fonte chamada Piscina Probática, e todo o ano oferecia abundantes dons para o sacrifício no Templo. Uma ocasião, o sacerdote não quis aceitá-lo, dizendo-

28. G. Damasceno, Discursos, 8, 4: PL 96,663. 29. MA II, 1186.


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lhe: “Tu não és digno de oferecer teus dons, porque ainda não destes ao Senhor o fruto da primogenitura de Israel”. Joaquim e Ana se amavam verdadeiramente, mas não tinham tido filhos e já não deveriam mais ter. Sobre eles o sacerdote, conforme a mentalidade hebraica da época, via a maldição divina por serem estéreis. O que deveria fazer o velho pastor? Encontrar uma outra mulher para ter um filho? Não, isso jamais ele faria. Certo dia ele não teve coragem de retornar à casa e se escondeu em uma montanha de sua terra e por quarenta dias e noites, entre lágrimas, orações e jejuns, suplicou a ajuda de Deus. Ana, tendo vindo a saber do que estava acontecendo, recordou-se do que havia acontecido a Abraão e Sara e implorou um milagre. Depois fez seu marido voltar para casa e lhe disse ter recebido a visita de um mensageiro divino que lhe havia anunciado que Joaquim lhe daria um filho. E nasceu Maria. Chamaram-na assim porque tal nome quer dizer a “amada por Deus”. Joaquim novamente foi ao templo levando consigo a menina e os donativos: dez cordeiros, doze bezerros e cem cabritos sem mancha. Um ano depois, convidou para vir à casa todos os seus amigos com os chefes do povo e os sacerdotes. Eles impuseram as mãos sobre a menina e oraram assim: “Deus de nossos pais, abençoa esta menina e faz que seu nome se torne célebre por todas as gerações”. E o povo respondeu em coro: “Amém!”. Mais tarde Maria teria sido levada ao templo para ser educada na santa lei de Moisés, para depois de algum tempo voltar para casa a fim de ser dada como esposa a José. Já nos tempos antigos, quando era grande a mortalidade infantil e das parturientes, sant’Ana tornou-se protetora das mães grávidas, que a ela recorriam para que por elas implorasse a Deus três grandes favores: um parto feliz, um filho saudável e leite suficiente para alimentá-lo.

29 de julho Santa Marta (século I) “Santa Marta acolheu com alegria Cristo em sua casa e o serviu com devoção e com atenção afetuosa. Pela generosidade do seu coração, obteve que o irmão


Santa Marta

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Lázaro, morto há quatro dias, ressurgisse e mereceu estar unida no reino eterno àquele que ela havia hospedado.” 30

Não podemos falar de Marta sem nos lembrar ao mesmo tempo de sua irmã Maria e do irmão Lázaro. Moravam em Betânia, uma aldeia a leste de Jerusalém, atrás do Monte das Oliveiras, a poucos quilômetros da cidade santa. Deveriam ser de família economicamente abastada, pois puderam hospedar e dar de comer a Jesus e aos doze apóstolos, quando estavam de passagem da Galiléia para Jerusalém, e nos últimos dias que antecederam a paixão de Cristo. Entre eles e Jesus existia uma amizade profunda, pois haviam aceitado totalmente a mensagem e a missão do Mestre, e tinham colaborado com ele, colocando à sua disposição seus bens. De sua parte, “Jesus queria muito bem a Marta, a sua irmã e a Lázaro”, como observa o evangelista João (11,5). São três os fatos evangélicos que lhes dizem respeito de maneira especial.

A raiz do amor O evangelista Lucas (10,38-42), depois de ter relatado a estupenda parábola do bom samaritano para demonstrar quanto é necessário o amor concreto para com o próximo, a fim de poder entrar no reino messiânico, apresenta uma simpática cena acontecida durante uma das estadias de Jesus na casa de Betânia. Certo dia, Marta, como de costume, havia recebido com alegria a comitiva e, como boa dona de casa, pôs-se logo a preparar a refeição. Não era pouca coisa providenciar para treze homens com apetite dobrado depois da longa viagem desde Jericó. Maria, ao contrário, “sentada aos pés de Jesus, escutava sua palavra”. Marta em um certo momento chegou com muita confiança e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me tenha deixado sozinha no serviço? Diz, pois, a ela que me ajude”. Um pedido, podemos dizer assim, mais que legítimo. Jesus então respondeu: “Marta, Marta, tu te preocupas e te agitas com muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”. 30. MA II, 1191.


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Jesus apreciava o amor concreto de Marta, mas teria preferido que, antes de começar os serviços da casa, tivesse ficado um pouco, também ela, a escutar a Palavra que lhe daria luz e sabedoria. Na tradição, Maria personificou a vida contemplativa e Marta, a ativa. Às vezes, injustamente contrapostas, pois a ação e a contemplação não estão em contradição, mas unidas intimamente entre si. Já santo Agostinho havia escrito: “Ninguém deve ser tão contemplativo que não o faça para a utilidade do próximo; nem tão ativo que não procure a contemplação de Deus. Na vida contemplativa, não nos deve atrair a quietude inerte, mas a busca e a descoberta da verdade... como na vida ativa, não devemos amar a honra nesta terra ou o poderio... mas a fadiga... Por isso, o amor da verdade procura a contemplação, a necessidade da caridade aceita a ação”.31 Chiara Lubich, falando às pessoas do nosso tempo, acrescenta: “Nós temos uma vida interior e uma vida exterior. Uma é florescência da outra, uma é raiz da outra, uma é da outra copa da árvore da nossa vida. A vida interior é alimentada pela vida exterior. Quanto mais eu penetro na alma de meu irmão, mais eu penetro em Deus em mim, quanto mais eu penetro em Deus dentro de mim, tanto mais penetro no irmão. Deus-eu-o irmão: é tudo um mundo, tudo um reino...”32

A ressurreição de Lázaro Outro fato que nos revela a família de Betânia aconteceu um pouco antes da Páscoa (Jo 11,1-44). Lázaro estava gravemente enfermo e Jesus se encontrava na Galiléia. As duas irmãs rapidamente mandaram um mensageiro dizer-lhe: “Senhor, eis que teu amigo está doente”, certas de que viria logo e o curaria. Mas quando Jesus chegou, Lázaro já tinha sido sepultado. Marta foi a primeira a perceber a chegada do Mestre. Correu a seu encontro e lhe disse: “Senhor se tivesses estado aqui meu irmão não teria morrido! Mas eu sei que tudo o que pedires a Deus, Deus te concederá”. Jesus lhe garantiu que o irmão ressuscitaria. Maria lhe disse: “Sei que ressuscitará no último dia”. A resposta de Jesus foi uma daquelas que dão fundamento à inaudita esperança cristã: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que 31. Sant’Agostino, De civitate Dei, XIX, 19. 32. C. Lubich, in: Mariápolis. Noticiário interno do Movimento dos Focolares no 5, maio de 1996.


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esteja morto, viverá e quem vive e crê em mim, não morrerá para sempre. Crês nisto?”. A resposta foi uma sincera profissão de fé: “Sim, Senhor eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo, aquele que devia vir ao mundo”. Maria, não sabendo da chegada de Jesus, estava em casa com parentes e amigos que tinham vindo de Jerusalém e de outras cidades vizinhas para consolar as duas irmãs. Marta voltou para casa correndo e lhe deu a notícia. Falou-lhe às escondidas para impedir que seu encontro com o Mestre fosse perturbado pelas pessoas que pouco ou nada conheciam dele. Os parentes, vendo Maria sair de casa e pensando que fosse até o sepulcro para chorar, a seguiram. Jesus com os apóstolos estavam esperando na estrada. Ele, depois de ter abraçado Maria e ter escutado sua queixa: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”, “ficou muito comovido”, quis ser levado até o sepulcro e “prorrompeu em prantos”. Alguns dos presentes comentaram: “Vede como ele o amava!”; outros ao contrário começaram a rir: “Aquele que abriu os olhos do cego não poderia também impedir que ele morresse?”. Jesus – segundo o relato de João – ordenou que fosse retirada a pedra e Marta, pensando que quisesse ver o cadáver para última saudação, advertiuo de que não era possível, pois estava sepultado há quatro dias, e já exalava mau cheiro. Mas Jesus lhe disse: “Não te disse que, se cresses, verias a glória de Deus?”. Retirada a pedra, podia-se ver, na cavidade do sepulcro, a figura imóvel do defunto, envolvido em um lençol funerário, bem amarrado com faixas e o sudário. Jesus, depois de fazer uma oração ao Pai, gritou em voz alta: “Lázaro, vem para fora!”. E, aquele que estava morto voltou a viver neste mundo para a alegria das irmãs, em meio ao assombro das pessoas e, infelizmente, também para raiva das autoridades de Jerusalém, que não viam com bons olhos o profeta de Nazaré realizar milagres.

A cena da despedida Para as duas irmãs e para Lázaro era um ceia festiva de agradecimento pelo milagre acontecido, sem saberem que seria a última ceia de Jesus na casa deles. O evangelista João (12,1-8) observou o seguinte: “seis dias antes da páscoa”, portanto, poucos dias antes da morte de Jesus. Uma ceia preparada, como de costume, com muito esmero e dirigida, como de costume, com competência de quem recebe: “Marta servia”, comenta o evangelista.


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Em um certo momento, Maria apanhou da despensa da casa “uma libra de óleo perfumado de nardo legítimo, muito precioso, começou a espalhá-lo nos pés de Jesus e a enxugá-los com os cabelos, e toda a casa se encheu do perfume do ungüento”. Todos ficaram admirados: Maria havia gastado uma fortuna para demonstrar o amor que possuía pelo Mestre. Isso não agradou a Judas Iscariotes, que queria vender aquele perfume e conseguir pelo menos 300 denários, talvez a quantia de um ano inteiro de salário. Disse que aquele dinheiro poderia ser usado para ajudar os pobres, mas o evangelista observa que dizia isso não porque ele se interessasse pelos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, furtava o que nela lançavam. De qualquer modo, sua observação não serviu para nada, pois o próprio Jesus tomou a palavra em defesa de Maria! “Deixai-a fazer, ela guardou este perfume para o dia de minha sepultura. Os pobres de fato sempre os tereis entre vós, mas a mim nem sempre me tereis.” Estas são as informações que temos dos evangelhos. O que terá acontecido aos três depois da ressurreição de Jesus? Certamente terão feito parte da comunidade cristã, mas não podemos dizer mais do que isso. É pura lenda que eles teriam ido para Marselha, onde Lázaro teria sido o primeiro bispo. O culto a eles difundiu-se bastante em todo o Oriente e também em algumas regiões do Ocidente. O rito latino, tendo identificado erroneamente Maria com Madalena, nesta data só comemora Marta.

30 de julho São Pedro Crisólogo bispo e doutor (380/400-451/58) “Ó homem, por que tens de ti um conceito tão baixo quando foste tão precioso para Deus?... Toda esta estrutura do mundo que teus olhos contemplam, não foi, talvez, feita para ti?... Para ti foi regulada a noite, definido o dia e o céu iluminado pelos diferentes esplendores do Sol, da Lua e das estrelas. Por tua causa, a terra foi ornamentada com flores, bosques e frutos. Para ti, foi criada a maravilhosa família dos animais que povoam o ar, os campos e a água, para que uma desoladora solidão não apagasse a alegria do mundo, que tinha acabado de ser criado.” 33 33. Pietro Crisólogo, Discursos, 148: PL 52,597.


São Pedro Crisólogo

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Bastariam estas palavras para entender o espírito contemplativo deste romano, nascido entre 380 e 400, em Ímola, chamada, então, Forum Cornelli, e educado, desde pequeno, na mais genuína fé cristã. Por causa de sua inteligência brilhante e aberta para as coisas de Deus, o bispo do lugar, Cornélio, tomou-o sob sua proteção e se encarregou tanto de sua formação humana quanto cristã. Pedro recorda-o assim: “Cornélio, de santa memória..., foi meu pai; foi ele que me gerou por meio do Evangelho; piedoso como era, alimentou-me na vida de fé; ele, santo, dedicou-me aos ofícios santos; sendo bispo, ofereceu-me e me consagrou ao serviço dos altares”.34

Apaixonado por Deus Desde pequeno gostava de servir à igreja, sempre o fez sem intrigas ou interesses, mas só por amor; aprendeu de seu pastor que a maior felicidade não está nas riquezas passageiras e nas honras efêmeras do mundo, mas em estar consciente de ser imensamente amado por Deus que nos fez à sua imagem para a alegria da criação. Certo dia, ele escreveu: “O teu Criador (depois de haver-te dado as belezas desta terra) ainda encontrou algo mais para te amar. Pôs em ti sua imagem, para que a imagem visível tornasse presente na terra o invisível Criador, e te colocou na terra como seu representante, para que tão vasto domínio do universo não fosse privado de um substituto de seu Senhor”.35 No futuro lhe será dado o nome de Crisólogo, que quer dizer palavra de ouro, assim como tinham chamado Crisóstomo, boca de ouro, a seu correspondente na sede imperial do Oriente. A Pedro poder-se-ia dar também o título de doutor do amor paterno de Deus.

A situação política Talvez Cornélio visse em Pedro seu digno sucessor, mas os acontecimentos históricos encaminharam-no para uma sede episcopal mais importante. O império do Ocidente, sob a pressão dos visigodos e com o parecer do general Stilicone, já em 403 havia transferido a residência de Milão para

34. PL 52,597. 35. PL 52,598.


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Ravena, que, cercada pelas águas, permitia uma defesa mais segura contra as invasões dos inimigos. Com a vinda para Ravena de Galla Placídia, mãe e regente do príncipe Valentiniano III, tornado imperador aos 4 anos, a cidade adquiriu a qualificação de capital do Império. A corte então pediu ao Papa para elevar a igreja de Ravena à posição de metropolitana, como tinha acontecido com a de Constantinopla. A questão não era muito simples, pois tal direito no Ocidente era concedido só a poucos e depois havia o perigo de que a sede de Ravena ofuscasse o primado do Papa de Roma. As negociações chegaram a um compromisso: o bispo de Ravena tinha o direito de consagrar os outros bispos da baixa Emília, mas sua consagração estava reservada ao bispo de Roma. Não era, então, um metropolita no sentido pleno, mas um vigário do papa para aquela região.

Bispo de Ravena Quando se tratou de escolher, por volta de 430, o primeiro bispo com esses novos poderes, o papa escolheu Pedro por sua cultura, pela vida evangélica e, sobretudo, pela fidelidade à doutrina do primado romano. O novo eleito, mesmo não sendo do clero da cidade, não só não frustrou as expectativas dos cidadãos de Ravena, como, com sua doçura, logo conquistou a simpatia geral. O povo acorria para ouvir as pregações doutas, mas acessíveis, e sobretudo práticas. Pedro era um ótimo pastor e também um diplomata no sentido nobre da palavra. Sabia quanto o poder civil invejava suas prerrogativas e como facilmente entrava nos meios eclesiásticos. Ele manteve sempre bons relacionamentos com a imperatriz Galla Placídia, colaborando na construção da igreja edificada por ela devido a uma promessa feita durante uma travessia tempestuosa no mar, de Constantinopla a Ravena, com o pequeno Valentiniano nos braços. A igreja foi dedicada a são João evangelista e na ábside foi representado o bispo com uma barba patriarcal imponente, tendo ao lado o anjo da invocação do Espírito Santo na celebração eucarística. Também o bispo, para atender às necessidades pastorais dos cristãos, quis construir igrejas e a autoridade imperial não negou sua colaboração. Assim, surgiu a catedral de Classe e outros templos menores, entre os quais o dedicado a são João Batista e a Barbanziano. Este último foi um padre antioqueno com


São Pedro Crissólogo

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fama de santidade que Galla Placídia tinha chamado a Ravena como seu confessor e lá tinha morrido. Entre 445 e 448, recebeu com todas as honras em sua cidade são Germano, bispo de Auxerre, na França, vindo para implorar um favor, junto à corte, para seu povo. Pedro, usando de sua influência junto a Galla Placídia, obteve o que Germano desejava. Este, depois, adoeceu gravemente e morreu. Foram-lhe prestadas todas as honras fúnebres por parte da igreja e da imperatriz.

A diplomacia da unidade Por sua posição de bispo da sede imperial do Ocidente e pelo livre acesso que tinha à corte, várias personalidades, também eclesiásticas, recorriam ao bispo de Ravena. Teodoreto de Cirro, da escola antioquena, foi procurá-lo. Não estava satisfeito com o Concílio de Éfeso e da conseqüente condenação de Nestório; teria preferido que Maria não fosse chamada mãe de Deus, mas simplesmente mãe de Cristo. Também, Êutico, abade bizantino, condenado no sínodo de Constantinopla em 448, porque não admitia em Cristo as duas naturezas, recorreu ao papa Leão Magno e ao mesmo tempo a Crisólogo. Pedro não gostava de se envolver em questões teológicas, bastava-lhe pregar a doutrina dos santos padres, permanecendo fiel à sede de Pedro. Não sabemos se respondeu a Teodoreto, mas temos a carta que escreveu a Êutico. Entre outras coisas, ele dá ao arquimandrita (abade) este conselho: “Exortamoste, antes de tudo, venerável irmão, a submeter-te com obediência a isto que te foi escrito pelo beatíssimo Papa da cidade de Roma; pois são Pedro, que vive e preside na própria sede, demonstra a verdade da fé a quem a procura. Nós, por amor da paz e da fé, sem o consentimento do bispo da cidade de Roma, não podemos tratar de coisas que se referem à fé”.36 As idéias de Êutico se difundiram, sobretudo no Oriente, mas em Ravena não se enraizaram, não tanto porque do lado do bispo estava Galla Placídia, mas, sobretudo, porque ele sabia falar ao povo. “Os reis magos” – dizia em um dos seus sermões – “reconheceram Jesus como Deus no berço: mas os hereges, 36. Epist. XXV, 742-742. Cf. também cit. in: Bibliotheca Sanctorum, X, Città Nuova Ed., Roma 1990, 687.


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com um procedimento sobre o qual não se pode pensar sem dor, perguntase hoje quem seja aquele que nasceu da virgem Maria e do Espírito Santo. Quando Jesus, no presépio, dava os primeiros balbucios da infância, o exército celeste cantava: ‘Glória a Deus nos céus!’. E, agora, que em nome de Jesus se dobra todo joelho no céu, na terra e nos abismos, levanta-se a questão da sua origem. Não podemos indagar de maneira injuriosa aquele que esperamos e tememos como nosso juiz.” Como bispo na sede imperial, soube ganhar a estima da corte sem se tornar um cortesão, mas permanecendo sempre, antes de tudo, um verdadeiro bispo da Igreja. Não confundiu jamais os dois poderes, mas navegou no mar complicado da política, evitando obstáculos e tempestades. Também mereceu de Galla Placídia, tão diferente da correspondente imperatriz oriental, a terrível Eudóxia, que viveu algum tempo antes e à qual Crisóstomo não hesitou em dar o apelido de nova Herodíades.

Doutor de Igreja Crisólogo morreu aos 30 de julho entre 451 e 458. Deixava uma igreja florescente, em paz e em comunhão com Roma e outras igrejas irmãs. Parece que nos últimos dias, depois de ter sido escolhido para o seu lugar um certo Neone, tenha-se retirado para a cidade natal, onde foi sepultado na basílica suburbana de são Cassiano. Deixava para a Igreja a herança preciosa de seus sermões, que lhe deram o título de doutor.

31 de julho Santo Inácio de Loyola fundador dos jesuítas “Sentado lá (junto ao rio de Manresa), começaram a abrir-se os olhos da inteligência: não que tivesse uma visão; não obstante isso compreendia e conhecia muitas coisas, tanto espirituais quanto de fé e de ciência, com uma luz tão grande que tudo lhe parecia novo. Nem se podem descrever todas as particularidades que agora compreendia, pois eram muitas; pode-se somente dizer que experimentou uma grande luz na inteligência. Tal que em toda a duração da sua vida, até os


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62 anos passados, embora desejando colocar juntas todas as ajudas recebidas de Deus e todas as coisas aprendidas, somando tudo, não lhe parece ter obtido tanto quanto naquela única vez.” 37

Aos 62 anos, Inácio recorda, com estas palavras, a extraordinária luz com a qual Deus o havia transformado, em Manresa, para torná-lo capaz de cumprir sua missão. Nascera em Azpeitia, Países Bascos, em 1491, décimo terceiro e último filho. Aos 14 anos, foi enviado à carreira eclesiástica, mas depois de um breve tempo renunciou decididamente a ela e escolheu a carreira militar, mais cheia de aventuras e mais de acordo com seu caráter. Na juventude, não foi nenhum santo, ao contrário, uma vez acabou indo ao tribunal e só a posição social de sua família evitou sua condenação à prisão. Deixou seu país para servir à corte dos grandes daquela época. Feito cavaleiro, desejava ardentemente ir à guerra para conquistar fama e ganhar a mão de uma nobre dama da mais alta sociedade de sua época. Na guerra entre Filipe I da França e Carlos V foi destinado com seus soldados à defesa da cidade de Pamplona. No dia, antes da batalha decisiva, foi à procura de um sacerdote para se confessar e, não tendo encontrado nenhum, acabou contando seus pecados a um companheiro de armas: um ato de humildade este que entrava na tradição cristã, aprovada e recomendada por teólogos como são Tomás e são Boaventura.

Uma perna quebrada A batalha foi muito difícil e as forças inimigas derrubaram os muros da cidade. Inácio resistiu até quando “um projétil o atingiu na perna, quebrando-a”, como ele mesmo relata. Em um primeiro momento, parecia que iria morrer, mas depois conseguiram levá-lo de maca para sua terra natal a fim de ser tratado. Quando Inácio percebeu que os ossos da perna já estavam soldados, mas deixando um osso exposto que o tornava não só manco, mas também defeituoso para sempre, não sossegou. Consultou os médicos e, quando encontrou uma solução, submeteu-se a uma dolorosíssima operação: mandou serrar o osso exposto e endireitar a perna. 37. Ignazio di Loyola, Racconto di um pellegrino, a cura di G. De Gennaro, Città Nuova Ed., Roma 1993, p. 83.


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Não havia anestesia naquele tempo e a operação não era sem perigo, mas mostrou-se irredutível. Os médicos começaram a trabalhar com o bisturi e com a serra. Ele cerrou os dentes e mandou continuar. A operação teve êxito. Depois, começaram os intermináveis e enfadonhos dias preso no leito sem fazer nada. Às vezes, passava o tempo compondo poesias para sua namorada, mas poesia não era o seu forte. Então, pediu um livro sobre cavalaria para se distrair, ou melhor, para se preparar para aquilo que ele considerava sua vocação. Mas livros daquele gênero não existiam na casa dos Loyola e a bondosa cunhada conseguiu encontrar somente uma Vida de Cristo e uma Leggenda áurea. Esta última era uma coletânea de vidas de santos. Não havendo outro, Inácio começou a ler e sua mente, habituada a desenfrear-se nas fantasias cavalheirescas e mundanas, foi atraída, pela primeira vez, pela vida de Jesus e pelos feitos dos santos. Às vezes inflamava-se e sentia o desejo de segui-los. Percebeu com surpresa que naqueles momentos experimentava uma paz e uma alegria jamais sentidas antes, enquanto depois de ter divagado atrás das fantasias mundanas permanecia-lhe na alma uma profunda tristeza. Começou a entender, por experiência própria, o que depois chamaria de discernimento dos espíritos. Após longa e madura reflexão, tomou a decisão de servir não mais ao rei deste mundo, mas ao próprio Cristo, como tinham feito são Francisco e são Domingos. Se eles tinham empregado toda sua vida para a glória de Deus, ele teria que superá-los, dando a Deus uma glória maior: Para a maior glória de Deus passou de fato a ser o seu lema.

A visita de Maria Naquele período, teve uma visão que o confirmou definitivamente na sua escolha. Ele mesmo, na Autobiografia, chamando-se de “o peregrino”, relata em terceira pessoa: “Aconteceu que, numa noite, enquanto ainda estava acordado, vi claramente uma imagem de Maria com o menino Jesus. Depois daquela visão, experimentou longa e grandíssima consolação; e sentiu um desgosto enorme por toda a vida passada, especialmente pelas coisas sensuais, parecendo-lhe que tinham desaparecido da alma todas as imaginações que antes ali estavam impressas”.38 Daquele momento em diante, Inácio tornou-se uma outra pessoa. Se a busca da glória do mundo substituiu a da maior glória de Deus, o morrer de amores por aquela dama da corte foi substituído agora pelo amor mais 38. Ibid., p. 65.


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sincero e o serviço mais devoto pela Dama do céu. Mas como seguir Jesus? Segundo o autor da Vida de Cristo, o mais importante era ir em peregrinação à Terra Santa. Inácio, assim que ficou curado, colocou-se a caminho, embora os familiares inutilmente procurassem dissuadi-lo. Antes, foi visitar o santuário de Nossa Senhora de Montserrat. Lá, depois de uma confissão geral, dependurou a espada e o punhal no altar de Nossa Senhora, encarregou o confessor de vender sua mula, desfez-se das roupas de cavaleiro dando-as a um pobre e vestiu o hábito de peregrino: uma longa túnica de pano grosseiro, um grande chapéu, um cantil, um par de sandálias e os bolsos vazios, porque daquele momento em diante viveria de esmolas. Passou a noite inteira acordado, como os antigos cavaleiros antes da investidura, e de seu coração saiu esta oração que mais tarde ele transcreveria: Toma, Senhor, e aceita toda a minha liberdade, minha memória, minha inteligência e toda a minha vontade, tudo aquilo que eu sou e possuo. Tu me deste, a ti, Senhor, o restituo; tudo é teu. Dispõe de mim segundo tua vontade; dá-me teu amor e tua graça, pois esta me basta. 39

Deus o esperava em Manresa Era a noite entre 24 e 25 de março de 1522. De Montserrat, passou a Manresa. Lá, os primeiros quatro meses foram de grande tranqüilidade interior e de muitas alegrias espirituais; depois, sobreveio um período duríssimo, cheio de escrúpulos e tentações com sofrimentos interiores tão fortes que o levaram ao desejo de suicídio. Naqueles momentos, Inácio se defendia, bradando a Deus: “Senhor, jamais farei algo que possa te ofender”. Por fim foi inundado de particularíssimas revelações divinas. Em um período da vida da Igreja caracterizado pelas incertezas na doutrina e da divisão que minavam suas estruturas vitais, Deus quis infundir na mente de Inácio, de maneira forte e indelével, as verdades fundamentais do cristianismo: contemplou a Trindade, o Verbo encarnado, a mãe de Deus e a santa eucaristia... “E, este fato de permanecer com a inteligência iluminada” – ele mesmo confirmava – “foi tão grande, que lhe parecia ser um outro homem e que tivesse uma inteligência diferente da primeira”.40 39. R. Garcia-Villoslada, Sant’Ignazio di Loyola, Ed. Paoline, Cisinello Balsamo (Milão) 1990, p. 228. 40. Ignazio di Loyola, op. cit., p. 83, nota 7.


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Com tal realidade na alma, Inácio visitou a Terra Santa e lá permaneceria para sempre, se o superior dos franciscanos não o tivesse reexpedido para a Europa. Então, compreendeu que, para poder falar ao mundo de seu tempo, sobretudo aos eclesiásticos e aos sábios, deveria estudar, não tanto para aprender as coisas de Deus, mas para aprender a linguagem dos homens para que eles o pudessem compreender. Inácio, com a idade de 33 anos, foi para Barcelona e, como um menino, retornou à escola e estudou com persistência. Assim que terminou, passou para a Universidade de Alcalá e lá acabou na prisão, pois, tendo pregado em particular os Exercícios para algumas pessoas, mudando a vida de cada uma, suscitou a suspeita de heresia. Um professor universitário de Sagrada Escritura foi visitá-lo e fez o seguinte comentário: “Eu vi Paulo na prisão!” Libertaram-no, mas lhe proibiram “pregar os Exercícios”. Era a morte de seu ideal. Mudou de cidade e foi para Salamanca, mas também lá foi perseguido e preso. Foi novamente solto, mas agora já pensava em Paris, então capital intelectual da Europa.

Em Paris, os primeiros companheiros Em Paris, Inácio obteve o título de “doutor nas artes” ou “mestre”, mas, sobretudo, conquistou seus primeiros companheiros entre os estudantes, pessoas particularmente dotadas e aptas para encarnar o ideal que Deus lhe havia colocado no coração, o de realizar uma reforma profunda dentro da própria Igreja com o exemplo de uma vida apostólica e com a pregação do Evangelho. Inácio cuidou um a um, separadamente, dos que Deus colocava em seu caminho, fazendo a cada um pessoalmente os Exercícios e, quando estes já estavam de acordo com seu mesmo ideal, reuniu-os. Famosa é a data de 15 de agosto 1534 quando Inácio e outros seis estudantes se reencontraram em Montmartre na cripta de são Dionísio, e durante a missa celebrada por um deles, já sacerdote, Pedro Fabro, fizeram voto de se “dedicarem em pobreza ao serviço de Deus..., pregando e ajudando nos hospitais; de ir, se fosse possível, até aos pés do Papa, vigário de Cristo, para pedir a permissão de ir a Jerusalém” e, se isso não fosse possível, iriam para onde ele os mandasse.41 Certamente, Inácio e os primeiros companheiros 41. R. Garcia-Villoslada, op. cit., p. 414.


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não imaginavam que estavam iniciando aquela que seria a Campanhia de Jesus; eles tinham sido conquistados pela luz de Manresa que Inácio transmitia e sonhavam em reevangelizar o mundo. Enquanto o famoso humanista Erasmo de Roterdã havia abandonado Paris, queixando-se porque, depois de ter aberto novos horizontes às ciências e ter conclamado para a oportunidade de uma profunda reforma da Igreja, não tinha sido escutado; e, enquanto Martinho Lutero na Alemanha e Zwinglio e Calvino na Suíça levavam adiante sua reforma pessoal, em oposição ao Papa; Inácio, sem pensar em contrapor-se aos reformadores, sentia-se impelido por Deus a empreender também ele a reforma da Igreja, mas de acordo com o carisma de Pedro. Por conselho dos médicos, Inácio saiu de Paris e foi para a terra natal para cuidar da saúde. Lá, em três meses acabou com litígios, iniciou a reforma do clero, organizou de modo estável a assistência aos pobres, mas sobretudo com suas pregações converteu muita gente de todas as classes sociais. Quem o tinha visto como um jovem um pouco desmiolado, livre quase por milagre da prisão, não conseguia acreditar no que estava vendo. De Azpeitia, depois de um breve giro pela Espanha, Inácio foi para Veneza e lá retomou os estudos teológicos, interrompidos em Paris, enquanto esperava a vinda dos companheiros, deixados na França, para empreender com eles a peregrinação à Palestina.

Em Veneza à espera da Terra Santa Em Veneza conheceu João Pedro Carafa, que tinha renunciado ao bispado de Chieti em Abruzzos, e, junto com são Caetano de Thiene, tinha fundado a Ordem dos Teatinos. Carafa era um homem enérgico e também desejava a reforma da Igreja. Quando conheceu Inácio pressentiu nele um elemento precioso para os seus planos se entrasse na sua ordem, mas Inácio, depois de ter conhecido os teatinos, disse com franqueza a Carafa que aquela nova ordem não lhe parecia muito adaptada à finalidade que ele se prefixara. Quando seus companheiros chegaram a Veneza, Inácio já tinha sido ordenado sacerdote, embora, segundo o costume daquela época, ainda não celebrasse a missa. Enviou os companheiros ao papa Paulo III e mesmo tendo eles obtido a permissão de ir à Terra Santa, não conseguiram mais partir por causa de guerras. Inácio compreendeu que não valeria a pena perder tempo com esperas inúteis e enviou alguns companheiros a várias cidades da Itália, a pedido dos bispos, para pregar, enquanto ele e mais dois dirigiram-se a Roma.


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Foi naquele período que nasceu o nome de Companhia de Jesus: Polanco, primeiro secretário de Inácio, relata: “Falando-lhes como deveriam se chamar se alguém perguntasse qual era a congregação deles (composta de nove ou dez pessoas), começaram a orar e a pensar qual o nome que podia ser mais conveniente. Visto que não havia entre eles um chefe, nem um outro superior, exceto Jesus Cristo, ao qual somente desejavam servir, pareceu-lhes oportuno tomar o nome daquele que tinham como chefe, chamando-se Companhia de Jesus”.42

A visão em Storta A escolha feita de comum acordo foi confirmada logo por Deus mediante um fato extraordinário acontecido com santo Inácio, nas proximidades de Roma, em um local chamado La Storta, onde em uma visão o Pai Eterno entregava-o a Jesus como seu discípulo e “Jesus o tomava e dizia: ‘Eu quero que tu nos sirvas’. Foi por isto que, tomando a grande devoção a este santíssimo nome (Jesus), resolveu chamar a congregação de Companhia de Jesus”.43 Assim que chegaram a Roma, o papa Paulo III, que já havia percebido o valor daqueles homens, colocou-os logo a trabalhar: Pedro Fabro e Diego Lainez, como professores na università della Sapienza, e Inácio, para pregar os Exercícios a quem lhos pedisse. Este primeiro período romano deu muitos frutos, mas, em um certo momento, alguns acusaram falsamente Inácio de ter fugido da Espanha e de Paris por ser herege. Embora o Papa o tivesse em grande estima, foi instaurado um processo regular. Providencialmente, os juízes dos processos precedentes encontravam-se em Roma e unanimemente testemunharam em seu favor. Foi um verdadeiro triunfo, com grande satisfação do Papa e do povo romano. Em sinal de reconhecimento, Inácio e seus companheiros se apresentaram ao Papa e colocaram suas vidas à disposição do vigário de Cristo, dando cumprimento ao voto já feito em Montmartre, anos atrás. Em 27 de setembro de 1540, a Companhia de Jesus foi aprovada por bula pontifícia e, daquele momento em diante, Inácio, eleito superior, permaneceu definitivamente em Roma para governar a Companhia. Começou a elaborar a redação das Constituições e trabalhou com persistência por longo tempo, 42. Ibid., p. 489. 43. Ibid., p. 497.


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fazendo-as reler e corrigir pelos colaboradores mais chegados e, quando lhe pareceu que estavam em perfeita sintonia com as luzes que Deus lhe tinha dado em Manresa e em outros momentos especiais da vida, enviou os colaboradores às várias províncias para explicar o sentido genuíno a todos os seus filhos.

Um extraordinário florescimento Nos últimos anos, Inácio assistiu a um extraordinário florescimento da Companhia na Europa (Itália, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Áustria, Bélgica), na América Latina, na Índia até o Japão e na Etiópia. Aonde quer que chegavam, seus filhos levavam seu carisma e, com isso, renovavam a Igreja ou procuravam novos filhos em terras de missão. O carisma inaciano se revelava de uma atualidade impressionante. Inácio, bem enraizado no passado sem ser escravo, era aberto ao futuro, sabia harmonizar admiravelmente tradição e profecia. Daí então o fascínio que sua pessoa e sua Companhia exerciam nos eclesiásticos e leigos da sua época. Foi intuição sua fundar Colégios, onde se estudava gratuitamente, abrindo assim o mundo das ciências às inteligências de todas as classes sociais. Dos Colégios nasceram numerosas e conceituadas universidades na Europa e no mundo a começar pelo Colégio Romano, por ele fundado, que se tornaria a famosa Universidade Gregoriana. Um outro fator importante para a renovação da Igreja foi a fundação dos seminários, começando lá também pelo Colégio Alemão que acolhia seminaristas das dioceses de língua alemã. Sob a espiritualidade inaciana, foram-se formando, pouco a pouco, todos os seminários católicos do mundo até os nossos dias. Inácio tinha tido uma boa intuição ao escolher os primeiros companheiros em Paris e seus filhos continuaram nesta linha. Quem queria entrar na Companhia deveria, antes de tudo, estar decidido a viver em tudo segundo o Evangelho, depois deveria ser inteligente e ter bom aspecto para poder desenvolver o apostolado em todos os ambientes, desde o mais humilde, dos mais pobres até o da universidade e das cortes. Por isso, os jesuítas procuravam vocações também entre personalidades da alta classe social. Assim, na Espanha, Francisco de Bórgia, já vice-rei, ficou viúvo e tendo encaminhado os filhos colocou-se nas mãos de Inácio. Este soube apreciar seus dons espirituais e humanos, chamou-o a Roma e percebeu sua capacidade extraordinária de governo e foi como se já tivesse assimilado o genuíno carisma


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inaciano. Seria o seu primeiro sucessor, o homem mais adequado para cuidar da jovem da Companhia. Nos últimos anos de sua vida Inácio, sentindo que suas forças diminuíam, quando até assinar um documento já lhe era difícil, quis renunciar ao cargo de superior-geral, mas seus filhos não lho permitiram. Então nomeou um substituto, com plenos poderes, e se preparou para entrar definitivamente naquele céu que várias vezes já havia pregustado sobre a terra. Morreu em Roma em 31 de julho de 1556.


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1º de agosto Santo Afonso Maria de Liguori bispo e doutor (1696-1787) “Na história da Igreja ele é considerado o napolitano de inteligência mais perspicaz depois do ano 1500, como Tomás de Aquino o foi depois do ano 1000... Ele colocou nos lábios de todos, até dos analfabetos, as palavras de Teresa de Ávila e de João da Cruz. Explicou ao povo os vocábulos mais elevados, em fórmulas mais simples, os afetos mais estáticos nos vocábulos cotidianos. Criou, nos simples, um coração de santos e grandes santos.” 1

Afonso tinha apenas 13 anos e Teresinha somente 5, quando os respectivos pais combinaram o futuro matrimônio dos dois. Estavam certamente con­ vencidos de que não interferiam na livre escolha dos filhos, mas sim que apenas providenciavam para eles um futuro feliz. Enquanto isso, ocorria que o rapaz ia bem nos estudos, e a menina estudava no educandário das carmelitas do Santíssimo Sacramento. Mas as coisas foram acontecendo de modo totalmente diverso, porque os dois interessados, mesmo se conhecendo desde pequenos – eram primos, 1. De Luca, G. Santo Alfonso il mio maestro, p. 131. Cit. in: Rey-Mermet, T. Il santo del secolo dei lumi, Alfonso de Liguori. Roma, Città Nuova Editrice, 1983, p. 825.


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e as duas famílias se visitavam –, tinham aspirações bem mais altas do que as dos progenitores de ambos. Teresa, de pleno acordo com Afonso, rejeitou a primogenitura com todas as honras do mundo dos nobres, e aos 15 anos entrou para o convento no qual havia crescido e estudado. Afonso escreverlhe-á a vida e confessará aos amigos afirmando que foi por sua causa que a pequena noiva escolheu o Amor maior. Num tempo em que os filhos mais novos eram constrangidos a procurar nos conventos ou na carreira eclesiástica os meios de ganhar a vida e fazer o seu pé-demeia, deixando intacto o patrimônio familiar para os primogênitos, Deus, às vezes, brincava, e brinca, com os homens, e chamava, e chama, para si os primogênitos. Para Afonso o futuro se apresentava humanamente róseo. O pai José era oficial superior da marinha militar e a mãe, Ana Cavalieri, filha dos marqueses de Avenia, era uma mulher profundamente religiosa e bem instruída.

Menino prodígio No dia 27 de setembro de 1696, Ana Catarina Cavalieri deu à luz o primogênito, e três dias depois, segundo costume napolitano, fizeram uma grande festa no palácio. Juntamente com tantos nobres foi convidado também o jesuíta Francisco de Gerolimo, que gozava de fama de santidade em todo o reino, era conhecido e muito estimado na família de Liguori, sendo também o ca­ pelão das galeras régias. O homem de Deus felicitou aos pais, depois se recolheu em oração ao lado da criança, abençoou-a, tomou o menino em seus braços, e voltando-se para a mãe, disse: “Este menino viverá até a velhice, não morrerá antes dos noventa anos: será bispo e fará grandes coisas por Jesus Cristo”.2 Um elogio aos pais ou uma profecia? A mãe conservou no próprio coração aquelas palavras, que lhe servirão de grande luz para entender a vida do filho; o pai não se importou, pois o seu Afonso era o primogênito e, segundo a tradição, ele teria um destino bem diferente. Depois do primeiro filho vieram outros sete, somando: quatro homens e quatro mulheres. A mãe pessoalmente cuidou da educação dos filhos, enquanto que o pai, sempre vivendo fora de casa devido aos seus deveres no serviço militar, estava bem presente com a autoridade paterna. Por trinta e três anos Afonso experimentou a dura disciplina.

2. Rey-Mermet, T. Il santo del secolo dei lumi, Alfonso de Liguori. Roma, Città Nuova Editrice, 1983, p. 54. Todas as outras citações – ressalvadas com aspas – são tomadas desta obra.


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A nenhum dos filhos faltou o necessário, como exigia a nobreza do casal, mas os maiores privilégios eram obviamente reservados ao primogênito. E ele correspondia acima de toda expectativa. Aos sete anos, segundo o costume local, os filhos deixavam a educação materna para serem educados no colégio. Para Afonso os pais preferiram chamar os melhores mestres em casa. Os gastos eram maiores, mas o proveito estava assegurado, e não havia o perigo de o menino se contaminar com as más companhias. Com este método e devido à sua inteligência extraordinária, aos 12 anos Afonso já estava preparado para ir para a universidade. Tinha aprendido grego, latim, francês e espanhol. Ainda não se estudava, naquele tempo, o italiano, mas ele quando adulto criou com os seus escritos “uma língua italiana popular, acessível a todos, capaz de chegar até as casas mais singelas”. O pai percebendo a sua especial inclinação para a música, contratou um mestre particular de grande valor, Gaetano Grieco. Era um período florescente para a música, em Nápoles, cuja escola tornou-se famosa em toda a Europa. Não é sem razão que ali nasceu o primeiro Conservatório musical, assim chamado porque era o lugar onde eram acolhidos os meninos cantores da cidade, que canoros por natureza, transformaram os conservatórios em “gaiola de rouxinóis”, e logo depois em verdadeiras escolas de música, onde se ensinava impostação de voz, harmonia, composição e o uso de todos os instrumentos. Afonso, como de costume, não podia se misturar com os meninos cantores, teve lições particulares, tornando-se perito em cravo, e sempre tomava parte dos concertos que os nobres organizavam em Nápoles, para grande satisfação de seu pai, ao apresentar-se ao público “o menino prodígio” antes, e depois advogado e artista. Além de música, Afonso cultivou todas as ciências do seu tempo e teve a possibilidade de conhecer as obras de Copérnico, Descartes, Pascal e Newton. Alguém poderá até perguntar se esse pobre rapaz teve talvez tempo e possibilidade de brincar! Sem falar da alegre algazarra com os irmãos e irmãs, freqüentemente engrossada pela presença de primos e primas, Afonso e seus irmãos tiveram a ventura de freqüentar o Oratório, criado em Nápoles quando ainda vivia são Filipe Néri. Nesse ambiente não só brincavam, mas assimilavam a espiritualidade de são Filipe, que apresentava uma visão alegre de Deus, bem concordante com aquela já recebida da mãe na casa paterna, e bem diferente da autoritária inculcada pelo comportamento paterno.


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Advogado aos 17 anos Para entrar na universidade era preciso fazer um exame de admissão, e o examinador de Afonso foi o famoso Giambattista Vico, que interrogou e escutou com interesse o rapaz, nomeando-o bacharel e dando-lhe autorização para iniciar os estudos universitários. Quanto à escolha do curso a ser feito, quem decidiu foi o pai: estudaria direito que lhe asseguraria uma posição de destaque, entre os notáveis do reino. Em janeiro de 1713, após ter recebido a dispensa real por não ter ainda completado os 20 anos exigidos pela lei – tinha somente 17 anos incompletos –, foi declarado doutor em direito eclesiástico e civil com o máximo dos votos.3 Fizeram-lhe vestir a toga, longa que chegava aos pés, e lhe colocaram no dedo o anel doutoral. Em seguida, um ato religioso, onde se sentiu bem à vontade: o juramento de professar e ensinar a doutrina da Imaculada Conceição de Maria, uma verdade de fé nesse tempo ainda não definida como dogma. Enquanto não completou os 18 anos de idade não pôde exercer a advocacia, mas aproveitou esse tempo para aperfeiçoar seus estudos jurídicos e históricos. Em 1715 iniciou com muito sucesso a atividade forense, sem jamais perder uma causa e conquistando, em 1718, a nomeação de juiz do Regio Portulano de Nápoles, e, mais tarde, a nomeação de embaixador do vice-rei. Tudo ia de vento em popa, quando em 1723, perdeu uma causa im­ portante. Mais uma vez percebeu as cavilações dos advogados, que conseguem condenar quem tem razão, e vice-versa. A sua aversão à falsidade no fórum, revestida de justiça aparente, tornou-se tão visceral, que ele jurou em seu íntimo que jamais colocaria os pés no tribunal. Voltou definitivamente as costas ao mundo, e decidiu consagrar-se unicamente a Deus.

Sacerdote, mas em família Quando comunicou a decisão ao velho lobo-do-mar, que nele havia colocado todas as suas esperanças, foi verdadeiramente um Deus nos acuda. “Peço a Deus” – respondeu o pai – “que me tire ou que tire você deste mundo, porque eu não tenho mais vontade de te ver”. E dirigiu-se a todas as pessoas 3. Doctor in utroque jure, summo cum honore maximisque laudibus et admiratione”. Era este o maior elogio que a universidade poderia dar a um neodoutor.


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que tivessem alguma influência ou algum jeito de fazer o filho voltar atrás em sua decisão. Não conseguindo realizar o seu desejo, acabou aceitando com uma condição: seu filho podia tornar-se sacerdote, mas do clero secular, para assim permanecer em casa. Não era isso que Afonso desejava, mas era-lhe também impossível declarar guerra a seu pai. Logo iniciou os estudos teológicos sob a orientação do melhor mestre, Júlio Torni. Foram três anos preciosos, nos quais mergulhou de mente e de coração nos estudos de teologia. Em dogmática conheceu a fundo Tomás de Aquino; em moral foilhe colocado nas mãos o texto de François Genet, que tinha ainda sabor do rigorismo jansenista. Mais tarde, Afonso dirá, a este respeito, ter entendido que “a doutrina rígida não tinha senão poucos mestres e poucos discípulos, uns e outros entregues mais à especulação do que ao ministério do confessionário”. Para a Sagrada Escritura, ao invés, foram seus autores preferidos Maldonado, Roberto Belarmino, Cornélio a Lapide. O seu mais delicioso alimento depois da Bíblia, eram os santos padres e a vida dos santos. Gostava de repetir: “Os santos são o Evangelho vivido”. Leu as obras de santa Teresa de Ávila e de são João da Cruz, e ficou com elas tão impressionado, que as releu várias vezes, e citava-as continuamente em suas obras. Escolheu santa Teresa como sua segunda mãe, depois de Maria. Um outro santo que teve profunda influência sobre ele foi Francisco de Sales. Quando ainda era clérigo, fez parte da associação sacerdotal das Missões Apostólicas, um grupo de padres diocesanos da catedral de Nápoles, e foi escolhido como modelo de vida este santo tão próximo do coração napolitano. Nele Afonso encontrou um homem gentil, advogado, missionário e bispo, modelo para ser imitado por toda a vida; parecia que o tivesse precedido, para lhe dar o exemplo. Ordenou-se sacerdote com a idade de 30 anos e ainda dependendo economicamente da família, não havia recebido do pai a veste talar com a desculpa de que não havia dinheiro em casa, mas na verdade porque o pai não queria vê-lo vestido como um simples padre. Afonso não desanimou, conseguiu uma velha batina abandonada na rouparia dos pobres, deixada por algum padre que tivesse passado a melhor vida. Quando apareceu em casa assim vestido, o pai deu um urro, afastou-se e durante um ano inteiro não falou com ele. A mãe que havia compreendido a vocação do filho, servia de mediadora colocando-se como amortecedor entre os dois, mas o marido não concordava.


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No submundo de Nápoles Antes ainda de tornar-se padre Afonso, como outros nobres de Nápoles, visitava assiduamente os doentes e os mais pobres, mas vestido de cavaleiro e levando consigo um lacaio. Agora que era sacerdote, e não tinha ninguém de guarda-costas, podia sair livremente e entrar no submundo da cidade, onde habitavam os pescadores, comerciantes, artesãos, batedores de carteiras, contrabandistas, saltimbancos, crianças esfarrapadas e mulheres atarefadas em milhares de coisas. Um mundo incrível, um formigueiro humano, que apesar da miséria conseguia ainda sorrir. Afonso escolheu como seu campo predileto de apostolado aquele local que era considerado a escória do povo napolitano e, depois de estabelecer com esses pobres marginalizados da periferia uma relação de amizade profunda, ao som do Angelus no final da tarde, levava-os para uma pequena praça um pouco mais tranqüila e ali lhes falava de Deus. Pouco a pouco os seus discípulos aumentaram em número e aos seus marginalizados juntaram-se também alguns sacerdotes, igualmente desejosos de aprender a pôr em prática as palavras do Evangelho. Entre os leigos sobressaíam algumas pessoas, como Pedro Barbarese, um verdadeiro malandro de 26 anos, solteiro, professor dos meninos cantores de rua: tornou-se discípulo de Afonso, e agora recolhia a molecada da rua e lhes ensinava o catecismo; Lucas Nardone, expulso do exército, salvo da forca: depois de ter ouvido Afonso, este “cabresto dos condenados” – escreveu Tannoia – “tornou-se, em seguida, um funículo de caridade muito mais adaptado para atrair as pessoas a Jesus Cristo”. A lista poderia continuar sem fim: Afonso tinha os mais íntimos colaboradores entre os miserandos e marginalizados do submundo, e eles revelaram-se os melhores apóstolos daquele ambiente. Todas as noites, com palavras simples, falava-lhes a respeito de Jesus, do seu amor pelas pessoas, ilustrando uma página do Evangelho e encorajandoos a colocá-lo em prática. Depois, deixava que fizessem perguntas, ou que falassem a respeito de suas vidas. Ele mesmo contava coisas interessantes da própria vida, e dos santos, intercalando com cantos e orações, sem levantar muito a voz para não perturbar o silêncio público. Uma noite um artesão contou que, para fazer penitência, se alimentava somente de ervas cruas. Afonso interveio para moderar-lhe o zelo, dizendolhe que não podia imitar os santos da Tebaida, pois tinha necessidade de


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forças para trabalhar em serviços pesados, para conseguir o que dar de comer para a família. Um sacerdote ali presente acrescentou, em tom de brincadeira, que, quando houvesse oportunidade de comer quatro costeletas, não devia rejeitá-las. Essa última frase a respeito das costeletas difundiu-se por toda Nápoles, e Afonso foi acusado de promover uma seita de sibaritas, prontos a organizar orgias e rebeliões. O cardeal ficou sabendo e comunicou ao governador da capital. Um policial introduziu-se no grupo para descobrir talvez alguma conspiração contra o reino, mas não conseguiu compreender quase nada, e contou que havia coisas boas (aquelas que Afonso dizia) e coisas ruins (aqueles pobres esfarrapados que o escutavam). O governador ordenou uma captura geral, mas Afonso, tomando conhecimento do que ia acontecer, avisou os seus ouvintes a não saírem de suas casas até nova ordem. Todavia alguns que vinham longe demais, não tendo recebido a comunicação em tempo, chegaram pontualmente ao encontro daquela noite e, ao invés de Afonso, encontraram os policiais que os detiveram e os levaram para o cárcere. Na manhã seguinte, interrogados diante do juiz eclesiástico sobre a conspiração que estavam articulando todas as noites na praça Stella, unani­ memente responderam que sendo pobres ignorantes iam ali para instruir-se com padre Afonso sobre os deveres dos bons cristãos. O juiz, sendo pessoa de bom senso, viu tudo se esclarecer prontamente, mas na Nápoles das pessoas bem pensantes já se havia criado a psicose das seitas turbulentas, e o cardeal Pignatelli, mesmo apreciando o bem que Afonso fazia aos pobres, achou mais prudente proibir essas reuniões noturnas nas praças. Decisão providencial. Afonso autorizou os seus vários discípulos, tais como Barbarese e Nardone, a reunirem o próprio grupo nas suas casas. Surgiam dessa forma muitas pequenas comunidades que não despertavam a atenção da polícia. Quando o cardeal ficou sabendo, agradeceu a Deus e abriu para eles as portas das igrejas e capelas. Desde então esses encontros, mantidos por leigos e de vez em quando visitados por Afonso, foram chamados “capelas noturnas”. Aprendiam aí a viver o Evangelho muito melhor que em todos os nobres salões napolitanos. O encontrarem-se nas igrejinhas domésticas do próprio bairro, ao som do Angelus, permitiu a participação também das mulheres e crianças: era a


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pequena comunidade cristã que se reunia para escutar a Palavra, para orar e para resolver juntos os próprios problemas. No momento oportuno, vinha também o sacerdote para as confissões e pela manhã, bem cedo, a celebração eucarística. “As capelas noturnas foram movimento de educação de base, de melhoria social e moral: ajuda mútua e partilha de bens entre os pobres; economia nos gastos com jogos, comilanças, bebedeiras e devassidão, onde antes se gastava o pouco dinheiro da casa; nova consciência profissional em milhares de empregados domésticos, artesãos, operários e comerciantes; o trabalho em vez de roubos; oração do rosário e opúsculos de meditação sobre as máximas eternas ou a paixão de Jesus Cristo que substituíam os punhais e armas entregues aos confessores”.

“Mas eu amo o Amor” Afonso não se interessava somente pelos pobres, mas a sua capacidade de apresentar o Evangelho em linguagem compreensível a todos, com uma força e convicção não comuns, fez dele um pregador procurado por toda Nápoles. A tal ministério, seguia o ininterrupto ministério das confissões. Num tempo em que o rigorismo ditava normas, em impor duras penitências aos pecadores, e em negar-lhes com freqüência a absolvição, Afonso pôde dizer que em vida jamais tinha despedido alguma pessoa sem lhe dar o perdão de Deus. Nesse ministério passava muitas horas do dia, e também da noite. A fama do jovem pregador chegou aos ouvidos do pai, mas ele estava inflexível na sua opinião, até que numa noite, retornando para casa entrou na igreja do Espírito Santo, ouviu a pregação do filho. Comovido até as lágrimas, compreendeu, num piscar de olhos, tudo o que não tinha conseguido compreender em todos aqueles anos. Pegou um coche e foi para casa esperar o retorno de Afonso. O encontro foi comovente. Abraçou-o (não o fazia há muito tempo!) e lhe disse entre soluços: “Meu filho, sou obrigado a reconhecer: tu me fizeste esta noite conhecer Deus. Filho eu te abençôo e mil vezes te bendigo, por teres escolhido um estado de vida tão santo, e querido por Deus!”. As orações da mãe e o amor paciente do filho tinham conseguido o milagre. Para Afonso tinha chegada, finalmente, a hora de cortar a última amarra. Deixou o palácio paterno e foi morar num pobre quarto colocado à sua disposição em um colégio. Enquanto pensava que poderia regozijar-se agora, distante de todo egoísmo mundano, começou para ele um período de terríveis provações interiores com


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escrúpulos a não acabar mais. O que o salvava era a sua obediência incondicionada ao diretor espiritual, e a leitura de são Francisco de Sales e de são Bernardo. O primeiro havia se sentido “o maldito dos malditos”; do outro agradava-lhe imensamente uma frase que são Bernardo atribui à alma amante: “O escravo teme o chicote, o servo alegra-se antecipadamente pelo salário, o filho honra o pai. Mas eu que sou esposa, gosto de amar, gosto de ser amada, amo o Amor!”.

A escolha dos últimos Enfraqueceu-se também a saúde física e foi forçado a deixar o trabalho e retirar-se para um lugar onde repouso, boa alimentação e ar puro poderiam revigorá-lo. O lugar escolhido foi o mosteiro de Santa Maria dei Monti perto de Scala, uma cidadezinha acima de Amalfi, que com Ravello constituía um verdadeiro pedaço de paraíso. Ali Afonso, enquanto renovava um mosteiro de irmãs, que depois se chamaram redentoristas, compreendeu com clareza que Deus o chamava para fundar uma nova congregação de missionárias que se dedicassem à evangelização dos mais pobres entre os pobres, como pastores e camponeses que encontravam naqueles lugares. A primeira experiência com alguns sacerdotes se revelou desastrosa, porque cada um tinha as próprias idéias sobre a nova comunidade e nenhum reconhecia em Afonso o carisma de fundador. Depois de várias peripécias, ele já não se dirigia mais aos padres habituados ao individualismo, aos privilégios e à comodidade, mas aos jovens. E iniciou-se assim um período florescente para a nascente congregação. Já era hora de ser aprovada, mas tanto a autoridade religiosa quanto a autoridade civil haviam decidido não permitir o nascimento de novas ordens e a construção de novos conventos. Já os havia muitos para alimentar a preguiça dos filhos da nobreza, e aceitavam os delinqüentes que, para escaparem da pena de morte, se tornavam frades, mas sobretudo queriam evitar que aumentasse o patrimônio dos religiosos isentos do pagamento dos impostos. Afonso convenceu-se de que as obras de Deus são autênticas se crescem sob o sinal da cruz. Não só não perdeu o ânimo, acolheu imediatamente uma oportunidade que lhe foi oferecida: alguém havia falado da sua obra ao papa Bento XIV, que lhe aprovou a regra em 25 de fevereiro de 1749. Se naquele período não havia conseguido obter a aprovação régia, ao menos havia impedido que o escolhessem para bispo de Palermo. Quando o rei


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soube da sua recusa, lamentou-se dizendo que os padres bons que ele propunha ao Papa recusavam-se, enquanto que outros menos dignos conseguiam se impor. Afonso respondeu que pessoas idôneas a tornarem-se bispos existem muitas, enquanto que não havia ninguém disposto a evangelizar os pobres nas periferias do reino. Já anteriormente tinha escapado de um perigo semelhante. De fato seu pai, talvez relembrando a profecia de Francesco de Gerolimo, havia conseguido colocá-lo entre os candidatos à mitra. Afonso escreveu ao pai: “Não me faleis mais do episcopado, se não quiserdes causar-me profundo desgosto: ao passo que, mesmo que tivésseis conseguido, estou pronto a renunciar também ao arcebispado de Nápoles para atender a esta grande obra à qual me chamou Jesus Cristo; se eu abandonar esta obra, sentir-me-ei desde já condenado, porque terei abandonado o chamado que Deus me fez com tamanha evidência. Daqui que vos peço para que não mais me faleis disso, nem comigo nem com os outros; tanto mais que no nosso instituto temos por regra o dever de renunciar a bispados e a todas as dignidades”.

O escritor Um contemporâneo escreveu que Afonso “nasceu para o bem de todos, com a sua vida, com o seu agir e com a sua pena”. Afonso escreveu muito, tendo sempre como objetivo as necessidades concretas das pessoas. Ele não tinha só uma capacidade extraordinária de leitura, mas também o dom de saber desfazer-se das coisas inúteis e de unir e harmonizar tudo quanto provinha da sabedoria. A Sagrada Escritura, os escritos dos santos, e a capacidade única de perceber os sinais dos tempos no pensamento dos contemporâneos, fizeram de Afonso um mestre incomparável, que logo foi reconhecido pela Igreja, como doutor. Entre os seus 111 escritos, a obra que de todas o tornou mais famoso foi a Teologia Moral, em quatro volumes. Começou a escrevê-la ao preparar as lições para os seus clérigos e aperfeiçoou-a através de muito e profundo estudo: leu com empenho tudo o que já tinha sido escrito, seja pelos rigoristas seja pelos laxistas, mas deixando-se guiar pelo Espírito Santo, escreveu a sua moral, aquela que em consciência compreendia que estava concorde com a vontade de Deus, que não quer atormentar o homem fraco e pecador, mas salvá-lo e encaminhá-lo para a santidade. Teve a coragem de afirmar que a finalidade primária do matrimônio não era a procriação, mas “o dom mútuo dos corpos e o vínculo indissolúvel”, que as crianças nascidas sem batismo


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não podiam sofrer na outra vida, e que – coisa inaudita naqueles tempos – a liberdade religiosa é sacrossanta.

Bispo de Santa Ágata dei Goti Na manhã de 9 de março de 1762 estava tranqüilo em sua cela, quando o enviado do núncio apostólico entrou para anunciar-lhe a sua eleição para o episcopado. Depois de um primeiro momento aturdido, sem perda de tempo, escreveu imediatamente a carta de renúncia, explicando ao Papa que não podia aceitar porque era velho, enxergava mal e ouvia pouco, era um tanto manco e não podia visitar a diocese como era dever do bispo e, “tendo feito voto de renunciar a toda dignidade eclesiástica” segundo as regras aprovadas pela Sé apostólica, não queria escandalizar os seus filhos nestes últimos anos de sua vida. O Papa, porém, confirmou a nomeação, Afonso aceitou e adoeceu. De Nápoles foi-lhe enviado um dos melhores médicos da capitã, mas o doente piorou e deram-lhe o viático. Ele, na sua argúcia, comentava: “Neste quarto não se fale mais em episcopado, mas somente do paraíso”. O Papa, tomando conhecimento do que estava acontecendo, respondeu que se morresse lhe mandava a bênção apostólica, mas se se curasse aguardava-o em Roma para a ordenação. Não tendo sido abertas as portas do paraíso, Afonso, assim que se sentiu curado, tomou primeiro a estrada para Nápoles e depois a que conduzia a Roma, mas para sua surpresa não encontrou o Papa que tinha se retirado para descansar em Civitavecchia. Não perdeu tempo, e partiu para Loreto. Na sua Novena do Natal havia escrito: “Ó bem-aventurada pequena casa de Nazaré, eu te saúdo e te adoro. Virá um tempo em que serás visitada pelos primeiros grandes da terra; encontrando-se os peregrinos dentro de ti, não se saciarão de chorar pela ternura de pensar que entre tuas paredes passou quase toda a sua vida o rei do paraíso... Ó que maravilha! Ver um Deus que varre e que serve como empregado...”. Retornou a Roma, e logo foi encontrar-se com o Papa, pedindo-lhe com lágrimas nos olhos para ser dispensado. Inutilmente, antes o Papa quis encontrá-lo mais vezes, para aconselhar-se com ele, a respeito de negócios importantes e confidenciou a um cardeal: “Quando Liguori morrer, teremos mais um santo na Igreja de Jesus Cristo”. Depois de três meses retornava por pouco tempo a Pagani, entre os seus que, nesse meio tempo, democraticamente e unanimemente, haviam


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apresentado ao Papa o pedido de conservá-lo no encargo de reitor-mor para toda a vida com a faculdade de escolher um vigário geral para governar a congregação. O pedido não desagradou ao pontífice que de boa mente deu o seu consentimento. Em Santa Ágata dei Goti, onde anos atrás havia pregado as missões, foi recebido como um santo. Na procissão de entrada, os cônegos perceberam que não havia o chapéu enfeitado e correram a pegá-lo na tumba do predecessor, tirando-lhe o pó. No primeiro discurso surpreendeu a todos, quando disse que veio não para mandar, mas para servir, e proclamou abertas na cidade as santas missões: pela manhã para o clero, e à noite para todo o povo. Naquela noite no palácio episcopal, os grandes do lugar fizeram-no provar os acepipes mais requintados. Ele ordenou ao seu empregado que desse aos pobres e que fosse à cidade comprar alguma coisa para o jantar. Outra surpresa foi quando ele viu em seu quarto uma cama magnífica, doada pelos cônegos. Com a ajuda do redentorista que o acompanhava se desfez dela, e acabou se deitando em um enxergão sem palha, dormindo sobre a madeira. Na manhã seguinte, fez uma caminhada e, usando de sua autoridade, destinou os quartos mais confortáveis ao vigário geral, ao secretário, e com uma desculpa reservou para si o quarto mais pobre; em seguida, desceu para o jardim e, vendo-o sem árvores e sem flores, pediu para que fossem plantados laranjeiras, limoeiros e tangerineiras, apesar de estar fora da estação. O novo bispo causava admiração todos os dias pela simplicidade com a qual acolhia a todos, sem distinção de classe, e sem criadagem. Logo, conquistou a estima e o respeito do clero e, tendo encontrado o seminário em más condições, levou para o palácio os jovens que verdadeiramente mostravam intenção de servir a Deus e, com boas maneiras, despediu os outros cada qual para a casa dos familiares. Muitas vezes visitou as paróquias da sua diocese montanhosa, a cada três anos realizava as missões, cuidou para que o seminário preparasse bem os sacerdotes, enquanto que o clero existente era atualizado, e havia catequese até mesmo nos povoados mais distantes. Interessou-se também pelos religiosos e religiosas, ajudando os superiores a demitirem quem não tinha vocação. Fundou um mosteiro de redentoristas que cuidou de maneira especial. Para Santa Ágata dei Goti, foi sem dúvida o período espiritualmente mais florescente. O trabalho apostólico com as relativas viagens, o cuidado que precisava ter com a congregação, da qual foi sempre o responsável último, a atividade de


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escritor à qual não podia renunciar e, enfim, o clima frio da cidade influíram profundamente na sua saúde frágil, e várias vezes levaram-no quase à morte. Diversas vezes escreveu ao Papa, pedindo-lhe que aceitasse sua renúncia, mas a resposta foi sempre negativa. Clemente XIII, dizia: “Basta a tua sombra para ser útil a toda a diocese” e, fazendo referência ao livro Verdade da Fé, que Afonso havia dedicado ao pontífice, lhe comunicava: Amamos-te muitíssimo, venerável irmão, pois mesmo que não estejas contente em ser útil à tua igreja, não suportas que sejam desperdiçadas as poucas migalhas de tempo que restam aos teus trabalhos pastorais, mas os consumes todos em trabalhos semelhantes, cuja utilidade não está circunscrita aos confins da tua diocese, mas se estende à Igreja Universal.

Afonso não esperou o Vaticano II para levar junto a Pedro a respon­ sabilidade de toda a Igreja, como ele mesmo havia escrito nas Reflexões úteis para os bispos.

A última grande prova Afonso sofreu muito pela supressão dos jesuítas e, por ocasião da morte de Clemente XIV, foi solicitado por um cardeal a escrever uma carta indicando as qualidades do futuro Papa. A carta foi lida no conclave, mas Pio VI não era certamente o homem descrito por Afonso. Pelo menos, conseguiu por intermédio dele ficar livre do governo da diocese, assim pôde retornar a Pagani e permanecer junto dos seus missionários. De fato, na corte de Nápoles começaram as perseguições, também con­tra a jovem congregação. Os seus inimigos não conseguiram suprimi-la, mas obti­ veram a cisão em duas partes: uma nos Estados Pontifícios e outra no reino de Nápoles. Foram anos dolorosíssimos, porque a desunião se estabelecera até mesmo entre os seus, e ele se sentia culpado, e repetia: “Ah! Senhor, não castigueis aos inocentes, mas castigai quem tem a culpa disso, porque estraguei a vossa obra”. Nos últimos anos, quase completamente cego e surdo, muito encurvado pela artrite, Afonso experimentou também o abandono de Deus. Voltandose para o crucifixo repetia: “Senhor, não me mandeis ao inferno, porque no inferno não se ama”. Pagava assim a reunificação da congregação e a sua expansão primeiro na Europa, por ação sobretudo do austríaco Clemente Hofbauer, que precisamente naqueles anos entrava para os redentoristas e, depois, por todo o mundo.


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Afonso faleceu na noite de 1º de agosto de 1787, ao som do Angelus. Tinha quase 91 anos. Beatificado em 1816, declarado santo em 1839, e doutor da Igreja em 1871, foi declarado pelo papa Paceli [Pio XII] como padroeiro de todos os confessores e moralistas. Diante deste reconhecimento, é bem possível que no céu tenha conti­ nuado a sorrir, bastante feliz por ver que sobre a terra, no lugar do gelo jan­se­ nista, ardia o fogo do amor por ele aceso em tantos corações.

2 de agosto Santo Eusébio de Vercelli bispo (283?-371) “Aproveito recomendar-vos insistentemente que guardeis com todo cuidado a vossa fé, mantendo a concórdia, sendo assíduos à oração, recordando-vos sempre de nós, para que o Senhor se digne dar liberdade à sua Igreja, agora oprimida sobre toda a terra, e para que nós, que somos perseguidos, possamos readquirir a liberdade e alegrar-nos convosco.” 4

Eram estas as preocupações do santo bispo de Vercelli durante o terrível exílio: conservar a pureza da fé, assegurar a concórdia dos cristãos e obter para a Igreja a plena liberdade que a livrasse das intromissões imperiais. Para conseguir tudo isso, havia colocado em risco a própria vida. Chamou-se Eusébio, no dia do batismo, por consideração a seu pai que possuía o mesmo nome. Provinha da Sardenha, onde nasceu no final do século III, ou início do IV, mas nada sabemos a respeito de sua família. De sua amada ilha trouxe consigo uma vontade sólida, mas não obstinada, e uma ternura afetuosa que nunca se transformou em sentimentalismo. Antes, o cristianismo transformou seus dotes numa fidelidade absoluta a Deus, e um terno amor para com o próximo, até o martírio. A sua família deveria ser rica, se podia permitir que ele fosse para Roma à procura dos estudos e fortuna, mas na cidade eterna ele encontrou algo de mais precioso, entrou para a escola cristã que, além de preparar os catecúmenos para o batismo, instruía os cristãos mais interessados no aprofundamento da verdadeira fé. 4. CCL 9, 105.


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Uma voz bela Teve como colega e amigo um jovem romano, também ele muito inteligente, Libério, com o qual teve uma grande amizade, não por interesses humanos, mas pelo desejo comum de viver com autenticidade o evangelho. Ambos conheceram o bispo Atanásio de Alexandria que, expulso da sua sede pelos arianos, permaneceu muito tempo em Roma, levando a todos o conhecimento da experiência extraordinária de Antão, o pai dos monges. Eusébio e Libério foram ordenados leitores por causa do seu conhecimento e fé, pela vida celibatária exemplar e pela bela voz que possuíam. Conta-se que, quando Eusébio lia as Sagradas Escrituras, era um imenso prazer ouvi-lo, pois todos compreendiam, até mesmo os idosos que não ouviam tão bem. Em 342, o papa Júlio I enviou-o à corte de Constante, imperador do Ocidente, como membro da delegação papal para tratar, junto com são Protásio bispo de Milão, da criação da diocese de Vercelli. Obtido o consentimento imperial, os mensageiros do papa foram para Vercelli para levar a boa notícia à comunidade cristã e para preparar a eleição do primeiro bispo. Os cidadãos de Vercelli logo foram conquistados pela arte oratória de Eusébio, porque não só falava bem e com voz clara e agradável, mas o que ele dizia brotava do coração: parecia um dos santos apóstolos. Sem perder tempo elegeram-no bispo por unanimidade. Para Eusébio, surpresa e espanto! Não era essa a finalidade da sua missão e rapidamente se dirigiu a Roma, para dizer ao Papa que ele nessa atividade não se sentia apto a realizá-la. O papa Júlio I, ao invés, ficou muito feliz: era uma ventura poder colocar como guia dessa grande diocese um homem de confiança. Ordenou-o bispo e enviou-o novamente a Vercelli.

Bispo, missionário entre os camponeses e os montanheses A diocese era imensa: ao norte e ao oeste confinava com os Alpes, a leste com a zona de Milão e Pavia, e ao sul entrava Ligúria adentro. O novo bispo havia crescido em Roma, em uma comunidade eminentemente citadina e cosmopolita e agora se encontrava missionando em uma região povoada por camponeses e por montanheses onde, à exceção de Vercelli, continuavam bem enraizadas as tradições pagãs dos antepassados. Ser bispo ali não era nada fácil, porque os habitantes das montanhas e dos campos escutavam e diziam facilmente que sim, mas depois continuavam


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a viver como antes. Se, por exemplo, chegava a primavera e, segundo a tradição deles, era preciso fazer um sacrifício propiciatório aos deuses para obter uma boa colheita, eles não pensavam duas vezes, mesmo que no batismo tivessem prometido que não mais iriam adorar outros deuses. O mesmo acontecia, pois, quando se aproximava o inverno. Havia o costume entre os montanheses de sacrificar aos espíritos dos penedos errantes para não serem arrastados pelas avalanches. Quem podia eximir-se dessa prática de tantos séculos? Como evangelizar em tal ambiente? Era suficiente correr daqui para acolá pregando e batizando, se depois tudo permanecia como antes? Eusébio pensou longamente, consultou, observou bem as práticas religiosas do seu povo ainda pagão, e depois juntamente com os colaboradores tomou duas decisões históricas. Hoje diríamos que ele estabeleceu o plano pastoral para a evangelização da sua diocese, acertando bem o alvo.

O cenóbio dos clérigos A primeira inovação pastoral foi a criação de um cenóbio de clérigos. Já em Roma, Eusébio tinha intuído o valor do carisma monástico: uma autêntica forma de vida evangélica, muito adequada para manter viva a genuína experiência apostólica em tempos de relaxamento geral, e havia procurado imitá-la transferindo os valores para a sua vida cotidiana, sem se retirar para um lugar deserto por causa dos afazeres que tinha na Igreja. Nisso servia-lhe de exemplo santo Atanásio, grande admirador de Antão, sem se tornar um eremita. Iniciou essa experiência com um grupo de presbíteros. No início eram poucos, porque só podiam participar os presbíteros e os diáconos celibatários, mas depois a comunidade tornou-se cada vez mais numerosa, porque foram a ela admitidos os jovens que ele considerava idôneos ao ministério ordenado e que mostravam interesse por este estilo evangélico de vida. Assim santo Ambrósio descreve esta experiência: “Este santo bispo foi o primeiro que, no Ocidente, soube juntar bem a vida eclesiástica e a vida monástica. Nesta santa Igreja, ele tornou monges aqueles que ordenou sacerdotes e fundiu juntamente o exercício das funções eclesiásticas com as observâncias das austeridades religiosas; assim nos mesmos homens se admiram a renúncia monástica e o zelo pelo ministério; considerando a


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devoção destes clérigos, vós podeis experimentar a alegria de contemplar a mesma ordem dos anjos”.5 E mais adiante acrescenta: “É singularmente meritório para um bispo acostumar os próprios jovens clérigos à prática da renúncia e às regras da perfeição; e Santo Eusébio, mesmo estando em uma cidade, conseguiu ter seus clérigos separados do mundo”.6 Estavam separados do mundo no sentido de que não viviam atarefados em procurar ganhar dinheiro, ou correr atrás das vaidades da terra, mas se dedicavam inteiramente à oração, ao estudo da palavra de Deus e à evangelização do povo. Desta comunidade, que continuou mesmo depois da morte de Eusébio, saíram os melhores pastores, não só para as dioceses do Piemonte, mas também para as regiões vizinhas como a Ligúria, Veneza, Emília e, por fim para a distante sede patriarcal de Antioquia. Era tal a fama de santidade e competência do cenóbio de Vercelli que, quando em uma cidade o bispo morria, freqüentemente uma delegação dessa mesma diocese pedia para bispo um dos presbíteros de Eusébio. Nesta escola de vida se formaram personalidades como Limênio e santo Honorato, sucessores de Eusébio em Vercelli, são Gaudêncio, o primeiro bispo de Novara, são Máximo, bispo de Turim, e muitos outros.

Os presbíteros e a vida comum Quando dispunha de padres bem preparados, Eusébio executava o segundo ponto do plano pastoral, estabelecendo comunidades presbiterais nos lugares mais importantes do seu território diocesano. Os presbíteros, estabelecendo-se no lugar, com o exemplo da sua vida evangélica e com a pregação podiam mais facilmente atuar visando à conversão dos camponeses e dos montanheses, substituindo pouco a pouco as práticas cultuais pagãs pelas cristãs. A inteligente obra de inculturação deu frutos e, em alguns lugares onde ofereciam sacrifícios aos espíritos dos penedos errantes, começou-se a oferecer orações ao verdadeiro Deus por intercessão da sua mãe Maria, e nos lugares em que antes surgiam os altares pagãos, se edificava o templo cristão. Assim surgiu o famoso santuário mariano de Oropa. 5. Ambrósio. Epist. LXIII, 66, 1207. 6. Ibid.


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O exemplo dos clérigos de vida comum faz nascer em Vercelli também um convento feminino, no qual a superiora foi santa Eusébia, talvez irmã do bispo. Neste viviam a vida comum as virgens da comunidade.

A via crucis no Oriente Enquanto na sua Igreja a fé se difundia e um número sempre maior de jovens de ambos os sexos pedia para se consagrar inteiramente a Deus, a heresia ariana difundia-se cada vez mais nos territórios do império, com o favor do imperador Constâncio, que em 353 reuniu o concílio em Arles, impondo aos bispos a condenação de Atanásio de Alexandria. O papa Libério não aprovou o concílio e enviou uma delegação ao imperador residente em Milão, para que fosse convocado um novo concílio, onde os bispos pudessem tratar das verdades de fé com plena liberdade. Entre os mensageiros do papa estavam também Lucífero de Cagliari e Eusébio. Eles obtiveram a convocação do concílio de Milão, mas com a presença do imperador. Eusébio, prevendo que as coisas terminariam como em Arles, acabou não se apresentando a ele. Era tal a estima que ele gozava que, sem ele, todas as decisões foram consideradas sem valor. Então, o papa lhe escreveu, pedindo que fosse para sustentar a verdadeira fé; pediu ajuda a Lucífero, que se sentia como um pobre cordeiro no meio de lobos; reclamaram-no os bispos arianos na esperança de dobrá-lo às suas vontades; e o imperador em pessoa escreveulhe uma carta. Nela havia esta imposição: “Damos-te esta advertência de não demorares a unir-te ao consenso dos teus irmãos”. Eusébio rapidamente dirigiu-se a Milão, e respondeu pessoalmente ao imperador: “Entendi que era preciso vir às pressas a Milão. Quando estiver em tua presença, tudo o que for justo e que for agradável ao Senhor eu prometo fazer”.7 Na abertura da sessão, enquanto os bispos estavam reunidos na ábside da basílica com o imperador no trono e o povo reunido numeroso na nave central, Eusébio pediu a palavra e convidou todos os bispos a assinar o credo de Nicéia, “porque” – acrescentou – “soube que entre nós infiltraram-se hereges”. Os bispos católicos rapidamente se puseram em fila com o chefe são Dionísio de Milão e, enquanto este fazia a sua assinatura, o imperador 7. Cit. in: Bibliotheca sanctorum V. Roma, Città Nuova Editrice, 1991, 265.


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em pessoa levantou-se do trono e arrancou-lhe a folha das mãos. Entre os protestos dos bispos, e os gritos da multidão, o imperador ordenou que fosse dissolvida a assembléia e a convocação para que fosse feita no palácio imperial e sem a presença do povo. No palácio, o imperador impôs a sua vontade, ameaçando exilar quem não lhe obedecesse. Foi reafirmada a fé ariana, que nega a divindade de Cristo, e Atanásio foi condenado novamente. Os três confessores, que se recusaram a submeter-se à vontade do imperador, foram condenados ao exílio: Dionísio foi para Armênia, onde terminou os seus dias; Lucífero foi para a Capadócia, e Eusébio para Citópolis na Palestina. Eusébio foi entregue ao bispo ariano do lugar, um certo Patrófilo, que era a negação de seu nome. Este atormentou o homem de Deus com uma crueldade digna de um tirano, até reduzi-lo praticamente ao fim da vida, na esperança de arrancar-lhe uma declaração escrita, com a qual causaria boa impressão ao seu patrão, mas o bispo de caráter rígido jamais deu um mínimo sinal de consentimento.

O amor supera as distâncias Em meio aos tormentos dos perseguidores que não lhe davam liberdade e privavam-no até do alimento necessário, Eusébio teve duas grandes alegrias. A primeira era de poder viver o carisma de Antão, assim como o havia descrito Atanásio, testemunhando o amor ao evangelho na mais extrema pobreza. A segunda era, o relacionamento sempre vivo com os filhos espirituais. Eles não o perderam jamais de vista e fizeram de tudo para pô-lo a par sobre a vida cristã que florescia entre eles, sobre a fidelidade à verdadeira fé pelo que não aceitaram jamais um bispo ariano. Além disso, encontravam sempre um modo de fazer chegar até ele secretamente não só cartas, mas também ajudas materiais. Quando o exílio se prolongou, ousaram por fim enviar pessoalmente a Citópolis o diácono Siro e o exorcista Vitorino. Eusébio ao redigir a carta de resposta – que levada a Vercelli como relíquia, foi lida e relida em todas as comunidades da diocese – não conseguiu esconder os sentimentos do seu coração de carne. Escrevia: As lágrimas se misturavam com a minha alegria; o vivo desejo de ler era impedido pelo pranto. Fiquei neste estado alguns dias, nos quais me parecia que eu estava falando convosco e conseguia esquecer os sofrimentos passados. Sentia-me como que envolvido por todas as partes por recordações consoladoras que me faziam reviver


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a vossa fé, o vosso afeto, os frutos da vossa caridade, e assim me parecia que eu não estava mais no exílio, mas encontrar-me quase que repentinamente entre vós. Irmãos, estou muito satisfeito pela vossa fé e me alegro pela salvação que ela trouxe a vós todos. Gozo os frutos produzidos por vós, que dispensastes aos próximos e aos distantes. Sois verdadeiramente como uma árvore sabiamente enxertada que, por causa da sua produtividade, escapa do machado e da fogueira. Nós também queremos nos unir a vós, não só como uma simples solidariedade humana, mas oferecendo a nossa própria vida pela vossa salvação. Quero que saibais que custa redigir esta carta, orando continuamente a Deus para que entretenha, pelo menos por algum tempo os vigilantes. Queríamos que, quanto ao que se refere à nossa pessoa, o diácono vos levasse este bilhete de saudação, suficientemente modesto, mas sempre preferível às informações desagradáveis. 8

É possível que este relacionamento intenso com os seus tenha sido descoberto pelos vigilantes, e o imperador, vendo a inaptidão de Patrófilo, resolveu fazer o prisioneiro mudar de ares, enviando-o primeiramente para a Capadócia e depois para a Tebaida. Sem saber, o imperador lhe dava oportunidade de estabelecer contatos preciosos com as diversas Igrejas do Oriente e conhecer em profundidade o monaquismo.

Homem de paz Em 361, com a morte de Constâncio e a ascensão ao trono imperial de Juliano, o Apóstata, foi permitido a todos os bispos no exílio de retornar às suas sedes. Eusébio aproveitou para ir até Alexandria, para se encontrar com Atanásio. Teve contatos também com Lucífero de Cagliari. Os três confessores organizaram um concílio em Alexandria, para estudar o modo de levar a paz a todas as comunidades cristãs, confirmando-as na fé católica. Só em Antioquia as coisas não iam muito bem, pelo zelo demasiado de Lucífero e porque a divisão entre as duas facções tinha se tornado particularmente profunda. Depois, Eusébio empreendeu o retorno passando pelas comunidades da Capadócia e da Macedônia; deteve-se em Sárdica e depois em Esmirna, pregando a verdadeira fé e levando a todos os lugares a paz. Chegou a Roma na primavera de 363, para notificar ao amigo, o papa Libério. 8. CCL 9, 104-109, passim.


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Finalmente, chegou a Vercelli para junto dos seus. Foi grande a festa, e cada cidade da diocese queria revê-lo e ouvi-lo. O povo foi ao seu encontro cantando: “Seja bendito o Senhor nosso Deus, que te restituiu à nossa Igreja. Asseguramos-te que conservamos íntegro o patrimônio da fé, como tu no-lo ensinaste de viva voz, e confirmado com as cartas do exílio”.9 Não só Vercelli, mas toda a península exultava. São Jerônimo escreveu que no seu retorno “a Itália livrou-se das suas vestes de luto”. Milão, não podendo reaver o seu bispo Dionísio, morto mártir, quis a presença de Eusébio e de Hilário de Poitiers na esperança de livrar-se do bispo ariano e de ter um bispo católico. Os dois aceitaram o convite, mas interveio o imperador do Ocidente, Valentiniano, que ordenou a eles que deixassem imediatamente a cidade. Eusébio não desistiu do empreendimento e confiou o encargo a um discípulo seu. Mesmo entre os achaques causados pelos sofrimentos padecidos e pela idade avançada, por alguns anos conseguiu a paz e projetou a criação de novas dioceses como a de Tortona e a de Turim, porque as comunidades cristãs já estavam bem estruturadas nessas cidades e nos arredores. Morreu a 1º de agosto de 371, contemplando o fervor de seus filhos, que logo o veneraram como mártir por causa dos sofrimentos do exílio. Na atualidade, todo o episcopado do Piemonte escolheu-o como modelo e padroeiro.

2 de agosto São Pedro Julião Eymard sacerdote, fundador dos sacramentinos (1811-1868) “A eucaristia é vida para a pessoa e para a sociedade humana, como o sol o é para os corpos e para todo o globo terrestre. Sem o sol, a terra é estéril. O sol a alegra, a adorna e a enriquece. Diante destes fatos maravilhosos não devemos ficar admirados que os pagãos o tenham adorado como se fosse um deus. O astro do dia de fato obedece e se submete ao sumo Sol, o Verbo divino, Jesus Cristo, que ilumina todos os homens que vêm ao mundo. Ele, de fato, através da eucaristia, sacramento da vida, age no íntimo modelando todas as famílias e nações.” 10 9. Cit. in: Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 26. 10. Eymard, P. J. La présence réelle / 1. Paris, 1950, p. 307.


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Eymard encontrou o sentido profundo da Eucaristia. Cristo não a instituiu para satisfazer a nossa devoção pessoal, mas para fazer da humanidade uma só família ou, como dizem os Atos dos Apóstolos, “um só coração e uma só alma”. “A comunidade cristã” – continua o santo – “é uma família, e o vínculo que une os membros é a Eucaristia. Jesus é o pai que prepara a mesa da família. A fraternidade cristã foi promulgada na Ceia junto com a paternidade de Cristo; ele chama os apóstolos de filhinhos, isto é, meus filhinhos, e pede a eles que se amem uns aos outros, como ele os amou”.11

A preparação Pedro Julião Eymard nasceu aos 4 de fevereiro de 1811, em La Mure, diocese de Grenoble, França, de uma família que produzia óleo de nozes. Na pia batismal foi sua madrinha Maria Ana, uma sua irmã que com muito carinho cuidou de sua educação cristã. Um dia escreveu-lhe: “Devo muito a ti, e os meus sentimentos de reconhecimento para contigo continuarão até mesmo no céu, sobretudo, por me haveres mantido distante das ocasiões do mal na minha juventude”.12 Quando pela primeira vez Eymard recebeu a Eucaristia, teve com Jesus um relacionamento profundo, como se pode deduzir de um escrito seu: “A comunhão eucarística nos revela, mediante a impressão mais que pelo raciocínio, tudo o que é nosso Senhor. É aí que nós temos com ele um relacionamento mais íntimo, relacionamentos que produzem o conhecimento verdadeiro e profundo de tudo aquilo que ele é. É aqui que Jesus se manifesta do modo mais completo. A fé é luz; a comunhão é luz e sentimento. A alma humilde e recolhida sente no seu íntimo um certo estremecimento causado pela presença de Jesus Cristo... Ela prova um bem-estar, uma agilidade, uma suavidade, uma força de união, de adesão a Deus, que não vem de si mesma; ela sente Jesus em todo o seu ser”.13 Naquela ocasião, ele disse ao Mestre: “Serei sacerdote, eu te prometo”. Encontrou, porém, um grande obstáculo. Seu pai em cinco anos havia perdido 11. Ibid., p. 308. 12. Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / VIII. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 18. 13. Goffi, T. Storia della spiritualità / 7. La spiritualità dell’Ottocento. Bologna, EDB, 1989, p. 125.


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sete filhos e não queria que ele o abandonasse para entrar no seminário. Por fim o vice-pároco um dia o repreendeu: “És um orgulhoso, porque queres tornarte padre contra a vontade de teu pai e sem estares certo de teres vocação”. Na realidade sobre a vocação não havia dúvida, também porque um santo padre, durante uma confissão lhe havia dito: “Tu não estás ainda no lugar em que Deus te quer; deves tornar-te sacerdote”. Não podendo freqüentar o seminário, comprou uma gramática latina e estudou-a por conta própria por três anos, depois conseguiu freqüentar por um ano a escola da cidade, e por mais um ano foi instruído pelo capelão do hospital. Durante uma missão, o superior dos padres Oblatos de Maria Ima­ culada convenceu o pai a deixar entrar o jovem Pedro Julião para o novi­ ciado em Marseille. Grande alegria, mas que durou pouco, pois depois de seis meses precisou retornar para casa. Um forte esgotamento quase o levou à morte. Enquanto os sinos da paróquia, segundo o costume do tempo, anunciavam a sua agonia convidando a população a orar, ele com um fio de voz disse aos presentes: “Sim, sim, serei sacerdote e celebrarei a santa missa”. Delírio ou profecia? O fato foi que ele se curou, e seu pai partiu para o céu. O fundador dos Oblatos, o padre de Mazenod, que não tinha podido vêlo entre os seus por motivos da saúde, recomendou-o calorosamente ao bispo diocesano que o acolheu no seminário.

“Cesto furado” Ordenado sacerdote em 1834, trabalhou como vice-pároco em Chatte, e depois como pároco em Monteyrand. Seguia as pegadas do Cura d’Ars, que morava na mesma região, cuja fama já havia se espalhado por toda a França. Vivia na mais absoluta pobreza e para adquirir uma veste talar precisou comprar fiado. Tudo quanto chegava às mãos, em seguida, ele doava aos pobres. Por isso chamavam-no de “mãos furadas” ou “cesto furado”. Os paroquianos afirmavam que ele era muito bom e que logo seria enviado para outro lugar. De fato, um sacerdote, que o conhecia desde jovem e havia confirmado a sua vocação, desta vez o convenceu que seu lugar não era na paróquia, mas na Sociedade de Maria, uma associação sacerdotal missionária, fundada por Cláudio Colin, que não só pregava missões na França, mas que enviava missionários para a Oceania.


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Eymard ouviu o conselho e, com a permissão de seu bispo, transferiu-se para Lyon e depois aceitou o cargo de diretor espiritual do seminário de Belley. Cumpriu tão bem o seu trabalho a ponto de merecer a estima e o afeto dos alunos e dos professores: era chamado de “o bom padre”. Aí permaneceu por quatro anos. Depois Colin o quis em Lyon como provincial e, portanto, como assis­ tente e visitador geral da Sociedade de Maria. Eymard era dessa sociedade co-externo. Tinha apenas 33 anos e se envergonhava de ocupar um cargo tão elevado. Nesse período se dedicou de modo especial à direção espiritual. Eram muitos os que o procuravam para orientação e conselhos: sacerdotes, superiores de congregações, oficiais públicos e pessoas do povo. Entre eles, Paulina Jaricot, fundadora da Obra da Propagação da Fé, e a operária Margarida Guillot, que mais tarde fundará com ele as Servas do Santíssimo Sacramento.

O seu caminho Certo dia em Paris ele conheceu um judeu convertido ao catolicismo, Hermano Cohen, que havia instituído a adoração noturna. Encontrouse também com um capitão de fragata, Raimundo de Cuers, também ele enamorado da adoração eucarística. Para Eymard foi como se estivesse descobrindo a sua verdadeira vocação. Retornando a Lyon, visitou um santuário mariano e sentiu forte o estí­ mulo a fundar uma família religiosa que se dedicasse a promover a ado­ra­ção eucarística. Depois de cinco anos de espera – como ele mesmo conta – “disse sim a tudo e fiz voto de me dedicar até a morte à fundação de uma Con­ gregação de Adoradores. Prometi a Deus que nada me impediria, ainda que tivesse que comer pedras e morrer no hospital. Sobretudo, pedi a Deus para trabalhar nesta obra, sem nenhum conforto humano”.14 Quando falei com Colin, ele muito sábio me respondeu: “O pensamento é bom; acredito que vem de Deus. Orai, morrei a vós mesmos, e talvez um dia Deus vos trará a sua glória”. Não pensava do mesmo jeito o sucessor de Colin, Favre, que tentou por todos os meios não perdê-lo e por fim lhe disse

14. Pettinato, G., op. cit., p. 20.


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que deveria escolher: ou abandonar para sempre esta idéia ou então sair da Sociedade de Maria. Foi como expulsá-lo para o ostracismo. Foram momentos difíceis. Não tendo o beneplácito de seu superior, Eymard ficou desorientado. Então ele resolveu pedir conselho ao Cura d’Ars que o encorajou; foi por fim procurar até mesmo Pio IX e também o papa lhe mandou dizer que a sua inspiração vinha de Deus. Então não havia tempo a perder, porque já haviam passado cinco anos desde que o Senhor lhe havia falado.

Os inícios da nova congregação Com a aprovação do bispo de Paris, Eymard mudou-se para essa cidade, e foi morar num edifício arruinado junto com Raimundo Cuers, que nesse meio tempo tinha sido ordenado sacerdote por Mazenod, que se tornara bispo de Marseille. Pobreza, falta de vocações, críticas de todas as partes: era este o pão cotidiano naqueles primeiros anos parisienses. Eymard não desanimava: “A nós não cumpre” – dizia – “suscitar vocações, mas recebê-las da bondade divina. Quem convida é o rei, não o servo. Temos a alegria de ter sempre conosco Jesus: o que poderia nos tornar mais felizes?”. As vocações vinham, depois iam-se embora; e quem partia não econo­ mizava críticas. Ele dizia aos seus: “Deus não necessita de ninguém, e quanto a nós ele nos quer livres de toda influência, proteção e direção estranha. Enquanto estivermos servindo bem a nosso Senhor, não pre­ cisamos temer nada. Todo este trabalho de depuração, de deserção, de abandono das criaturas é a maior das graças. Isso agradeço sempre ao bom Mestre e ouso dizer que temo a cessação dessa graça; a cruz vale mais que o Tabor”. Depois chegaram providência e vocações. Cohen fê-lo receber uma grande doação com a qual comprou uma casa em Paris; outras fundações surgiram em Marseille, Angers e por fim em Bruxelles. Ele dedicava tempo integral à formação de seus filhos e à pregação ao povo. Eymard não era um intelectual, nem mesmo um grande pregador, mas as suas palavras eram ditas com tal convicção que tocava os corações. E as pessoas dirigiam-se a ele. Mesmo não sendo um escritor, os seus discursos sobre a Eucaristia foram recolhidos em cinco volumes.


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Ele preparava as pregações diante do Santíssimo: recolhia as idéias e depois as entregava a Jesus: “Eu faço o macarrão, dizia, e ele é cozido no forno eucarístico”. “Não se deteve na fundação da congregação dos sacerdotes do Santíssimo Sacramento, aprovada em 1862, pelo papa Pio IX, mas fundou também as Servas do Santíssimo Sacramento, com a ajuda de Margarida Guillot, e uma associação para sacerdotes adoradores, e uma outra para os leigos. Todas tinham uma única finalidade: fazer do mundo uma eucaristia, convencido de que “um século se torna grande em proporção ao seu culto a este sacramento”. E acrescentava: “Nós procuramos compreender toda a realidade humana à luz da Eucaristia, manancial e ápice da vida da Igreja. Percebemos neste sacramento um apelo à partilha da vida e da missão do Senhor e propomos uma preferência às atividades que se referem mais diretamente a este mistério”. Às Servas, o padre Eymard confiou a missão de unir “a contemplação e o amor apostólico em uma vida de adoração”, intimamente inspirada na Eucaristia. Fazer de tal forma que o “olhar seja um”, sempre concentrado em Jesus eucarístico sem se cansar e sem distrações”.15 Nos últimos anos passou pelas provações mais difíceis de sua vida: graves dificuldades econômicas, a desconfiança e o abandono de alguns de seus filhos e, entre estes, de Cuers, que esteve do seu lado desde o começo. Como se isso não bastasse, experimentou também o abandono por parte de Deus, “a noite escura”. Ele escreveu: “Pois bem, meu Deus, eis-me aqui com Jesus no Horto das Oliveiras. Quereis que todos me abandonem, que me reneguem? Que ninguém mais me reconheça, que eu seja um peso, um estorvo, uma humilhação? Eis-me aqui, Senhor! Queimai, cortai, despojai, humilhai. Daime, hoje, só o vosso amor e a vossa graça e dai-me, amanhã, a cruz e a falta de tudo, com a única condição de que eu seja reduzido a escabelo dos vossos pés na Hóstia santa”.16 Enquanto galgava os altos cumes da perfeição, sofria dores contínuas no físico por causa de gota. Morreu atacado por meningite, no dia 1º de agosto de 1868, em La Mure. Pio XI, no documento de beatificação, em 1925, o declarou precursor da Obra dos Congressos Eucarísticos. João XXIII o canonizou, em 1962, e estendeu o seu culto a toda a Igreja católica do rito latino. 15. Goffi, T., op. cit., p.125. 16. Pettinato, G., op. cit., p. 22.


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4 de agosto São João Maria Vianney sacerdote, padroeiro dos párocos (1786-1859) “Esta é a nossa mais bela tarefa: orar e amar. Se rezarmos e amarmos, eis que esta é a nossa felicidade sobre a terra. A oração nada mais é do que a união com Deus. Quando uma pessoa tem o coração puro e unido a Deus, é tomada por uma certa suavidade e doçura que a inebria; é purificada por uma luz que se difunde ao derredor dela misteriosamente.” 17

Esse texto, extraído de uma catequese do santo, exprime muito bem a elevação espiritual a que ele chegou e explica por que eram numerosos os peregrinos em Ars, chegando a alcançar aproximadamente a cifra dos cem mil nos últimos anos da vida de Vianney.

Um ignorante ou um sábio? João Maria nasceu em Dardilly, uma cidadezinha da diocese de Lyon, a 8 de maio de 1786, de uma família de camponeses muito pobre de bens materiais, mas rica na fé. Foram anos sombrios para a religião na França. Durante o segundo Terror também a igreja paroquial de Dardilly foi fechada, e toda atividade de culto foi impedida. O futuro cura d’Ars recebeu a primeira comunhão escondido em uma casa de campo durante a missa clandestina e o contato com aquele padre lhe fez nascer no coração o primeiro desejo de se tornar sacerdote. Uma idéia que parecia utópica para a situação política do país e pela impossibilidade de freqüentar a escola. Em 1806, não distante de Dardilly, um corajoso sacerdote, Charles Balley, então mestre de noviços do famoso convento de Santa Genoveva, havia aceitado a nomeação para pároco de Écully e tinha aberto uma escola paroquial para preparar os futuros candidatos ao sacerdócio, antes de os mandar para o seminário. João também se apresentou: um caso humanamente quase desesperador, porque tinha mais de 20 anos e conhecia mal e mal os primeiros rudimentos da leitura e de escrita. 17. Monnin, A. Esprit du cure d’Ars. Paris, 1899, p. 87.


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O padre Balley ouviu-o, apreciou-lhe o candor da alma e a persistência de camponês e o admitiu em sua escola. Não foi fácil para o jovem acompanhar as lições do mestre, sobretudo em se tratando da língua latina, que não entrava na cabeça, enquanto se saía muito bem na aprendizagem das verdades da fé e na prática das virtudes cristãs. Entre os dois nasceu uma profunda amizade espiritual e depois de alguns anos de preparação o abade Balley o apresentou ao seminário. Os professores reconheceram os dotes morais do jovem, mas não quiseram tomá-lo como aluno, porque ele não sabia latim e, portanto, não conseguia acompanhar as lições. O padre Balley tomou-o consigo para continuar o ensinamento da teologia em francês. Acompanhou-o ao seminário para fazer os exames e foi uma outra decepção, pois ele não conseguia nem mesmo compreender as perguntas formuladas em latim pelos professores. Nova humilhação, e outra vez retornou a Ecully, mas o seu protetor não desanimou; pediu e conseguiu que ele fizesse o exame na sua presença, por um professor escolhido pelo bispo. Obteve o que pretendia e Vianney conseguiu realizar os exames. Foi ordenado padre, a 13 de agosto de 1815, na condição de que ficasse sob a orientação de Balley e que não exercesse o ministério das confissões.

Três anos de paraíso Entre os dois sacerdotes passaram-se três anos de convivência maravilhosa. O jovem sacerdote amava sinceramente o seu pai e mestre e, apesar de ele ter uma leve influência de jansenismo, estimava-o pela sua fé inabalável e por seu espírito de penitência e procurava imitá-lo; o pároco, por sua vez, alegrava-se por ter um discípulo tão unido a Deus e tão dócil. Pôde, muitas vezes, afirmar ao bispo que ele estava à altura dos trabalhos ministeriais, que as suas pregações eram sem erros, e que conhecia e aplicava corretamente a moral nos casos de consciência. Mas, quando o pároco morreu, em 16 de dezembro de 1817, a cúria não considerou oportuno deixar nas mãos do padre Vianney o cuidado daquela paróquia importante e, em 11 de fevereiro de 1818, nomeou-o capelão de uma pequena vila com 40 casas e 270 habitantes: Ars-en-Dombes, que foi elevada a paróquia somente depois de três anos, quando o capelão já havia dado prova de ser capaz de guiar aquela pequena comunidade cristã. A aldeia de Ars, como todos os pequenos aglomerados de camponeses da região, não brilhava pela santidade. Ainda havia fé em Deus, mas escondida


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sob a cinza de grande ignorância religiosa e de uma prática moral tradicional que deixava muito a desejar.

O milagre de Ars O jovem sacerdote iniciou o seu trabalho pastoral limpando e esta­be­lecendo uma certa ordem na igrejinha, mantendo contato com os seus paroquianos. Ia encontrá-los em suas casas e nos campos, conversava sobre como estava andando a colheita e sobre a saúde dos animais, desse modo quebrava o gelo e construía amizades. Em pouco tempo, conheceu os vícios e as virtudes de todos e se convenceu de que, no fundo, as pessoas a ele confiadas eram boas, mesmo que apresentassem algum ponto fraco na prática da moral. Os homens, por exemplo, obrigados pela necessidade mais do que pela ideologia da revolução, nas manhãs de domingo, preferiam ir trabalhar nos campos abandonando as missas, e à tarde, em vez de ir a alguma função religiosa, lotavam as quatro tavernas do lugarejo – vejam só! – todas situadas exatamente bem atrás da igrejinha, nelas gastando o pouco dinheiro que possuíam, sem levar em conta as brigas e as blasfêmias proferidas, cujo clamor chegava até mesmo aos ouvidos das poucas mulheres que iam à igreja. As jovens não tinham o necessário para casar-se e, o que era pior, não se preparavam para aprender uma profissão: sabiam só pastorear as poucas ovelhas da família e recolher feno para o inverno. Também nos dias mais solenes, o ponto de encontro não era a celebração litúrgica, mas as festas e bailes, que se prolongavam até altas horas da noite, à luz de vela e – segundo o parecer do jovem padre – sempre terminavam em lugares onde não havia nem mesmo essa luz fraca, permitindo ao demônio a destruição da moral familiar, até mesmo levando à prostituição alguma pobre moça. A situação, às vezes, lhe parecia desesperadora, foi então que ele cunhou aquela famosa frase: “Deixai por vinte anos uma paróquia sem padre e aí adorareis os animais!”. Nesta situação o rigorismo moral aprendido com seu mestre não o ajudava muito. Por felicidade ele havia conservado o equilíbrio e o bom senso herdados de sua família, baseados na sabedoria do evangelho. Mesmo que as pregações dos primeiros tempos em Ars, tiradas dos pregadores da época, fossem repletas de ameaças de perdição eterna, no contato pessoal com os seus paroquianos ele procurava ser o bom pai de família e logo se apercebeu dos tesouros escondidos em toda alma: bastava aquecer os corações com um pouco do amor de Deus e Ars teria encontrado o seu rosto cristão.


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Um dia apercebeu-se disso, tendo observado um camponês que toda noite voltando do trabalho, deixava seus apetrechos fora da igreja, entrava e permanecia sentado por muito tempo em silêncio; aproximou-se dele e perguntou: “O que fazes tu aqui, bom homem, em silêncio?”. O camponês, surpreso pela pergunta, lhe respondeu: “Estou diante do meu Senhor: ele me olha e eu olho para ele!”. Em Ars havia também o bem: o que precisava só fomentar-lhe o crescimento. Não bastava pregar às poucas pessoas que vinham à igreja, assustando-as com sermões ameaçadores. Era necessário guiar-se pelo Espírito Santo. Para isso era necessário antes de tudo orar. O tempo sobrava-lhe. Se os homens estavam nas tavernas blasfemando, ele estava ajoelhado diante do Santíssimo adorando, preparando o catecismo para as crianças e para os adultos. O Senhor lhe inspiraria as palavras certas, muito mais fáceis de recordar do que aquelas que lia nos livros e, sobretudo, – como lhe ensinará a experiência –, mais compreensíveis aos seus ouvintes. Além do mais, precisava fazer penitência. Isso para ele não era difícil por dois motivos: já estava habituado a isso pelo seu mestre, o padre Balley, e também porque em Ars a vida era muito miseranda e quando podia contar com um pouco de batatas cozidas e uma pitada de sal ele era um homem venturoso. Acrescentou, porém, algumas práticas um tanto exageradas, como jejuns muito prolongados e noites deitado sobre a terra nua, que prejudicaram a sua saúde, apesar de impressionar bem os paroquianos. Ele próprio, mais tarde, irá dizer que foram “excessos da juventude”.

Oração e penitência, mas também obras sociais Não se limitou somente a orar e a mortificar-se pelos pecados do seu rebanho. Vendo a miséria material e moral na qual se encontravam muitas jovens sem futuro, criou para elas uma escola, onde encontravam alimento, instrução humana e cristã e onde aprendiam um ofício. Chamou-a de “Providência” e levou-a adiante com muito empenho sendo ajudado por outras duas valentes senhoras. Para os adultos criou duas associações: a irmandade do Rosário para as mulheres e a do Santíssimo Sacramento para os homens, envolvendo todos em atividades de culto e caritativas. Lentamente a fisionomia da paróquia começou a mudar e a fama deste padre bem conhecida nos ambientes eclesiásticos pela sua pouca capacidade


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intelectual, ultrapassando os confins de Ars, começou a se espalhar pelos arredores. Até mesmo nos mercados se ouviam camponeses que diziam: “Nenhum padre jamais nos falou como o nosso pároco!”. Ele próprio num momento de entusiasmo deixou escapar esta frase durante uma homilia: “Meus irmãos, Ars não é mais Ars!”, acrescentando que o pequeno cemitério local estava cheio de santos. Por fim, espalhou-se a notícia de que em Ars estavam acontecendo fatos milagrosos e – pelo menos no tocante às conversões que se verificavam no confessionário do pobre cura – não eram ignorados. O padre Vianney atribuíaos a santa Filomena, mas no entanto os fiéis dos arredores acorriam em grande número à igrejinha de Ars para ouvir o “santo cura” e para depositar no seu coração o fardo dos próprios pecados. Não eram poucos os que iam à procura de cura para os males que afligem aquele pobre povo e, mesmo que nem todos fossem curados no corpo, todos retornavam para suas casas fortalecidos no espírito.

“Vós me ensinastes a conhecer o Espírito Santo!” Com a fama de santidade espalharam-se também notícias difamantes, aceitas pelos párocos da região que não conseguiam entender que um colega bom para nada pudesse operar prodígios. As más línguas por fim chegaram ao bispo, o qual ordenou que se fizesse uma inquirição canônica que trouxe à luz a falta de fundamento das acusações e serviu para aumentar o afluxo dos peregrinos a Ars. Até mesmo o famoso Lacordaire, em 1845, depois de ter ouvido a pregação do cura, disse-lhe: “Vós me ensinastes a conhecer o Espírito Santo!”.18 E o padre Vianney, depois de ter falado na igreja ao seu povo, no dia seguinte comentava com argúcia: “Costuma-se dizer que às vezes os extremos se tocam. Isso, sem dúvida, verificou-se ontem no púlpito de Ars. Viu-se a extrema ciência e a elevada ignorância!”.19 Àqueles que perguntavam a Lacordaire sobre o que ele achou da pregação do padre considerado um ignorante, ele respondia: “Seria bom desejar-se que todos os párocos dos campos pregassem tão bem como ele”.20 18. Cit. in: Curato d’Ars. Scritti scelti. Roma, Città Nuova Editrice, 1976, p. 59. 19. Ibid., nota 45. 20. Ibid.


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O caminho da cruz Enquanto Deus abençoava a obra pastoral deste humilde padre com frutos que ultrapassavam muito as suas capacidades humanas, ao mesmo tempo purificava-o da crosta do rigorismo adquirido nos anos de formação com o abade de Ecully. De fato o padre Vianney, mesmo que infundisse nos pecadores a confiança sem fim na bondade misericordiosa de Deus, passava por momentos terríveis de terror pela própria salvação. A esta dor pungente que, às vezes, parecia que chegava à raia do desespero, ajuntava-se a consciência exagerada da incapacidade de levar em frente a sua missão de pároco. E como se tudo isso não bastasse, de noite muitas vezes sentia-se atormentado por uma presença diabólica. Por três vezes tentou fugir de Ars para se refugiar na vida contemplativa e pensar na própria salvação, mas inutilmente. Tanto o povo quanto o próprio bispo queriam-no em Ars. Era no confessionário e no púlpito daquela pobre igrejinha camponesa que multidões de peregrinos o procuravam. Ele não podia abandonar esse trabalho mesmo que fosse difícil, porque lhe permitia anunciar o amor de Deus a todos, também aos pecadores mais empedernidos que diante dele caíam de joelhos e se debulhavam em lágrimas. O fenômeno das peregrinações era tamanho que o bispo primeiramente lhe deu um vigário coadjutor que se ocupasse de toda a administração da paróquia e da organização dos visitantes, deixando o padre Vianney livre para as pregações e confissões; depois, no lugar do vigário enviou para Ars uma ajuda mais consistente: um grupo de sacerdotes “missionários diocesanos” que não só ajudassem o padre Vianney, mas se preparassem para um dia recolher dele a herança espiritual. Também as duas obras sociais que surgiram na paróquia foram orga­ nizadas. A escola para as moças, a Providência, foi confiada às irmãs, e a escola para os rapazes foi entregue aos Irmãos da Santa Família de Belley. Quando o padre Vianney viu que tudo já estava organizado, pensou que os missionários poderiam fazer melhor que ele e pela última vez ele tentou ir para a solidão preparar-se – como costumava dizer – para a boa morte. Deixou uma carta para o bispo e desapareceu. Tudo inútil, porque assim que a carta foi descoberta, um grupo de paroquianos e de peregrinos encontrou-o e o reconduziu para casa. Ainda precisava orar, confessar e pregar outros dez anos, antes que Deus o chamasse para si a 4 de agosto de 1859. Até mesmo depois de sua morte continuará a anunciar o amor misericordioso de Deus através dos escritos que, mesmo sendo de estilo sóbrio, difundiram-se por


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todos os cantos junto com numerosas biografias. São Pio X o proclamou beato em 1905, Pio XI canonizou-o em 1925 e declarou-o padroeiro dos párocos. Mesmo que na vida desse humilde pároco existam alguns aspectos que não se adaptam à sensibilidade moderna, a sua figura permanecerá como um modelo sempre válido pela sua união com Deus e pela caridade pastoral para com a humanidade.

7 de agosto São Sisto II papa e mártir, e companheiros mártires (= 258) “Comunico-vos que Sisto foi martirizado com quatro diáconos no dia 6 de agosto, enquanto se encontrava na área do cemitério... Peço que estas coisas que narrei sejam levadas ao conhecimento também dos nossos outros irmãos no episcopado, para que pelas suas exortações a nossa comunidade possa chegar a ser encorajada e predisposta sempre melhor para o combate espiritual.” 21

O destemido bispo de Cartago havia mandado a Roma dois enviados ao papa Sisto II, o novo Papa eleito a 30 de agosto de 257, após a morte de Estêvão. Porém, eles retornaram com duas notícias: Sisto, “sacerdote bom e pacífico”, foi martirizado com os seus diáconos, Cipriano não podia esperar nada de diferente, porque o imperador estava de olho nele e havia enviado às províncias uma carta que o representava pessoalmente. De fato, o edito imperial se voltava de modo especial contra os chefes das igrejas, aos quais prescrevia a pena capital, quase sempre sem nenhum processo regular; depois mandava despojar as igrejas de quaisquer propriedades, até mesmo dos cemitérios; e finalmente expulsava do exército e de todo cargo público quem praticasse a fé em Cristo. Sabia-se que os cristãos, não gozando do reconhecimento jurídico, constituíam-se em associações cemiteriais legalmente reconhecidas pelo direito romano, sendo assim podiam administrar seus bens e se reunir nos cemitérios ou catacumbas para celebrar a sua liturgia. Desse modo, cada Igreja – a de Roma era o exemplo – havia desenvolvido uma organizadíssima rede de assistência para seus membros pobres, ou redu­zidos 21. São Cipriano. Lettere, 80, 1ss.: CSEL 3, 840.


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à pobreza por causa das perseguições. O decreto imperial também interferia neste campo: eram abolidas as associações dos cemiteriais, confiscados os respectivos bens e proibidas as assembléias dos cristãos nesses lugares. A prisão e o martírio de Sisto e dos diáconos – exceto Lourenço – aconteceu em 6 de agosto de 258, no cemitério de São Calisto, onde a comunidade cristã se reunia secretamente. O autor de uma inscrição numa pedra, põe nos lábios de Sisto o relato do dramático episódio. “No tempo em que a espada dilacerou as vísceras sagradas da mãe Igreja, eu, o pastor aqui sepultado, ensinava os mandamentos do céu. Repentinamente chegam os soldados e me encontram sentado em minha cátedra, foram enviados e o povo expôs o pescoço às suas espadas. O idoso logo percebeu que (o seu povo) desejava receber a palma do martírio em seu lugar; e foi o primeiro a oferecer a sua cabeça, a fim de que o impaciente furor dos inimigos não atingisse nenhum outro. Cristo, que dá como recompensa a vida eterna, demonstra o mérito do pastor e toma consigo o rebanho”. Os fiéis, então, não foram tocados, mas os soldados decapitaram ali mesmo o Papa e todo o colégio diaconal, para que ficasse mais difícil a eleição de um outro chefe, escolhido normalmente entre os diáconos. Os diáconos eram sete. Cipriano fala dos quatro que foram sepultados com Sisto, isto é, Januário, Magno, Vicente e Estêvão, mas não faz menção a Agapito e Felicíssimo, sepul­ tados no cemitério de Pretestato. O sétimo foi o arquidiácono Lourenço, que foi intencionalmente poupado, porque tendo em mãos a administração dos bens, teria primeiramente de entregá-los ao Estado. Desde o século IX, as relíquias de Sisto II repousam na via Latina, na igreja que possui o seu nome, que foi doada a são Domingos e por ele confiada às monjas chamadas de dominicanas exatamente por são Sisto.

7 de agosto São Caetano de Thiene sacerdote e fundador dos teatinos (1480-1547) “Não é com o amor sentimental, mas com o amor concreto que se purificam as almas”. 22 22. Palavras do santo. Cit. in: Manns, P. I santi, II. Milano, Jaca Book, 1988, p. 221.


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Caetano nasceu em Thiene, na província de Vicenza, em 1480, de uma família de condes. Recebeu na fonte batismal o nome de Caetano para honrar um tio cônego, professor na Universidade de Pádua, o qual por sua vez havia sido chamado assim porque era originário de Gaeta. O jovem Caetano seguiu as pegadas do tio tanto em relação à inteligência – aos 24 anos já era doutor em direito eclesiástico e civil na Universidade de Pádua – quanto em relação à vocação, optando pelo estado eclesiástico, porém, sem se ordenar sacerdote, não se sentindo digno de uma missão tão elevada. No entanto, para satisfazer o desejo da família, começou uma rápida carreira. Chamado a Roma, em 1506, logo se tornou secretário particular do papa Júlio II. Assim ele teve a possibilidade de conhecer de perto aquela Roma papal, que segundo alguns, sendo o centro espiritual do mundo, deveria ser também o centro da cultura e da arte, enquanto que por causa de outros, com a desculpa da arte, tinha se tornado uma cidade imunda, onde se negociavam as coisas mais santas, das ordens sagradas aos benefícios eclesiásticos, das indulgências aos ossos dos mártires. Estamos no período do esplendor do renascimento que viu concentrados em Roma grandes artistas desejosos de realizar quanto de mais belo ainda hoje o Vaticano oferece à admiração ao mundo. Contemporaneamente, a vida moral da cúria papal, do povo e do clero, em Roma como em outros lugares, não brilhava certamente pela santidade dos costumes.

Pela carreira ou pela reforma? Caetano não se deixou fascinar pelo esplendor da corte pontifícia, nem desanimou pela miséria moral que ali reinava. No seu coração ressoavam fortes as palavras do concílio Lateranense V: “É preciso realizar uma reforma universal e radical”, e ele repetia: “Roma, por um tempo santa, é agora uma Babilônia”.23 O que fazer? Proclamar o escândalo? Amaldiçoar a cidade dos papas e se retirar para o ermo? Sendo um homem inteligente e prático, logo passou à ação, começando pela reforma do próprio estilo de vida. Nesse sentido contava com o encorajamento de uma irmã agostiniana de Bréscia, Laura Mignani, que gozava de fama de santidade. 23. Lettere di san Gaetano Thiene, a cura di Di Pietro C.R., P. Roma, Ed. Quinto Vicentino, 1988, p. 25.


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Pôs-se em ação, alternando o trabalho com a entrega ao serviço dos enfermos no hospital de São Tiago. Para alimentar a vida espiritual inscreveuse também no Oratório do Divino Amor, uma piedosa confraria que tinha a finalidade de reformar a Igreja partindo da base. Ali, conheceu outras pessoas que partilhavam com ele do mesmo ideal reformista. Em setembro de 1516, aceitou ser ordenado padre, mas só nas festas natalinas desse ano celebrou a primeira missa em Santa Maria Maior. Em uma carta24 para a irmã Laura Mignani, à qual estava ligado por uma amizade filial, ele contou que durante a celebração eucarística a virgem Maria lhe apareceu e colocou em seus braços o Menino Jesus. Para compreender esse acontecimento extraordinário e inesperado, continuou a sua vida de oração, de trabalho e de assistência aos pobres. Convenceu-se de que aquele Menino era Cristo místico, a Igreja, que ele devia salvar da fúria destruidora dos males do seu tempo. Em 1518 retornou a Vicenza para assistir sua mãe adoentada e começou a exercer o ministério sacerdotal, mantendo contato com a situação penosa de pobreza, de ignorância e de imoralidade em que vivia abandonado o povo por falta de clero capaz de cuidar das pessoas. Prodigalizou-se de todos os modos e com todos os meios à sua disposição, também empenhando os bens pessoais e sustentando as várias associações que davam assistência aos pobres e aos doentes nas cidades de Vicenza, Verona e Veneza. Lá, fundou o hospital dos incuráveis.

Reformar os pastores Aos poucos ele foi tomando consciência de que não bastava incrementar as obras de misericórdia para reformar a Igreja; antes de tudo necessitava de reformar os pastores, porque entre eles – como escreveu numa carta a Paulo Giustiniani, reformador camaldulense – “não há quem procure Cristo crucificado.... (e enquanto) Cristo aguarda, ninguém se move”.25 Neste período, segundo os primeiros biógrafos, Caetano teria repetido esta expressão: “Se Deus me concedesse a graça de encontrar três ou quatro pessoas dispostas a viver de maneira apostólica na observância do evangelho, nós poderemos trazer para a Igreja de Deus a reforma por todos desejada”.26 24. Ibid., pp. 27-29. 25. Ibid., p. 69. 26. Ibid., p. 192.


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Em 1523 retornou a Roma, e aos amigos do Oratório do Divino Amor manifestou este seu desejo. João Pedro Carafa – bispo de Chieti e Brindisi, mas empregado na cúria romana –, Bonifácio da Colle e Paulo Consiglieri imediatamente aderiram à sua proposta e em pouco tempo, obtida a aprovação do papa Clemente VII, os quatro renunciaram aos benefícios e fizeram profissão religiosa na basílica de São Pedro, no dia 14 de setembro de 1525, nas mãos de um bispo diretamente delegado pelo Papa para tal finalidade. Assim nascia a Congregação dos Clérigos Regulares, pelo povo logo chamados de teatinos, de Teate (Chieti), a diocese de Carafa, que foi o primeiro superior dessa nova família religiosa. Caetano, embora sendo a alma da nova fundação, procurou sempre permanecer na sombra. Desenvolveram o ministério entre o povo romano até o ano de 1527, quando Caetano foi aprisionado pelos lanzichenecchi (soldados de infantaria) durante o saque de Roma. Assim que conseguiu se libertar, foi obrigado a se refugiar em Veneza juntamente com os seus companheiros.

Uma espiritualidade antiga e nova A congregação consolidou-se na nova sede e Caetano, nomeado superior geral por um triênio, teve a possibilidade de nela imprimir a sua marca de fundador. A inspiração que ele sentia estimulava-o a formar e doar à Igreja sacerdotes que vivessem “a primitiva norma da vida apostólica”. Por isso não havia pressa em redigir uma regra, porque a “primeira norma” dos seus clérigos devia ser o santo evangelho lido e meditado integralmente todos os meses para poder se espelhar nele. Sobre essa base do evangelho vivido foram elaboradas em seguida as constituições publicadas em 1604. O evangelho – na leitura que dele faz Caetano – exige desapego das coisas, de si mesmos e das pessoas. Os seus clérigos não deviam possuir nada nem mesmo podiam pedir esmolas27, deviam contentar-se com o que os fiéis oferecessem espontaneamente e com o que a providência divina envia aos seus filhos, recordando sempre as palavras de Jesus: “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo” (Mt 6,33). Os quatro co-fundadores passaram a viver juntos, seguindo como regra “os santos evangelhos e os cânones sagrados”. Era para eles norma confiar-se 27. Ibid., p. 193.


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à providência para o sustento: “nada pedir e nada possuir... para servir Cristo crucificado nos pobres”.28 O desapego também tem um aspecto seu interior que nos configura a Cristo crucificado: “Devemos nesta cruz” – escreve ele – “crucificar nossos desejos e vontades. Assim como quem está pregado na cruz não pode se movimentar por si, mas com o mover-se da mesma cruz, assim um cristão crucificado com Jesus não deve se mover mais por seu próprio querer, mas receber o movimento da vontade de Cristo”. Nesta conformidade a Cristo crucificado o discípulo encontra não somente a alegria mais pura e profunda, como aquela que são Francisco chama de “perfeita alegria”, mas também a fecundidade do próprio ministério, porque a palavra anunciada será precedida pela palavra vivida. Obviamente essas intuições ou inspirações levaram Caetano e os teatinos a cultivar um amor todo especial para com a eucaristia e para com a Mãe de Deus e uma disponibilidade contínua no servir o povo em todos os setores da pastoral: do ensino do catecismo às crianças e da liturgia, da confissão à pregação, da direção espiritual às obras de misericórdia corporal. Para a formação dos teatinos Caetano quis aproveitar todos os tesouros acumulados pela experiência da Igreja ao longo dos séculos, especialmente a vida comum segundo o estilo monástico e a oração litúrgica no coro. Nesse aspecto percebe-se uma forte influência de Carafa, que o apreciava tanto a ponto de, ao se tornar papa, impô-lo aos jesuítas contra a vontade do próprio santo Inácio. Devido ao amor que nutrem pela liturgia, os teatinos foram encarregados pelo Papa da reforma do breviário e do missal romano, mas nesse trabalho levado em frente com muito empenho, Caetano não se deixou escravizar pelo liturgismo: ele colocou sempre em primeiro lugar o serviço aos irmãos, convencido de que as almas se salvam com o amor concreto. Por isso uma das atividades mais prediletas e que sempre recomendava aos seus foi o cuidado dos pobres e dos doentes.

A ordem se expande Enfim, já tendo a nova fundação sólidas raízes no Vêneto, o Papa pediu a Caetano que abrisse uma casa em Nápoles para reformar a vida cristã daquela capital. 28. Ibid.


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Em 1553 Caetano estava em Nápoles com seu discípulo, o beato João Morinoni, mas a sua pessoa humilde e o seu falar brando não impressionaram positivamente os napolitanos e as ofertas para manter o convento eram poucas e pobres. Alguém achou que seria melhor que eles retornassem para Veneza, dizendo a Caetano que os venezianos eram mais generosos do que os napolitanos. Ele respondeu: “Deus está em Nápoles, como está em Veneza”.29 E permaneceu na cidade partenopéia. Não passou muito tempo e os napolitanos perceberam o dom de Deus, e demonstraram toda a sua generosidade. Caetano não era somente um contemplativo, mas um homem muito prático e atento às necessidades sobretudo dos pobres. Sem perder-se em invectivas violentas contra os usurários, fundou com a ajuda de Morinoni, em 1539, o Monte di Pietà [Montepio], do qual mais tarde nascerá o Banco de Nápoles. De Nápoles precisou retornar para Veneza por um triênio, de 1540 a 1543, depois novamente voltou para Nápoles. Daqui saiu várias vezes para participar nos capítulos gerais da congregação, mas a cidade do sol será para sempre a sua pátria por adoção, até a sua morte.

Trabalhar unidos pela Igreja Os teatinos, poucos em número, mas muito estimados pelos papas e pelo povo, tiveram uma influência importante na reforma da Igreja. Caetano levava adiante esta obra em sintonia com outras forças vivas da Igreja como as várias associações, que surgiram em muitas cidades com esta finalidade, e com personalidades importantes, como Mateus Ghiberti, bispo de Verona, e de Jerônimo Emiliani, fundador dos somascos. Com todos eles mantinha um relacionamento profundo, ajudando-se e influenciando-se mutuamente nas vicissitudes da vida, para realizar a grande tarefa que o Espírito Santo lhes havia confiado. Neste aspecto eles tinham algo em comum, como observa com sutileza o historiador Lortz: “Os costumes” – escreve ele – “das confrarias... e os estatutos da ordem dos teatinos não tinham caráter polêmico (e muito menos antiprotestante), mas tinham uma orientação positiva. É propriamente isto que constitui a sua força. Essas instituições seguiam a grande lei da vida que nasce do pequeno, e desenvolve uma capacidade de ação

29. Ibid.


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muito mais potente quanto mais escondida esteja no silêncio de um porvir não planejado e voltado primariamente para o interior”.30 Por ironia da sorte deveria ser exatamente um teatino, João Pedro Carafa, que se tornou o papa Paulo IV, quem permitiu que na Inquisição se usassem métodos diametralmente opostos ao do espírito teatino. Infelizmente, Carafa, não obstante a sua boa vontade e austeridade de vida, jamais absorveu pro­ fundamente a brandura de Caetano. Ele trabalhou ao seu lado mais como autoridade, do que como filho espiritual. Quando as autoridades civis quiseram instaurar também no reino de Nápoles o tribunal da Inquisição, o povo se opôs e se desencadearam tumultos. A repressão foi violenta e infelizmente 250 napolitanos foram trucidados. Caetano nesse triste acontecimento fez de tudo para evitar o massacre, e quando percebeu que sua voz não era ouvida, ofereceu a Deus a própria vida em troca da paz. Morreu no dia 7 de agosto de 1547 e, dois meses depois, a paz retornou para a cidade partenopéia. A obra que mais o havia ocupado em toda a sua vida foi sem dúvida a reforma da Igreja. Ela foi levada em frente pelos seus filhos e por outros gigantes na santidade como Inácio de Loyola, Carlos Borromeu, Filipe Néri, Francisco de Sales, Vicente de Paulo. Em 1629 Caetano foi declarado beato e, em 1971, foi incluído no calendário universal dos santos.

8 de agosto São Domingos fundador da Ordem dos Frades Pregadores (1175-1221) “Nele encontrei um homem que seguiu em tudo o modo de vida dos apóstolos; por isso não tenho nenhuma dúvida de que esteja a eles associado na glória do céu.” 31

Este era exatamente o ideal de Domingos de Gusmão: reviver com os seus frades a vida dos apóstolos, para ser acreditáveis no meio do povo no anúncio da Boa-Nova. 30. Lorts, J. Storia della Chiesa, II. Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1987, p.184. 31. Palavras do papa Gregório IX no dia da canonização; cf. Liturgia das Horas.


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Nasceu por volta do ano de 1175, em Caleruega, diocese de Osma, pro­ víncia de Burgos, filho de Félix de Gusmão e da beata Joana de Aza. Até os 14 anos estudou sob a orientação de um sábio tio sacerdote, depois seguiu o trívio e o quadrívio nas famosas escolas de Palência e depois quatro anos de teologia. Ainda estudante, durante uma carestia na sua região, fundou um albergue para os pobres e por fim chegou até mesmo a vender os seus livros.

Dois santos à procura de uma esposa Terminados os estudos passou a fazer parte dos cônegos regulares do cabido da catedral de Osma, onde logo se tornou vice-prior. Quando o seu prior, Diego d’Azebes, bispo de Osma, foi escolhido pelo rei de Castela para uma delicada missão, Domingos precisou acompanhá-lo, assim ele teve a oportunidade de atravessar duas vezes toda a Europa. De fato o rei de Castela, antes de consentir no matrimônio de seu filho Fernando com uma princesa nórdica, de um território próximo da Dinamarca, quis ter certeza de que estava escolhendo certo, que pessoa era mais adequada para essa missão senão o bispo Diego, conhecido por sua prudência e santidade? A viagem, mesmo que fossem guiados por pessoas da corte real, era sempre fatigante, mas para Domingos foi também uma oportunidade preciosa para conhecer pessoas e culturas. Quando retornou, Diego assegurou ao seu rei que a escolha fora feliz. Então, prepararam-se para os esponsais e Diego e Domingos puseram-se novamente a caminho para ir ao encontro da noiva.

A esposa de Cristo em perigo Domingos, saindo de sua terra católica, percebeu os dois grandes perigos que a Igreja estava encontrando na Europa. Na Turíngia pôde ver com os próprios olhos as devastações feitas pelas tropas auxiliares dos cumanos às ordens de Ottocaro da Boêmia; no Langdoc na França meridional então a população abandonava a fé dos pais para seguir os albigenses e valdenses. E tudo isso acontecia porque os católicos, sobretudo os eclesiásticos e príncipes, não viviam segundo o evangelho. Durante a segunda viagem de retorno, enquanto os dois enviados reais traziam com eles a futura rainha, ela adoeceu e morreu. Os dois homens viram nesse acontecimento um sinal de Deus para mudar a situação. Mandaram de


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volta para Castela a comitiva real e eles dois se dirigiram a Roma para pedir ao Papa autorização para pregar os Evangelhos aos cumanos. Inocêncio III, preocupadíssimo com a situação no Langdoc, convidouos a renunciar ao seu projeto para desenvolver o ministério deles nessa região, ajudando os legados pontifícios. Eles aceitaram, mas o empreendimento não se apresentava tarefa fácil. Os legados pontifícios eram cistercienses, animados por boas intenções, mas eram escarnecidos pela população: “Eis montados a cavalo os ministros de um Deus que andava a pé!”. Desanimados pelo fracasso, os pregadores pontifícios estavam a ponto de abandonar o empreendimento. Diego e Domingos perceberam a causa do insucesso e das justas exigên­ cias que levaram o povo a aderir em massa às propostas dos albigenses e dos valdenses. Estava difundida entre as pessoas uma necessidade sincera de retornar a uma vida evangélica mais autêntica que não encontravam mais na estrutura da Igreja oficial, em que o alto clero estava empenhado na procura das riquezas, já o baixo clero, pouco instruído, não conseguia ser capaz nem mesmo de ensinar as verdades mais elementares da fé cristã.

O retorno às bem-aventuranças Os dois missionários de Castela, também eles autorizados pelo Papa, empregaram um outro estilo de pregação. Não ostentavam seus títulos, não tinham necessidade de cavalgaduras para ir de uma cidade para outra e não se cercavam de uma comitiva de pessoas que os servisse, mas ao invés viajavam a pé, sozinhos, viviam de esmolas; pregavam o evangelho com as palavras simples do povo, mas sobretudo colocavam em prática o que ensinavam aos outros, convidando todos à conversão. Eles não se sentiam fora da Igreja e reconheciam nos bispos e no papa os legítimos sucessores dos apóstolos, aos quais prestavam plena obediência, mesmo que exigindo deles a conversão para uma vida mais de acordo com as bem-aventuranças evangélicas. Também os legados pontifícios, os cistercienses, quando viram que Diego seguia o exemplo de Domingos não se importando com as honras que se costumava reservar aos bispos, uniram-se aos dois castelhanos, enquanto o papa Inocêncio III dava a todos eles não só a sua aprovação, mas os autorizava a acolher no seu grupo outros sacerdotes que quisessem se unir à santa pregação. A palavra deles foi acolhida com gratidão, onde eles passavam se reacendia a esperança, se restabelecia a paz. Muitos, que haviam sido atraídos para as


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fileiras dos albigenses, pelo desejo de uma vida cristã mais empenhada, agora podiam satisfazer as suas exigências sem romper com a tradição.

O mosteiro feminino em Prouille Também algumas senhoras, seja do povo simples seja da alta nobreza, quiseram se dedicar a uma vida mais perfeita e colocar-se a serviço da santa pregação, como as piedosas mulheres do evangelho. Domingos acolheu esse desejo delas e fundou um mosteiro em Prouille, onde elas se dedicavam à oração e acolhiam os missionários necessitados de cuidados de enfermagem ou de repouso. Era a primeira semente da ordem e iniciava com o ramo feminino. O novo estilo de pregação produzia muito fruto, na primavera de 1207 cerca de 11 abades cistercienses com vários monges uniram-se a Domingos, mas, exatamente nesse momento tão feliz, o bispo Diego partiu para a Espanha, à procura de ajuda e morreu na sua diocese em dezembro daquele ano. No entanto, cresciam as rivalidades políticas entre os vários príncipes da região, enfileirados em duas facções mais por interesses materiais do que por motivos religiosos. Eles, aproveitando o assassinato do legado pontifício por um grupo de albigenses, fizeram deflagrar-se a guerra: começou assim a cruzada contra os albigenses. Eram os primeiros meses de 1208. Domingos não quis tomar parte da cruzada e, não podendo fazer outra coisa, retirou-se para o convento de Prouille, dedicando-se à formação das irmãs e à pregação nos arredores do mosteiro. Foi um período de reflexão e de oração, durante o qual nele amadureceu a idéia de fundar uma ordem religiosa masculina.

Os padres pregadores Assim que a guerra cessou, em 1214, ele dirigiu-se para Toulouse, onde encontrou Pedro Seila. Este lhe doou duas casas e, juntamente com outros sacerdotes, fez os votos nas mãos de Domingos. Nascia o primeiro grupo dos padres pregadores. Domingos deu a eles a primeira regra, que não só os comprometia a viver como os apóstolos na pobreza, mas também a prepararem-se com competência para a pregação. Se os apóstolos estavam na escola contínua do Mestre, eles deviam se colocar na escola da Igreja e por isso freqüentavam as lições de teologia dadas pelo teólogo Alexandre Stavensby em Toulouse.


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O bispo, muito satisfeito com essa obra, não só deu aos frades uma igreja, mas levou consigo a Roma, Domingos, por ocasião do Concílio Lateranense IV e o apresentou ao Papa, para que aprovasse a nova fundação e lhe desse assim a possibilidade de difundir-se por toda a Igreja. O concílio, diante do pulular de grupos religiosos de todo tipo, sem nenhuma disciplina, formulou o princípio de que nenhuma nova ordem religiosa poderia se constituir, mas quem desejasse entrar para a vida religiosa deveria seguir uma regra já aprovada. Os franciscanos foram felizardos porque o Papa antes já havia aprovado, embora só oralmente, a primeira regra deles. Domingos encontrou-se então diante de uma porta fechada. O bispo comunicou ao Papa que percebeu a preciosidade do novo carisma, mas, não querendo se colocar contra a vontade dos padres conciliares, sugeriu a Domingos que aceitasse provisoriamente uma regra já existente. Assim foi adotada a regra de santo Agostinho, porém, sem renunciar às finalidades apostólicas típicas da inspiração dominicana. Para Domingos iniciou-se uma série de contatos com a cúria romana; ele, com a habilidade digna de um diplomata consumado, soube conduzir em frente a sua obra sem se colocar contra as estruturas da Igreja, antes os papas favoreceram-no de todos os modos, dando-lhe uma igreja em Roma, a de São Sisto e depois a de Santa Sabina, recomendando a todos os bispos que acolhessem nas suas dioceses os pregadores.

A inspiração de São Pedro Foi exatamente em Roma, na basílica de São Pedro, que Domingos sentiu a inspiração – conta-se que lhe apareceram os apóstolos Pedro e Paulo – de enviar os seus frades para todo o mundo. Primeiramente, enviou um grupo de sete para Paris, a fim de aprofundar o estudo da teologia e para conquistar novos candidatos para a ordem, entre os mestres e alunos; um outro grupo foi enviado para a Espanha e um terceiro para Bolonha, onde nasceu a primeira escola dominicana. Nesses anos entraram na ordem personalidades famosas, como Jordão de Saxônia, que será seu sucessor, e Reginaldo d’Orléans, célebre professor de direito. Já em 1219, visitando Paris, Domingos encontrava-se em uma comunidade de cerca de trinta frades. A regra de santo Agostinho ainda podia servir para a parte espiritual, mas então com a difusão sempre mais rápida da ordem no mundo, necessitava encontrar um modo organizado para governá-la. Domingos compôs as


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constituições, nas quais, sob o véu da regra de santo Agostinho, ele salvava a peculiaridade do seu carisma. De fato a nova ordem tinha como finalidade anunciar o Evangelho “a todas as nações”, com o estilo dos apóstolos. Para isso os seus filhos deveriam viver sim na pobreza, na castidade e na obediência, mas para serem instrumentos idôneos à pregação; recolhiam-se em comunidades onde viviam fraternalmente unidos, dedicando-se à contemplação e ao estudo, para depois partirem em missão; tinham um superior no próprio convento, mas faziam os votos ao geral da ordem, que podia dispor de cada um deles para enviá-los aonde houvesse maior necessidade. Domingo havia erigido uma ordem muito ágil em relação às ordens tradicionais e sobretudo tinha aceitado entre as suas fileiras homens que à santidade uniam a cultura. E se todo bispo tinha o dever de pregar na sua diocese – o que freqüentemente não acontecia – os pregadores consideravam o mundo inteiro como uma única Igreja onde devam anunciar o Evangelho com a vida e com a palavra.

O reconhecimento pontifício Para ter estrada livre para essa missão, Domingos dirigiu-se novamente a Roma e obteve de Honório III o reconhecimento do caráter universal da sua ordem. Era o dia 11 de fevereiro de 1218. Domingos podia enviar os seus filhos para quase todos os países europeus, até mesmo para aqueles lugares onde ainda havia povos pagãos, como em algumas regiões nórdicas. Durante a permanência em Roma, Domingos, depois de recomendação do Papa, cuidou de numerosas monjas da cidade, especialmente as necessitadas de reforma. Em 17 de maio de 1220, dirigiu-se a Bolonha, para o primeiro capítulo geral da sua ordem, no qual se estabeleceu que os frades pregadores renunciassem não só aos seus bens, mas também às rendas fixas para viver unicamente de esmolas. Após o capítulo, Domingos aceitou pregar uma missão no norte da Itália, particularmente difícil tanto pela difusão do catarismo quanto pelas lutas intestinas entre as cidades e entre as várias famílias nobiliárquicas. Nessa ocasião fundou conventos, que se tornaram famosos, em Brescia, Piacenza, Parma e Faenza, fomentando o reflorescimento da fé nesta região. Por volta de 1220, Domingos voltou a Roma para organizar as últimas coisas junto à cúria romana e para finalizar a reforma das monjas. Finalmente,


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ele pôde colocar no convento de São Sisto as irmãs que desejavam viver a vida religiosa com seriedade, chamou de Prouille oito religiosas bem formadas, para que pudessem servir de exemplos para as outras coirmãs romanas. Depois de ter empreendido uma outra rodada de pregações no norte da Itália e nas Marcas, enfraquecido pelo cansaço, retirou-se para Bolonha. De lá, aos 6 de agosto de 1221, partiu para o céu. Aos frades que o cercavam tristes disse estas últimas palavras: “Não choreis; ser-vos-ei mais útil, trarei mais frutos para vós depois da morte de quanto não tenha feito em vida”. Para ser sepultado não tinha um hábito novo, os frades revestiram-no com o do frade Moneta. Aos fiéis numerosos que acorriam à sua sepultura adornando-a e levando dons e ex-votos pelas graças recebidas, os frades se opunham energicamente, temendo prejudicar a pobreza e a simplicidade tão caras ao seu fundador. Antes, aproveitando que a Igreja estava sendo restaurada, deixaram fora o sepulcro de Domingos, exposto às intempéries. O papa Gregório IX lamentouse dessa negligência, prescreveu o reconhecimento e um maior cuidado com as relíquias do fundador e em 1234 inscreveu-o no álbum dos santos. Domingos, com a fundação de sua ordem, não deixou sobre a terra só um punhado de pregadores, mas também uma autêntica forja de santos.

9 de agosto Santa Edith Stein Co-padroeira da Europa (1891-1942) “Edith Stein nos conduz na vivacidade do nosso século atormentado, trazendo as esperanças que ele acendeu, mas também as contradições e as falhas que o assinalaram... Tudo nela exprime o tormento da busca e a fadiga da “peregrinação” existencial. Também depois de ter chegado à verdade na paz da vida contemplativa, ela precisou viver até o fundo o mistério da Cruz... Declará-la hoje co-padroeira da Europa significa colocar no horizonte do velho Continente uma bandeira de respeito, de tolerância, que convida homens e mulheres a compreender-se e a aceitar-se além das diversidades étnicas, culturais e religiosas, pra formar uma sociedade verdadeiramente fraterna.” 32

32. João Paulo II. Carta apostólica, 1/out/1999.


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Assim João Paulo II apresentava a figura desta mulher, quando no dia 1º de outubro de 1999 a proclamava co-padroeira da Europa juntamente com santa Brígida da Suécia e santa Catarina de Sena. Colocando ao lado delas três figuras masculinas, são Bento e os santos Cirilo e Metódio, reconhecia nessas três mulheres a contribuição extraordinária que o gênio feminino deu e dará para a vida evangélica entre os povos deste Continente. Edith é uma figura extraordinária, modelar para o nosso tempo. Judia por origem, alemã por nacionalidade e católica por livre escolha: os três compo­ nentes não estavam em luta nela, mas constituíram a beleza e a riqueza da sua personalidade. Não renegou nunca o seu povo, amou concretamente a sua pátria e encontrou no mistério cristão da cruz a força do sacrifício supremo da vida para o bem da humanidade. Não é difícil percorrer as etapas da sua vida, tanto pelos numerosos testemunhos quanto porque nos deixou uma autobiografia, História de uma família judia,33 na qual fala a respeito de si até a idade juvenil e numerosos escritos.

A infância Quando nasceu, no dia 12 de outubro de 1891, na Breslávia, que naquele tempo pertencia à Alemanha, encontrou-se chorando no berço no qual os pais já haviam depositado outros seis irmãos e irmãs, embora outros quatro já tinham partido para o céu. Nasceu em uma família judia, na qual só a mãe seguia as práticas religiosas sem, porém, as impor aos filhos. Em compensação educava-os no respeito a todas as fés e, sobretudo, em uma honestidade a toda prova. O pai, que comerciava madeira, morreu imprevistamente quando ela não tinha ainda dois anos de idade. A mãe, com energia e com cuidados não comuns, não só levou em frente a educação dos filhos, mas transformou a empresa do marido em uma atividade florescente. Trabalhava sozinha e os dois filhos maiores a ajudavam, enquanto Edith e as irmãs menores divertiam-se escondendo-se entre os feixes de lenha, mas sem nunca fugir aos olhos vigilantes da mãe. Desde pequenina teve uma grande estima pela mãe, participava da honestidade e da laboriosidade, admirava-lhe acima de tudo o amor atento para com todo ser humano: não gostava só dos filhos e da numerosa parentela, 33. Stein, E. Storia di una famiglia ebrea. Roma, Città Nuova Editrice, 3a ed. 1999.


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mas também de todo pobre que batesse à porta de sua casa ou do lugar de trabalho, recebido sempre com atenção e nunca indo embora de mãos vazias. Sendo a última que nasceu naquela família, era mimada por todos e, tendo uma inteligência precoce, na escola era estimada pelos mestres e respeitada pelos companheiros; tinha consciência do que ocorria e se aproveitava disso para impor também os seus caprichos. Diziam que era “ambiciosa e inte­ ligente”. Estas duas observações faziam-na sofrer muito: “Eu pensava, de fato, que se quisesse aludir a uma minha eventual presunção quanto à minha inteligência; estas palavras, todavia, me pareciam querer subentender que eu era só inteligente; e eu, desde os primeiros anos de minha vida, sabia que é muito mais importante sermos bons do que inteligentes”.34 Aos sete anos, uma reviravolta: a menina tornou-se quieta e reflexiva: “Adquiri um autocontrole tamanho a ponto de conseguir manter quase sem esforço uma calma imperturbável”. Naturalmente continuava a sonhar um futuro esplendoroso, “convencida de estar destinada a grandes empreendimentos e de não pertencer intimamente ao ambiente burguês e restrito em que eu tinha nascido”.

Aos 13 anos, agnóstica a respeito da verdade Edith gostava ternamente de sua mãe e dos irmãos, mas sentia também que o seu mundo não a continha. Diante dos parentes e dos conhecidos que se suicidavam devido à falência econômica, também a religião materna não respondia aos seus questionamentos. Como pode Deus verdadeiro deixar cair no nada uma pessoa humana que por toda a vida lutou pelo bem? Até mesmo a escola, onde havia sempre ocupado os primeiros lugares, não lhe dizia mais nada e decidiu abandoná-la. A mãe ficou surpresa com essa atitude e quase agoniada, mas não ousou se opor, mesmo sabendo que teria sido perfeitamente inútil, permitiu-lhe mudar-se para Amburgo, para junto da irmã mais velha que ali havia formado uma família. Aí, longe dos livros e dos mestres e ocupando-se de atividades domésticas como nunca tinha feito no passado, teve todo o tempo necessário para pensar livremente e “foi ali que, conscientemente e por livre escolha, eu abandonei o hábito de orar”. 34. Herbstrith, W. Edith Stein – vita e testimonianze. Roma, Città Nuova Editrice, 1998, p. 18. A seguir não mais assinalaremos as passagens tomadas deste volume, mas só as dos outros autores.


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Tendo retornado para casa depois da permanência em Hamburgo, retomou em suas mãos os livros. Chegando à maturidade, continuou a estudar sobretudo psicologia, mas também história e literatura alemã. Mais do que as idéias, nes­ se período ela se divertia na companhia alegre dos coetâneos, conservando sempre um certo espírito crítico que sabia colocar em ridículo os defeitos dos outros. Preparava-se para deixar a cidade natal para continuar os estudos em Göttingen, quando um seu professor lhe fez esta observação: “Desejo-te, agora, que encontres em Göttingen pessoas que se ajustem perfeitamente a teu gênio; aqui, de fato, tu te tornaste verdadeiramente muito crítica”. Talvez pela primeira vez a jovem estudante, por todos respeitada e temida, ouviu dizerem-lhe abertamente uma verdade incômoda. A seguir, recordando o episódio, escreveu: Senti-me grandemente atingida por aquelas palavras, porque eu não estava habituada à mínima censura; já quase ninguém dos meus familiares ousava me dirigir qualquer palavra, as minhas amigas gostavam de mim e me admiravam e eu vivia assim na ilusão ingênua de que tudo em mim estava bem, como acontece freqüentemente aos ateus dotados de um forte idealismo ético. Acreditamos sermos bons porque nos entusiasmamos pelo bem. Eu tinha sempre acreditado que era um bom direito meu indigitar com o meu dedo, sem nenhum cuidado, as fraquezas dos outros, os erros, os defeitos e todos os aspectos negativos que atraíam a minha atenção nos outros, usando freqüentemente um tom cantarolado e irônico. Havia os que me achavam ‘estranhamente maligna’. Era inevitável, portanto, que fosse dolorosamente tocada por aquelas palavras sérias do comentário de um homem de que eu gostava e estimava muitíssimo. Não lhe guardei rancor, nem afastei de mim essas palavras como uma acusação injusta. Foi um primeiro toque de alarme que me obrigou a refletir.

Em Göttingen: mergulhada na filosofia Em Breslávia tinha ficado desiludida pela colocação empírica e positivista da psicologia e tinha escolhido a Universidade de Göttingen com a secreta esperança de poder descobrir a verdade por meio da filosofia do famoso mestre da fenomenologia, Edmund Husserl, tornou-se não só sua admiradora, mas estreita colaboradora por muitos anos. O mestre, por seu lado, descobriu e apreciou os talentos de Edith e confiou nela cegamente. Nesses anos riquíssimos de estudo, o coração e a mente de Edith foram tocados profundamente por uma série de contatos com pessoas autenticamente


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cristãs. Contatos que vamos dizer fortuitos, causados pela escola e não porque ela levantasse problemas religiosos. Assim, depois de um primeiro encontro com Adolf Reinach, livre-docente que servia de ponto de ligação entre os alunos e Husserl, “eu me sentia cheia de alegria e de gratidão. Era como se até aquele momento nunca me tivesse encontrado com um homem de coração tão bom e tão puro... Era como lançar um primeiro olhar a um universo completamente desconhecido”. Um outro fenomenólogo, Max Scheler, atingiu a mente de Edith, porque esse, convertido fazia pouco tempo ao catolicismo, sabia tratar com uma luz incrivelmente atraente os problemas concretos da vida, sem esconder que tal luz lhe vinha do alto. Edith, lúcida observadora, apercebeu-se de que ao redor desses homens se movimentava um círculo de pessoas que viviam o cristianismo com uma coerência intelectual que abrangia todos os aspectos da vida. Admirava-os, mas era como se aquele mundo não lhe pertencesse.

Enfermeira da Cruz Vermelha no campo de batalha Nesse tempo deflagrou-se a Primeira Guerra Mundial. A fina flor dos professores e dos estudantes precisaram abandonar os livros e abraçar as armas. Não pensou duas vezes e, pela primeira vez contra o parecer da mãe, partiu voluntariamente como membro da Cruz Vermelha: não queria permanecer em casa entre os livros, quando na frente de batalha os seus compatriotas arriscavam todos os dias a vida. A experiência de enfermeira colocou-a em contato cotidiano com soldados de várias nacionalidades que não entendiam porque tinham sido arrancados tão cruelmente das suas famílias para ser sacrificados no campo de batalha. Também para Edith a guerra revelou-se em todo o seu imenso absurdo. Também o professor e amigo Reinach tinha partido: perdeu a vida em Flandres. Terminada a guerra e retornando para os estudos, a viúva do professor pediu-lhe que fosse ter com ela para reorganizar os escritos do marido para uma publicação póstuma. Para lá se dirigiu temerosa, não sabendo o que poderia dizer a uma viúva esmagada por tanta dor. Grande foi a sua surpresa quando encontrou a senhora Reinach, sofrendo sim, mas serena, capaz de infundir-lhe esperança. Tinha ido para aquela casa pensando precisar confortar e ao invés era confortada. Descobriu pela primeira vez que os cristãos têm uma força particular para enfrentar a dor, desconhecida dos outros, porque elevam os olhos para Cristo crucificado e ressuscitado.


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A viúva narrou-lhe que poucos meses antes ela e o marido tinham recebido o batismo na igreja evangélica. Na verdade queriam fazê-lo na igreja católica (e mais tarde ela passará para o catolicismo), mas Reinach tinha tanta pressa, que lhe havia dito: “Não tem importância, não pensemos no futuro; uma vez entrados em comunhão com Cristo, ele nos conduzirá para onde quiser. Entremos na igreja, não posso esperar mais”.35 Edith escutou atentamente, descobrindo um mundo para ela desco­ nhecido, mas que já não podia continuar a ignorar. Mais tarde anotou: “Foi aquele o meu primeiro encontro com a cruz, com aquela força divina que a cruz dá aos que a levam. Pela primeira vez apareceu-me visivelmente a Igreja, nascida da paixão de Cristo e vitoriosa sobre a morte. Naquele momento mesmo a minha descrença arrefeceu”.36 Parece que Deus usou com ela o método da gradualidade. Durante quatro anos esta luz procurou abrir um espaço na sua mente e no seu coração. No entanto havia aprendido uma coisa importante: “Ter razão e superar os outros em qualquer circunstância não me interessava mais... Eu tinha aprendido que raramente as pessoas melhoram se eu lhes disser a verdade”. E a filósofa da fenomenologia começou a olhar os outros com olhos novos, com maior objetividade e pureza. Durante uma excursão a Frankfurt tinha entrado na catedral com uma amiga para admirar a arquitetura e “enquanto lá permanecíamos em respeitoso silêncio chegou uma mulher, ainda com a cesta das compras no braço, ajoelhouse no genuflexório do banco para uns instantes de oração. Era para mim uma experiência absolutamente nova”. Foi tocada pelo fato de que as pessoas entravam e falavam com Deus como se fala com as pessoas de casa.

Um sonho se rompe, uma luz se acende Edith estava consciente das suas capacidades intelectuais, por isso em 1916 tinha seguido em Friburgo o professor Husserl e tinha se laureado com pleno louvor, sustentando a tese O problema da empatia. Depois se preparou com esmero para obter a habilitação para ensinar na Universidade Göttingen, mas, não obstante a recomendação de Husserl, foi-lhe negada. Todos reco­ nheciam as suas capacidades, mas apesar disso era apenas uma mulher... 35. Cit. in: Sicari, A. M. Il grande libro dei ritratti di santi. Milano, Jaca Book, 1999, p. 777. 36. Ibid., p. 777.


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Sofreu muito: todos os seus sonhos quebraram-se devido a um preconceito. Teria permanecido para sempre uma simples assistente? No verão de 1921 foi passar alguns dias de repouso na casa de campo de uma amiga sua, a filósofa Hedwig Conrad-Martius que, depois de ter superado uma crise de ateísmo, havia abraçado juntamente com o marido a fé evangélica. Uma tarde, tendo permanecido sozinha em casa, tirou da biblioteca dos amigos um livro: a autobiografia de santa Teresa de Ávila. “Comecei a leitura dele e fiquei de tal maneira presa, que não a interrompi enquanto não cheguei ao fim da leitura. Quando o fechei precisei confessar a mim mesma: ‘Esta é a verdade’.”37 Era como se um rio de luz tivesse inundado o seu ser, respondendo completamente a todas as suas perguntas. De manhã foi comprar um catecismo e um missalzinho e exatamente ela, uma mente filosófica incansavelmente pesquisadora e crítica da verdade, encontrou naqueles dois livrinhos a sabedoria secular da Igreja. Depois de alguns dias foi assistir pela primeira vez uma celebração eucarística. “Nada me ficou obscuro: compreendi também até mesmo a mais pequenina cerimônia. Ao terminar fui ver o padre na sacristia e depois de um breve colóquio lhe pedi o batismo. Olhou-me com muito pasmo e me respondeu que era necessária uma preparação para a admissão no seio da Igreja: ‘Há quanto tempo segues o ensinamento da fé católica?’ – perguntoume – ‘Quem é que te dá a instrução?’ Por única resposta comecei a balbuciar: ‘Peço-vos, reverendo padre, que me interrogueis’”.38 O batismo foi fixado para o início do novo ano. Enquanto isso, procurou o livro dos Exercícios espirituais de santo Inácio e fez sozinha o mês inaciano. Finalmente, no início de 1922, recebeu o batismo e a primeira eucaristia. Passou a noite anterior em oração e pediu para ter ao seu lado como testemunha e madrinha a amiga Hedwig. Foi-lhe concedido, embora essa mulher fosse evangélica. Na fonte batismal escolheu o nome de Edith Theresia Hedwig, porque já se sentia atraída pelo Carmelo.

Um caminho linear Nos neoconvertidos, ao entusiasmo dos neófitos em geral une-se também a tristeza pelo tempo perdido. Assim não aconteceu com Edith, porque a sua 37. Ibid., pp. 777-778. 38. Ibid., p. 778.


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vida desde a adolescência não só tinha sido uma sincera busca da verdade, mas também de uma retidão moral inquestionável. Quando ainda adolescente deixou de orar; e ela o fez por honestidade para consigo mesma: não suportava uma religiosidade feita de formalismos, mas desejava conhecer a verdade para ser útil à humanidade. Mais tarde to­ mará nota: “Quem procura a verdade, procura Deus, esteja a pessoa ou não consciente disso”. Por isso escolheu o estudo da filosofia – coisa bastante rara para uma mulher naquele tempo – não como um simples exercício acadêmico, mas porque estava convencida de que a verdade e a bondade são inseparáveis. E como perspicaz fenomenóloga, soube relevar nos professores e nos amigos cristãos aqueles valores que os guiavam na sua busca e nas suas relações humanas. Com eles encontrou-se sempre acomodada, mesmo que não tivesse em comum com eles a fé religiosa. Por isso pôde escrever: “Posso ser eu mesma uma descrente e, não obstante, entender que uma outra pessoa sacrifique tudo o que possui em bens terrenos pela sua fé”.39 Era um primeiro passo para a fé. Num certo momento, porém, entendeu que alguém a guiava sem ferir nem limitar a sua liberdade: “Existe um estado de repouso em Deus, de total relaxamento de toda atividade intelectiva, no qual não se fazem projetos, não se tomam decisões e nos abstemos temporariamente de toda ação para entregar todo o futuro à vontade divina e nos abandonamos completamente ao próprio destino. Em parte me foi dado experimentar esta condição depois de uma experiência que transcendeu as minhas forças, exauriu a minha vitalidade intelectual e me tirou toda forma de atividade... e em seu lugar entrava uma sensação de segurança... e enquanto me abandonava a esta sensação, uma nova vida começava aos poucos a animar-me... por trás deste sopro vivificador parece ocultar-se o afastamento de uma atividade que não é a minha”.40 Depois da leitura da autobiografia de santa Teresa, começou para ela uma relação pessoal com Jesus tão profunda a ponto de pasmar até mesmo os seus contemporâneos. E penetrando na vida mística, continuava a ser uma verdadeira filósofa e com essa sua característica estudou depois são João da Cruz. 39. Stein, E. Il problema dell’empatia. Roma, Edizioni Studium, 2a ed. 1998, p. 226. 40. Id. La causalità psichica, in Id. Psicologia e scienze dello spirito. Contributo per una fondazione filosofica. Roma, Città Nuova, 1996, pp. 115-116.


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No encantamento do primeiro momento da conversão – quando um mar de luz invadiu a sua inteligência e lhe plenificou o coração – teve a impressão de que possuía a verdade. A seguir apercebeu-se, mas com alegria, que nenhuma criatura humana, por mais privilegiada que seja, pode se apropriar da verdade: pode simplesmente deixar-se possuir. “A fé é uma ‘luz escura’. Faz-nos compreender alguma coisa, mas só o bastante para nos indicar algo que continua para nós incompreensível. Já que o fundamento último de todos os entes é insondável, tudo aquilo visto a partir dele situa-se entrando na ‘luz escura’ da fé e do mistério e tudo isso que é concebível adquire um fundo não concebível”.41 A Verdade, pois, não nos oprime, simplesmente nos supera e por isso às vezes parece esconder-se, enquanto que na realidade se adapta às nossas capacidades receptivas e continuamente se revela como novidade e se dá a nós. “Neste sentimento de segurança sentimos a existência de uma força espiritual que nenhuma experiência externa nos ensina. Não sabemos o que acontecerá conosco, diante de nós parece abrir-se um abismo e a vida nos arrasta para dentro dele inexoravelmente, porque nos empurra para diante e não tolera nenhum passo para trás; mas enquanto acreditamos precipitar-nos, sentimo-nos ‘nas mãos de Deus’ que nos sustenta e não nos deixa cair. E nesse viver não só fica clara a sua existência, mas também o que é, a sua essência nos torna visível nas suas irradiações últimas.”42 E isso acontece tornando-nos participantes do mistério da cruz. Talvez no fim de 1941, quando Edith via já próxima a sua imolação, referindo-se ao comentário que estava escrevendo sobre são João da Cruz, escreveu em uma carta à superiora: “Chega-se a possuir uma scientia Crucis só quando se experimenta até o fundo a cruz. Disto estou convencida desde o primeiro instante, por isso eu disse de coração: Ave, Crux, spes unica”.43 Depois da conversão, Edith queria entrar logo para o Carmelo, mas assim não pensava o seu diretor espiritual, Raphael Walter, por uma dupla razão: antes de tudo, porque parecia uma decisão apressada, e depois porque via nela a pessoa adaptada para levar o evangelho aos ambientes intelectuais do seu tempo. Edith aceitou com a clara consciência de que a sua vida, em qualquer lugar, estava para sempre consagrada a Deus. 41. Id. Essere finito e Essere eterno. Roma, Città Nuova, 3a ed. 1999, p. 62. 42. Id. Introduzione alla filosofia. Roma, Città Nuova, 1998, p. 222. 43. Id. La scelta di Dio. Lettere 1917-1942. Roma, Città Nuova, 1973, p. 152.


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Educadora de jovens e conferencista Era necessário, pois, trabalhar e foi ensinar em Spira em uma escola mantida pelas irmãs dominicanas. Aí pôs em ação as suas qualidades de educadora, ganhou o afeto das alunas e das irmãs, aprofundou a sua vida de oração e, sob indicação do conhecido estudioso jesuíta Erich Przywara, traduziu as cartas do cardeal Newman e as Quaestiones disputatae de veritate de santo Tomás de Aquino. Enquanto levava em frente esse trabalho, fez uma outra descoberta importantíssima: “Aos poucos cheguei a reconhecer que nesta terra... até mesmo na vida contemplativa não se deve truncar toda ligação com o mundo... (porque) quanto mais o homem está envolvido em Deus tanto mais deve abrir-se neste espírito, deve pois atuar na terra para levar-lhe a vida do Senhor... Que seja possível servir a Deus dedicando-nos à ciência apresentouse-me pela primeira vez, de maneira inequívoca, ao ler santo Tomás; e só a seguir pude decidir retomar seriamente o trabalho científico”. Começou, de fato, um período muito fecundo: levou à realização a tradução de santo Tomás, o seu ensaio A fenomenologia de Husserl e a filosofia de Santo Tomás de Aquino, sem contar as numerosas conferências realizadas a pedido de várias cidades.

Promotora da mulher Foi-lhe pedido que contribuísse para o movimento feminista católico. Edith fez notar com muita clareza: “Parece-me que uma elaboração séria, científica, esteja simplesmente no início. Conseqüentemente as finalidades que se pretendia alcançar, onde quer que tenha desenvolvido um papel saliente da concepção da natureza feminina, não se formaram sobre bases cognoscitivas cientificamente seguras, mas brotaram de uma tomada de posição determinada pela tradição, por emotividade ou por uma arbitrária construção intelectual”. Para Edith, a mulher, permanecendo fiel a si mesma, pode exercer qual­ quer profissão, mesmo aquelas que tradicionalmente foram tomadas como essencialmente masculinas. “Na maior parte dos casos trata-se sempre de uma atividade que coloca em contato uns com os outros, ou que, ao menos, desenvolve-se com os outros na mesma sala, freqüentemente, com uma subdivisão de trabalhos com eles... Sim, é possível afirmar que exatamente aqui, onde cada indivíduo corre o risco de se transformar em parte de uma engrenagem, de perder a própria humanidade, o desdobrar-se da personalidade feminina pode funcionar como um benéfico contrapeso. No ânimo daquele


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que sabe estar atento, no lugar de trabalho, por solidariedade e simpatia, poderá manter-se vivo, ou acordar, um determinado sentimento outrora destinado a esterilizar-se. Este é um dos modos em que a personalidade feminina dá à atividade trabalhista uma marca diversa daquela comumente conferida pelo homem.” Também no campo eclesial era necessário dar o justo espaço à mulher, e estava confiante de que isso poderia acontecer, atenta como estava também aos primeiros fracos sinais: “A vida eclesial dos nossos dias mostra que precisamos aguardar uma tal evolução, nos convida a constatar as sempre mais numerosas designações femininas para encargos eclesiais, tais como o ensino, a caritas, a assistência pastoral”. Depois de ter tentado em vão obter a livre-docência na Universidade de Friburgo, na Brisgóvia, em 1932 conseguiu-a em Mônaco junto do Instituto Superior Germânico de Pedagogia Científica. Encontrou-se novamente no mundo a que pertencera e aí trabalhou intensamente. A sua presença era requisitada nos encontros internacionais; participou com sucesso em Paris no congresso sobre Fenomenologia e Tomismo, depois em Aquisgrana desenvolveu o tema A atitude espiritual da geração jovem; foi convidada também, em Berlim, para uma série de conferências.

Rumo ao martírio Ninguém imaginava os planos desumanos que Hitler estava prepa­ rando, mas alguns sinais deixavam-se ver também na família de Edith. O estabelecimento comercial de madeira e lenha continuava inutilmente aber­ to, porque ninguém arriscava aproximar-se de uma casa comercial de pro­ priedade judaica. Foi-lhe retirada a permissão de ensinar. Deu a sua última lição e escreveu uma carta ao Papa, pedindo uma encíclica que condenasse o nacional-socialismo. Influiu também ela sobre Pio XI que escreveu a famosa Mit brennender Sorge? Mas nada e ninguém podia conhecer então as manias destruidoras do Führer. O que faria agora da sua vida? “Dirigi-me ao Redentor e lhe disse que sabia bem que era a sua cruz que estava sendo posta sobre os ombros do povo de Israel. A maior parte não a teria entendido, mas aqueles que a compreenderam deveriam tomar voluntariamente a seu cargo a cruz em nome de todos. Eu queria fazê-lo... mas não sabia ainda em que deveria consistir para mim o carregar a cruz.”


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Até aquele momento tinha obedecido e tinha permanecido no mundo para levar o evangelho aos ambientes universitários, mas agora que as portas do ensino se haviam fechado, não teria chegado talvez o momento de entrar finalmente no Carmelo? Não era para fugir do mundo ou por medo do nazismo, porque ao mesmo tempo foi-lhe oferecida a possibilidade de transferir-se para a América do Sul, onde estava pronta para ela uma cátedra. Edith entendeu que tinha chegado o momento de responder à sua vocação mais profunda, seguindo a sorte do seu povo. E decidiu entrar no Carmelo. Quando retornou a Breslávia e comunicou à mãe a sua decisão, foi uma tragédia. Um dia a mãe convidou-a a acompanhá-la à sinagoga. Edith foi com ela para contentá-la; escutou tudo com muita atenção. Ao voltar a mãe lhe perguntou: “Não era bela a pregação do rabino?”. À resposta afirmativa retomou: “Também na fé judaica pode-se ser religioso, não te parece?”. “Sim, quando não se conheceu outra coisa”, respondeu Edith. E a mãe desconsolada, referindo-se a Jesus: “E tu por que o conheceste? Não quero dizer nada contra ele, era certamente um homem bom. Mas por que quis fazer-se Deus?”. 44 Ainda que com o coração despedaçado, a mãe respeitou como sempre a decisão da filha que a 16 de julho de 1933 entrou no mosteiro de Colônia. Aqui tomou o nome de irmã Teresa Benta da Cruz e fez o seu noviciado. A seguir foi encarregada de levar a cumprimento os seus trabalhos filosóficos; a eles se dedicou com empenho, mas sem nunca perder o tesouro escondido que havia encontrado no convento: a vida de oração e a vida fraterna com as co-irmãs. Nunca como então se tinha sentido tão em casa. Dela recordouse a sua caríssima amiga, Hedwig Conrad-Martius, quando foi fazer-lhe uma visita. Maravilhada com a alegria e a espontaneidade de irmã Teresa, escreveu: “Edith tinha sempre possuído, por natureza, uma aura de gentileza e de candura infantil. Mas a simplicidade, a segurança e o ar divertido que agora tinha adquirido eram, terei a ousadia de afirmar, encantadores. Nela se fundiam admiravelmente as duas acepções do termo gratia: gentileza e graça. Naquela ocasião falou-me com absoluta franqueza das dificuldades que precisara enfrentar durante o ano de noviciado. E podia fazê-lo muito bem, visto os resultados que havia obtido”. Em 1936 morria a mãe, em 1938, enquanto ela se preparava para os votos solenes, morria o seu mestre Husserl. De ambos, de maneira diversa, muito havia recebido e agora os entregava confiante ao amor misericordioso de Deus. 44. Cit. in: Sicari, A. M. Il grande libro dei ritratti di santi, cit., p. 783.


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No entanto a perseguição nazista em relação aos judeus tornava-se cada vez mais aberta e cruel. A família de Edith desmembrou-se, alguns fugiram para a América do Norte, outros para a Colômbia e outros ainda para a Inglaterra. A irmã Rose, que havia abraçado há alguns anos a fé católica, estava no mosteiro. As irmãs se conscientizaram de que em Colônia a irmã Teresa e sua irmã não estavam mais seguras e organizaram uma transferência para o mosteiro holandês de Echt. Mas também a Holanda, ocupada pelos nazistas, padecia a mesma sorte. Os bispos holandeses, a 26 de julho de 1942, haviam feito ler em todas as igrejas uma carta coletiva na qual condenavam abertamente a perseguição nazista contra os judeus em solo holandês. A reação foi imediata e violenta com a prisão não só dos judeus, mas também de todos os judeus que se tornaram católicos e de personalidades católicas que, mesmo não sendo de origem judaica, haviam se pronunciado contra o nazismo. A superiora do mosteiro havia já tomado providências práticas para colocar em segurança as duas irmãs enviando-as para um mosteiro suíço, mas em lugar da permissão chegaram as SS que ordenaram o imediato aprisionamento das irmãs Stein. Enquanto as irmãs estavam assustadas e quase incrédulas, Edith tomou pela mão a irmã Rose e lhe disse: “Vem, vamos para o nosso povo”, depois dirigindo-se calmamente para as co-irmãs do convento disse: “Peço-vos só um favor: orai por nós”. Era o dia 2 de agosto de 1942. No dia 3 de agosto foram levadas para o campo de concentração de Westerbork, na Holanda, e aí a 6 de agosto pôde aproximar-se de algumas co-irmãs do mosteiro de Echt e disse-lhes: “Estou pronta para tudo. Jesus está também aqui no meio de nós. Até agora tenho podido orar bem e disse com todo o meu coração: Ave, Crux, spes unica”. Vestia ainda o hábito religioso e era por todos reconhecida e a todos confortava. Um comerciante que conseguiu escapar do massacre contou que Edith “distinguia-se pelo comportamento cheio de paz e pela atitude calma. Os gritos, os lamentos, o estado de superexcitação angustiada dos novos recém-chegados eram indescritíveis. Irmã Benta andava entre as mulheres como um anjo consolador, acalmando umas, cuidando de outras. Muitas mães pareciam caídas em uma espécie de prostração próxima da loucura: permaneciam gemendo como incapacitadas descuidando dos filhos. Irmã Benta ocupou-se das crianças pequenas, lavou-as, penteou-as, buscou para elas alimento e deu-lhes os cuidados indispensáveis. Durante todo o tempo em que esteve no campo dispensou para todos ao seu redor uma ajuda tão caridosa que até de pensar me comovo”.45 45. Ibid., p. 790.


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No dia 7 de agosto os vagões cor de chumbo as transportaram, junto com outros religiosos católicos, para o famigerado campo de Auschwitz. Pensa-se que o martírio tenha se consumado, a 9 de agosto de 1942, nas câmaras de gás. De Edith, portanto, não temos os restos mortais do corpo, mas podemos dizer dela tudo o que escreveu o poeta judeu alemão Paul Celan, contemporâneo das vítimas da Shoah: “Tereis uma sepultura nas nuvens...”.

10 de agosto São Lourenço diácono e mártir (= 258) “Rejubilemo-nos, pois, diletíssimos, com a alegria espiritual, e glorifiquemos, pelo felicíssimo fim deste ilustre herói, o Senhor, que é admirável nos seus santos e nos oferece neles o socorro junto com o exemplo; ele fez resplandecer assim a sua glória em todo o universo, do Oriente ao Ocidente, pelo fulgor resplandecente da luz dos levitas, e tanto mais é Ilustre Roma por Lourenço quanto é grande Jerusalém por Estevão.” 46

Quando, os guardas imperiais invadiram o cemitério de São Calisto para prender e matar Sisto II e seus diáconos, aos 6 de agosto de 258, não encontraram o arquidiácono Lourenço, ou talvez pensaram que não seria oportuno fazê-lo perecer juntamente com os outros. Ele, de fato, era a pessoa de confiança do Papa na administração dos bens da comunidade e se tornaria facilmente, segundo a tradição, o sucessor na sede de Pedro. Dele as autoridades esperavam, portanto, algo de maior importância. São Leão Magno47, numa homilia, nos relata o martírio de Lourenço assim como tinha sido transmitido até os seus dias: O ímpio perseguidor se enfureceu contra o levita, que estava mais em evidência, seja porque preposto ao sagrado ministério, seja porque encarregado da administração dos bens eclesiásticos. Encarcerando somente um homem,

46. De uma homilia de São Leão Magno. Cit. in: Pettinato, G. I santi cononizzati del giorno / VIII. Udine, Ed. Segno, 1991, pp. 94-95. 47. Ibid.


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esperavam uma dupla presa, porque se fosse considerado traidor do tesouro sagrado, tornar-se-ia também um apóstata da verdadeira religião.

Lourenço, nos quatro dias antes de ser aprisionado, conseguiu colocar os bens que administrava num lugar seguro, distribuindo-os aos pobres. Quando o juiz perguntou onde ele havia escondido o tesouro da Igreja, que por lei nesse momento seria confiscado, o diácono não se perturbou e convidou-o a segui-lo, mostrando-lhe – continua são Leão no relato – “uma multidão numerosíssima de pobres fiéis, para manter e vestir aos quais havia ele empregado os bens nesse momento imperecíveis, que estavam tanto mais salvos quanto mais santamente tinham sido empregados”. “Vendo-se enganado no desígnio de rapina, ele estremeceu e, ardendo de ódio contra uma religião que havia instituído tal emprego das riquezas, não tendo encontrado junto dele nenhuma quantia de dinheiro, tentou arrancarlhe o melhor tesouro, procurando raptar-lhe o depósito que era para ele a mais sagrada das riquezas.” Mas Lourenço não renunciou a Cristo e foi ao encontro do martírio. Era o dia 10 de agosto de 258. De acordo com a passio de Policrônio, um comovente romance histórico do século IV, no dia da prisão de Sisto II, enquanto ele era conduzido ao martírio, chegou Lourenço e lhe disse: “Para onde vais tão apressado, pai santo, sem o teu diácono? Tu não tiveste jamais o hábito de oferecer o sacrifício sem o teu ministro. O que te desagradou em mim, pai: talvez me tenhas considerado indigno? Prova-me e vê se escolheste um indigno ministro para a distribuição do sangue do Senhor. Rejeitarás, talvez, aquele que admitiste aos santos mistérios de ser teu companheiro no derramamento do seu sangue?”. “Filho meu” – respondeu o Papa – “eu não te abandono. Aguardam-te maiores combates. Não chores; dentro de quatro dias me seguirás”. E autorizou-o a distribuir os bens da Igreja antes que os inimigos se apropriassem deles. Lourenço, cumprida a sua missão, não podia esperar outra coisa senão a palma do martírio. O juiz, com efeito, depois de numerosos e atrozes tormentos, teria tentado a última cartada, fazendo colocarem-no em cima de uma grelha ardente. Mas “as chamas” – comenta são Leão – “não puderam vencer a caridade de Cristo; e o fogo que o queimava por fora foi mais fraco do que aquele que lhe ardia dentro”. Ao mártir, muitíssimo amado pelos cristãos, foram erguidas igrejas em muitas partes do mundo. Em Roma, Constantino edificou uma basílica, sobre o seu túmulo, que se tornou uma das sete grandes basílicas romanas. Também, Constantinopla, mais tarde, sob Teodósio, o Jovem, quis lhe dedicar uma das suas igrejas.


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Mas a mensagem que Lourenço deixou gravada na memória histórica é sem dúvida alguma o amor pela Igreja e pelos pobres; um amor que ele testemunhou com seu sangue.

11 de agosto Santa Clara de Assis virgem (1193/94-1253) “De nascimento nobre, mas mais nobre de espírito; virgem no corpo, castíssima na mente, jovem de idade, prudente no julgar; constante no bem; desposada para sempre ao amor divino; sábia e ao mesmo tempo humilde; Clara de nome, mais clara pela vida, claríssima pelo comportamento e pelos costumes.” 48

Uma outra Maria A carta de apresentação da Legenda de Santa Clara virgem (em latim legenda quer dizer coisas importantes e, portanto, coisas que devem ser lidas), escrita a pedido do papa Alessandro IV, logo depois da canonização, começa com esta introdução: “Como se o mundo envelhecido estivesse oprimido pelo peso dos anos, estava obscurecida a visão da fé, havia se tornado incerta e oscilante a conduta de vida e enfraquecia o fervor de toda atividade viril... E porque Deus ama os homens, do segredo da sua misericórdia providente suscita na Igreja novas Ordens religiosas, procurando para elas meios de sustentar a fé como uma norma para reformar os costumes. Não hesitarei em chamar os novos fundadores, com os seus verdadeiros seguidores, luz do mundo, indicadores do caminho, mestres de vida. Seguem, então, os homens, os novos seguidores do Verbo encarnado; e as mulheres imitem Clara, sinal da Mãe de Deus, nova guia das mulheres”.49 Tamanha foi a influência de Francisco e Clara, que muitos viram neles um outro Cristo (alter Christus) e uma outra Maria (altera Maria), como já aparece nos primeiros testemunhos do processo da santa e deste cântico (poema) do século XIV: 48. Tomás de Celano. Vita prima, I, cap. 8, in Analecta Franciscana, X, p. 17. 49. Legenda, Lettera di introduzione, in: Fonti Francescane II. Assis, 1977, pp. 2391-2393 passim.


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Querendo o alto Deus, bondade suprema, renovar o seu Filho nos nossos dias, mandou Francisco, e em lugar de sua Mãe, mandou-lhes Clara, bem-aventurada virgem. Tu renovaste, ó Clara, a Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo onipotente.50

Os encontros com Francisco Clara nasceu em Assis, a 16 de julho de 1194, de uma família cristã, que gozava de boa posição social. O pai se chamava Favarone di Offreduccio e sua mãe Ortolana. Logo a menina se apercebeu que na sua cidade havia muitos que não tinham o que comer e vestir e começou a doar o quanto podia para aliviar os sofrimentos dos pobres, privando-se às escondidas também dos alimentos saborosos que lhe ofereciam. Quando a fama de Francisco se espalhou pela cidade e muitos consideravam louco o filho de Bernardone, Clara sentiu-se atraída pelo seu ideal de pobreza e quis encontrá-lo. Cúmplice e testemunha desses freqüentes e escondidos encontros foi Bona di Guelfuccio, sua fiel companheira, depois sua discípula. “De fato, acompanhada por uma só pessoa de sua confiança, a menina saía da casa paterna e se dirigia às escondidas para se encontrar com o homem de Deus, cujas palavras pareciam chamas e suas obras sobre-humanas. O pai Francisco a exortava a desprezar o mundo... e instilava nos seus ouvidos a doçura das núpcias com Cristo, persuadindo-a a conservar intacta a gema da castidade virginal para o Esposo bem-aventurado, que é o amor encarnado entre os homens”.51 Clara, como testemunha no processo o senhor Raniero de Bernardo que a havia pedido para sua esposa, era belíssima, e seus genitores queriam vê-la casada. Naturalmente não faltavam os pretendentes entre os cavaleiros mais nobres de Assis, mas o seu pensamento era outro e, de acordo com Francisco, no momento oportuno, organizou a fuga de casa.

De noite a fuga por amor No dia anterior à fuga, domingo de Ramos, estava na igreja adornada com as mais belas vestes e junto com outras jovens da nobreza da cidade 50. Cf. Fonti Francescane II, cit., p. 239, nota 4. 51. Legenda, 5, in: Fonti Francescane II, cit., p. 2398.


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deveria ir até o altar para receber das mãos do bispo a palma. Era um momento por todos aguardado: parecia, diríamos hoje, um desfile de moda. Inexplicavelmente, Clara permaneceu quieta em seu lugar como que absorta, mas o bispo, para espanto dos presentes, desceu do altar e se dirigiu para ela, e lhe colocou nas mãos a palma abençoada. Naqueles tempos, isso era um sinal de grandíssima honra. Não se exclui que o bispo tivesse conhecimento da fuga, agora já iminente, pois em seguida será ele que irá protegê-la com sua autoridade. A noite chegou. Clara saiu de casa sorrateiramente, mas deixando um sinal muito claro de uma decisão irreversível: abriu uma passagem na porta murada que se abria só para deixar passar o ataúde quando algum familiar partia para nunca mais voltar. Do lado de fora a esperava “uma companhia honesta” – quem fosse nunca se soube, para não causar eventuais dissabores entre as famílias – e foi acompanhada à Porciúncula na planície de Assis. Junto ao altar da pobre igrejinha esperava Francisco com os seus frades. Não lhe deu nenhuma palma, mas lhe fez uma pergunta; “Clara, o que tu queres?”. “Deus!”, foi a imediata resposta e colocou a bela grinalda de flores que Francisco havia trançado, fazendo-a esposa de Deus para sempre, dando louvores ao Onipotente, bom Senhor que fazia partilhar do carisma da senhora Pobreza a irmã Clara, para que resplandecesse “entre as mulheres com uma luz claríssima”. Cortados os cabelos e depostas as vestes de seda, a jovem de 17 anos vestiu um simples hábito cinza e foi acompanhada para junto das beneditinas da abadia de Bastia, antes que seus pais ficassem sabendo da fuga e fizessem desabar uma tempestade. Essa não demorou. Irmãos e pretendentes, descoberto o refúgio, precipitaram-se para o mosteiro, armados com os títulos da sua nobreza, e com as armas que todo cavaleiro tinha direito de levar consigo. Quando Clara se viu em perigo, correu e se agarrou no altar. Os perseguidores se detiveram. Lá, onde ninguém podia tocá-la sem correr o risco de excomunhão, descobriu a sua cabeça: não tinha mais o adereço da grinalda, não pertencia mais ao mundo deles. E, eles, com espanto e raiva, tiveram de se retirar. Procuraram outros caminhos, recorrendo à autoridade do bispo, mas ele não só não estava do lado deles, mas, uma vez que o convento de Bastia não era tão seguro, levou Clara para o mosteiro das beneditinas de Sant’Angelo in Panso.


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Uma porção de virgens a seguiu Toda a cidade de Assis ainda falava do acontecido, quando também Inês deixou a casa de Favarone e foi para junto de sua irmã. Depois delas outras duas chegaram e as excelentes beneditinas perceberam que as novas recém-chegadas tinham outras exigências. De fato, Clara e as suas companheiras, embora nutrindo por toda a vida uma imensa gratidão para com seus protetores, elas não se sentiam em casa na abadia beneditina. Mudaram-se para São Damião, cuja igrejinha Francisco tinha reconstruído com as suas mãos. Eram seis no início, mas a obra cresceu a olhos vistos. Ali juntou-se a elas, logo, a irmã menor, Beatriz, e mais tarde também mamãe Ortolana, conquistadas também elas pelo ideal de vida evangélica. Foram chamadas, com linguajar medieval, “as pobres damas de São Damião”, porque se elas eram as damas, são Francisco e os seus companheiros eram os cavaleiros. Em São Damião o carisma de Francisco – a pobreza que floresce no amor – se encarnava de modo puríssimo e com uma fidelidade a toda prova no coração de Clara e das suas primeiras companheiras. A elas Francisco deu uma breve “forma de vida” que continha a essência do seu carisma. Depois do concílio Lateranense IV, não se podia abrir um novo mosteiro sem lhe impor uma regra já aprovada e experimentada no passado. Em São Damião fora imposta a regra beneditina. Essa era a sua veste jurídica, mas a vida entre as damas era a vida do Evangelho, como a havia redescoberto e a encarnava o Poverello.

O privilégio de viver em absoluta pobreza Clara dirigiu-se ao papa Inocêncio III para obter um privilégio. Como muitas comunidades religiosas pediam e obtinham privilégios para usar ou verdadeiramente para possuir bens materiais, ela pedia, ao invés, o privilégio da pobreza, da liberdade de não possuir nada, para encarnar plenamente a bem-aventurança evangélica. O privilégio foi concedido oralmente. Durante uma visita a São Damião, o papa Gregório IX perguntou a Clara se queria renunciar ao privilégio que lhe fora dado por seu predecessor, e ela respondeu: “Santo Padre, sob nenhuma condição e jamais, em eterno, quero eu ser dispensada do seguimento de Cristo!”.52 Numa época em que as 52. Legenda, 14, ibid., p. 2407.


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mulheres, mesmo as consagradas, estavam sob a tutela do homem, a virgem de Assis soube responder àquele que na Igreja possuía o máximo poder. Gregório IX assentiu e, em 17 de setembro de 1228, com um proce­ dimento jamais usado na cúria romana, emanou um documento no qual escreveu: “É notório que, querendo vós dedicar-vos unicamente ao Senhor, haveis renunciado à cobiça dos bens terrenos. Por isso, vendido tudo e distribuindo-o aos pobres, vos propondes a não ter posses de nenhuma espécie, seguindo em tudo os passos daquele que por vós se fez pobre, caminho, verdade e vida... Segundo a vossa súplica, pois, confirmamos com o beneplácito apostólico o vosso propósito de altíssima pobreza, con­ cedendo-vos com a autoridade da presente carta que ninguém vos possa obri­gar a receber posses de bens. (...) Se alguém depois presumisse tentá-lo, saiba que incorrerá na ira de Deus onipotente e dos bem-aventurados Pedro e Paulo”.53 Infelizmente o privilégio não estava referido na regra e Clara fará tudo para conservá-lo. A vida em São Damião desenvolvia-se na oração e no trabalho manual, que incluía também o cultivo da horta. Para os contatos externos havia algumas senhoras chamadas de “serviçais”. Elas participavam da família das damas e tinham escolhido o mesmo ideal de Clara. Eram elas que recolhiam pelas estradas as esmolas que o povo de Assis oferecia a São Damião. Para Clara, era uma alegria acolhê-las quando retornavam para lavar-lhes seus pés e depois beijá-los. Alegrava-se ainda mais quando tirava fora da sacola pequenos pedaços de pão e não pães inteiros. Francisco se interessava pessoalmente para que às suas damas – mesmo vivendo em extrema pobreza – não faltasse o necessário, sobretudo para as mais jovens a para as enfermas, partilhava com elas o vinho e o óleo. O centro da vida no mosteiro era a Eucaristia, Clara “levava para o altar do Senhor palavras ardentes, aptas a inflamar o coração das irmãs. Elas, constataram de fato, com admiração, que se irradiava do seu rosto uma certa doçura e sua face parecia mais luminosa do que de costume”.54

Os sarracenos fogem, os conventos se multiplicam Não é de se maravilhar que os sarracenos, pagos pelo imperador, depois de ter cercado o mosteiro para saqueá-lo, se retiraram quando Clara levando o Santíssimo, recolhendo-se ela e suas filhas, pediu a Jesus que as defendesse. 53. Privilegio della povertà, ibid., p. 2452. 54. Legenda, 20, ibid., p. 2411.


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A fama das virtudes de Clara “encheu os aposentos de senhoras ilustres, chegou aos palácios das duquesas, entrou até mesmo nas câmaras das rainhas”. Ela, contemplando este florescimento da virgindade, envia as primeiras com­ panheiras para “formar” os novos mosteiros. E por “formar” entendia dizer realizar nelas a “forma de vida” recebida de Francisco e vivida em São Damião. Também em Praga havia surgido um mosteiro das pobres damas. Inês, filha de Òton I, rei da Boêmia, anteriormente prometida ao filho de Frederico II, depois a Henrique II da Inglaterra, rejeitou toda proposta de matrimônio, e para superar toda oposição nas famílias dos pretendentes, apelou ao papa Gregório IX, porque queria percorrer o mesmo caminho da virgem de Assis. E depois dela havia outras virgens com o mesmo ideal. Haviam recebido esse ideal dos filhos de são Francisco que já tinham chegado naquelas terras. Tendo feito, pois, construir um mosteiro com os seus bens e tendo largado todo ornamento régio, fez que lhe cortassem os cabelos e iniciou a vida nova. Clara, não podendo enviar-lhe uma das suas companheiras, lhe escreveu quatro cartas para “formar” a nova fundação. Na primeira, Clara exalta a escolha corajosa de Inês: “Enquanto vós poderíeis mais do que todas as outras gozar pompas, honras e dignidades mundanas e também alcançar com uma glória maravilhosa legítimos esponsais com o ilustre imperador – união que, de resto, seria conveniente à vossa e dele excelsa condição –, todas essas coisas rejeitastes, preferistes com toda a alma e com todas as forças do coração abraçar a santíssima pobreza e as privações do corpo, para doar-vos a um Esposo de ainda mais nobre origem, ao Senhor Jesus Cristo, o qual guardará sempre imaculada e intacta a vossa virgindade”.55 Enquanto em Assis se fazia de tudo para obrigar a Clara a renunciar ao privilégio da pobreza, também por parte dos homens de igreja bem situados em postos relevantes, teria a jovem Inês a força para resistir àquelas vozes que em boa fé destroem o carisma pelo qual tantas pessoas se sentiram atraídas? Clara escreveu então a segunda carta: “Se alguém te diz ou te sugere outras iniciativas, que impedem o caminho de perfeição que abraçaste ou que te parecem contrárias à divina vocação, mesmo comportando-te com todo o respeito, não sigas, porém, o conselho dele, mas agarra-te, pobrezinha virgem, a Cristo pobre!”.56

55. Lettera I, ibid., p. 2284. 56. Lettera II, ibid., p. 2288.


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Inês permanecerá fiel à orientação e receberá outras duas cartas. A terceira é um canto à virgindade, enquanto que na quarta Clara, já próxima do fim, chama Inês de “a metade da minha alma... minha mãe, filha, entre as outras, a mais amada”.

Naquela noite de Natal... Já fazia tempo que Clara estava enferma e não conseguia mais ficar em pé. Na noite de Natal de 1252 ficou sozinha, querendo que todas as suas filhas pudessem participar da solenidade da noite santa, tão cara a Francisco. Mas a parede de seu quarto pareceu abrir-se e ela pôde ver e ouvir – assim contou às irmãs – “todas aquelas cerimônias que foram celebradas nesta noite na igreja de São Francisco”.57 É por causa desse acontecimento que santa Clara foi proclamada padroeira da televisão. São Francisco já havia partido para o céu em 1226 e tinha sido canonizado dois anos depois. Antes que o corpo do santo fosse depositado na igreja de São Jorge, Clara havia obtido que fosse levado a São Damião, diante da grade para ser visto por ela e pelas suas filhas. Tendo partido o pai, ela permaneceu sozinha a lutar pela pureza do comum ideal de pobreza.

O dom mais apreciado Em 1251, Inocêncio IV, encontrando-se em Assis, sabendo que Clara estava gravemente enferma, foi visitá-la. Ela com suma humildade lhe pediu a absolvição geral para todos os seus pecados e o Papa disse para si mesmo: “Tivesse eu a necessidade deste perdão!”, e abençoou-a. Não sabemos se outra coisa foi dita naqueles momentos nos quais permaneceram sozinhos, mas uma coisa é certa, que dois dias antes de morrer o Papa lhe fazia chegar a aprovação da regra composta por Clara e que continha o privilégio da pobreza. Foi este o presente mais belo que pôde receber. Agora já podia partir tranqüila, porque as suas filhas tinham a sua regra e não aquela que a prudência humana por tantos anos havia procurado lhe impor. Quis morrer tendo entre as mãos aquele documento precioso e as irmãs deixaram-no entre as suas mãos durante a cerimônia fúnebre. Clara morreu, aos 11 de agosto de 1253, dos solenes funerais par­ ticiparam o Papa com o seu cortejo e uma multidão tão imensa de pessoas 57. Legenda, 29, ibid., p. 2420.


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como jamais se vira em Assis. O pontífice propôs celebrar não o ofício dos mortos, mas o ofício das virgens. Desse modo, a proclamava santa antes de ser sepultada. Um cardeal, porém, observou que esta não era a prática da Igreja. E foi uma felicidade para nós, porque instruído o processo canônico, e interrogadas muitas testemunhas, chegaram a nós notícias preciosas que talvez não teríamos jamais conhecido. Dois anos depois, como aconteceu ao seu pai Francisco, seguindo um processo regular, foi proclamada santa em Anagni pelo papa Alexandre IV. Daí em diante, as pobres damas de São Damião foram chamadas de clarissas. Na bula de canonização se lê: “De Clara despontou para o mundo um claro espelho de exemplo; no gáudio celeste ela entregou o perfumado lírio da virgindade, e na terra se experimenta de modo evidente o socorro da sua proteção”.58

13 de agosto São Ponciano papa e mártir Santo Hipólito presbítero e mártir (= 235?) “O martírio tornava purpúrea a nossa igreja no sangue dos mártires, enquanto que antes era cândida nas obras dos irmãos”. 59

Ponciano foi eleito papa em 230 e consagrado em 21 de julho desse ano. Governava o império Alexandre Severo e a Igreja gozava de paz. Havia tranqüilidade fora, mas dentro da Igreja havia discórdias, porque o antipapa Hipólito com seu pequeno e belicoso grupo rigorista continuava a sua oposição às escolhas pastorais que a Igreja de Roma levava adiante desde o tempo de Calisto, concedendo o perdão aos lapsi (que quer dizer decaídos: eram chamados assim aqueles cristãos que em tempo de perseguição não tinham tido coragem de professar a fé) e permitindo o matrimônio entre livres e escravos.

58. Bula de canonização, ibid., p. 2457. 59. São Cipriano. Lettere, 10, 5; CSEL 3, 495.


São Maximiliano Maria Kolbe

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Por cinco anos, Ponciano governou a comunidade segundo o espírito do Evangelho. Quando o imperador Maximino, o Trácio, sucedendo Alexandre Severo, reacendeu com obstinação as perseguições contra os cristãos e, em 28 de setembro de 235, condenou-o às minas na Sardenha, o santo pontífice, para não deixar sem guia a comunidade romana, renunciou ao papado. Sucedeu-lhe o grego Antero, enquanto que ele era deportado para a ilha da morte, junto com o padre Hipólito. Os dois, depois de um breve período de privação, acabaram morrendo. Seus corpos foram sepultados com honra. Em seguida, o papa Fabiano conseguiu fazê-los identificar e levar para Roma os seus restos mortais, honrando-os com o título de mártires. Quem era o padre Hipólito, condenado junto com o Papa? Não se sabe com certeza. Pensa-se que se tratasse do sábio Hipólito, antipapa, que tanto trabalho havia dado à Igreja de Roma naqueles anos. Se assim foi, ele terá encontrado nas minas a graça da conversão. Tra­ balhando com os escravos e admirando Ponciano, que por amor à comu­nidade havia renunciado ao papado, que ele ao invés tanto havia desejado, Hipólito terá descoberto o valor da humildade e terá se reconciliado. O papa Dâmaso, identificado-o com o padre sábio e rebelde, mas depois arrependido, compôs para ele esta inscrição: “Quando se enfureciam as ordens do tirano, foi padre e permaneceu sempre no cisma de Novato; no tempo em que a espada dilacerou as vísceras da mãe (Igreja), enquanto fiel a Cristo marchava para o reino dos santos, o povo lhe perguntou qual direção devia seguir; respondeu que todos deviam seguir a fé católica. Assim mereceu, confessando a fé, ser nosso mártir. Dâmaso refere-se ao que entendeu. Cristo é testemunha de tudo”. Depois, se Hipólito companheiro de Ponciano foi um simples e humilde padre romano, não nos levará a mal, lá em cima no céu, se nós nesta terra não conseguimos desembaraçar bem o novelo da sua história.

14 de agosto São Maximiliano Maria Kolbe sacerdote, mártir (1894-1941) “O ódio não é uma força criativa; só o amor o é.” 60

60. Palavras atribuídas ao padre Kolbe, enquanto se enfurecia a perseguição nazista.


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Em uma época em que os totalitarismos das ideologias estavam destruindo a fé em Deus e instauravam a escravidão entre os homens, o padre Kolbe com o sacrifício heróico da sua vida recordava a todos o valor da fraternidade humana. João Paulo II afirmou que com o seu martírio ele havia trazido “a vitória mediante o amor e a fé em um lugar construído pela negação da fé em Deus e no homem”. Kolbe nasceu em Zdunska-Wola, na Polônia, a 7 de janeiro de 1894, de uma família cristã. O pai, Júlio, uma pessoa muito reservada, trabalhava numa indústria têxtil e tinha veneração pela esposa. Ele era um patriota e não escondia o seu sofrimento por uma Polônia subdividida, então, em três partes e dominada respectivamente pela Áustria, pela Alemanha e pela Rússia. Maria, a mãe, tinha desejado entrar para o convento, mas na região governada pelos russos, não havendo nem mesmo a sombra de um convento, tinha desposado Júlio, sem lhe esconder esse desejo íntimo. Tiveram cinco filhos, dos quais sobreviveram somente três: Francisco, Raimundo, que mais tarde se chamará Maximiliano, e José.

Infância laboriosa Os escassos recursos familiares permitiam somente ao primogênito freqüentar a escola, enquanto Raimundo recolhia as migalhas, procurando aprender alguma coisa através de um padre. Em seu socorro veio um farmacêutico da cidade que, sensibilizado pelo modo como o menino falava bem o latim, ao citar-lhe a exata fórmula de um medicamento, tratou-o com carinho e serviu-lhe de mestre. Quando alguns franciscanos de Leópolis chegaram à área austríaca, descobriram os três irmãos Kolbe, pediram aos pais para levar os dois primeiros para o colégio, deixando livre o lugar também para o mais novo, assim que estivesse em condições de viver sem os cuidados maternos. Os pais viram nessa proposta um dom da providência, mesmo sabendo que eles na sua pobreza e sob regime russo não teriam podido dar uma formação intelectual aos seus filhos. Agora, livres do cuidado dos filhos, aos 9 de julho 1908, fizeram um acordo para entrar também eles em convento: Júlio foi para os franciscanos em Cracóvia, onde se tornou terciário e mais tarde teve de sair, não se sabe se foi pelos russos ou pelos alemães, por causa do seu patriotismo, enquanto que a mãe se tornou franciscana em Leópolis. Também José,


São Maximiliano Maria Kolbe

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depois de um período passado em um pensionato beneditino, entrou para o convento dos franciscanos. Da infância de Raimundo, a mãe recordava um fato singular acontecido na idade de 9 anos. Depois de uma repreensão materna, o menino tornouse particularmente aplicado e silencioso e a mãe quis saber por quê. Ele lhe confidenciou que na igreja Nossa Senhora havia lhe mostrado duas coroas: uma branca e outra vermelha. “A branca significava que permanecerei puro, a vermelha que me tornarei mártir. Perguntou-me se eu também queria assim, e lhe respondi que sim. Depois disso, então, Nossa Senhora me olhou com carinho e desapareceu”. Ilusão infantil, ou profecia?

Precursor dos astronautas ou estrategista militar? Nos estudos ia muito bem, maravilhando os próprios professores. Era particularmente inclinado às ciências matemáticas e físicas. E foi encontrado um projeto seu, de uma sonda espacial para ir à lua! Mas o que mais o apaixonava era o amor pela liberdade da sua terra: tinha inventado um sistema de fortificações para tornar inexpugnável Leópolis se já não estivesse sob o domínio estrangeiro. Ao convite dos padres do colégio para entrar no noviciado, Raimundo, agora com 16 anos, e seu irmão Francisco decidiram escolher a carreira militar para libertar a Polônia dos invasores. O difícil era encontrar um exército polonês, porque ainda não existia. Tinham pedido um colóquio com o superior para colocá-lo a par dessa decisão, quando a mãe veio procurá-los para comunicar a eles a decisão dela e do pai de entrar para o convento. Não sabemos que coisa ele disse naquela ocasião, mas conservamos uma carta de Maximiliano, que vê nesse acontecimento uma intervenção providencial da Virgem Maria, que teria chamado uma “milícia” mais comprometida.

Em Roma para estudar Os dois irmãos entraram juntos para o noviciado, mas, mais tarde, o outro saiu do convento, foi combater na Primeira Guerra Mundial, não quis renunciar mais à vida militar e desapareceu num campo de concentração. Maximiliano, ao contrário, depois do noviciado foi enviado para Roma. Grande foi a sua surpresa não encontrando pelas ruas da cidade eterna nem perseguidores de padres nem prostitutas, como lhe haviam feito crer na sua terra natal.


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Em Roma, Kolbe, ficou seis anos, laureou-se em filosofia na Universidade Gregoriana e em teologia no Colégio Seráfico, e em 28 de abril 1918 foi ordenado sacerdote. Durante sua permanência em Roma tinham acontecido dois fatos par­ ticularmente importantes para o futuro de Maximiliano. O primeiro dizia respeito à sua saúde. Certo dia, enquanto jogava bola num campo, repentinamente começou a perder sangue pela boca. Era a primeira manifestação de uma enfermidade que o acompanhará com altos e baixos por toda a vida. O outro, ao invés, marcou o início de sua obra, a Milícia da Imaculada.

A era de Maria A Igreja até aquele dia tinha defendido com unhas e dentes a própria fé entrincheirando-se, como escreveu André Frossard, “na cidadela do dogma­ tismo, de onde, no fim do século XX, ameaçava excomungar todos aqueles que queriam sair dela e que ela chamava de modernistas (...). Por séculos havia ditado leis no campo da moral, também àqueles que não lhe reconheciam esse papel lhe haviam retomado os textos, privando-os de toda referência ao divino. Aqueles tempos já haviam acabado. A Igreja permaneceu fora das cidades e dos cérebros”.61 Era preciso retornar à cidade dos homens e trazer-lhes a luz do Evangelho. O jovem Kolbe, com uma inteligência extraordinária e uma fé pura, compreendia que a mensagem evangélica era o único remédio para um mundo que marchava a grandes passos para os totalitarismos de direita e de esquerda. Enquanto a Europa, depois da infâmia da Primeira Guerra Mundial, preparava as armas para a segunda, Maximiliano, ainda não sacerdote, numa cela do Colégio Seráfico em Roma, com permissão dos superiores, fundava a “Milícia da Imaculada”, uma associação religiosa para a conversão de todos os homens por meio da Imaculada. Por que, por meio de Maria? No pensamento de Kolbe a história tinha entrado na era de Maria e a Igreja, redescobrindo o seu perfil mariano, se colocava a serviço integral da humanidade. Por esse motivo ele se consagrava à Imaculada pro amore, usque ad victimam, por amor até o sacrifício da vida. Retornando para a Polônia que agora já estava reencontrando a própria independência, feita uma breve visita à mãe que não acreditava nos seus olhos, o 61. Frossard, A. Non dimenticate 1’amore. Vita passione morte di Massimiliano Kolbe. Milano, Rizzoli Editore, 1989, pp. 60-61.


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jovem sacerdote foi encarregado de ensinar em um colégio, mas não conseguia falar muito, por causa da saúde insegura; então foi nomeado pregador, mas também a sua saúde não ajudava. Um verdadeiro fracasso para um jovem que retornava de Roma, laurea­ do e muito promissor, mas praticamente sem nenhuma utilidade. A única atividade conveniente que ele podia desenvolver era tornar conhecida e difundir aquela sua invenção ou devoção que se chamava “Milícia da Imaculada”: podia organizar, trabalhar segundo as suas possibilidades e um pouco de bem – pensavam os superiores – ele poderia fazer.

A obra desenvolve-se Em Cracóvia, com a permissão dos superiores da ordem e do bispo, o padre Kolbe acolheu numerosas adesões à “Milícia”. Eram religiosos da sua ordem, professores e estudantes da universidade, profissionais e camponeses. Infelizmente a tuberculose avançava e depois de ter ficado hospitalizado, foi obrigado a passar um período de repouso na montanha, em Zakopane. Esse período serviu-lhe para preparar os seus planos de batalha e, apenas retornado para Cracóvia pouco antes do Natal de 1921, fundou “O Cavaleiro da Imaculada”, um jornal de poucas páginas para alimentar a chama entre os afiliados da “Milícia”. O seu projeto encontrou uma série de dificuldades. Um jornal agora nos ambientes pietistas era considerado “almanaque do diabo” e não se compreendia como um bom religioso pudesse perder tempo com um “breviário de futilidades”. Pelo lado dos superiores, ao invés, a preocupação maior era constituída pelos débitos que Kolbe, no seu candor, teria podido contrair e que eles não estavam dispostos a pagar. Disseram-lhe francamente e ele não se perturbou. Tinha apenas terminado de celebrar a santa missa quando viu sobre o altar uma bolsa com um escrito: “À minha querida mamãe, a Imaculada”. Continha o dinheiro necessário para pagar todas as despesas feitas até aquele momento. A partir daquele dia ele depositou próximo ao altar uma caixa de papelão pregada à imagem do Cottolengo e ia aí com regularidade retirar o necessário. Até mesmo um padre americano doou 100 dólares, com os quais adquiriu uma rotativa manual e logo depois recebeu como presente uma velha linotipo. Os superiores para frear um pouco o seu entusiasmo, afastaram-no de Cracóvia e enviaram-no para um convento em ruínas em Grodno, para onde


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ele transferiu todo o seu arsenal técnico e a sua equipe formada por um outro padre e um irmão leigo, bom reparador da rotativa, mas analfabeto. Embora distante 600 quilômetros de Cracóvia, a tiragem do jornal aumentou e, o que deixava admirados os superiores, os jovens batiam em grande número à porta do convento para compartilhar a vida daquela comunidade franciscana. Também ali a doença não o deixou em paz e os médicos mandaram-no novamente a Zakopane, enquanto que a sua equipe levava adiante o seu empreendimento, pois agora já se tratava de uma verdadeira empresa que precisava de mais espaço do que as velhas cantinas de um velho convento.

Depois do jornal a cidadela Retornando de Zakopane, Kolbe se pôs à procura de um terreno perto de Varsóvia de propriedade do conde Lubecki. Visitou-o acompanhado do administrador do conde, achou-o ótimo e nele colocou uma imagem da Imaculada. O preço porém era proibitivo. Foi falar diretamente com Lubecki, explicou-lhe o que faria com aquela propriedade se tivesse podido comprá-la. O conde acompanhando-o gentilmente à porta, disse-lhe: “O que devo fazer com a imagem?”. “Deixai-a onde está”, respondeu o frade. E o proprietário percebeu que o terreno já não lhe pertencia mais e lho doou. Nasceu assim o Niepokalanow, a Cidade de Maria. Aquilo que aconteceu aí em poucos anos tem certamente aparência de algo extraordinário: das primeiras cabanas de papelão alcatroado às construções com tijolos, da rotativa manual às modernas técnicas de composição e de impressão, dos poucos operários da primeira, agora aos 762 religiosos de dez anos depois, do primeiro jornal O Cavaleiro da Imaculada, que alcançou tiragem de milhões de cópias, a mais outros sete periódicos. Kolbe ilustrava o seu ideal dizendo querer conquistar para Deus por meio de Maria “uma alma depois outra, um posto avançado depois outro, desfraldar a sua bandeira sobre as casas editoriais dos diários, da impressão periódica, sobre as agências de impressão, sobre as antenas radiofônicas, sobre os institutos artísticos e literários, sobre os teatros, sobre os cinemas, sobre os parlamentos, sobre os senados, numa palavra, sobre o mundo inteiro; além de vigiar a fim de que ninguém jamais consiga remover aquelas bandeiras”.


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Um olhar para a Ásia Ele olhava para bem longe dos confins da sua terra, para a China, para o Japão, para a Índia. Com o superior, ao qual havia pedido deixá-lo ir como missionário para o Japão, temos este diálogo:62 – Tu falas o japonês? – Não. – Tens dinheiro? – Não. – Como pensas obtê-lo? – Recorrerei aos meus protetores costumeiros. O superior ainda não o conhecia bem e o deixou partir. Antes de partir, foi visitar os verbitas em Viena e ficou encantado ao contemplar as máquinas tipográficas deles e foi anotando, pensando que, cedo ou tarde, ser-lhe-ia preciso usá-las! Finalmente, depois pôde partir com quatro religiosos para o Japão. Uma parada em Shangai, onde a pedido do bispo ficou um religioso para difundir O Cavaleiro em língua chinesa e prosseguiu para Nagasaki. Aí a presença dos religiosos jornalistas não foi acolhida com entusiasmo, mas, quando descobriram que Kolbe tinha estudado em Roma e que podia ensinar filosofia no seminário, abriram-se as portas para ele. Eles receberam um terreno e uma casa e Kolbe iniciou a Cidade de Maria japonesa. No dia 24 de maio de 1930, tinham já uma tipografia e expediam as primeiras 10 mil cópias de O Cavaleiro em japonês. Será esta cidade de Kolbe que vai abrir as suas portas para acolher os órfãos de Nagasaki, depois da explosão da primeira bomba atômica. Do Japão, Kolbe se dirigiu para a Índia, pois estava convencido de que em todos os lugares da terra deve haver uma Cidade de Maria. Também lá abriu uma casa em Ernakulam, na costa ocidental. Encaminhada a obra na Índia, retornou ao Japão. No seu ânimo abria caminho a convicção de que qualquer idéia estranha ao catolicismo tem, todavia, sempre um fundo de verdade sobre o qual se pode basear o diálogo. E ele sabia dialogar com todos: judeus, protestantes, budistas. Muitos deles colaboravam na difusão de O Cavaleiro.

62. Ibid., p. 86.


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O retorno à pátria A saúde de Kolbe, porém, piorava sempre mais. Foi-lhe enviado um religioso que o substituísse no cargo de superior da casa e, mais tarde, foi chamado à sua pátria para poder cuidar da saúde. Em dezembro de 1934, ele estava na Niepokalanow polonesa e pôde cuidar pessoalmente de uma nova publicação, o diário Maly Dziennik, que quer dizer Pequeno Jornal. Quando com a ocupação nazista e russa, em 1939, precisou suspender a publicação, já tinha alcançado a tiragem de um milhão de cópias. Para se ter uma idéia do que se havia tornado a Niepokalanow nesse meio de tempo, basta ler este relatório que Kolbe havia preparado para Pio XI, em 1937: “A Milícia Mariana” – escrevia ao Papa – “atualmente possui cerca de um milhão de correspondentes. O seu centro nacional, que inicialmente era em Cracóvia, depois em Grodno, foi transferido, em 1927, para perto de Varsóvia, num novo convento chamado Niepokalanow, no qual atualmente residem 600 religiosos e 127 seminaristas. O convento publica: 1) O Cavaleiro da Imaculada, revista mensal do Movimento, destinada aos adultos: tiragem de 780 mil cópias; 2) O Pequeno Cavaleiro, revista para os jovens: 180 mil cópias; 3) O Pequeno Jornal, diário impresso em 130 mil cópias”.63 Poderia ter juntado cerca de outros oito periódicos. Aos escritores dava estas diretrizes: “Combater o mal segundo o espírito da milícia mariana significa combater com o amor nos confrontos com todos os seres humanos, aí compreendidos os menos bons. Significa dar realce ao bem, de modo tal a torná-lo irresistível, em vez de difundir o mal através de sua descrição. Quando apresenta a ocasião de atrair a atenção da sociedade ou da autoridade sobre algum crime, é preciso fazê-lo com amor para com a pessoa em causa e com delicadeza. Não se deve exagerar ou entrar nas particularidades de tal crime, mais de quanto seja necessário para apresentar para ele uma solução”.64 Já em 1938 o padre Kolbe entrevia próxima a guerra e procurou preparar os seus: “Meus filhinhos, a guerra está muito mais iminente de quanto se pensa e dispersará a nossa comunidade...”. Em 1939 disse ainda: “Hoje estou convosco. Vós me amais e eu vos amo. Mas, não será sempre assim: eu morro e vós vivereis. Todavia, antes de deixar-vos, tenho alguma coisa para vos 63. Ibid., p. 133. 64. Ibid., p. 135.


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confessar”. E, colocou-os a par de uma experiência espiritual com Maria que havia ocorrido no Japão. Depois concluiu: “Se entesourardes aquilo que vos digo e não vos esquecerdes da minha experiência, as vossas almas continuarão a progredir na vida religiosa. Assim podereis enfrentar os sacrifícios que Deus, por intermédio da Imaculada, exigirá de vós”.65 De fato, em setembro daquele ano, as autoridades ordenaram dissolver a comunidade de Niepokalanow. Aos quase setecentos religiosos que partiam esparramando-se pelo mundo, no qual o ódio parecia a única lei que garantisse a sobrevivência, o fundador lhes recomendava: “Não esqueçais o amor!”. Cerca de 40 religiosos que permaneceram na Cidade de Maria transformaram-na em lugar de acolhimento para os feridos e refugiados. A 19 de setembro os caminhões dos alemães vieram prender Kolbe, com os últimos religiosos que ali permaneceram, para transferi-los primeiro para o campo de concentração de Amtitz, depois para o de Shildberg, até o dia 8 de dezembro, quando inesperadamente foram colocados em liberdade. Retornando a Niepokalanow, pediram para poder recomeçar as suas atividades editoriais e, enquanto aguardavam a permissão que não chegava, prepararam na Cidade de Maria um centro de assistência, uma oficina mecânica, uma alfaiataria, uma carpintaria e uma horta cultivada em tempo integral. Tudo estava a serviço da população circunjacente e dos três mil e quinhentos refugiados, dos quais 1500 eram judeus. Infelizmente, depois de alguns meses de estadia, os refugiados foram enviados ou para suas regiões de origem ou expedidos para os campos de concentração sem que os religiosos pudessem fazer nada. Assim aproximava-se também para eles o momento crucial.

A caminho do martírio Um oficial graduado alemão apresentou-se um dia em Niepokalanow com a sua amante e confiou-a a Kolbe, introduzindo-a na sua cela. O religioso não se perturbou, falou-lhe da sua obra, depois a convidou para visitar a Cidade de Maria, junto com o oficial. Tudo parecia estar terminado no melhor dos modos, quando depois de alguns dias Kolbe foi convidado a naturalizar-se alemão, recebendo assim a cidadania alemã, nisso facilitado por seu sobrenome. Não teria corrido o risco de ser aprisionado, teria podido continuar a dirigir a

65. Ibid., pp. 146-147 passim.


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sua obra e teria obtido imunidade para todo o convento. Kolbe rejeitou sem hesitação, mesmo sabendo que assim assinava a sua condenação. Em 17 de fevereiro de 1941, Kolbe e outros quatro religiosos foram presos e encarcerados. Em 12 de maio, por sugestão do comandante da prisão, ele pediu aos seus que permaneceram em Niepokalanow que lhe enviassem roupas civis, por causa de um fato desagradável acontecido na prisão. Um sargento, vendo-o vestido de frade, tinha perdido o controle, havia lhe arrancado o rosário e, mostrando-lhe o crucifixo, havia lhe perguntado por três vezes se ele acreditava. Ante a óbvia afirmativa do religioso, o sargento arremessou-se contra ele batendo. O hábito talar despertava em certos guardas um ódio incontido. No início de abril, os quatro companheiros foram transferidos para Auschwitz, e ele não mais voltou a vê-los. Em 28 de maio, Kolbe seguia o mesmo destino. O portão de entrada desse campo de extermínio era encimado pelo letreiro: “O trabalho torna livres” e a partir daquele dia Kolbe tornouse o no 16.670. Sendo padre, foi colocado junto aos judeus e destinado aos trabalhos mais humilhantes. Um dos seus trabalhos – que ele cumpria sempre com a dignidade e a solenidade de um ato litúrgico – era o transporte dos cadáveres para o crematório. Jamais um lamento saiu dos seus lábios e, quando não era visto, compar­ tilhava com os companheiros até mesmo a paupérrima ração de alimento. A sua presença e o seu agir impressionavam os outros prisioneiros. Uma testemunha disse: “Kolbe era um príncipe entre nós”. No final de julho, foi transferido para o bloco 14, onde os detentos estavam destinados aos trabalhos de semeadura nos campos. Aproveitando dessa ocasião, um deles conseguiu fugir, mas a lei do campo era terrível. Para cada fugitivo que não retornasse, outros dez prisioneiros eram destinados ao bunker da morte.

Uma escolha heróica com a normalidade de sempre Quando os 10 condenados foram selecionados, um deles suplicou, aterrorizado para que fosse poupado porque tinha mulher e filhos. Kolbe saiu da sua fila e se apresentou ao comandante: “Sou sacerdote católico, sou ancião; quero tomar o seu lugar, porque ele tem mulher e filhos”. O comandante estarrecido lhe gritou: “Mas, enlouqueceste?”. “Sou sacerdote católico e religioso”, respondeu calmo. Depois de alguns segundos de silêncio o comandante aceitou a troca.


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Os dez foram enviados ao bloco 11, o da morte. Era cavado no terreno, com pequenas aberturas para um mínimo de luz. Diante do bloco os condenados deviam se despir e entrar completamente nus num quarto de três metros, por três. Dentro havia somente um vaso para eventuais necessidades físicas. Lá não recebiam nada, nem mesmo um gole de água: deviam somente esperar a morte. “A cela da fome” – escreve Patrícia Treece – “não só decretou a sua derrota, mas tornou-se um tabernáculo no ponto mais cruel de Auschwitz, como se – introduzido no humilde coração de um franciscano – Deus se tivesse dirigido ao inferno”. Um prisioneiro que exercia a função de intérprete, Bruno Borgowiec, um polonês da Silésia, que sobreviveu a Auschwitz, relatou os últimos dias do martírio de Kolbe e de seus companheiros. “Pode-se dizer” – é sempre Treece quem fala – “que a presença do padre Maximiliano Kolbe no bunker foi necessária para os outros. Estavam enlouquecendo com o pensamento de que não retornariam mais às suas famílias, às suas casas, gritavam e praguejavam por causa do desespero. Ele conseguiu infundir-lhes a paz e eles começaram a se resignar. Para elevar o espírito deles, encorajava-os dizendo que o fugitivo podia ainda ser encontrado e que eles seriam libertados. Então se uniam a ele e oravam em voz alta. As portas da cela eram de carvalho e, graças ao silêncio e à acústica, a voz de Kolbe em oração se estendia também a outras celas, onde os prisioneiros podiam ouvi-la bem. Também os últimos se uniam a ele. De agora em diante, cada dia, da cela onde se encontravam essas pobres almas se podia ouvir a recitação das orações, o rosário e os hinos. Padre Kolbe, guiava-os e os outros respondiam em coro. Tinha eu a impressão de estar numa igreja.” Borgowiec prossegue: “Quando os homens da SS estavam ausentes, eu ia lá embaixo e consolava os meus conterrâneos. Os prisioneiros estavam debilitados, mas continuavam também as orações, que então já eram sussurros. Não obstante isso, também quando os outros foram encontrados mortos no chão durante as inspeções, padre Kolbe, ainda estava em pé ou ajoelhado, com o semblante sereno. Já havia passado duas semanas. Os prisioneiros morriam um após o outro e permaneciam somente quatro, entre os quais estava Kolbe, ainda em estado de consciência. As SS decidiram que as coisas estavam demorando muito... Certo dia enviaram um criminoso alemão chamado Bock para aplicar injeção de ácido fênico nos prisioneiros. Quando chegou lá, tive que acompanhá-


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lo até a cela. Vi o padre Kolbe, em oração, ele mesmo estendeu o braço ao seu assassino. Não podia suportar isso. Com a desculpa que tinha trabalho a fazer, saí. Mas assim que os homens da SS e o carrasco foram embora eu retornei. Os outros corpos, nus e sujos, estavam estendidos no chão, com o rosto que demonstrava os sinais do sofrimento. Padre Kolbe, estava sentado, ereto, apoiado na parede. O seu corpo não estava sujo como o dos outros, mas limpo e luminoso. A cabeça estava um pouco inclinada de um lado. Os seus olhos estavam abertos, o seu semblante estava puro, sereno e radiante”. Kolbe, quando estendeu o braço, disse: “Ave-Maria!”. Foram as suas últimas palavras. Um dia desejou que as suas cinzas fossem dispersas ao vento, em vez disso se misturaram no forno crematório, com a dos outros irmãos perseguidos, na maioria judeus. Tinha apenas 47 anos. Em 10 de outubro de 1982, João Paulo II proclamou-o santo, reco­ nhe­cendo-lhe a auréola do martírio e proclamando-o “padroeiro dos nossos tempos difíceis”.

16 de agosto Santo Estêvão rei e apóstolo da Hungria (969/70-1038) “Meu caríssimo filho, doçura do meu coração, esperança da continuidade da minha descendência, rogo-te e te ordeno que te deixes guiar em tudo e por tudo pelo amor e ser pleno de benevolência, não só para com os parentes e amigos, sejam eles príncipes, chefes, ricos, próximos ou distantes, mas acima de tudo para com os estrangeiros e todos aqueles que recorrerem a ti... Se praticares a caridade, chegarás à suprema bem-aventurança.” 66

A história desse santo está nas origens da nação húngara e da sua evangelização. O povo húngaro ainda era uma federação de tribos. Chamavamse On-Ogur, daqui provém o nome Hungria, que quer dizer dez flechas. Inicialmente habitavam entre os montes Urais e o rio Don, mas impelidos por outros povos, dirigiram-se para o Ocidente e, sob o comando de seu chefe, 66. Exortação ao filho: PL 151, 1242.


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Arpad, tinham ocupado a Panônia ocidental. Dali partiam suas hordas para incursões e razias na Germânia e no norte da Itália, semeando em toda parte o terror, até que foram vencidos em Lechfeld, na Baviera, por Óton I e obrigados a permanecer dentro dos seus limites. Óton tornou-se imperador, ajudou o chefe deles, Geza, a transformar as tribos guerreiras dos magiares ou húngaros num povo mais pacífico, incentivando a agricultura e a conversão à religião cristã. Não foi fácil. Geza aceitou a obra dos missionários enviados pelo bispo de Passau, Peregrino, e foi o primeiro a dar o exemplo recebendo o batismo, mas continuou a praticar tanto a nova religião quanto a religião de seus pais. Muito mais profunda, ao invés, foi a conversão de sua esposa Sarolta, chamada de Carolina, que com seu gênio feminino não só se impôs à admiração e ao respeito de seu povo, mas cuidou com muito empenho da educação no cristianismo do filho, Vaik, nascido em 975. Ele foi batizado ainda criança e foi-lhe dado o nome de Estêvão, talvez pela influência do bispo de Passau, cuja catedral foi dedicada a esse santo.

Uma sábia escolha Quando Estêvão começou a governar seu povo, encontrou-se diante de uma escolha importante. Nesse tempo, aceitar o rito latino queria dizer encaminhar-se para a civilização ocidental; escolher o rito grego significava colocar-se sob a influência de Constantinopla; havia também uma terceira via muito mais desejável para alguns chefes húngaros: retornar ao velho estilo de vida pagão, que grande parte do povo não havia ainda abandonado. Estêvão optou pelo rito latino, no qual foi batizado e educado. Bem cedo, porém, percebeu que tanto religiosamente quanto politicamente corria o risco de depender do imperador. Eram tempos nos quais não estava clara a distinção entre o poder temporal e o poder espiritual, jurisdição eclesiástica e jurisdição civil; o Papa, como chefe supremo da cristandade, entendia ser autoridade para coroar reis e imperadores, e estes, como representantes do povo cristão, sentiam-se no dever de eleger os bispos e não raro até o próprio Papa. Estêvão, com hábil diplomacia, voltou-se para o Papa pedindo-lhe a investidura para rei da Hungria. O Papa enviou-lhe a coroa real adornada por uma artística cruz patriarcal. Na noite de Natal do ano 1000 aconteceu a solene coroação.


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Havia o perigo dessa sua independência não ser do agrado do imperador alemão, mas também com ele Estêvão soube construir relações amigáveis, seja porque Henrique II era profundamente cristão e apoiava com convicção a adesão da Hungria à nova fé, seja porque era conveniente para o império que a Hungria servisse de barreira ao avanço desordenado dos povos do leste.

A mão delicada da rainha A amizade entre os dois casais se reforçou com o matrimônio de Estêvão que, tendo atendido ao conselho do santo bispo Adalberto de Praga, desposou Gisela, irmã do imperador e princesa da Baviera. Senhora possuidora de qualidades não comuns, dotada de santidade e de tato político, conseguiu estabelecer a concórdia entre os irmãos, a fim de que Henrique pudesse se tornar imperador sem lutas fratricidas. Quando se casou com Estêvão, foi para ele a inspiradora mais fecunda e a conselheira mais ouvida. Se o rei sabia usar a firmeza herdada de seus avós, vencendo as últimas resistências pagãs coligadas ao redor de um chefe de nome Koppany, e tendo unidos os magiares contra os ataques desagregadores de outros dois chefes, Ajtony e Gyula, a rainha colocava em ação a sua experiência e os seus conhecimentos para ajudar o rei na organização política e religiosa do país sobre sólidas bases cristãs.

A ajuda dos beneditinos Os dois cônjuges haviam percebido o valor do carisma de são Bento e chamaram os monges beneditinos da Alemanha, da França e da Itália, fundando dez dioceses e vários mosteiros e, em pouco tempo, tiveram os seus bispos e abades. Ao redor das igrejas episcopais e abaciais surgiram as escolas que garantiram a evangelização e a promoção humana do povo húngaro. Tiveram um filho, chamado Emerico, que foi preparado para a sucessão. Para ele o rei, seu pai, tinha redigido uma exortação, um testamento espiritual, do qual transcrevemos um breve pensamento: “Em primeiro lugar, isto te aconselho, te recomendo e te imponho, filho caríssimo: honra a coroa real, conservando a fé católica e apostólica com tal diligência e escrúpulo, que sirvas de exemplo para todos aqueles que te foram confiados por Deus, a fim de que todas as pessoas boas te indiquem como um praticante do Evangelho. Sem isto,


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fica certo, não serás cristão nem filho da Igreja. (...) No nosso reino ela ainda é jovem, porque é nova e anunciada faz pouco tempo. Por isso tem necessidade de pessoas que a guardem com maior empenho e vigilância, para que aquele bem, que a divina bondade generosamente nos deu, não seja desperdiçado e reduzido a nada pelo teu desleixo, preguiça e negligência”. Os últimos anos de Estêvão foram marcados pela dor. Foram rompidos os relacionamentos com o imperador Conrado II, contra o qual precisou combater em 1030 para lhe impedir que invadisse a Hungria e, no ano seguin­ te, morreu seu filho, complicando a sua sucessão. Mas a essa altura já havia cumprido a sua obra, tendo bem implantado o Evangelho no coração de seu povo. Morreu em 15 de agosto de 1038, na sua amada Strigonia, a atual Szekesfehervar, onde nasceu, lá foi sepultado na catedral que havia construído. Em 1083, o papa Gregório VII permitiu oficialmente o culto de todos aqueles que tinha contribuído para a conversão da Panônia à fé cristã e entre eles encontrava-se naturalmente também Estêvão, já venerado pelo seu povo como rei e apóstolo da Hungria.

19 de agosto São João Eudes fundador dos euditas (1601-1680) “Pensa, rogo-te, que nosso Senhor Jesus Cristo é tua verdadeira cabeça e que tu fazes parte de seus membros... Ele quer que tudo o que nele está viva e domine em ti: o seu Espírito no teu espírito, o seu coração no teu coração, todas as faculdades da sua alma nas faculdades da tua alma...” 67

O século XVII [também conhecido como o Seiscentos] é chamado o século do rei Sol e é assinalado, sobretudo na França, pelos fenômenos opostos como o desprezo pela fé cristã por parte de algumas correntes de pensamento e, ao mesmo tempo, por uma fervorosa renovação religiosa levada adiante

67. Eudes, J. O admirável coração de Jesus, lib. I, 5. Cf. Liturgia das Horas.


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por pessoas de destaque como Bérulle, Condren, Olier, Vicente de Paulo, Grignion de Montfort e, ao lado deles, João Eudes. Cada um desses mestres de espiritualidade, sem azedumes contra os homens dessa época e sem saudosismo pelo passado, soube interpretar os sinais dos tempos e trabalhar para renovar determinados setores da vida da Igreja, vindo ao encontro das necessidades materiais e morais do povo, com muita freqüência abandonados pelos governos que, apesar de tudo, se diziam iluminados.

Apóstolo do seu povo João Eudes nasceu em Ri, uma pequena cidade da Normandia perto da cidade de Caen, na diocese de Séez, a 14 de novembro de 1601. Da sua família herdou a tenacidade da vontade e a generosidade do coração. Os padres jesuítas já estavam estabelecidos na sua terra e ele teve a ventura de ser educado no colégio deles em Caen, onde recebeu educação humanística invejável em seu tempo e onde se deixou moldar pelo carisma inaciano. Tendo conhecido Pedro de Bérulle, entrou para o Oratório e transferiuse para Paris, onde, terminados os estudos teológicos, foi ordenado sacerdote, em 20 de dezembro de 1625. Em seguida, dedicou-se à pregação de missões populares e teve oportunidade de ver a miséria na qual viviam as populações. Era comum os bispos serem provenientes, em grande parte, das classes da nobreza, estavam mais preocupados com a sua carreira do que com o cuidado pastoral dos fiéis; também os párocos, intelectualmente pouco preparados e moralmente pouco edificantes, eram incapazes de conduzir os cristãos pelo caminho da fé e se limitavam a ministrar os sacramentos. Ao lado dessa miséria moral havia também a pobreza material, muitas moças, não podendo conseguir o necessário para o dote de casamento, eram empurradas, na busca de sobrevivência, para a prostituição. Dessa massa de cristãos abandonados ao seu triste destino, separava-se uma pequena elite de pessoas instruídas que, no desejo de renovar a Igreja, abraçava a linha do rigorismo jansenista. Quando, em 1627, desatou-se na Normandia a peste, João pediu e conseguiu retornar à sua terra para socorrer os atingidos per esse mal. Durante o dia cuidava dos enfermos e de noite, por temor a poder contagiar os seus companheiros, retirava-se para um paiol e dormia dentro de uma pipa. A


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quem o advertia sobre o perigo que estava correndo, respondia gracejando: “Até mesmo a peste tem medo desta minha pele”. Na realidade esse mal não tinha medo de ninguém, pois também ele um certo dia adoeceu e só escapou dessa por milagre. Desaparecido o flagelo da peste e nomeado superior da comunidade dos padres oratorianos em Caen, João organizou as missões populares na Normandia. Ficava maravilhado diante dos frutos que se recolhiam com essa forma de apostolado, mas ao mesmo tempo estava angustiado pela falta de pastores capazes de conduzir em frente esse reflorescimento da vida cristã nas paróquias.

Fundador de novos apóstolos Foi então que ele começou a pensar na fundação de uma congregação religiosa que se ocupasse da formação dos futuros sacerdotes diocesanos. Chamou-a Congregação de Jesus e de Maria. Mas a sua atividade apostólica e o seu novo projeto não lhe permitiam continuar como superior dos padres oratorianos em Caen. De acordo com de Bérulle e com os bispos da região, deixou o Oratório e fundou na cidade universitária de Caen o primeiro seminário diocesano, uma experiência tão bem sucedida que depois se repetiria em diversas dioceses francesas. Pouco antes havia colocado as bases de uma congregação feminina, as Damas de Nossa Senhora da Caridade, com a finalidade de acolher moças em perigo de prostituição para dar a elas uma boa formação humana e cristã, preparando-as para o matrimônio. Desta fundação nascerá um dia aquela ainda mais famosa das Irmãs do Bom Pastor.

Uma espiritualidade sólida e acessível a todos João Eudes alimentou seus filhos e suas filhas com uma espiritualidade sólida, juntando os elementos mais importantes da espiritualidade inaciana e berulliana, mas dando-lhes um toque todo pessoal com a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria. O caminho da santidade percorrido por ele e proposto aos seus baseia-se na confiança ilimitada no amor de Deus, aquele amor revelado na vida terrena de Jesus e na figura materna de Maria. Os Sagrados Corações não são para ele imagens sentimentais para atrair pes­ soas fracas, mas a manifestação externa e concreta do amor daquele Deus que


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por amor ao homem não poupou o seu próprio Filho. Enquanto o jansenismo esfriava com seu rigorismo a vida cristã, João Eudes com a devoção aos Sa­ grados Corações apresentava um cristianismo bíblico com uma linguagem acessível não só aos sábios, mas também aos simples camponeses dos vilarejos da Normandia. Dele Pedro Bargellini escreveu: “O rigorismo dos jansenistas, ele substitui pelo afeto caloroso que há nestas fontes inesgotáveis do coração de Jesus e do coração de Maria”.68 Em 1672, precedendo um ano as revelações de Santa Margarida Maria Alacoque, ele compôs os textos litúrgicos dos Sagrados Corações para a festa que foi celebrada na sua cidade. Quando morreu, em 19 de agosto de 1680, em Caen, deixava para a Igreja duas famílias religiosas que continuam até hoje a doar o próprio serviço à humanidade, caminhando sobre as pegadas do fundador. Beatificado por são Pio X, em 1909, foi inscrito entre os santos por Pio XI, em 1925.

20 de agosto São Bernardo de Claraval abade e doutor da caridade (1090-1153) “A lei imaculada do Senhor é a caridade, que busca não o próprio interesse, mas o dos muitos. E é chamada lei do Senhor, seja porque ele vive dela, seja porque ninguém a possui se não for por dom seu... O que há de fato na suprema e beata Trindade que conserva a suprema e inefável unidade, se não a caridade? É portanto uma lei, e uma lei do Senhor, a caridade que abraça a Trindade e a encerra num vínculo de paz... E é a substância mesma de Deus... Esta é a lei eterna que cria e governa o universo”. 69

Essas palavras do “doutor da caridade” parecem antecipar em oito séculos o Concílio Vaticano II: “A Lei fundamental da perfeição humana e, 68. Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1977. 69. São Bernardo. De diligendo Deo, XII, 35.


São Bernardo de Claraval

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portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor”.70 Por isso enquanto Bernardo afirmava solenemente, como um monge, a necessidade de fuga do mundo, empenhava-se profundamente para realizarlhe a transformação. Foi, também, chamado por Pio VIII, em 1830, “doutor melífluo”, não porque tivesse caráter doce, mas porque “sobressaía no fazer destilar dos textos (bíblicos) um sentido que se encontrava escondido... E nisto segue o método de Orígenes, de santo Agostinho, de toda a idade patrística, da qual ele se sente muito próximo. Ele, porém, faz isto também como um homem do seu tempo, com todos os recursos de uma sensibilidade intensa e delicada; e o faz como a contribuição de todo o complexo de dons pessoais que dão à obra uma fascinante originalidade, feita com entusiasmo e clarividência, vigor espe­ culativo e simplicidade no olhar, emoção e conhecimento profundo de si, perfeição da arte literária e espontaneidade; a ainda o faz à luz das graças místicas da qual, às vezes, confessa o caráter sublime”.71 Não sem razão foi chamado de “o último dos padres, em nada inferior aos primeiros”.

Um chamado irresistível e comunitário Bernardo nasceu em 1090, no castelo de Fontaine, próximo de Dijon, na Borgonha, filho de Tesselino e de Aletta di Montbard, um casal ideal e profundamente cristão, no seio do qual os 7 filhos, seis homens e uma mulher, cresceram como se estivessem em um pequeno paraíso. Para Bernardo, o terceiro do grupo, a mãe teve cuidado particular, porque percebeu nele alguma coisa de especial; um afeto que o filho soube retribuir. Enquanto os irmãos mais velhos se preparavam para a cavalaria, ele preferiu os estudos com os cônegos seculares de São Vorles em Châtillon-surSeine, onde a família tinha uma bela casa. Em 1107, Aletta faleceu e Bernardo, apesar de sentir a sua falta, con­ tinuou a seguir os seus conselhos. Quando lhe propuseram empreender a carreira eclesiástica na Alemanha, pensando na mãe que lhe havia colocado no coração a sede de santidade, rejeitou a proposta. Queria doar-se a Deus, mas não para seguir carreira. 70. GS n. 38. 71. Leclerq, J. La spiritualità del medioevo, 4/A. Bologna, EDB, 1986, p. 299.


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Em 1110, Bernardo retirou-se para a casa de Châtillon e lá, como Agostinho, meditou longamente antes de decidir seu próprio futuro. O seu exemplo e a sua palavra inflamada atraíram outros 30 jovens, parentes e amigos, alguns dos quais já eram casados. “Por que gastar a vida a serviço deste ou daquele duque, ou até mesmo ao imperador” – dizia-lhes Bernardo – “quando existe a possibilidade de colocar-nos diretamente ao serviço de Deus, como monge?” Podemos bem imaginar as considerações que ele fazia com esses amigos, lendo tudo o que escreveu mais tarde a um estudante, Walter de Chaumont, que adiava a sua entrada no mosteiro. Bernardo admoestava-o com severidade: “Sofro em pensar na tua aguda inteligência e nos teus eruditos resultados que se consomem em vãos e fúteis estudos; penso em ti que, com os grandes dons que recebeste, não serves a Cristo, o autor, mas às coisas passageiras. E se a morte inesperada te aparecesse e te arrebatasse?”.72 E aos estudantes de Paris dizia: “Quem ama o dinheiro nunca dele se sacia; quem ama a luxúria, dela nunca se sacia; quem ama a glória, enfim, quem ama o mundo, não se sacia jamais... Quem entre vós deseja ser saciado comece a ter fome de justiça e não poderá deixar de se saciar. Deseja aquela espécie de pão que existe em abundância na casa do Pai e logo descobrirás que tens nojo da lavagem dada aos porcos”.73 Bernardo e os seus amigos pediram e obtiveram a permissão para entrar para o mosteiro de Citeaux, onde fazia alguns anos um grupo de monges corajosos procurava viver a regra beneditina, segundo o espírito das origens, mas desistira de prosseguir a caminhada devido à escassez de vocações. A chegada de Bernardo com seus amigos deu novo impulso à iniciativa e suscitou outras vocações, tanto que cinco anos depois Bernardo foi escolhido para fundar junto com 12 companheiros uma nova abadia em uma localidade chamada até então de Vale da Amargura e que ele transformou em Vale da luz: Claraval.

Em Claraval Deus estabeleceu sua morada O novo abade recebeu a bênção e, por ocasião, talvez tenha sido ordenado sacerdote. Os inícios da fundação não foram fáceis. Os monges 72. São Bernardo. Opere, VII. Roma 1974, pp. 261-262. 73. Id., De conversione, 28.


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arregaçaram as mangas, cortaram árvores, canalizaram a água, construíram uma primeira moradia, mas sofriam com o frio e a fome. Bernardo, frágil no físico e não acostumado aos trabalhos pesados, sentiu muito e para se curar precisou retirar-se, por cerca de um ano, em uma pequena casa, expressamente construída para ele. A nova experiência monástica e a fama desses primeiros monges, quase todos provenientes da classe nobre, atraíram também para lá muitas vocações e Bernardo pôde fundar a primeira filial na região de Trois Fontaine. Todos os irmãos de Bernardo entraram para o mosteiro, e a irmã Umbelina também estava em um mosteiro feminino. No castelo de Fontaine permaneceram somente o pai e o irmão menor, herdeiro de todos os bens. Conta-se que o jovem se lamentou com Bernardo e com o pai dizendo: “Para vós haveis escolhido a parte melhor e para mim deixastes as coisas desta terra”. Quando ele também entrou em Claraval, Bernardo, para não deixar o pai sozinho, propôs-lhe vir também ele. O ancião primeiramente ficou perplexo, depois aceitou com uma condição: que ninguém soubesse que ele era pai do abade e que lhe fosse permitido ocupar-se com os trabalhos mais humildes. A família inteira agora era cisterciense, enquanto que no céu Aletta podia sentirse feliz. Em 1119 foi fundada a abadia de Fontenay e, em seguida, foram fundadas cerca de duas por ano em toda parte da Europa. Parecia – diziam os contemporâneos – que todo o mundo queria se tornar cisterciense. Mas qual era a força que se desprendia dessas abadias bernardenses para atrair tantas pessoas? “Bernardo, em um célebre sermão74, dizia: ‘Toda a minha alta filosofia, hoje, consiste no conhecer quem é Jesus e que foi crucificado’. E quando Bernardo começou com seus primeiros companheiros a estrada que Deus lhe havia indicado e escolheu Deus só pelo caminho da cruz, ‘a sua vida com os companheiros’ – diz Guilherme de S. Thierry – ‘era caridade’. E ‘aqueles que viam como se amavam, reconheciam que Deus estava com eles’.75 Uma peregrinação de pessoas acorria para ver... quem? Deus, que de qualquer modo se manifestava através do amor recíproco dos monges.” 76

74. Id., Sup. Cant. 43, 4. 75. Cf. PL 185, 236. 76. Lubich, C. Cristo dispiegato nei secoli. Roma, Città Nuova Editrice, 1994, p. 41.


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Os monges conversos (irmãos leigos) Se os primeiros companheiros de Bernardo eram todos filhos da nobreza, depois vieram numerosos também os camponeses analfabetos a pedir-lhe para seguir o seu caminho. O abade não teve dúvida: se Deus chamava, ele não poderia senão abrir as portas. Também se não podiam se dedicar ao coro e aos estudos, o ofício deles era igualmente precioso para a comunidade e para a sociedade. Espalhar adubo nos campos, para Bernardo, era tão importante quanto cantar os salmos na igreja. Isso ele podia proclamar em voz alta, porque todos os seus monges tinham abraçado o trabalho manual e tinham como regra não aceitar terrenos que não pudessem cultivar com os próprios braços. Os monges conversos [irmãos leigos] faziam, então, os votos como todos, habitavam na abadia ou em casas no meio dos campos cultivados ou usados como pastagem. Aqueles que habitavam distante iam todos os domingos à abadia para participar da liturgia, ouvir as instruções do abade e se alimentar com toda a comunidade. “A maior contribuição que o irmão leigo poderia dar à vida do mosteiro era o trabalho de suas mãos. Isso não significava, porém, que a sua função na família monástica fosse somente econômica... O trabalho manual era parte indispensável para uma vida moldada na vida de Jesus, que como tal representava uma obrigação para os monges coristas como para os conversos. No tempo da colheita eles trabalhavam nos campos lado a lado.” 77 Foram esses monges, mesmo analfabetos, que desenvolveram técnicas avançadas na agricultura e na criação de animais, construíram moinhos de água e souberam utilizar a força hídrica também nas oficinas mecânicas. As descobertas deles tornaram-se logo patrimônio da humanidade.

Mestre de vida Bernardo não só era um exemplo de observância da regra, mas era também admirável mestre. Godofredo de la Roche-Vanneau, abade de Fontenay, encontrando-se em visita a Claraval, tendo ouvido a explicação que Bernardo dava aos monges sobre o capítulo sétimo da regra de são Bento, sobre os graus da humildade, ficou entusiasmado e, desejando repetir aos monges, pediu a Bernardo que a escrevesse. Nasceu assim a primeira obra do santo: “Os graus da 77. Lawrence, C. H. Il monachesimo medievale. Cinisello Balsamo, Ed. San Paolo, 1993, p. 238.


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humildade e da soberba”, onde se descreve o caminho que o cristão deve percorrer para alcançar o mais rápido possível aquele amor de Deus que expulsa todo temor e nos prepara para receber do Pai o dom da contemplação. Enquanto Bernardo estava ainda compenetrado em consolidar e difundir o ideal da sua ordem, escreveu a sua “Carta sobre o Amor”, endereçada aos monges da Cartuxa e ajuntou uma outra que tinha sido escrita para o cardeal Aimerico, chanceler da cúria romana. O cardeal havia lhe perguntado com qual medida precisamos amar a Deus, e Bernardo, recordando Severo de Milevi, respondera: “A medida de amar a Deus é amá-lo sem medida”.78 Esse amor casto e sem medida leva o homem à mais íntima comunhão com Deus, ao encontro e ao abraço entre a vontade humana livre e a caridade, dom de Deus. Suspirava Bernardo: Quando se poderá fazer a experiência deste impulso com base no qual o espírito, inebriado de amor por Deus, esquecido de si, se tornará para si mesmo como um vaso jogado no lixo, se atirará para Deus e unindo-se com Deus se tornará um só espírito com ele e dirá: ‘A minha carne e o meu coração estão desfalecidos; Deus é para a eternidade parte do meu coração, Deus é parte de mim mesmo?’. Não hesitarei em proclamar bem-aventurado e santo aquele ao qual tiver sido concedida uma semelhante experiência nesta vida mortal, talvez raramente ou somente uma única vez, e isto mesmo absolutamente de maneira fugaz, apenas no espaço de um só instante. Porque perder de certo modo a ti mesmo, como se não existisses e não tivesses mais inteiramente a sensação de ti mesmo e te esvaziares de ti e quase te anulares é já um residir no céu, não é mais seguir um sentimento humano”. 79

Bernardo não poderia descrever com tanta clareza essa experiência mística se não a tivesse vivido pessoalmente. E ele continua: Chegar a este sentimento significa se deificar. Como uma pequena gota d’água dentro de uma grande quantidade de vinho parece perder por inteiro a própria natureza até a ponto de assumir o sabor e a cor do vinho, como um ferro imerso ao fogo e tornado incandescente despoja-se da sua forma originária para tornarse totalmente semelhante ao fogo, como o ar percorrido pela luz do sol assume o fulgor da luz, tanto que não parece só iluminado, mas parece a mesma luz, assim nos santos será necessário que cada sentimento humano em uma certa inefável

78. São Bernardo. De diligendo Deo, no 16. 79. Ibid., n. 27.


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maneira se dissolva e mergulhe fundo na vontade de Deus. De outra forma como Deus poderá ser tudo em todos, se permanecer no homem algo do homem? Ficará certamente a substância do homem, mas em uma outra forma, glória e poder. 80

É a identificação com o Verbo divino: Feliz a alma revestida de casta beleza, da veste cândida de uma celestial inocência que lhe dá uma gloriosa conformidade contigo, ó Verbo, que és ‘candor de eterna vida, esplendor e imagem da substância de Deus’... A tua majestade não a espanta porque a semelhança a associa a ti, o amor a ti a une, a profissão a ti a desposa... Ó Verbo divino, concede-me que, abandonada cada coisa, me una a ti com todas as minhas forças, viva de ti, me deixe conduzir por ti, conceba de ti para gerar-te; faze que eu possa dizer: ‘Para mim viver é Cristo e morrer é lucro’, agora serei tua esposa. O teu coração de esposo repousará seguro em mim, sabendo que te será fiel a alma que desprezou tudo por teu amor e tudo compreende como desprezível para ganhar e possuir somente a ti. 81

Não só o mosteiro Bernardo era um místico e queria viver distante do mundo, imerso no “Vale das luzes”, mas tristes informações lhe chegaram de Roma. Em 1130, depois da morte do Papa, uma parte dos cardeais reunidos às pressas tinham elegido Inocêncio II, mas expoentes de uma outra facção logo a seguir tinham escolhido um outro, Anacleto II. Ao pedido da “esposa de Cristo”, a tanto mal reduzida pela sede de poder de alguns filhos mais influentes, Bernardo deixou a quietude do cenóbio e percorreu a França, a Inglaterra, a Germânia e a Itália, até que fez reconhecer por todos o legítimo sucessor de Pedro, Inocêncio II. Em uma das suas viagens a Roma, antes de chegar a Paris, foi convidado pelo arcebispo do lugar a falar aos estudantes, em grande maioria clérigos. Bernardo declinou do convite e ordenou ao monge acompanhante que escolhesse um outro caminho de modo que evitasse entrar em Paris, mas na manhã seguinte mudou de idéia e foi para a cidade. A permanência em Paris não deixou de dar fruto: Bernardo ganhou para o claustro três estudantes e de seu discurso nasceu o tratado “Sobre a conversão”. 80. Ibid., no 28. 81. Id, In Cantica Cant. 85, 11-12.


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Nesse livro recorda que a conversão é obra de Deus, ao passo que é dever do homem escutar a palavra e obedecer-lhe. É interessante observar que aqui a palavra não é a Bíblia, mas a voz interior da consciência que nunca está em desacordo com a Sagrada Escritura, mas é despertada nela mediante uma assídua meditação. “Não esperes” – diz ele – “ouvir de mim aquilo que a razão consegue colher na tua memória... aplica o ouvido ao teu íntimo”.82 “A esta mais íntima voz, pois, exortamos que estejam atentos os ouvidos do coração, para que assim vos empenheis em escutar, dentro de vós, Deus que vos fala, mais do que pensar e escutar um homem que estando diante de vós vos dirija o discurso. Aquela é de fato a voz cheia de esplendor e de virtude miraculosa, que abala os desertos, escava os segredos mais profundos da alma, expulsa o torpor das almas”.83 Depois, como nos outros escritos, indica o caminho a ser percorrido pela conversão até à contemplação através da prática das bem-aventuranças evangélicas. Tendo retornado à paz do claustro, não pôde permanecer nela por muito tempo. Deflagrou-se a controvérsia teológica com Abelardo, e Bernardo não teve paz enquanto a doutrina desse sábio abade não foi condenada pelo Con­ cílio de Sens. A luta pela pureza da fé foi duríssima e Bernardo com sua lingua­ gem vivaz e pungente, às vezes, não conseguia evitar os excessos.

As mulheres e Maria Um outro título dado a Bernardo é o de doutor mariano. Na realidade ele não escreveu muito a respeito de Maria, mas centralizou muito bem o papel de Maria na vida da Igreja e a descreveu com uma linguagem cheia de unção – sobretudo nos seus discursos por ocasião das festas litúrgicas – a ponto de merecer com muita justeza tal título. Para ele Maria é o exemplo mais perfeito da vida monástica cisterciense, como de todas as outras formas de vida cristã. Canta-lhe a virgindade, exalta-lhe sobretudo a humildade: “Pela sua virgindade agradou a Deus, mas concebeu pela sua humildade”. Canta-lhe as alegrias da maternidade e as dores da sua co-paixão com o Filho, mas sobretudo mostra-a a nós como modelo de vida para todos os cristãos. De Maria aos pés da cruz ele escreveu: “A força da dor penetrou a tua alma, tanto que nós te consideramos mais que mártir, tendo tu intimamente

82. Id., De conversione, no 4. 83. Ibid., n. 3.


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padecido com ele no espírito em medida tal de superar até mesmo o sofrimento do corpo. Talvez que não foram para ti mais que uma espada, que te transpassou e dilacerou a alma e o espírito, as palavras dele: ‘Mulher, eis aí o teu filho?’. Que mudança! Foi-te dado João no lugar de Jesus, o servo no lugar do patrão, o discípulo no lugar do Mestre, o filho de Zebedeu no lugar do Filho de Deus, um homem simples em vez do verdadeiro Deus”.84 Por ocasião da festa da Assunção ele cantava toda confiança em Maria: “Ó Virgem bendita... a tua piedade revela ao mundo aquela graça que tu encontraste junto de Deus: com as tuas santas orações obténs o perdão para os pecadores, a cura para os enfermos, a fortaleza para os fracos, conforto para os aflitos, ajuda e libertação para quem está em perigo”.85 Não só de Maria, mas de cada mulher Bernardo teve sempre um altíssimo conceito, tendo admirado a beleza, a inteligência em sua própria mãe e em sua irmã Umbelina. Uma carta, a ele atribuída erroneamente, fez alguns pensarem que ele fosse um misógino [contrário às mulheres]. Mas nada de mais falso. Jamais nos seus escritos se encontra uma palavra contra as mulheres e quando se deparava com suas fraquezas apressava-se a dizer que tais coisas eram comuns a todas as criaturas humanas. Ele faz notar que depois da ressurreição os dons de Deus foram concedidos primeiramente às mulheres e depois aos homens, porque o Ressuscitado se manifestou primeiramente a elas e depois aos apóstolos.86

A serviço da Igreja universal Em 1145, foi eleito papa Eugênio III, que havia sido seu discípulo em Claraval. Para ele escreveu A consideração. Talvez mais que analisar o livro, nos convém dizer alguma coisa sobre como ele concebia o ofício de bispo de Roma. Depois de ter admoestado o seu amado discípulo a respeito de sua fraqueza humana e ter censurado os vícios da corte pontifícia, reafirma a sua fé na missão do Papa, mas lhe recorda que a autoridade indiscutível de Pedro não deve nunca ser trocada pelo domínio, porque ele é chamado a “presidir para ajudar”. Quanto aos bispos, eles devem encontrar no Papa a garantia da 84. Id., De duodecim praerogativis B. M. V., 14-15. 85. Id., In Assumptione B. M. V., 4, 1.9. 86. Cf. Super Cant. 12, 8-9.


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unidade da Igreja e serem reconhecidos como representantes de Cristo, tendo também eles recebido os seus poderes diretamente de Deus. O Papa, por isso, não é dominus [senhor] deles, o patrão deles, mas é Pedro que os confirma. Bernardo não tem o conceito de Igreja como sociedade perfeita, mas como povo peregrino; ela não está composta por pessoas boas que vivem dentro dela, em oposição aos malvados que vivem fora, mas é formada por homens e mulheres que por toda a vida lutam para chegar à perfeição. “Bernardo compara a Igreja à esposa do Cântico dos Cânticos, que é ao mesmo tempo negra e formosa, ou como a rede que contém peixes bons e peixes ruins”.87 Estava muito viva nesse tempo a antiga controvérsia medieval sobre os dois poderes, o espiritual do papa e o temporal do imperador. Mesmo sendo necessariamente sob tantos aspectos filho do seu tempo, Bernardo nos deixa maravilhados pela sua posição sobre este assunto. Ele reconhece que os dois poderes são diferentes e que a mistura deles é perniciosa. Ele diz claramente ao imperador, que tenta reaver o direito de investidura dos bispos, que ele está ameaçando a liberdade da Igreja e a sua independência. Ao mesmo tempo não admite que o papa se intrometa na esfera temporal.88 Bernardo entrou na aventura das cruzadas por incumbência de Eugênio III, mas foi um fracasso. Mais feliz foi o êxito da regra para a ordem dos Templários, por ele preparada, por incumbência do legado papal, durante o Concílio de Troyes. Um monge cavaleiro – segundo esta regra – não só defende os lugares santos, mas combate o mal de todas as formas. Por isso, também se deve levar consigo as armas tradicionais dos cavaleiros leigos para desencorajar as agressões, ele usará acima de tudo as armas típicas do Evangelho: a pobreza, a castidade e a obediência. A presença dele nos lugares santos devia assegurar aos cristãos a paz necessária para visitar com devoção a terra de Jesus e exercer as obras de misericórdia. O santo abade se opôs energicamente à perseguição contra os judeus nos países europeus e na Palestina: “Os hebreus não devem ser perseguidos e nem mesmo expulsos... Se forem violentos contra nós, nem por isso devemos responder violência com a violência”.

Um homem de todos os tempos Bernardo morreu em Claraval, a 20 de agosto de 1153. Tornou-se como ele mesmo dizia – “a quimera” da Europa porque, mesmo professando com 87. Lortz, J. Storia della chiesa, I. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1987, p. 471. 88. Cf. São Bernardo. De consideratione, I, 6, 7.


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convicção “a fuga do mundo”, foi obrigado a se interessar pela política e a viajar constantemente. O seu carisma havia atraído autênticas multidões de monges e monjas, não podia permanecer patrimônio somente dos claustros. E os seus escritos continuam ainda hoje a manter viva a influência no meio do mundo. Foi proclamado santo, em 1174, e doutor, em 1830. Dante no XXI canto do Paraíso, enquanto é introduzido por ele à presença de Maria, coloca em sua boca estas palavras: “E a rainha do céu, onde ardo / todo amor, lhe fará toda graça, / porém eu sou o seu fiel Bernardo”.

21 de agosto São Pio X papa (1835-1914) “Recapitular todas as coisas em Cristo.” 89

Abriu-se o conclave em 1º de agosto de 1903, mas não foi fácil. Nas primeiras votações parecia certa a eleição do cardeal Rampolla, homem de caráter forte e de mente aberta, já secretário de Estado do falecido Leão XIII, mas intervém o cardeal de Cracóvia para comunicar o veto contrário a essa candidatura por parte do imperador da Áustria, Francisco José. Ele tinha medo de um Papa que levasse adiante a linha social do predecessor em um momento no qual as revoluções sociais do mundo operário não prometiam nada de bom para a classe burguesa. Os cardeais, pro bono pacis (para o bem da paz) e por sugestão do mesmo Rampolla, desistiram da sua candidatura. Seus votos se orientaram para o patriarca de Veneza, o cardeal José Sarto, para todos notável pela santidade de vida, pela segurança doutrinal e pela moderação no campo social.

Como se tornou padre e depois bispo Nasceu em Riese (Treviso) a 5 de junho 1835, de uma família pobre e numerosa: era o segundo dos dez filhos do casal. Tinha tido a ventura de 89. Ef 1,10.


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estudar devido ao interesse de alguns sacerdotes e depois do patriarca de Veneza, também nascido em Riese, que lhe ofereceu um lugar gratuito no seminário de Pádua. Aos 17 anos morreu o pai, oficial de justiça, e os administradores do município sentiram o dever de oferecer-lhe o emprego paterno para poder ajudar a mãe, mas a mãe Margarida rejeitou a oferta. Teria ela pensado, trabalhando noite e dia com suas mãos de costureira, que conseguiria cuidar dos outros filhos; José devia seguir sua vocação! Aos 23 anos, de fato, foi ordenado sacerdote e, em seguida, nomeado capelão em Tombolo, uma pequena paróquia na montanha, onde por nove anos trabalhou com entusiasmo. De lá, foi promovido a pároco em Salzano e ali permaneceu por outros nove anos. Em 1875 foi transferido para Treviso e nomeado cônego, chanceler episcopal e diretor espiritual do seminário. Cumpria seus trabalhos com dedicação e competência. Para não fazer as pessoas interessadas esperarem, levava para casa os papéis ainda não concluídos no seu ofício e as despachava trabalhando durante a noite. Tinha uma boa saúde e lhe bastavam apenas quatro horas de sono para recuperar as energias. Seu modo de agir, cheio de compreensão para com os outros, e o seu amor especial pelos pobres granjearam-lhe a estima e o afeto de todos, tanto que, vindo a faltar o bispo, foi eleito vigário capitular. Em 1884, Leão XIII escolheu-o para bispo de Mântua. A diocese atra­ vessava um período particularmente difícil, tanto internamente quanto no relacionamento com o poder civil. O novo bispo Sarto não só soube apaziguar os ânimos, mas levou à realização uma profunda renovação da vida cristã em toda a diocese. Em junho de 1894, o Papa, depois de tê-lo eleito cardeal, destinouo para a sede de Veneza, também essa particularmente difícil. Precisou de fato esperar dezessete meses para receber o beneplácito do governo. O rei da Itália reivindicava o direito de escolha do patriarca por um antigo privilégio da República Vêneta, mas ao fim cedeu em troca da criação da prefeitura apostólica na Eritréia. Com este ato, de fato, a Santa Sé reconhecia, ainda que apenas implicitamente, a autoridade da Itália sobre esse território colonial. Em Veneza, o cardeal Sarto continuou sua linha pastoral que nesse momento já estava bem delineada: a formação do clero, a catequese a todos, mas especialmente às crianças, a renovação da liturgia, a assistência aos pobres. Convencido da importância do clero na direção espiritual das paróquias, ele tomou um cuidado particular com a preparação dos futuros sacerdotes, não só por


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tudo o que se referia à formação espiritual, mas promovendo também os estudos teológicos, bíblicos, litúrgicos, de direito canônico e de economia social. Nesse período conheceu o jovem Lourenço Perosi, logo lhe admirou o talento musical, encorajando-o e ajudando-o para que pudesse fazer os estudos teológicos. A ele confiou a reforma do canto litúrgico, primeiro em Veneza e depois em Roma. Também a vida religiosa do povo reflorescia em Veneza. Os adultos eram instruídos na fé e agregados às associações religiosas; as crianças eram preparadas para a primeira comunhão e para a crisma com especial empenho; as missas eram celebradas com decoro e com a solenidade dos cantos litúrgicos. Se bem que o patriarca entendesse os pobres – segundo o pensamento em voga naquele tempo – como um componente inevitável da sociedade, depois na prática, diante das suas necessidades, doava tudo quanto tinha. Quando foi para Veneza não quis que lhe preparassem a púrpura cardinalícia nova, mas fez remendar pelas suas irmãs a velha púrpura de seu predecessor para dar aos pobres aquilo que seria gasto para fazer uma nova. Na diocese amava a todos e era amado por todos. Era um pastor zeloso, também exemplar mas, quando no conclave os cardeais começaram a pronunciar seriamente o seu nome, foi pego de surpresa e entre lágrimas suplicava que o esquecessem, pois se sentia incapaz de ser o Papa. Seu grito aflito não foi acolhido.

Um papa pastor No Vaticano o papa Sarto continuou seu estilo de vida, abolindo certos costumes que contrariavam a simplicidade evangélica. Não usou mais o plural majestático; na primeira noite percebeu que um guarda permanecia a guardar a porta do seu apartamento e mandou-o repousar; na basílica de São Pedro dispensou os tradicionais aplausos, e à mesa sempre quis pessoas com as quais pudesse conversar. Levou para Roma as irmãs que o tinham sempre assistido e lhes deu um pequeno apartamento e um rendimento apenas suficiente para viver e a quem lhe perguntou com que título nobiliárquico gostaria que elas fossem chamadas, respondeu que lhes bastava o título de “irmãs do Papa”. Nenhum de seus parentes recebeu especial favor durante seu pontificado. Pio X escolheu logo, como um de seus deveres primários, a formação do clero, tanto na diocese de Roma quanto fora dela. Onde os bispos não tinham


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meios para manter um seminário diocesano, ele assumiu o dever de construir e manter seminários regionais sob a direção e a responsabilidade da Santa Sé. Em Roma, além de fomentar os estudos nas faculdades pontifícias existentes, fundou o Pontifício Instituto Bíblico. Para os sacerdotes escreveu a famosa encíclica Haerent animo, que se tornou a magna charta na qual se inspiraram todos os formadores dos seminários. Um outro empreendimento foi a reforma litúrgica, que teria dado os seus frutos, marcando o início da piedade litúrgica moderna e colocando as bases das futuras reformas até o Vaticano II. O Papa via na missa dominical o centro e o ápice da vida cristã, onde os fiéis devem ser alimentados com a palavra de Deus, a todos dada em linguagem acessível, e com a eucaristia, ofertada às pessoas não só para os adultos, mas também para as crianças devidamente preparadas. Também o Papa não quis renunciar ao contato direto com o povo. Não podia visitar as paróquias romanas pela situação política na qual se encontrava o Vaticano depois da ocupação de Roma pelo Estado italiano, mas cada domingo chamava a São Pedro uma paróquia para explicar o Evangelho e celebrar a eucaristia. Para a formação do povo, ele quis o catecismo que traz o seu nome. Em uma forma dialogal de perguntas e respostas explicava toda a doutrina católica de modo que também os analfabetos pudessem aprendê-la de memória. O árduo trabalho foi muito apreciado e o catecismo se impôs em toda a Igreja do rito romano. Realizou também a reforma da cúria romana, separando o poder administrativo do poder judiciário, centralizando o governo universal da Igreja e organizando comissões que preparassem o novo Código de Direito Canônico, publicado em 1917 pelo seu sucessor. No contato com os governos procurou limitar ao máximo a ingerência deles na escolha dos bispos e eliminou toda possível intervenção na eleição do papa.

Santo, mas filho do seu tempo Hoje – sem colocar em dúvida a santidade da sua vida –, os historiadores fazem também alguns reparos ao período histórico no qual Pio X governou a Igreja católica. Inevitavelmente ele foi filho de seu tempo, e nem sempre teve em plenitude o dom profético de discernir bem todos os sinais dos tempos. Agia segundo a eclesiologia então comum e tão bem resumida na sua encíclica Vehementer: “A Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, isto é, uma


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sociedade que compreende duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho, aqueles que ocupam um ofício nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E essas categorias são de tal modo diferentes entre elas que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para o fim da sociedade; quanto à multidão, ela não tem um outro papel senão aquele de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os pastores”. À luz de tal eclesiologia compreende-se a preocupação pelas novidades que o complexo fenômeno do assim chamado modernismo trazia para o interior da Igreja. Para muitos eclesiásticos não era fácil descobrir aquilo que de positivo se ocultava por trás dos pedidos de mudanças na Igreja, antes muitos deles viram no fenômeno do modernismo “a soma de todas as heresias” e sentiam o dever de extirpá-lo. Também Pio X teve medo das idéias propostas pelo modernismo, e os integralistas de então aproveitaram-se disso para desencadear uma verdadeira perseguição contra todos aqueles que não concordavam com a linha da cúria romana. Em um mundo em contínua evolução e agitado pelos graves problemas sociais, em uma sociedade onde se fazia sempre mais vivo o contraste com a Igreja por parte dos seguidores de ideologias, tanto liberais quanto comunistas, Pio X procurou agir deixando-se guiar pelas exigências do Evangelho mais do que pela da humana diplomacia. Por isso passou a encontrar-se em oposição com os governos da Áustria, da Rússia, da Alemanha e, sobretudo, da França. Quando o governo francês rompeu a concordata e impôs condições que limitavam a liberdade da Igreja, ele pediu aos bispos que aceitassem a espoliação de todos os benefícios e privilégios gozados até então, para iniciar na França um caminho mais evangélico, aquele da pobreza e da independência em relação ao poder civil. Uma escolha que com o tempo se revelou especialmente fecunda. Na Itália, ainda estava viva a “questão romana” e ele afrouxou um pouco a disposição de seus predecessores que proibia a participação dos católicos na vida política, permitindo-a em determinadas condições. Para nós, hoje, esse foi um tímido passo adiante; naquela época, porém, foi um passo gigantesco. João Paulo II, comemorando o papa Pio X na sua terra natal, em 1985, trazia à luz um aspecto particularmente interessante da sua figura: “Lutou e sofreu pela liberdade da Igreja, e por esta liberdade se revelou pronto a


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sacrificar os privilégios e as honras, a enfrentar incompreensões e escárnios, quando valorizava esta liberdade como garantia última para a integridade e a coerência da fé”. Morreu aos 20 de agosto de 1914, assistindo impotente à explosão da Pri­ meira Guerra Mundial e para evitá-la ofereceu-se em vão como intermediário. Ao embaixador da Áustria que teve a ousadia de pedir-lhe que abençoasse as tropas austro-húngaras, que partiam para ocupar a Bélgica, opôs a mais nítida recusa, justificando-a com estas palavras: “Eu abençôo a paz!”.

23 de agosto Santa Rosa de Lima virgem, padroeira principal da América Latina (1586-1617) “As doçuras e a felicidade que o mundo pode me oferecer são apenas uma sombra referente àquilo que eu experimento.” 90

Quando criança, se retirou a uma pequena cela, construída no fundo do jardim de sua casa, a mais linda moça de Lima. Seu gesto pareceu absurdo a muitos de seus contemporâneos, mas ela foi conquistada por um amor maior.

“Sois bela, sois rosa” Rosa é a primeira santa canonizada no continente latino-americano, contemporânea do arcebispo da cidade, são Turíbio de Mongrovejo, que teve a alegria de lhe administrar a crisma e de a incentivar no caminho da santidade. Na realidade, seu nome de batismo era Isabel, mas Mariana, a doméstica índia que lhe servia de babá, sensibilizada pela beleza da menina e seguindo o costume dos indígenas, deu-lhe o nome de uma flor, que pudesse exprimir melhor sua fascinante harmonia: “Sois bela” – disse-lhe –, “sois rosa!”. E o nome novo pegou, mais que o outro que ficou esquecido no registro de batismo. 90. Cit. in: Sgarbossa, M. – Giovannini, I. Il santo del giorno. Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1986, p. 403.


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Nasceu em Lima, capital do rico Peru, em 1586, de progenitores abastados provenientes da Espanha; viveu uma infância serena e economicamente privilegiada, mas a seguir os seus pais não conseguiram enriquecer no novo mundo. Rosa, que havia estudado com dedicação, adquirira uma bela cultura e tinha aprendido a arte de bordar como convinha a todas as meninas da aristocracia espanhola; arregaçou as mangas e ajudou os pais em todas as espécies de atividades: dos trabalhos de casa ao cultivo da horta e ao bordado. Gostava, sobretudo, de cuidar do jardim e depois ela mesma saía a vender as flores e as peças de bordado nas casas da nobreza de Lima.

O amor pelos índios Ela, que experimentava a pobreza na sua casa, olhando ao redor, fora e dentro das casas dos ricos, descobriu uma outra ainda mais humilhante situação, a dos índios. Comovia-se, sobretudo, vendo como era comum os descendentes dos nobres incas serem maltratados pelos fidalgos espanhóis. Sua amizade com Mariana foi importante. Havendo entre as duas um entendimento perfeito, Rosa por seu intermédio via toda a nação inca. Como gostaria de mudar o rumo da história! Por que vir à América trazendo guerras, destruições e ódio, quando os cristãos são chamados a semear o amor em toda parte? Quando podia falar às pessoas, não conseguia suportar o fogo que ardia dentro de si, e proclamava que o verdadeiro Deus quer um mundo diferente, pois deseja o bem de todos indistintamente. Agradavam-lhe as pregações do seu bispo, e quando ele não estava fora em missões, não perdia dele sequer uma missa. Ele, sim, que amava os índios. Certo dia soube-se que ele tinha morrido, longe de Lima, em uma capela, no meio dos índios. Um pensamento atormentava a mente da menina. “Por que” – perguntavase ela angustiada – “os índios devem sofrer tanto?”. Não encontrava resposta, até que descobriu – ou melhor, até que Alguém lho revelou – o valor redentor da dor.

A pérola da vida cristã Tinha lido alguma coisa de santa Catarina de Siena e logo entendeu-a e a tomou, como se fosse sua mãe e irmã, como modelo. Dela aprendeu o amor ao


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sangue de Cristo e a paixão pela Igreja. Como a santa de Siena, também para Rosa Deus lhe mostrou a beleza dos que se entregam a Deus na virgindade e se colocam a serviço dos irmãos. Então ela passou a viver de maneira austera e, não havendo em Lima nenhum convento feminino, obteve a licença de vestir o hábito de irmã terciária dominicana como Catarina e se retirou para a vida contemplativa em uma pequena cela, em uma casa pequena no meio do seu jardim. Tinha 20 anos e passou a ser chamada de Rosa de Santa Maria. Tinha andado tanto até esse momento pelas ruas e pelas casas de Lima, que lhe parecia justo se recolher, pois, à oração, contemplar o seu esposo crucificado é reviver-lhe a paixão pela conversão dos espanhóis e pela difusão do Evangelho entre os indígenas. Sua escolha tinha mexido com a sociedade “para o bem” e sua beleza parecia desperdiçada naquele retiro tão original, mas Rosa tinha sua missão para ser cumprida. Assim, enquanto alguns – e não eram poucos – zombavam dela considerando-a uma louca, outros, ao invés, iam visitá-la, ouviam-na com respeito e sentiam que o próprio coração mudava. Gostava de repetir a todos: “Se os homens soubessem o que é viver na graça, não se assustariam com nenhum sofrimento e padeceriam de boa vontade qualquer sofrimento, porque a graça é o fruto da paciência”.91 Mas era difícil comunicar aos seus concidadãos, preocupados em acumular riquezas por todos os meios e a todo custo, tudo o que o Senhor lhe revelava na intimidade da oração: “Posso explicar-me” – dizia – “só com o silêncio”, o silêncio de sua pequena ermida. “... para que aumentes o meu amor por ti!”

Infelizmente, as privações sofridas durante anos tinham debilitado o seu físico. Permanecer sozinha naquela pequena casa no fundo do jardim, depois da morte de seus pais, não era mais aconselhável. Aceitou o convite de dom Gonzalo de la Maza e de dona Maria de Uzategui, e em 1614 foi morar na casa deles, onde havia todas as condições para viver uma vida na oração, pois esse santo casal, sozinho e de idade avançada, eram para Rosa como que dois anjos guardiões que não só não a perturbavam, mas a protegiam. 91. Dos Escritos de Santa Rosa de Lima: Getino, L. (ed.). La Patrona de América. Madrid 1928, p. 54.


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Foram três belos anos, esses últimos, não porque Rosa não sofresse, mas porque ao menos tinha alguém ao seu lado, e alguém que compreendia o amor por Deus que lhe ardia no peito a ponto de fazê-la dizer: “Não pensava que uma criatura pudesse ser atingida por tanto sofrimento. Meu Deus, aumentaio, todavia, para que aumente o meu amor por vós”. Como Catarina, também ela foi tornada digna de reviver na sua carne a paixão do seu Esposo. Assim que sentiu se aproximar a sua partida para o céu, Rosa confiden­ ciou ao casal Maza: “Este é o dia das minhas núpcias eternas!” Morreu aos 24 de agosto de 1617, festa de são Bartolomeu apóstolo, que ela tanto admirava por ter sofrido um martírio particularmente doloroso. Um pintor, Angelino Medoro, chamado às pressas pelo senhor Maza, pouco antes que Rosa deixasse esta terra, reproduziu-a ao vivo sobre o leito de morte. Tinha apenas 31 anos e não havia perdido os traços belíssimos da sua fisionomia. Era a imagem mais verdadeira da América Latina que, mesmo tendo tido como presente do Criador uma beleza encantadora e uma riqueza sem limites, por vicissitudes históricas, quase sempre desumanas, viveu sempre na pobreza e na dor. Não obstante isso, jamais perdeu a confiança no amor de Deus e sempre nutriu a esperança de um futuro melhor. Talvez seja por isso que Rosa de Lima foi escolhida como a padroeira do Continente da esperança.

24 de agosto São Bartolomeu apóstolo (século I) “Os filósofos, os reis e, numa palavra, todo o mundo, que se perdem em milhares de atividades, não podem nem mesmo imaginar quanto bem puderam realizar com a graça de Deus aqueles publicanos e pescadores.” 92

Mesmo que a história dos homens não nos ofereça particularidades importantes a respeito da vida da maior parte dos apóstolos, a veneração da 92. João Crisóstomo. Homilias 4, 4: PG 61,36.


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Igreja a cada um deles foi sempre imensa. Eles, de fato, com o seu livre e amoroso consentimento, primeiro permitiram a Jesus reviver e transplantar para o colégio apostólico a vida da Trindade, e depois difundi-la no mundo. Bartolomeu quer dizer filho de Tholmaj; enquanto que o seu verdadeiro nome seria Natanael. Era originário de Caná da Galiléia. Seu encontro com Jesus é narrado no Evangelho de João (1,45-51). Ao convite de Filipe para seguir Jesus de Nazaré, no qual ele reconhece o tão esperado Messias, Natanael responde que de Nazaré não se poderia esperar nada de bom. O amigo, porém, não o deixou em paz, lançando-lhe o desafio de ir e ver com os próprios olhos. Natanael decidiu-se a acompanhálo mais para agradar Filipe do que na esperança de encontrar alguma coisa de importante, mas, assim que se apresentou diante do Mestre, sentiu-se surpreso com as palavras que ouviu: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há falsidade”. O relato evangélico continua: “Natanael pergunta-lhe: ‘De onde me conheces?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Antes que Filipe te chamasse eu te vi quando estavas debaixo da figueira’. Replicou-lhe Natanael: ‘Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o rei de Israel!’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Porque eu te disse que te vi debaixo da figueira, crês! Verás coisas maiores do que esta!’. Depois disse: ‘Em verdade, em verdade vos digo: vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem’”. Daquele dia em diante Natanael foi fidelíssimo ao Mestre e foi escolhido para fazer parte do grupo dos Doze. Depois de Pentecostes algumas tradições o fazem apóstolo do norte da Índia e até mesmo da Arábia Feliz, o atual Yêmen; outros colocam o seu apostolado na Mesopotâmia, na Licaônia, na Frígia e, por fim, na Armênia, onde teria convertido o rei Polímio, e teria depois sido esfolado vivo, segundo a lei da Pérsia. As relíquias viajaram muito: da Armênia para a ilha de Lipari, em Benevento, e por fim para Roma, enquanto que sua cabeça é venerada em Frankfurt sobre o Meno. A liturgia ambrosiana o celebra com estas palavras: “O apóstolo Bartolomeu, seguindo o exemplo glorioso de Cristo, não hesitou por seu amor a derramar o próprio sangue. Com o triunfo admirável de seu martírio nos comunica uma grande esperança na nossa vitória”.93 93. MA II, 1244.


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25 de agosto São Luís rei da França (1214-1270) “Os olhos e a palavra do rei tinham somente o desejo de trazer a paz e a tranqüilidade para a alma daqueles que iam visitá-lo com o coração arrasado pelas paixões.” 94

Difundir assim a paz é próprio dos santos. São Luís IX, rei da França, gostava de se chamar Ludovico de Poissy, lugar no qual foi batizado, para afirmar que a dignidade de ser cristão, para ele, tinha mais importância do que a dignidade régia. Por isso é que a Igreja o venera também com o seu nome de batismo: são Ludovico. Luís nasceu em 1214 e foi coroado rei na idade de 12 anos, por causa da prematura morte do pai; permaneceu sob a regência da mãe Branca de Castela. Afirma-se que ela era uma senhora profundamente religiosa, mas também experiente em política; soube cercar-se de colaboradores honestos e competentes, e cuidou com igual empenho seja da formação humana e cristã do filho, seja da administração do reino. Quando Luís chegou à maioridade, assumiu as responsabilidades de rei em pleno acordo com a mãe e casou-se com Margarida da Provença. Para evitar que seu matrimônio fosse fruto de gélidas leis da política, Luís, evitando astutamente a vigilância da mãe, havia se encontrado várias vezes com a futura esposa, e tinha dado seu consentimento só depois de estar certo de que entre eles havia amor verdadeiro. De fato foi um matrimônio feliz: os dois cônjuges se amavam ternamente e tiveram numerosos filhos. Recorda-se só um episódio de desentendimento entre os dois, quando a rainha queria conceder favores aos seus parentes; o rei se opôs decididamente, não querendo que a praga do nepotismo se infiltrasse na corte.

O pacificador Já no início de seu governo, Luís precisou enfrentar problemas muito graves. O fato de firmar-se a autoridade régia no século XIII havia suscitado o 94. Cit. in: Bibliotheca sanctorum, VIII. Roma, Città Nuova Editrice, 1988, 321.


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ressentimento de vários fidalgos das províncias francesas, e eles, com o apoio dos soberanos da vizinha Espanha e da Inglaterra, levantaram-se em rebeliões armadas, reivindicando a própria independência. Luís, não sem o conselho da mãe, soube trazer a paz, conservando a unidade do reino e indo ao encontro daquelas que lhe apresentavam as justas reivindicações dos soberanos da Inglaterra e da Espanha. O seu modo de agir foi tão apreciado em toda a Europa que lhe deram o nome de pacificador e várias vezes foi convidado a conciliar as controvérsias entre os príncipes, e a estabelecer a paz entre o imperador e o papa. O rei tinha bem claro o seu programa de vida: ser um homem justo para cuidar bem de todos os súditos. Dizia: “Eu gostaria muito de receber o nome de prud’homme (homem prudente) sob a condição de verdadeiramente o ser”.95 É difícil traduzir essa expressão, talvez o termo mais exato seja o bíblico de homem justo no sentido de que possui um grande equilíbrio, porque no seu agir se deixa guiar por Deus. Estava convencido de que para realizar este grande trabalho seria preciso tornar-se santo. No século XIII, o ideal de santidade ainda era o monástico ora et labora (oração e trabalho). Luís assumiu esse ideal. Todos os dias os clérigos da corte celebravam duas missas e recitavam no coro as horas canônicas na presença do rei e da sua família. Durante o ano Luís se submetia rigorosamente aos jejuns prescritos pela liturgia e às obras de caridade a favor dos pobres. Todo dia dava de comer a trezentos pobres e freqüentemente convidava treze deles para a sua mesa e os servia pessoalmente. A quem lhe observou que gastava muito com os pobres, ele respondeu: “Prefiro gastar em esmolas por amor de Deus, do que em luxo para a vanglória deste mundo”. A figura monástica que mais o atraía era a de Bernardo de Claraval, que lhe transmitiu também o amor pela Terra Santa. Às suas expensas fez construir a abadia cisterciense de Royaumont, para onde ia de boa vontade servir na mesa os monges e para assistir com os seus médicos da corte os monges doentes. Depois ia visitar e servir pessoalmente um monge leproso que, para evitar o contágio segundo a mentalidade do tempo, vivia sozinho em uma pequena casa isolada. O rei tinha muita admiração pelos franciscanos e dominicanos, e favo­ receu a presença deles na Universidade de Paris, interessando-se pelas novas 95. Joinville. Histoire de Saint Louis. Angers, Ed. E. Jarry, 1942, c. 5.


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aberturas intelectuais de Alberto Magno, Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio. Além disso, encorajou Roberto de Sorbon na fundação da escola que depois se tornou a famosa Sorbonne.

O amor pelos últimos Profundamente sensibilizado pela figura de Francisco de Assis, o rei tornou-se terciário e dele aprendeu a reconhecer no rosto de qualquer pobre a figura de Cristo. Isso o ajudou a ver com olhos novos a situação dos camponeses de seu reino: a classe que mais sofria pela opressão dos senhores. Ele, homem de oração, revelou-se também homem de ação, empenhandose em uma grande reforma da justiça, que foi retirada das autoridades locais e confiada aos enviados régios. Estes, sob precisas instruções, viajaram pelas províncias, ouviram os lamentos do povo e obrigaram os senhores a acertar o que estava malfeito. Em toda a França foi instituído um sistema judiciário mais equânime que dependia diretamente do rei. Essa reforma foi, naquele tempo, uma novidade sem par em prol dos mais fracos e permaneceu vigente até a Revolução Francesa. No seu testamento deixava ao seu herdeiro, como conselho, tudo o que ele sempre havia realizado: “Para os teus súditos comporta-te com retidão, de tal maneira que estejas sempre no caminho da justiça, sem te desviares nem para a direita nem para a esquerda. Fica sempre preferivelmente mais do lado do pobre do que do lado do rico, enquanto não estiveres certo da verdade”.96

A aventura das cruzadas Uma página menos gloriosa na vida de Luís foi a das cruzadas. Ele tinha no coração mais o espírito batalhador de Bernardo de Claraval contra os sarracenos ou o espírito mais conciliador de Francisco de Assis? Talvez as duas realidades conviviam e se alternavam na sua pessoa. Mas uma coisa é certa: ele não empreendeu as cruzadas com a finalidade de lucro, mas unicamente na tentativa de assegurar aos cristãos livre acesso à Terra Santa. A primeira expedição, que partiu da França em 1248, parecia que teria bom êxito depois da conquista de Damieta nas margens do rio Nilo, mas

96. Do Testamento espiritual ao filho. Cit. in: Acta sanctorum, agosto, V (1868), 546.


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– pela desobediência do conde de Artois – o exército cristão foi derrotado e o rei foi aprisionado. Um acontecimento imprevisto, mas talvez providencial, porque a permanência do rei como prisioneiro entre os muçulmanos suscitou neles uma profunda admiração, tanto que o chamaram de sultão justo. Solto junto com o restante do exército, depois do pagamento de um pesado resgate, reencontrou-se com a mulher e as milícias que permaneceram defendendo Damieta e foi para São João de Acre. De acordo com o sultão do Egito, ele podia reforçar o governo dos cristãos na Terra Santa, com a finalidade de conter o avanço dos mongóis para o Egito. Luís, depois de ter consolidado as fortalezas cristãs durante quatro anos, deixando tudo em paz, voltou para a França. Infelizmente, nos anos seguintes, os mongóis não ficaram parados, conquistaram a Síria, avançando ameaçadoramente para o sul; os muçulmanos por sua vez avançaram para o norte e tomaram posse de São João de Acre. Luís sentiu novamente o chamado às cruzadas e em 1270 colocou-se em viagem, dirigindo-se junto com o irmão Carlos de Anjou para as costas da Tunísia. Teria sido mais vantajoso estrategicamente desembarcar na Síria, aliar-se com os mongóis e depois ir contra os muçulmanos, mas Luís tinha recebido a informação de que o emir da Tunísia o esperava nas suas terras, porque desejava abraçar o cristianismo. Não lhe parecia justo traí-lo e ele enviou uma mensagem dizendo-se pronto a passar toda a sua vida em prisão, sem ver jamais a luz, se isso servisse para dar a fé cristã ao emir e ao seu povo. Mas quando suas tropas colocaram os pés nas margens cartaginesas não só não encontraram amigos, mas tiveram de se deparar com a peste. O próprio rei foi atingido pelo mal, morrendo no dia 25 de agosto de 1270. Carlos de Anjou apressou-se a concluir com o emir um tratado comercial que favorecia a Sicília e, pegando os remos na barca, tomou o caminho de retorno. O que restava do exército francês, depois de uma longa e penosa viagem, retornava para a França, levando o esquife do rei que já gozava da fama de santo. Foi também reconhecido oficialmente pela Igreja em 1297.

Um caminho de santidade para todos A figura de são Luís teve uma grande importância na história da espiritualidade cristã, pois ele demonstrou que a vida evangélica não era privilégio só de quem com a fuga mundi se refugiava nos mosteiros, mas podia encarnar-se também nas vocações seculares no mundo.


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Um historiador moderno observou que naquela época com “(...) a separação entre clérigos e leigos, a Igreja sente a necessidade de reconhecer oficialmente o valor da vida vivida no seio da sociedade. (...) A canonização do rei da França, Luís IX, por obra de Bonifácio VIII, em 1297, é disso uma luminosa demonstração. (...) Os ofícios (litúrgicos) falam da perfeição da sua vida e os textos salientam que Luís foi um homem ‘à procura de Deus’: esta fórmula antes se aplicava (só) a quem renunciava viver no mundo. Através dos louvores a ele conferidos (...) possam-se determinar as condições do caminho para a perfeição: o conhecimento da palavra de Deus, a castidade vivida no matrimônio, o espírito de pobreza praticado no meio das riquezas, uma caridade inseparável da justiça, o zelo pela fé e a procura da paz. Finalmente, uma soma de virtudes que justificou a sua canonização”. Com a morte desse rei santo o espírito batalhador das cruzadas, que até então tinha regulado os relacionamentos entre os cristãos e os muçulmanos, começava a perder incidência, mas ainda será preciso muito tempo para que a incompreensão entre a cruz e a meia-lua cessasse de fazer espargir sangue e o espírito de diálogo abrisse novos horizontes para a vantagem de todos.

25 de agosto São José de Calasanz fundador das Pias Escolas (1557-1648) “A missão educadora requer muita caridade, paciência a toda prova, humildade profunda, mas quem a isso consagra a vida e pede a Deus ser fiel ao seu empenho educativo, além da alegria de sentir-se escolhido como cooperador da verdade, terá do próprio Deus amparo e conforto, e dele receberá a recompensa.” 97

O período pós-tridentino traz uma constelação de santos um tanto extraordinário, não porque a sociedade do tempo fosse muito favorável para produzir em abundância esses frutos raros, mas porque, estando enferma, Deus suscitou personalidades excepcionais com carismas especiais para curála nos seus diversos setores. Para a evangelização e a promoção humana dos 97. Cf. Picanyol, L. Epistolario di san Giuseppe Calasanzio. Roma, Ed. Calas, 1956.


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jovens das classes mais pobres surgiram, por exemplo, educadores como José de Calasanz, César Bus, Pedro Fourier, Jerônimo Emiliani. José de Calasanz nasceu em Peralta de la Sal, diocese de Urgel na Catalunha (Espanha), em 1557, e sendo de família rica pôde estudar até tornar-se doutor em teologia. Tinha recebido uma boa educação cristã e seguiu com facilidade sua vocação ao sacerdócio. Certamente teria se tornado bispo, se uma paixão secreta que lhe ardia no coração não o tivesse levado a Roma, em 1592. Entrou em contato com o cardeal Ascânio Colonna, que esperava tê-lo por perto, como perito em direito e teologia. Na realidade, esse padre espanhol não sabia ainda o que Deus queria dele. Vivia uma existência muito reservada, dedicando-se à oração e às penitências, também porque a ajuda que o cardeal lhe pedia era geralmente esporádica. Aos primeiros fulgores do dia colocava-se a caminho para visitar uma das basílicas romanas; depois ia cuidar dos doentes como enfermeiro nos hospitais, e comumente ia às prisões visitar os encarcerados. Sentia-se atraído pelos mais oprimidos: servi-los era como estar em adoração diante do Santíssimo Sacramento.

Descoberta da vocação Mas certo dia passando pelas ruas de Trastevere descobriu uma grande chaga. Em Roma, como em todas as grandes cidades, havia um grande número de jovens abandonados e destinados, mais cedo ou mais tarde, a seguir os caminhos do mal. Se nos campos os jovens passavam fome, pelo menos se ocupavam com alguma atividade e ganhavam algum pedaço de pão; nas cidades, ao invés, estavam abandonados a si mesmos e deviam arranjar-se e roubar se quisessem conseguir mastigar alguma coisa. Um modo de viver difícil e muito desagradável para as pessoas, razão pela qual muitos os odiavam, poucos eram os que lhes ofereciam alguns trapos para se cobrirem ou um pouco de alimento, e quem o fazia exigia que trabalhassem como se fossem escravos. Diz-se que saco vazio não pára em pé, mas talvez aqueles rapazes nesse momento conseguiam manter-se de pé por puro desespero; mas quem sempre sofre e é maltratado, pode também se revoltar e se tornar um verdadeiro ladrão ou alguma coisa pior, se a morte não chega para levá-lo prematuramente. Diante dessas cenas que todos os dias se apresentavam aos seus olhos, José encontrou a própria vocação: uma voz interior lhe pedia para tornar-se


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pai dos garotos da rua. Por que não reuni-los e ensiná-los a ler e a escrever, a viver como cristãos e tornarem-se homens de respeito? Ele nasceu rico e ainda o era. Por que não gastar o seu patrimônio nesse objetivo? Não pensou duas vezes, e em setembro de 1597 abriu uma escola gratuita para rapazes pobres, a primeira na Europa. Só os filhos dos ricos naquele tempo tinham acesso à instrução que custava muito caro; os outros estavam condenados ao analfabetismo. Sua iniciativa suscitou admiração em alguns, espanto em muitos e um pouco de sarcasmo em outros. O Concílio de Trento havia indicado na instrução religiosa dos rapazes um meio precioso para a renovação da sociedade, e por toda parte nas paróquias, nas irmandades e nos oratórios surgiram as escolas dominicais de catecismo.

O método de Calazanz José teve uma visão mais ampla das diretrizes conciliares, visando à formação integral do homem, e não somente ao ensino religioso. Entretanto, em suas escolas usava-se a língua italiana, de modo que todos pudessem compreender; além do mais não se davam só noções abstratas, mas preparavamse os rapazes para o exercício de uma profissão; e aqueles que dentre eles revelassem qualidades destacadas para os estudos eram acompanhados e assistidos para continuar nas escolas superiores e também na universidade; enfim, o ensino religioso devia ser transmitido pelos mestres, não tanto com palavras mas com o exemplo. Aos seus filhos – e não só a eles – ele comunicava sua paixão de educador: “É missão nobilíssima” – escrevia – “e fonte de grandes méritos aquela de dedicar-se à educação das crianças, especialmente as pobres, para ajudá-las a conseguir a vida eterna. Quem se torna mestre e, por intermédio da formação intelectual, se empenha em educá-los sobretudo na fé e na piedade, realiza de algum modo para com as crianças a missão dos seus próprios anjos da guarda e se torna altamente benemérito pelo desenvolvimento humano e cristão deles”.98 Quis que o “centro” da escola fosse sempre a capela com a presença eucarística, para que ficasse claro, também visivelmente, que o verdadeiro mestre de todos, professores, colaboradores e alunos, é Cristo. Por isso, coisa 98. Ibid.


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única naquele tempo, fazia ler o Evangelho em italiano e o comentava com a vida dos santos mediante leituras. Ele tinha como base a palavra de Deus para educar os rapazes, mostrando-lhes o rosto amoroso do Pai em um tempo em que ainda era forte a imagem autoritária de Deus. Os métodos educativos de então admitiam como normal o uso de meios coercitivos com castigos também físicos. Ele trouxe para este campo uma radical inovação. O aluno não deve ter medo do mestre porque o castiga, mas segui-lo porque tem confiança nele. Quem comete um erro não espera vingança, mas recorre ao perdão de Deus através da confissão e retoma o caminho com maior empenho. Seu método então é a confiança que cria a convicção interior.

Os escolápios Ao redor de Calasanz reuniram-se outros colaboradores, sacerdotes, leigos, que se constituíram em congregação religiosa com o nome de Congregação Paulina dos Pobres da Mãe de Deus das Escolas Pias. O povo simplificou o nome chamando-os de escolápios. Gregório XV elevou a congregação à ordem regular com votos solenes, e em 1622 José foi eleito superior vitalício. Aos três votos tradicionais eles acrescentaram um quarto, o de se consagrar à instrução dos jovens, especialmente dos mais pobres. Mesmo em meio à penúria e dificuldade de todo gênero, o fervor dos primeiros companheiros tinha feito florescer a nova família religiosa e em pouco tempo as Escolas Pias tornaramse numerosas não só em Roma, mas também em diversas cidades da Itália, Alemanha, Boêmia, Morávia e Polônia. Enquanto os jesuítas entravam nas universidades e evangelizavam o mundo da cultura, os escolápios instruíam e evangelizavam o mundo dos pobres.

E desce a noite... A grande e repentina expansão da ordem e os prementes pedidos que vinham de todas as partes não permitiram ao fundador dedicar muito tempo à formação dos membros. Logo ficou evidente entre eles que ensinar não era muito difícil, mais difícil era viver o Evangelho na vida de comunidade. O fundador tornou-se então o bode expiatório: se as coisas não iam bem a culpa era dele, que não sabia governar! Os próprios discípulos chegaram a denunciá-lo ao Santo Ofício de simpatizar com Galileu e de ter escondido documentos comprometedores. A amizade e a estima que ele tinha pelo grande


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cientista foram o pretexto para acusá-lo de desobediência às diretrizes da Santa Sé. Por isso foi aprisionado, ainda que por pouco tempo, e depois destituído de seu cargo de superior geral da ordem, que por decreto papal em 1646 foi desqualificada para simples Congregação sem o vínculo dos votos. Foi a sua noite escura, que ele suportou um uma fé inabalável. A quem lhe demonstrava as injustiças sofridas e o convidava a se defender, gostava de repetir: “Seria loucura preocupar-se com causas segundas, que são os homens, e não ver a causa primeira, que é Deus, que envia estes homens para o nosso maior bem”. As provas pelas quais sua obra passava eram para ele a garantia de um futuro seguro e profetizava que as Escolas Pias renasceriam mais bonitas e mais de acordo com o desígnio primitivo querido por Deus.

A ressurreição Após alguns anos, em 1656, sua profecia se tornava realidade, mas do céu ele viu essa ressurreição, pois morreu em 25 de agosto de 1648, com a idade de 91 anos. Cem anos depois foi elevado à glória dos altares. Em 1948, Pio XII o proclamou padroeiro de todas as escolas populares cristãs espalhadas pelo mundo, fazendo sua esta afirmação do santo: “A acurada educação das crianças, especialmente as pobres, não só concorre para a promoção no sentido humano e cristão, mas é por todos altamente apreciada: pelos genitores que têm a satisfação de ver os seus filhos encaminhados no sentido do bem; pelas autoridades do Estado que podem contar com cidadãos honestos e súditos fiéis; sobretudo pela Igreja que adquire neles membros ativos e válidos para as várias expressões do seu apostolado”.99

27 de agosto Santa Mônica mãe de Santo Agostinho (332-387) “A palavra grega ‘filosofia’ significa amor pela sabedoria. Eu poderia te omitir indiferentemente no meu escrito, se tu não amasses a sabedoria. Mas tu a amas mais do quanto amas a mim, e eu sei quanto me amas. Tu fizeste nela tais

99. Ibid.


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progressos que não mais tremeste diante da morte, o que, segundo todos afirmam, representa o máximo vértice da filosofia. Não terei de me tornar espontaneamente um teu discípulo?” 100

Mônica se encontrava com Agostinho em Cassicíaco, perto de Milão, e por vontade do filho participava das conversações que o grupo dos amigos mantinha sobre temas religiosos e filosóficos. Certo dia a mãe pronunciou seu pensamento a respeito de alguma coisa e Agostinho pediu a Alípio de anotá-lo no livro que estavam escrevendo. A mãe ficou atônita: “Que fazes? Jamais ouvi dizer que nos escritos que vós ledes foram admitidas a tais debates também as mulheres!”. Eis, pois, a resposta do filho, dada anteriormente em itálico. E tinha razão, porque Mônica foi o tipo de mulher que soube imitar Maria, “sede da sabedoria, mãe de casa”.101 E conseguiu instalar a sabedoria no coração dos filhos, dando ao mundo o gênio que foi Agostinho.

Esposa e mãe exemplar Nasceu em Tagaste, em 332, de uma família abastada e cristã, e foi educada na fé. Contrariamente ao costume do tempo, foi-lhe permitido estudar e ela aproveitou bem para ler com proveito a Sagrada Escritura. Ainda menina correu o risco de se habituar ao vinho. Eram de fato as jovens que iam buscar o vinho na cantina da casa para levá-lo aos comensais. Mônica provou e gostou, e ia de própria vontade para beber alguns goles às escondidas, a ponto de não conseguir mais se firmar nas pernas. Apercebeuse disso a sua serva, e um belo dia, durante uma discussão, ela lhe disse com aspereza: “Ora, és uma beberrona”. Mônica chorou envergonhada, e disse para sempre adeus ao vinho. Quando se tornou jovem casou com Patrício, um jovem legionário que exercia cargos no município, pertencia a uma família honesta e economicamente estava bem, mas havia uma coisa que não agradava a Mônica. Patrício ainda não era cristão! Mas, assim como na vida não se pode sempre ter tudo, aceitou o casamento na esperança de convertê-lo. A vida na família logo se tornou alegre com a chegada de três filhos: Agostinho, Navígio, que encontramos em Milão com o irmão, e uma jovem 100. Cit. in: Manns, P. I santi, I. Milano, Ed. Jaca Book, 1989, p. 219. 101. Lubich, C. Scritti spirituali / 1. Roma, Città Nuova Editrice, 1978, p. 27.


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que, depois de casada enviuvou, tornou-se abadessa do mosteiro feminino de Hipona. Para Patrício, que estimava e amava ternamente a esposa e os filhos, ter se casado com Mônica foi a sua maior ventura, como se pode ver de tudo o que nos relata o filho, Agostinho, nas suas Confissões. Educada na castidade e na temperança, ela serviu ao esposo... e procurou ganhálo para ti (Deus), falando-lhe de ti, com a eloqüência da sua vida moral, pela qual tu a tornaste bela, digna de reverente amor e de admiração aos teus olhos. Tolerou, pois, as infidelidades do marido com tanta resignação a ponto de nunca discutir com ele sobre isso... Ele era, não obstante isto, verdadeiramente afetuoso, mas às vezes irascível. Ela era capaz de não discordar do marido na cólera, não só com os fatos, mas também com as palavras. Depois de acalmada a ira, retornava ele a ser tranqüilo, esperava no momento oportuno as justificações do seu proceder, jamais ele saiu acabrunhado. Outras senhoras, tendo maridos mais pacíficos, traziam os sinais das pancadas no rosto desfigurado e, falando com as amigas, se queixavam da vida com seus maridos. Ela lhes censurava a língua... Elas se admiravam porque sabiam bem que marido feroz ela precisava suportar e jamais se ouviu dizer ou se descobriu qualquer sinal de que Patrício tivesse espancado a mulher ou que tivesse havido também, por um só dia, um desentendimento doméstico entre os dois.

As lágrimas da mãe Quando Agostinho tinha apenas 16 anos, Patrício morreu. Um ano antes tinha se tornado catecúmeno e no leito de morte recebeu o batismo. Mônica precisou tomar em suas mãos não só a direção da casa, mas também a administração dos bens. Não era, porém, isso que a preocupava. Sua cruz era Agostinho: se quando criança tinha sido um ótimo menino, agora corria desenfreado atrás das coisas do mundo e colocava em dúvida até mesmo a fé cristã bebida no leito materno. Teria querido convencer até mesmo a mãe a abandonar o cristianismo pelo maniqueísmo. Com ela não conseguiu, mas com o irmão Navígio sim! Agostinho progredia em seus estudos em Cartago e ao mesmo tempo se entregava à boa vida. Mônica o acompanhava temerosa e, experimentados todos os meios possíveis para conduzi-lo ao bom caminho, fez a última tentativa dizendo-lhe que não o queria mais em casa se continuasse a conviver com sua serva.


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Agostinho amava a mãe e sabia que ela tinha razão, mas não quis mudar de vida. Tendo terminado os estudos com sucesso, quis tentar fortuna fora da África, indo para Roma. A mãe decidiu acompanhá-lo, mas ele com astúcia deixou-a em Cartago, e foi embora com sua serva. Aquela noite, Mônica a passou em lágrimas sobre o túmulo de são Cipriano.

Aventura em Milão Mesmo tendo sido enganada, não renunciou à sua missão, e depois de alguns anos também foi para Roma à procura do filho. Mas ele não permaneceu por muito tempo na cidade eterna. Encontrou-o em Milão e, depois de pouco tempo, teve a felicidade de vê-lo freqüentar a escola de Ambrósio e preparar-se para o batismo juntamente com o irmão Navígio, a companheira e o filho que teve dela, Alípio. Mônica não acreditava no que os seus olhos viam. Então, suas orações tinham sido ouvidas. Não lhe havia dito o bispo: “É impossível que um filho diante de tantas lágrimas se perca”? Na noite da Páscoa de 387, Ambrósio imergia Agostinho e os seu amigos na fonte batismal. Logo depois os africanos se retiraram novamente para Cassicíaco para meditar, escrever e projetar o futuro. Mônica também fazia os seus planos. Agora já era anciã e não podia permanecer para sempre ao lado de seu filho. Precisava casá-lo. Não podendo casar, segundo a lei romana, a mulher com a qual ele convivia até aquele momento, por ser de condição servil, necessitava sustentar a ela e ao filho, que no batismo tinha recebido o nome de Adeodato, dom de Deus. A mulher, de sua parte estava de acordo. Mas quem deveria tomar o seu lugar? Necessitava encontrar uma esposa cristã, capaz de viver ao lado de seu filho. Quando falou disso com Agostinho, este aceitou cuidar da companheira e do filho, mas disse um seco não a um possível matrimônio. Mônica ficou assustada e só quando o filho lhe explicou o motivo em seu semblante apareceu o sorriso. Sim, Agostinho era um homem novo e desejava retornar para a África e empregar sua herança para fundar um mosteiro e viver como monge.

A última aventura A última aventura aconteceu na viagem de retorno. Adeus a Milão e ao bispo Ambrósio, mais anjo do que homem; adeus Roma com suas celebridades


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imperiais, mas ainda imersa na voracidade por dinheiro e por poder. Pararam em Óstia, alugaram uma casa e esperaram a partida de um navio. Aí aconteceu um fato comovente, que Agostinho relata no livro nono das Confissões. Transcrevemo-lo para o gozo espiritual do leitor: Aconteceu certa vez que eu e ela estávamos ali sozinhos, apoiados no parapeito de uma janela que se abria para o jardim interno da casa que nos hospedava, lá perto de Óstia, onde nós longe do ruído do povo, depois da fadiga da longa viagem, estávamos nos preparando para embarcar. Falávamos a sós, com muita doçura, e, esquecidos do passado, estendendo nosso olhar para o futuro, procurávamos conhecer à luz da Verdade presente que és tu, a condição eterna dos santos, que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem nunca penetrou no coração do homem. Estávamos ali com os lábios ansiosos pela água que emana da tua fonte, daquela fonte de vida que se encontra junto de ti. Eu dizia coisas do gênero, embora não deste modo nem com estas mesmas palavras. No entanto, Senhor, tu sabes que naquele dia, enquanto assim falávamos e, entre uma palavra e outra, este mundo com todos os seus prazeres perdia aos nossos olhos todo o seu atrativo, minha mãe me disse: ‘Filho, quanto a mim, não encontro já qualquer atrativo nesta vida. Não sei o que ainda estou fazendo aqui embaixo e por que me encontro aqui. Este mundo não é mais objeto de desejos para mim. Havia um só motivo pelo qual desejava permanecer ainda nesta vida: ver-te cristão católico, antes de morrer. Deus me atendeu além da minha expectativa. Concedeu-me ver-te a seu serviço e liberto das aspirações de felicidades terrenas. Que faço eu ainda aqui?’ Não recordo bem o que lhe tenha respondido a propósito. Todavia, no transcorrer de cinco dias ou pouco mais, deitou-se no leito com febre. Durante a doença, um dia teve um desmaio e por algum tempo perdeu os sentidos. Corremos para junto dela, mas ela retornou prontamente à consciência, viu a mim e a meu irmão de pé perto dela, e disse como procurando alguma coisa: ‘Onde estava eu?’ Em seguida, vendo-nos oprimidos pela tristeza, disse: ‘Sepultareis aqui a vossa mãe’. Eu me calava com um nó na garganta e procurava reter as lágrimas. Meu irmão, ao invés, disse algumas palavras para exprimir que desejava vê-la fechar os olhos na pátria e não em terra estrangeira. Ao ouvi-lo fez um sinal de desaprovação pelo que ele havia proferido. Depois, dirigindo-se a mim, disse: ‘Ouves o que diz?’ E pouco depois disse-nos aos dois: ‘Sepultareis este corpo onde melhor vos aprouver; não quero que vos entregueis à dor. Somente isto vos peço, que onde vos encontrardes, vos recordeis de mim no altar do Senhor’.


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Depois de nove dias enferma “aquela alma bendita e santa se foi desta terra”. E Agostinho chorou repetindo: “Tu me geraste duas vezes!”. E tinha razão. A missão de Mônica na terra estava realizada, tendo semeado no coração do filho o amor à Sabedoria.

28 de agosto Santo Agostinho bispo e doutor (354-430) “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim e eu te procurava fora. E aí te procurava e lançava-me sobre as coisas belas criadas por ti. Estavas comigo e eu não estava contigo. Seguravam-me longe de ti aquelas criaturas que, se não existissem em ti, não existiriam jamais. Tu me chamaste, clamaste e rompeste a minha surdez. Tu me deslumbraste, resplandeceste e finalmente curaste a minha cegueira. Exalaste sobre mim o teu perfume e aspirei, e agora anseio por ti. Provei-te, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me e eu ardo pelo desejo de conseguir a tua paz.” 102

Com estas palavras Agostinho faz a síntese dos dois períodos da sua vida: antes, a ansiedade inquieta de quem, procurando um caminho, comete muitos erros; depois, encontrado o caminho, o desejo ardente de chegar até ele, meta para abraçar o amado.

“Um grande pecador desde criança” Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia, a 13 de novembro de 354, de uma família de classe média. Seu pai chamava-se Patrício e era membro do conselho municipal e tinha um caráter afetuoso, salvo alguns repentes de ira que criavam em casa um mal-estar de silêncio. A primeira a se calar era sua mulher Mônica. Mulher inteligente e sagaz, sabia contornar os desatinos do marido e, no momento oportuno, obtinha sempre o melhor para a família. Patrício, por sua vez, tinha orgulho de tê-la por esposa e a amava com muita 102. Agostinho. Confissões 10,27.


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ternura. Ela era cristã fervorosa, ele simplesmente catecúmeno; foi batizado só no fim da vida, seguindo um costume muito comum naquele tempo. Do matrimônio nasceram, além de Agostinho, Navígio e uma irmã que, quando ficou viúva, tornou-se responsável pelo mosteiro feminino de Hipona. Desde pequeno Agostinho foi encaminhado aos estudos e, mesmo demonstrando uma inteligência perspicaz, teve uma experiência traumática com seu primeiro mestre. Não lhe agradava o grego, porque o constrangia a aprender de cor os vocábulos e ainda menos lhe atraía a matemática, que o obrigava a repetir com aborrecimento que dois mais dois são quatro. Agradava-lhe muito mais jogar com seus amigos, esquecendo o estudo. Por isso, sempre tinha as mãos inchadas pelas lambadas recebidas na escola do seu rígido mestre. Para satisfazer os seus desejos de rapaz, roubava em casa guloseimas e outras coisas para dar aos seus colegas para tê-los como companheiro de jogo, não indo à escola. Em casa se comportava bem por amor à sua mãe, que, sabendo de suas mazelas, procurava corrigi-lo sem exasperá-lo. Uma infância muito vivaz, mas não repleta de sabe-se lá que pecados, como levaria a pensar a frase que ele escreveu nas Confissões, onde se declara grande pecador desde pequenino. Os pecados verdadeiros começaram mais tarde. Terminado o primeiro período dos estudos, ficou um ano sem instrução, e também para ele o ócio se tornou o pai dos vícios: juntou-se a um bando de libertinos, seus contemporâneos, e pintavam o sete com todas as nuanças. Encontrando-se juntos, eles contavam suas façanhas e ele sempre inventava que tinha feito as maiores artes, para não ficar atrás. Os conselhos da mãe lhe tocavam o coração, mas não conseguia voltar atrás. Mônica começou a derramar lágrimas por um filho que parecia se encaminhar para longe da fé na qual o havia educado. Ainda bem que no ano anterior, durante uma grave enfermidade, não havia aceitado o seu pedido de ser batizado, porque nesse momento seria um renegado. No entanto, um rico amigo da família e admirador da inteligência de Agostinho ofereceu-se para pagar-lhe os estudos em Cartago. Que bom, pensou a mãe. Finalmente largará as más companhias e ocupará o seu tempo com os estudos. As coisas de fato melhoraram, mas só um pouco. Ia à escola, mas depois de ter ouvido o mestre a respeito de um deter­ minado tema, não encontrava mais estímulos para novamente ouvir e repetir


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sempre as mesmas coisas. Agradava-lhe mais ir ao teatro e ouvir os atores. Em Cartago havia uma grande possibilidade de se divertir com as mulheres, todos os dias era possível visitar um novo prostíbulo. Neste assunto, Agostinho não seguiu os seus companheiros, mas encontrou uma solução melhor. Seduzido pela beleza e pela delicadeza de uma jovem, levou-a para sua pequena casa como sua serva: jamais poderia desposá-la segundo a lei romana, porque era de classe social inferior, mas permaneceria cerca de quatorze anos por sua amada companheira. A fidelidade foi mútua e do seu amor nasceu também um filho.

À busca da verdade Agostinho era uma pessoa muito sensível. Ele se comovia até as lágri­ mas, lendo a história de Dido descrita por Virgílio, mas o livro que mais o impressionou neste período foi Hortêncio, de Cícero. Convenceu-se da vaida­ de das coisas deste mundo em comparação com a verdadeira sabedoria. Mas onde encontrá-la? A religião ensinada pela sua mãe lhe parecia como uma “superstição pueril”. Mais tarde dirá: “Pobre de mim que, entendendo-me idôneo a voar, abandonei o ninho (da fé) e caí antes de voar”.103 A leitura da Sagrada Escritura não ensinou nada à sua mente racionalista e procurou a verdade no maniqueísmo. Entre os maniqueus, porém, não encontrou nunca a resposta correta para sua sede de verdade. Quando falava com algum de seus mestres e o colocava em apuros, ouvia responder que um certo Fausto, bispo deles em Milevi, lhe teria dissipado toda dúvida. Aguardou com ansiedade esse encontro, mas quando aconteceu em 382 em Cartago, Agostinho, mesmo admirando a eloqüência brilhante do mestre maniqueu, não ficou convencido e começou a distanciarse do maniqueísmo. Terminados os estudos, primeiro abriu uma escola na sua cidade natal, depois se transferiu como professor para Cartago. Lá, realizou o seu sonho de dirigir-se a Roma. Amando ternamente a mãe e vendo-a sofrer pelos desgostos que ele havia causado à sua vida, pensou que indo para longe teria podido, por um lado, aliviar esta mútua dor e, por outro lado, progredir na sua carreira. Com sagacidade enganou a mãe que queria acompanhá-lo, e partiu para a capital do império. 103. Id., Sermo 51, 5,6.


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Em Cartago, os alunos eram indisciplinados, em Roma eram inadim­ plentes porque, depois de terem ouvido com atenção o mestre africano, desapareciam no momento de pagar a compensação combinada. Em Roma, porém, teve a possibilidade de conhecer mais a fundo os maniqueístas e per­ cebeu, por fim, que aqueles que ostentavam em público uma vida irrepreen­ sível e casta, privadamente viviam como dissolutos. Ficou decepcionado e os abandonou para sempre. Depois de ter passado no exame de recitação como mestre de retórica, transferiu-se para Milão, onde inesperadamente sua mãe o encontrou. Ele, nesse tempo tinha se tornado cético. “Não acreditava eu, de fato, ser possível encontrar o caminho da vida”, e a mãe não tinha ainda outra arma para defendê-lo senão a oração acompanhada pelas lágrimas. Ficou ao lado do filho sem nada impor, mas como um anjo protetor.

A conversão Assim que chegou a Milão, apresentou-se ao bispo por conveniência social antes de iniciar suas aulas, mas depois ouviu falar tão bem desse homem da Igreja e da sua pregação que um dia foi ouvi-lo, por pura curiosidade de literato. Ficou fascinado: Ambrósio não era somente um brilhante orador, mas comunicava a palavra de Deus de uma maneira que ele jamais tinha imaginado e a religião cristã começou a resplandecer com nova luz aos seus olhos. Inscreveu-se para o catecumenato. Contemporaneamente descobriu a vida dos monges ao redor de Milão. Certo dia um seu compatriota, Ponticiano, lhe deu a Vida de Santo Antão, escrita por Santo Atanásio. Na sua mente não existiam mais dúvidas a respeito da fé cristã e nem mesmo lhe desagradava deixar as riquezas e as honras deste mundo; nem mesmo lhe teria custado muito viver um matrimônio segundo as normas do Evangelho. Sua luta estava entre o chamado que sentia forte à castidade perfeita segundo o conselho do apóstolo Paulo, e a clara consciência de sua fragilidade neste campo. “Estava bem seguro” – escrevia – “que seria melhor consagrar-me ao teu amor, que ceder à minha paixão: o primeiro partido me agradava e vencia; o segundo me atraía e prendia”.104 Ponticiano, que lhe havia falado da vida casta dos monges, tinha apenas deixado sua casa, quando Agostinho sentiu a necessidade de sair para chorar. Tomou 104. Id., Confissões 7,5,12.


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consigo o livro das cartas de Paulo e foi para o jardim. Enquanto desafogava o pranto, ouviu uma voz que lhe parecia ter vindo de uma casa vizinha: “Pega e lê; pega e lê”. Para ele foi uma voz que veio do céu; abriu o livro ao acaso e leu: “Comportai-vos honestamente como em pleno dia: não no meio de devassidão e bebedeiras, não entre impureza e licenciosidade, não em desavenças e inveja. Revesti-vos, ao invés, do Senhor Jesus Cristo, e não sigais a carne e seus desejos”.105 Alguma coisa de profundo havia acontecido dentro dele: “Reluziu em meu coração como uma luz de serenidade que fez desaparecer todas as trevas das incertezas”. Sentia uma força nova, um dom grande e gratuito que o teria acompanhado por toda vida: “Tu me converteste para ti, persuadindo-me a não procurar nem mulher, nem outra esperança no mundo”.106 Era o verão de 386. Quando o filho comunicou sua decisão a Mônica, esta não pôde senão agradecer a Deus que a havia escutado, muito mais além que seus pedidos. Após ter renunciado à cátedra, Agostinho se retirou para uma vila campestre em Cassicíaco com a mãe e os seus amigos mais íntimos: “a mãe (a cujo mérito devo tudo isto que sou), o irmão Navígio, Trigécio e Licêncio, concidadãos e meus discípulos... Lastidiano e Rústico meus primos... e havia o filho Adeodato” e obviamente também Alípio.107 Nas suas conversações filosóficas e espirituais Agostinho quis ter sempre presente a mãe, pois de sua boca saíam palavras de sabedoria. No início da quaresma de 386, retornaram para Milão para continuar a preparação próxima ao batismo que recebeu junto com o filho e com Alípio na noite do sábado santo daquele ano das mãos de Ambrósio “que venero” – diz Agostinho – “como pai, porque me regenerou... em Cristo Jesus”.

O retorno à África Depois de ter se aconselhado com a mãe e os amigos, decidiu retornar à África e usar os bens paternos para construir um mosteiro para viver “segundo a regra apostólica”. No final do verão deixou Milão e chegou a Óstia. Lá alugaram uma casa para descansar antes de embarcar, mas a mãe adoeceu gravemente, e depois de 105. Rm 13,13-14. 106. Agostinho. Confissões 8,12,28,30. 107. Id., De beata vita, 6.


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ter contemplado com o filho um pedaço do paraíso morreu. Sua missão tinha sido cumprida, agora começava a do filho. Depois de ter prestado à sua mãe a última saudação, retornou para Roma e passou aí um ano inteiro com o desejo de aprofundar sua fé no lugar onde os beatos apóstolos Pedro e Paulo tinham derramado o seu sangue. Ali, escreveu dois livros sobre o maniqueísmo: Encontrando-me em Roma já batizado e não podendo suportar em silêncio a arrogância dos maniqueus, que se gloriavam da sua falsa e enganadora continência e abstinência, com que, para enganar os ingênuos, se antepunham aos verdadeiros cristãos, aos quais nem de longe são comparáveis, escrevi dois livros, um sobre os costumes da Igreja, e o outro sobre os costumes dos maniqueus.108

Retornando a Tagaste em 388, vendeu os seus bens, dando o arrecadado aos pobres e com alguns companheiros, entre os quais estavam Alípio, Evódio e Adeodato, iniciou fora da cidade a vida monástica. Infelizmente os seus concidadãos se amontoaram sempre mais numerosos às portas da pobre casa dos monges para pedir conselho e ajuda a Agostinho, tornando quase impossível o recolhimento necessário para a nova vida. Decidiram escolher um outro lugar e Agostinho foi procurá-lo próximo de Hipona. Lá, entrou na basílica cristã, onde o bispo Valério tinha reunido a comunidade para escolher um presbítero que o ajudasse, sobretudo na pregação.

Bispo de Hipona Quando os cristãos souberam da presença do monge, tomaram-no e o levaram diante do bispo para que o ordenasse presbítero. Naqueles tempos, a assim chamada vocação não era senão um encargo privado e a vontade do povo era a vontade de Deus. Agostinho não teve tempo nem mesmo de pensar e se tornou sacerdote. Hipona tinha ganhado um tesouro. A atividade de Agostinho foi fecundíssima. A primeira coisa que fez foi transferir o seu mosteiro para Hipona para continuar sua escolha de vida; depois realizou com não pouca competência todas as tarefas que aos poucos o bispo lhe confiava com ilimitada confiança. Em um certo momento, Valério teve medo de que qualquer outra Igreja, tendo necessidade de um bispo, poderia lhe roubar Agostinho. Do mosteiro já haviam pegado Alípio para torná-lo bispo de Tagaste e Profuturo 108. Id., Confissões 7,10.


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di Cirta. Então reuniu o povo e o fez jurar que na sua morte escolheriam como seu sucessor Agostinho e, se bem que ia contra a norma que não admitia contemporaneamente dois pastores na mesma Igreja, o consagrou bispo. Depois de breve tempo morria Valério e Agostinho lhe sucedia.

A atividade de pastor A primeira tarefa de todo bispo era a de escutar as pessoas que vinham falar com ele: dar audiência. Ele atendia a todos e às vezes passava dias inteiros dedicando-se com igual empenho aos ricos e aos pobres, sábios e ignorantes. A outra tarefa era a pregação e neste aspecto ele era verdadeiramente mestre. Não só se fazia escutar, mas sabia também escrever e os seus livros tinham grande procura tanto nas igrejas africanas quanto em todas as igrejas de língua latina. Tinha também a prudência de dedicar tempo para formar as pessoas, que por sua vez deveriam depois instruir outras, começando pelos seus monges. A atividade episcopal não lhe permitia desenvolver uma vida monástica normal, e então, a exemplo de Eusébio de Vercelli e de Ambrósio de Milão, fundou para si um mosteiro de clérigos, no qual a maior parte das Igrejas africanas vinha buscar os próprios pastores. A regra que ele escreveu para os mosteiros tornou-se universalmente famosa e nela se inspiraram muitas ordens religiosas nos séculos seguintes. Sob o modelo do mosteiro de Hipona, o monaquismo se difundiu em quase todas as Igrejas da África nas três formas: para os homens em geral leigos, para mulheres e para os clérigos. Uma atividade episcopal para ele não apropriada era a administração dos bens. Teria querido vender todos os bens eclesiásticos e viver somente das esmolas dos fiéis, mas os seus conselheiros e a comunidade não lhe permitiram. Convenceu-se então de que precisava administrá-los e administrar bem. Não era experiente nem mesmo em construções, mas quando se mostravam necessárias, confiava-as a pessoas de confiança: surgiram assim várias igrejas e um albergue para os peregrinos. Quanto aos legados que os cristãos faziam às igrejas, seguia esta norma: não os aceitava se o doador tivesse deserdado os próprios filhos ou se estavam em curso pendências judiciárias; aceitava-os se o doador não tivesse filhos ou se, de acordo com eles, considerava-se Cristo um herdeiro, como um dos filhos. Certa vez ofereceram-lhe uma frota de naves, mas ele a recusou, justificando-se com estas palavras: “Não quis que a Igreja se tornasse uma sociedade armadora”.


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Para suprir as necessidades extraordinárias dos pobres, colocava em ação sua arte oratória e recolhia dinheiro, alimentos e roupas. Nos momentos de geral escassez, vendia até os cálices sagrados para resgatar os prisioneiros.

Bispo da Igreja A fama do bispo de Hipona havia se espalhado por todo o mundo então conhecido e sua ação era requisitada sobretudo nas igrejas africanas, que corriam o risco de se despedaçar por causa das heresias. O maniqueísmo sempre condenado e sempre ressurgindo recebeu um golpe mortal de Agostinho que, conhecendo-o por dentro, soube desmascarálo tanto no campo filosófico e teológico, quanto no da sua falsa moralidade. Mais dura foi a luta contra o donatismo. Surgido por obra do bispo Donato, sonhava com uma Igreja constituída de almas puras e excluía da sua comunhão qualquer um que, durante as perseguições, tivesse demonstrado fraqueza ou tivesse cometido pecados graves depois do batismo. Por fim, os sacramentos administrados por essas pessoas eram considerados inválidos e deviam ser repetidos. O fanatismo cresceu a tal ponto que se organizavam grupos armados que atacavam e destruíam quem não estivesse com eles. Os escritos de Agostinho foram determinantes sobretudo para iluminar os católicos e também as autoridades civis, de modo que o espaço dos donatistas foi pouco a pouco diminuindo e com a invasão dos vândalos desapareceu por completo. A outra heresia, ainda mais perigosa, que Agostinho precisou combater foi a dos pelagianos. Eles fundamentaram a salvação só sobre as forças humanas, colocando em segundo lugar a graça. As intervenções do bispo de Hipona não só iluminaram os pastores desse tempo, mas determinaram também para o futuro a orientação da teologia católica neste campo. Agostinho tinha experimentado que o início da fé é puro dom de Deus e estava convencido de que era dom de Deus também a perseverança final, e observava que as intervenções da graça divina estão sempre admiravelmente harmonizadas com pleno respeito à liberdade humana.

O fim do mundo? Agostinho, que tinha sonhado com uma Igreja em paz e harmoniosamente difundida em todo o mundo, viu inesperadamente recair sobre a África


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a violência dos vândalos chamados pela Espanha por um general cristão. Depois de ter esparramado por todos os lugares horror e morte, por três meses assediaram Hipona. O santo bispo tinha a impressão de que estivesse chegando o fim do mundo. Morreu em 28 de agosto de 430. Finalmente podia contemplar em plenitude aquela luz que é Verdade e Amor ao mesmo tempo. Ele havia escrito que não se tratava de: “aquela luz terrena visível que resplandece diante do olhar de todo homem. Eu falarei ainda pouco se dissesse que era só uma luz mais forte do que a comum, ou também tão intensa para penetrar todas as coisas. Era uma outra luz, muito diferente de todas as luzes do mundo criado. Não estava acima da minha inteligência quase como o óleo que flutua sobre a água, nem como o céu que se estende sobre a terra, mas uma luz superior. Era a luz que me havia criado... Ó eterna verdade e verdadeira caridade e querida eternidade!”. Agostinho, o homem verdadeiro de todos os tempos, o pecador que se torna místico, o descrente que acolhe o humanamente Incrível, já estava imerso para sempre no Amor por ele tão ardentemente desejado. E a humanidade, depois de séculos, ainda continua a admirá-lo.


SETEMBRO

3 de setembro São Gregório Magno papa e doutor (540ca‑604) “É certo que as preocupações devam ser retiradas de todo o coração, mas é também verdade que necessitamos aceitá-las, sobretudo se não somos nós que fomos procurá-las. Quando, pois, se trata de pessoas dóceis aos desígnios de Deus, e que não sofrem o mal da obstinação, o responder ao chamado à responsabilidade dá significado e finalização aos dons recebidos. Pertence à natureza do dom, de fato, ajudar mais aos outros do que a si mesmo.” 1

Gregório, sempre atento aos desígnios de Deus a respeito de sua pessoa, exerceu as funções mais elevadas na Igreja e, suprindo as carências dos outros, interveio também no campo civil, mas com a clara consciência de cumprir um dever e de ser um simples “servo dos servos de Deus”.

Cristão desde o nascimento Nasceu em Roma por volta do ano 440, da nobre família dos Anici. Seu pai Gordônio, senador, e sua mãe Sílvia eram estimados pela comunidade cristã, 1. Gregório Magno. Regola pastorale I, 6. Roma, Edizioni Paoline, 1978, pp. 108-109.


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e depois que morreram foram elencados entre os santos. Duas tias, Tarsila e Emiliana, tinham se consagrado como virgens, e entre os seus antepassados encontramos dois papas, Félix III e Agapito. Pode-se dizer que Gregório, desde pequenino, bebeu o cristianismo junto com o leite materno que o nutriu. Freqüentou com proveito a escola, estudando letras, e especializando-se depois em direito. Pela particular posição social da família foi destinado à carreira, então prestigiada, de funcionário imperial. Com 30 anos apenas foi nomeado prefeito da cidade, o mais eminente cargo civil de Roma. Devia ocupar-se com o bom funcionamento de toda a máquina estatal, da segurança pública e do abastecimento de gêneros alimentícios. Além disso, devia ter bom relacionamento com o Papa, que tinha uma grande importância social, e estar sempre atento às disposições que lhe vinham do exarca de Ravena, que representava o imperador no Ocidente. Não era uma vida nada fácil, mas foi uma experiência preciosíssima. Em seus anos de oficial público, fez sua a secular experiência da administração pública, e colocou-se a serviço dos cidadãos, sem jamais se deixar corromper. Em seu governo Roma refloresceu e até mesmo os pobres tiveram com o que alimentar a si e aos seus. Dessa maneira, não só ganhou a estima das autoridades do império, às quais Roma tinha dado sempre enorme atenção, mas conquistou o amor geral de todos os romanos, que gostavam de chamá-lo de “o cônsul de Deus”. Tinha feito, em pouco tempo, uma carreira invejável; o seu futuro estava assegurado; exarca de Ravena ao receber o acerto de contas anual do governo da Urbe, não podia senão que elogiá-lo. Uma coisa, porém, deixava todos curiosos. Por que jamais esse brilhante funcionário, que vestia com graça a vestimenta de seda guarnecida de pedras preciosas, como convinha ao seu status social, não se casava? As irmãs de Gregório tinham permanecido virgens, e levavam vida monástica na casa paterna; em Roma e nos arredores floresciam mosteiros masculinos e femininos, onde se recolhia a fina flor da juventude que, renunciando ao mundo, se retirava em alegre companhia para aquele otium tão diferente do ócio dos antigos romanos, porque eram povoados de realidades celestes.

A escolha decisiva Gregório pensou durante muito tempo e, depois da morte de seu pai, quando até mesmo sua mãe se retirou para um mosteiro, realizou o sonho que


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há tanto tempo vinha amadurecendo no seu coração. Destinou a casa paterna – um grande complexo construído com gosto de gerações por gerações de antepassadas sobre o monte Célio – para mosteiro intitulado Santo André, e outros seis construiu-os em suas terras na Sicília. Após ter entregado seu cargo de prefeito nas mãos do exarca, cumprindo de maneira escrupulosa todos os atos prescritos pela lei, enriquecido só com a bem-aventurança evangélica da pobreza, apresentou-se a Valeriano, o abade de Santo André, para pedir humildemente que lhe fosse permitido fazer em suas mãos a profissão monástica. Depôs as vestes luxuosas de seda e passou a envergar o humilde hábito de monge. Livre das preocupações terrenas, podia finalmente mergulhar nas coisas de Deus. Observava a regra monástica ao pé da letra: oração, estudo, trabalho e severas penitências. Os jejuns prejudicaram-lhe para sempre o estômago; o trabalho, mesmo o manual, não lhe agradava muito, mas onde se realizava plenamente era na oração e no estudo da palavra de Deus. Mais tarde, recordará com saudades desse período de luz: “Na verdade, quando eu estava no mosteiro tinha condições não só de impedir à língua as palavras inúteis, mas ter ocupada a mente em um estado quase contínuo de oração profunda. Mas depois que submeti minhas costas ao peso do múnus pastoral, meu espírito não mais pode se recolher em si mesmo, porque está dividido entre muitas atividades. Sou constrangido ora a cuidar das questões das Igrejas, ora dos mosteiros, freqüentemente a examinar a vida e as ações das pessoas; ora a interessar-me por atividades particulares dos cidadãos; ora a gemer sob as espadas dos bárbaros invasores e a temer os lobos que rondam o rebanho que me foi confiado”.2 À contemplação unia o estudo da Escritura e dos padres. Não conhecendo bem o grego, lia a Vulgata e os padres latinos, sobretudo Agostinho e Jerônimo. Foram anos preciosos para crescer na sabedoria sem se ensoberbecer. “Os homens santos” – escrevia – “quanto mais avançam na virtude diante de Deus, tanto mais se vêem indignos; porque enquanto se aproximam mais da luz, descobrem o que neles estava escondido; e quanto mais aparecem a si mesmos disformes exteriormente, tanto mais é belo aquilo que vêem no interior”. E tudo isso acontecia graças ao carisma monástico. Gregório estava convencido de que seria monge para sempre.

2. Id. Omelie su Ezechiele 1,11: CCL 142, 170-171.


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O Papa desse tempo, mesmo deixando-o no mosteiro, ordenou-o diácono e lhe confiou a coordenação da ação caritativa da Igreja. Quem melhor do que ele teria sabido prover às necessidades de uma cidade, cada dia mais repleta de pessoas, que vinham de todos os cantos, pedindo proteção contra as invasões intermináveis daqueles povos que desciam ameaçadores dos Alpes?

Núncio apostólico em Constantinopla Quando o papa Pelágio II teve a necessidade de um apocrisário, isto é, de um representante, junto ao imperador do Oriente, dirigiu-se a Gregório, que aceitou com a condição de poder continuar a viver como monge. Com o consentimento do Papa transferiu-se junto com o seu abade, Maximiano, e algum outro monge para a cidade dourada. No novo ambiente, onde cada dignitário estava habituado ao luxo e às intrigas, o apocrisário com a sua pequena comunidade brilhava como uma rara pérola preciosa, suscitando a admiração do imperador e da corte. Não conseguiu muito quando em nome do Papa pediu ajuda militar para defender a Itália, porque estava acontecendo a guerra contra os persas que invadiam os limites orientais, mas a permanência em Constantinopla permitiulhe conhecer diretamente o mundo oriental, e isso revelou-se importante para sua futura missão de Papa. Em Constantinopla recebeu a visita de São Leandro, bispo de Sevilha, que quis participar da vida do pequeno mosteiro, enquanto realizava seus afazeres junto da corte, e encantado com as explicações, que Gregório fazia aos seus monges sobre o livro de Jó, exortou a escrevê-las e a ele presenteá-las. Nasce assim o volume Moralia in Job, conferências espirituais sobre o livro de Jó. E, entre os dois, nasceu uma profunda amizade, fundamentada na mútua estima e no comum amor pela Igreja. Em 585, o papa Pelágio II chamou-o a Roma e, mesmo deixando-o no mosteiro de Santo André, tornou-o seu conselheiro particular. Não havia prática de alguma importância que não passasse pelas suas mãos.

Servo dos servos de Deus Em 589 tremendas calamidades se abateram sobre a cidade de Roma e nos arredores: uma série de tempestades interrompeu as comunicações estatais com a capital, impedindo o transporte do reabastecimento de víveres; o Tibre


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havia transbordado provocando a destruição de inumeráveis moradias e dos armazéns de grãos; e finalmente tinha se deflagrado a peste bubônica. Também o papa Pelágio morreu por causa da epidemia. Gregório foi aclamado Papa por unanimidade. Ele tentou subtrairse recorrendo a todos os meios. Escreveu, por fim, uma carta ao imperador do Oriente que, de acordo com o costume, deveria exprimir o seu parecer a respeito da eleição papal, pedindo-lhe para não dar o seu consentimento. Com Maurício tinha relações de profunda amizade, desde quando era apocrisário. O imperador não recebeu jamais essa carta, porque o prefeito de Roma desse tempo não a deixou partir, enviando uma outra missiva na qual suplicava ao imperador para confirmar aquele que o povo e o clero tinham designado unanimemente. Maurício sentiu-se muito satisfeito por dar sua aprovação. O monge tentou então a fuga, mas foi trazido para Roma e conduzido diretamente a São Pedro onde todos o esperavam para a ordenação. Compreendeu, então, que a escolha vinha de Deus e teria sido temerário continuar a lhe resistir. Consciente agora de sua missão, preparou-se com uma visão ampla impressionante. Ele soube ler com clareza os sinais de seu tempo. O que restava do Império Romano se concentrava, nesse tempo, no Oriente, enquanto o Ocidente estava abandonado ao seu destino. Os novos povos, durante séculos desconhecidos no lado de lá dos limites do Império Romano e considerados bárbaros, rompidas então todas as barreiras, espalhavamse por todo o Ocidente, e algumas vezes se apresentavam até as portas de Constantinopla, impondo-se em toda parte pela força. Não era mais possível continuar a ignorá-los. Se Agostinho, diante das destruições causadas pelos vândalos na África, pensou que tinha chegado o fim do mundo, Gregório, ao invés, diante da pressão desses novos povos, estava convencido de que eles, mesmo que inconscientemente e com meios freqüentemente violentos, reclamavam em alta voz o direito de ser evangelizados. No passado, a unidade do império, no bem e no mal, tinha favorecido a unidade dos povos de cultura grego-romana, e a sua evangelização. Mas no Ocidente, nesse tempo, essa unidade política tinha sido desfeita e foram constituídos grandes blocos territoriais, sob o governo de novos povos. Na atual França e parte da Alemanha havia os poderosos francos; na Espanha, os visigodos, e no norte da Itália, os longobardos. Só a África ocidental, parte das costas espanholas e o centro-sul da Itália permaneciam sob o governo pouco estável dos bizantinos.


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Pastor e estrategista Gregório intuiu que nessa situação a única esperança para a sobrevivência do Ocidente cristão tinha de ser a assunção não só do encargo da evangelização dos novos povos, mas também o do cuidado temporal, onde o Estado não estava presente, ou onde ainda não era competente. Iniciou essa ação pastoral na sua diocese. A cidade de Roma, abandonada já por Bizâncio, sofria de fome, e mesmo a guarda imperial estava revoltada, porque fazia tempo que não recebia o pagamento. O Papa pediu calma, afugentou o medo que as pessoas tinham dos bárbaros e convidou a todos para retomar os trabalhos nos campos. A Igreja, ao longo dos séculos, tinha acumulado em todos os lugares enormes propriedades de terras para as suas obras caritativas. Gregório, muito experiente em administração, nomeou homens competentes e de sua confiança, chamados de rectores, para diversas áreas da sua metrópole, que se estendia – como nos tempos de Leão Magno – da Toscana à Sicília, com duplo encargo: fazer reflorescer a agricultura, provendo tanto o bem-estar dos colonos quanto às necessidades dos pobres, e manter-se vigilantes para que os bispos fossem escolhidos entre as pessoas dignas e capazes. Também a Roma chegavam víveres em abundância e ele pôde satisfazer a fome dos cidadãos. Gregório, que como metropolita seguia pessoalmente as eleições dos bispos, para melhorar a qualidade deles, fazia de maneira que fossem escolhidos entre os monges, e quando o eleito não fosse monge era convidado a fazer essa escolha de vida antes da sua consagração. “Não existe lugar” – escrevia na Introdução de sua Regra pastoral – “na cátedra do magistério para os despreparados e para os irresponsáveis”. Basta ler, a respeito, uma carta escrita em 601 ao bispo de Fermo, encarregando-o de preparar o novo pastor da diocese de Teramo: Vossa fraternidade bem sabe há quanto tempo Teramo está privado do cuidado pastoral. Temos procurado longamente quem aí devesse ser ordenado bispo, sem o encontrar. Mas porque se diz que Oportuno, o qual me foi muito louvado devido à conduta, paixão na recitação dos salmos, amor à oração, conduz uma vida sob todos os aspectos religiosa, queremos que tua fraternidade o faça entrar em si, lhe dê orientações sobre a sua alma, de maneira que cresça no bem. E se não o impedem delitos que são punidos com a morte da Sagrada Escritura, é necessário conferir-lhe a tonsura, para que se torne monge ou se torne mediante vós subdiácono. Portanto, depois de um certo tempo, se a Deus agradar isto que


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foi dito, seja promovido ao cuidado pastoral. Se depois lhe servirem de obstáculo culpas graves, é necessário exortá-lo muito mais a abandonar o mundo, para chorar melhor os seus pecados. Peço-te que ores por mim, porque com as atribulações espirituais, sinto-me muito sobrecarregado por dores físicas. 3

Nas demais partes do Ocidente ele exerceu o governo através de seus vigários apostólicos, que normalmente coincidiam com os bispos das sedes patriarcais. Assim na Espanha o seu representante era São Leandro de Sevilha, seu caríssimo amigo, que sempre lhe deu grandessíssimas consolações com a conversão dos visigodos. Na França, o seu vigário era o bispo de Arles e também lá, os francos, já convertidos ao cristianismo, mesmo que ainda um tanto violentos, tornaramse para Gregório a base de apoio para a evangelização da Inglaterra por obra dos monges do Célio, guiados por Santo Agostinho, tornado bispo de Cantuária. Em Milão e em Aquiléia conseguiu recompor o relacionamento há muito tempo dilacerado entres esses dois patriarcas e o bispo de Roma. Lá, foi muito importante sua ação para a conversão dos longobardos por obra da rainha Teodolinda. Na África, sob o domínio dos vândalos, tinha ressurgido o donatismo, mas, quando estes foram derrotados pelos bizantinos, Gregório através dos bispos conseguiu restabelecer a fé ortodoxa. Mais difícil foi o relacionamento com o patriarca de Constantinopla, que tinha tomado para si o título de ecumênico. Gregório se opôs, vendo nisso o perigo de que o bispo da segunda Roma quisesse reivindicar para si o primado de Pedro. A controvérsia foi longa, mas ao final, depois de várias cartas, encontros e discussões, foi feito um acordo: o patriarca conservava este título no sentido de não depender de um outro patriarcado.

O monaquismo: um carisma para toda a Igreja Gregório, mediante sua Regra pastoral, baseando-se em sua pessoal expe­ riência, fez de modo que o carisma do monaquismo transpusesse as soleiras das portas dos mosteiros e infundisse a seiva sempre nova do Evangelho nas estruturas eclesiásticas. Ele compreendia que estavam unidas, no sacerdote, a

3. Opere de Gregório Magno. Lettere / 4. Roma, Città Nuova Editrice, 1999, pp. 176-177.


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contemplação e o ministério, o conhecimento profundo da palavra de Deus e o anúncio, a doutrina e o exemplo. Não admitia que aqueles que eram chamados ao sacerdócio rejeitassem o encargo pastoral com a desculpa de se dedicar à contemplação: “Não é possível que se prefira a própria tranqüilidade em vez do bem espiritual dos outros. Cristo, para salvar a todos, saiu do seio do Pai para vir habitar entre nós”.4 A seguir, durante o rito da consagração dos bispos, a Regra pastoral era imposta sobre os ombros do eleito juntamente com o livro das Sagradas Escrituras. O mesmo carisma, que dava vida aos mosteiros mediante a regra beneditina, deveria vivificar também as Igrejas episcopais por intermédio da Regra pastoral. Quando enviou Agostinho para junto dos anglos, lhe recomendou que vivesse segundo a regra do seu mosteiro, porque desse modo o carisma beneditino teria conquistado para a fé os povos da Grã-Bretanha. E assim aconteceu.

No seio da mãe Talvez o retrato mais objetivo desse Papa extraordinário tenha sido feito por ele próprio, no quinto capítulo da segunda parte da Regra pastoral, quando fala do pastor ideal. Transcrevemos um trecho dele, por causa de sua atualidade: Um pastor de almas deve estar próximo de todos com a linguagem da compaixão e compreensão. Deve de modo singular ser capaz de se elevar acima de todos, pela oração e contemplação. Os sentimentos de piedade e compaixão permitir-lhe-ão tomar por sua a fraqueza dos outros. A contemplação o leve a superar e vencer a si mesmo com o desejo das coisas celestes. Porém, o desejo da conquista das alturas espirituais não lhe faça esquecer as exigências dos fiéis. Não obstante, o prover e o satisfazer às exigências do próximo, não lhe faça negligenciar o dever de se elevar às coisas celestes... Equilibrar o desejo da contemplação, à necessidade de entrar na vida dos pecadores, com a linguagem da compreensão, é a norma de cada eficaz ação pastoral. O amor toca cumes altíssimos, quando se debruça misericordioso sobre os males profundos dos outros. A capacidade de se dobrar sobre a miséria dos outros é a medida da força de elevação para o alto.

4. Regola pastorale, I, 5, ed. cit., p. 107.


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Para os pastores é fundamental possuir aquela disponibilidade de coração e aquela força de atração, pela qual os fiéis não consideram vergonhoso abrir-lhes a sua consciência. Quando as ondas das tentações se abatem sobre os fiéis, o coração do pastor torna-se para eles natural refúgio. Como a criança no seio da mãe.5

Gregório foi o seio materno não somente para os seus contemporâneos, mas também para os pósteros. Ele deu uma contribuição determinante para o nascimento da civilização cristã, da qual a história da Europa não poderá jamais prescindir. Além dos dois escritos de Gregório, já citados, recordamos as oitocentas e cinqüenta e quatro Cartas, as quarenta Homilias e os quatro livros dos Diálogos sobre a vida de são Bento. No campo litúrgico trazem o seu nome um Sacra­men­ tário e um Antifonário, referentes à reforma do canto litúrgico, que dele tomou exatamente o nome de canto gregoriano. Morreu em 12 de março de 604.

9 de setembro São Pedro Claver sacerdote (1580-1654) “Como posso fazer para amar verdadeiramente o Senhor? O que devo fazer para agradar-lhe? Ensina-me. Ele me dá grandes aspirações de ser todo seu, mas não sei como fazer.” 6

Pedro Claver era ainda estudante de filosofia, em Palma de Maiorca nas Ilhas Baleares, e fazia essas perguntas ao porteiro do convento dos jesuítas, Afonso Rodrigues, um irmão leigo, que logo seria declarado santo. Pedro se entendia muito bem com ele e todos os dias achava pelo menos alguns minutos para conversar, enquanto o ajudava nos pequenos serviços da portaria.

Amizade entre dois santos O santo porteiro pensou muito no que responder e pediu ao Espírito Santo para iluminá-lo, pois aquele jovem era responsável e seus talentos deviam ser bem 5. Ibid., II, 5, pp. 145-148 passim. 6. Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / IX. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 58.


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trabalhados. Certo dia sentiu que lhe poderia dizer com toda a clareza que o Senhor o queria como missionário nas Américas. “Jesus Cristo te espera lá. Se soubesses que grande tesouro para ti reservou! Quem não sabe sofrer, não sabe amar”.7 Afonso estava bem informado sobre o que acontecia nas missões dos jesuítas, através dos informativos mensais, que a ordem enviava para atualizar todos os seus membros. Ele deveria permanecer como porteiro em Maiorca, mas os jovens estudantes deviam olhar para mais longe. E dizia a Claver: “Os escravos têm um valor infinito, o valor do sangue de Jesus, enquanto que as riquezas das Índias não valem nada”.8 As palavras do santo porteiro ardiam no coração do destinatário e acendiam sua imaginação. “Partir como missionário, que aventura!”, pensava. Necessitava somente esperar o momento oportuno e para tanto se preparar. Durante o noviciado tinha feito a peregrinação ao santuário de Montserrat, seguindo as pegadas do fundador santo Inácio e tinha prometido à Virgem Santíssima “procurar sempre Deus em todas as coisas, servindo-se das criaturas somente como uma escada para alcançar o Criador; fazer todo esforço para adquirir obediência perfeita, submetendo a vontade e o juízo próprio aos do superior por respeito a Deus; dirigir todo pensamento, todo afeto, qualquer que seja a ação, ainda que mínima, à maior glória de Deus; enfim, não procurar jamais outra coisa nesta terra senão a salvação das pessoas, até morrer na cruz, para imitar Jesus Cristo”.9 Já era tempo, pois, de colocar em prática seriamente esses propósitos que refletiam muito bem a espiritualidade de santo Inácio.

Da Catalunha à Colômbia Pedro não provinha de família nobre, como tantos outros jesuítas daquele tempo, mas de humildes pais de religiosidade sincera e concreta, os quais lhe tinham inculcado fazer sempre a vontade de Deus, logo e bem. Tinha nascido em Verdú, na Catalunha, em 26 de junho de 1580, e os pais, mesmo sendo pobres trabalhadores, enviaram-no para estudar. Na escola não era uma sumidade, mas ia bem e, enquanto freqüentava a universidade em Barcelona, pediu para entrar na Companhia de Jesus. 7. Ibid. 8. Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi, 1988, p. 503. 9. Pettinato, G., op. cit., p. 58.


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Fez o noviciado em Tarragona, os estudos filosóficos em Palma de Maiorca e iniciou os teológicos em Barcelona. Não os havia ainda terminado quando os superiores o destinaram às missões de Nova Granada, como então era chamada a atual Colômbia. Para o jovem foi um convite maravilhoso: era o que de mais belo podiam lhe oferecer, a realização de seus sonhos, a confirmação da profecia do porteiro de Maiorca. Partiu com imensa alegria, mas antes de começar a trabalhar como missionário precisou ir até Santa Fé de Bogotá, para completar os estudos teológicos e inculturar-se um pouco, no Novo Mundo. A 19 de março de 1616 foi ordenado sacerdote e se tornou o braço direito do padre Alonso Sandoval, responsável pela missão na cidade de Cartagena. É impossível, para nós compreender, hoje, como era essa cidade naqueles tempos. Nas Américas se praticava a escravidão. Os colonizadores europeus, depois de ter destruído os nativos que na sua grande maioria não queriam se submeter ao serviço dos brancos, voltaram o seu interesse para a compra dos escravos negros, transportados da África pelas bem organizadas companhias de navegação. Era um comércio infame, mas muito lucrativo não só para os “negreiros”, que os transportavam para a América, mas também para os proprietários de terras, que se utilizavam deles como mão-de-obra barata. Sobre eles os patrões exerciam o direito de vida e de morte, como os antigos romanos com os próprios escravos. Contra a escravidão levantaram a voz muitos homens da Igreja – embora muitos outros se calassem ou a justificassem – e conseguiram também fazer emanar leis contra a escravidão vindas do imperador Carlos V, mas tudo acabava se tornando depois letra morta, porque os escravos nas Américas produziam tanta riqueza e a Europa não queria renunciar a isso.

A escolha dos últimos Cartagena era um dos portos espanhóis habilitados para o tráfico dos escravos negros. Lá eles chegavam todos os anos, milhares e milhares, em péssimas condições. Eram homens, mulheres e crianças, de tribos e línguas diversas, e nem mesmo eles se compreendiam uns aos outros. Tinham sido arrancados de suas terras e depois vendidos, sem nenhum respeito aos laços familiares. Foi este o campo de apostolado designado ao jovem jesuíta, apenas orde­ nado sacerdote. Por onde começar? Gritar contra as injustiças dos poderosos? Tê-


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lo-iam enviado de volta para a sua pátria. Escrever aos superiores para informálos a respeito desta situação absurda? Outros já tinham feito melhor do que ele. Aceitar servilmente a situação? Não podia resignar-se. E então se entregou ao trabalho para “tentar suprir todas as necessidades corporais e espirituais dos escravos negros, das crianças, dos jovens, dos idosos abandonados, dos prisioneiros e dos condenados à morte, dos doentes e dos leprosos nos hospitais de São Sebastião e de São Lázaro, além de, nos campos, onde os sadios e os lavradores viviam uma mísera existência. Supria as necessidades materiais: alimentava, curava, consolava, testemunhava a todos o seu imenso afeto; cuidava de cada um no sentido da própria dignidade humana, levava a fé aos não batizados, elevava todos à consciência e à prática das virtudes evangélicas; em uma palavra mostrava a todos a verdadeira liberdade dos filhos de Deus”.10 Em uma de suas cartas se lê: “Nós nos comunicamos com eles, não com palavras, mas com as mãos e com os fatos: se não damos de comer, todo discurso é perfeitamente inútil”.11 Aos escravos, depois de uma sumária instrução, ministrava o sacramento do batismo, segundo os costumes do tempo. Era convicção comum considerar quase como um animal quem não tivesse recebido este sacramento e, portanto, matá-lo não era, pois, um grande pecado. Por esse motivo os missionários, para proteger os escravos de tal injustiça, batizavam-nos o mais cedo possível, na esperança de poder completar depois a formação cristã deles. O amor de Claver pelos seus negros era tão profundo que, em 1622, ao fazer sua profissão religiosa definitiva, acrescentou o voto de se doar para sempre e inteiramente à promoção dos negros, subscrevendo sua promessa com estas palavras: “Pedro Claver, servo dos etíopes para sempre”. Etíopes eram chamados todos aqueles que traziam tez negra. Para a promoção humana deles serviu-se de todos os meios à disposição, mostrando com o exemplo que eles eram filhos de Deus, como todos os outros seres humanos. Curava as feridas com afeto de uma mãe, para alimentá-los e vesti-los pedia esmolas batendo em todas as portas, para instruí-los na fé tinha aprendido a língua africana dos angolanos, e para as outras línguas recorria à ajuda de cerca de dezoito intérpretes. Esses eram ex-escravos que ele havia resgatado e que então o ajudavam, alojando-os no colégio dos jesuítas.

10. Rayez, A., in: Bibliotheca sanctorum, X. Roma, Città Nuova Editrice, 4ª ed. 1998, 819. 11. Carta de 31 de maio, in: Valtierra S.I., A. San Pedro Claver. Cartagena 1964, p. 141.


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Em uma cidade portuária como Cartagena estava muito difundida a prostituição. Também sobre esta chaga social ele soube curvar-se como bom samaritano, procurando erradicá-la pela raiz. As prostitutas eram forçadas a esse ofício para sobreviver. Claver procurava aquelas que desejavam mudar de vida, encaminhando-as a um honesto matrimônio. Essa obra naturalmente perturbava muitas pessoas, mas, mesmo sendo muitas vezes ameaçado de morte, foi adiante trilhando seu caminho.

A contemplação Em 1650, enquanto pregava uma missão aos negros que trabalhavam nos campos, contraiu a peste. Sobreviveu, mas pelo resto da vida não pôde mais trabalhar. Durante os trinta e quatro anos de atividade entre os seus filhos prediletos, precisava ocupar horas da noite para orar. A partir desse tempo em que ficou impossibilitado de trabalhar, recolhido em seu pequeno quarto podia orar dia e noite, e quando dali saía era para participar da missa e para fazer a visita a Jesus eucarístico. Foi assim que viveu durante quatro anos. Nunca de sua boca se ouviu um lamento, antes edificava a todos com as meditações sobre a Paixão do Senhor. Se não conseguiu aniquilar a escravidão, Pedro Claver com a sua vida foi uma contínua advertência, gritando que todo ser humano – escravo ou livre, branco, negro ou mestiço – é igual perante os outros. Jesus, de fato, derramou o seu próprio sangue por todos. Pio IX o declarou beato, e Leão XIII santo, enquanto que João Paulo II estendeu o seu culto a toda a Igreja de rito latino.

13 de setembro São João Crisóstomo bispo e doutor (340/50-407) “Muitos vagalhões e tempestades ameaçadores pairam sobre nós, mas não temos medo de ser submersos, porque estamos fundados sobre a rocha (...). O que haveremos de temer? O confisco dos bens? ‘Nada trouxemos para este mundo e nada podemos levar embora’. Desprezo os poderes deste mundo e seus bens me


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fazem rir. Não temo a pobreza, não cobiço riquezas, não temo a morte, nem desejo viver, a não ser para o vosso bem.” 12

São as palavras pronunciadas pelo pastor da Igreja de Constantinopla enquanto se encaminhava para o exílio. A corte imperial não havia conseguido corrompê-lo para fazê-lo calar-se. Crisóstomo vivia e anunciava o Evangelho sem amenizá-lo nem para si nem para os outros. Foi a sua força diante de Deus e da história e foi também a sua desventura diante dos poderosos de seu tempo.

As suas raízes Nasceu em Antioquia, entre os anos 340 e 350. Seu pai chamava-se Segundo e era um general do exército romano residente em Antioquia, na Ásia Menor. Quando ele conheceu Antusa, uma jovem grega, que à beleza física unia uma inteligência fora do comum, não pensou muito tempo para pedi-la em casamento. Eram ambos cristãos e sua aliança foi perfeita, com grande alegria das respectivas famílias. Veio à luz uma menina, mas partiu para o céu antes ainda de aprender a falar a língua desta terra. Afortunadamente, seu berço foi muito em breve ocupado por outro filho, um menino, que todos diziam se assemelhar ao pai como uma gota d’água. Entretanto, também desta vez a alegria foi bruscamente transformada em luto pela morte improvisa de Segundo. Para Antusa, com apenas 20 anos, abriam-se dois caminhos: ou casar novamente – e não lhe faltavam ótimas propostas – ou então abraçar o estado de viuvez no Senhor, o que queria dizer se consagrar a Deus como as virgens. Escolheu este segundo caminho, suscitando pasmo entre os notáveis da cidade, mas encontrando pleno apoio na cunhada, a virgem Sabínia, uma diaconisa que já há tempo vivia inteiramente dedicada a Deus e à comunidade cristã. Além disso, tinha também seu filhinho João para criar e não lhe pareceu pouca coisa. João terá orgulho desta escolha heróica da mãe e contará um simpático episódio que lhe aconteceu na escola com o mestre Libório. Esse homem,

12. PG 52, 427.


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famoso por seu saber, mas também por seus costumes pagãos, perguntou com que idade a bela Antusa havia ficado viúva e, quando soube que o era desde os 20 anos, “fez uma expressão de maravilha e, pousando os olhos sobre o auditório, exclamou: – Ah, que mulheres existem entre os cristãos!”.

Os seus estudos João obtinha tal sucesso na escola que aos 18 anos terminou os estudos clássicos e, contrariamente às expectativas maternas, ao invés de se preparar para o batismo, entregou-se “aos afãs do mundo e às quimeras da juventude”, desafogando-se “com os pronunciamentos no fórum e a paixão pelo teatro”. Não fazia nada de mau, mas queria mostrar suas capacidades na arte oratória e experimentar a embriaguez da liberdade juvenil. Assim fez durante dois anos. A mãe esperava com paciência, mas quando ele se decidiu a receber o batismo, aos 20 anos, disse à sua mãe que levava a sério sua escolha de tornarse cristão e por isso se tornaria monge, deixando o mundo e retirando-se para a solidão. Foi imediatamente aceito para o batismo, recebendo do bispo Melécio o sinal do cristão, na Páscoa do ano 368; quanto a tornar-se monge, ele o foi apenas em parte, porque sua mãe lhe fez notar que os rigores da vida ascética e eremítica não eram feitos para o seu físico tão frágil: permaneceria em casa, vivendo como asceta ao seu lado. João não estava plenamente convencido disso, mas admitiu que não era o caso de romper com sua mãe. Permaneceu na cidade, mas não com as mãos nos bolsos. Havia em Antioquia um famoso ascetério dirigido pelo mestre Diodoro, homem santo e instruído nas Escrituras. O ascetério era, ao mesmo tempo, mosteiro, seminário, centro de estudos e de irradiação do evangelho. João o freqüentava com assiduidade, e aí se encontrava perfeitamente à vontade, porque ao conhecimento da Sagrada Escritura estava unida a prática de uma vida evangélica. Quando o bispo Melécio se apercebeu do valor desse jovem asceta, conhecedor da doutrina e exemplar nos costumes, propôs-lhe fazer-se ordenar padre, para servir-lhe de ajuda. O ideal de João não era o sacerdócio e, com um pouco de astúcia, apresentou em seu lugar um amigo seu, Basílio, que considerava mais digno.


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A sugestão foi acolhida, mas pouco depois o bispo voltou à carga, para que aceitasse se fazer ordenar ao menos como leitor e se dedicar à instrução dos cristãos e dos catecúmenos.

O sonho rompido Em 372, morreu Antusa. Mesmo sentindo profundamente sua falta, João julgou chegado o momento de realizar seu sonho e retirou-se para um monte próximo à cidade, colocando-se sob a orientação de um idoso monge sírio. Depois de quatro anos, escolheu a vida eremítica ainda mais rigorosa e “faminto de escuridão, após haver conhecido os instintos sutis da vanglória, encovou-se sozinho em uma caverna e nela permaneceu dois anos, sem se deixar quase nunca ser tomado pelo sono; e, para lançar um pouco de luz em sua ignorância, estudou a fundo o Testamento de Jesus Cristo. Todavia, esses dois anos transcorridos sem se deitar nem de noite nem de dia, atormentado pelo frio, arruinaram o seu organismo e, portanto, na impossibilidade de curar-se por si só, retornou ao refúgio da Igreja”.13 Que sua mãe tinha estado certa tanto a razão quanto a consciência lho mostrava e então lhe faziam ver como fora desastrada a escolha de consumirse inutilmente em uma gruta, enquanto o bispo pedia ajuda para socorrer tantas pessoas que caminhavam direto para a estrada da perdição. Mais tarde escreveu: “Quanto seria preferível ser menos virtuoso, mas converter os outros, antes que se deixar ficar entre as montanhas e ver os seus irmãos perder a própria alma!”.14 Voltou para Antioquia e retomou o seu posto ao lado de Melécio, um bispo santo, porém continuamente suspeito de heresia pela Igreja de Alexandria e, por essa razão, não tão bem-visto também em Roma. João estava seguro quanto à ortodoxia do seu bispo e sempre lhe deu pleno apoio. Melécio ordenou-o diácono e levou-o consigo a Constantinopla, para o concílio ecumênico de 381. Aí João teve oportunidade de conhecer a beleza e a fraqueza das várias igrejas: esplêndidas na liturgia e decididas na busca da verdade, mas também mesquinhas nas contínuas lutas, querendo cada qual afirmar a todo custo sua própria supremacia. Nem mesmo lhe passou pela mente que um dia se 13. Palladio. Dial. 5: PG 47, 17. 14. PG 61, 54.


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tornaria pastor daquela Igreja constantinopolitana que estava iniciando sua ascensão e na qual ele nos teria dado a vida. Melécio morreu durante o concílio. João retornou para Antioquia e Flaviano, o novo bispo, o ordenou padre e confirmou-o como pregador. Ele realizou com empenho sua tarefa, conquistando a admiração do povo que enchia a igreja para ouvi-lo. Em 387, deflagrou-se uma revolta na cidade: cansados de pagar taxas intermináveis ao erário imperial, os antioquenos derrotaram as forças militares e entregaram às chamas as estátuas do imperador e dos altos funcionários. Quando os arqueiros conseguiram dominar a revolta, as vias urbanas estavam semeadas de cadáveres. Teve início uma caça desapiedada aos culpados e anunciava-se um castigo exemplar sobre toda a cidade, porque quando se tratava do assunto dos impostos, não era de se esperar misericórdia. O bispo Flaviano correu imediatamente para Constantinopla a fim de implorar clemência e o povo todo se comprimiu em torno de João, que naquela quaresma fez as famosas pregações depois denominadas Sobre as estátuas. Ao retorno do bispo com a notícia do perdão, o júbilo popular foi grande e todos atribuíam a graça a seu santo pregador que com sua palavra cortante os havia chamado à penitência. Durante doze anos ele foi o mestre mais amado e mais escutado pelos antioquenos, mas sua fama havia chegado até Constantinopla, que, com a morte do primeiro patriarca, o santo bispo Netário, estava à procura de um digno sucessor.

Uma incumbência inesperada A corte imperial havia posto os olhos no padre de Antioquia, famoso não só por sua arte oratória, mas também por sua santidade, e enviou uma embaixada oficial para buscá-lo. Conhecendo, porém, sua humildade e temendo uma recusa, não lhe revelaram de imediato o motivo da viagem, mas disseram-lhe que o imperador tinha necessidade de um conselho seu. Como negar esse pequeno favor a quem havia concedido o perdão à cidade? João partiu pensando em retornar rapidamente, mas, quando estavam se aproximando de Constantinopla, os enviados imperiais disseram-lhe a verdade. No momento, foi apanhado como por um golpe, mas depois pensou que o santo sínodo teria escolhido um outro. Por outro lado, não era possível voltar atrás; era preciso esperar os acontecimentos.


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O santo sínodo reuniu-se sob a presidência de Teófilo, patriarca de Alexandria, que tinha em mente outro candidato, mas, na contagem dos votos, João foi eleito quase por unanimidade. Quem teria tido a coragem de opor-se ao imperador, que indicava um candidato de tão alto perfil por ciência e virtude? Pouco depois, malgrado seu, Teófilo o consagrou bispo, com uma pompa litúrgica digna da capital do império. A festa, portanto, foi grande, mas para muitos durou pouco. Os grandes da corte e o alto clero o haviam posto sobre a cátedra patriarcal como planta ornamental, para o decoro da cidade imperial; queriam escutar sua polida oratória nas festas, mas não desejavam absolutamente confiar as rédeas da sua Igreja opulenta a um reformador dos costumes. Todavia, João não era, de modo algum, político e muito menos homem mundano; ele era simplesmente um monge que obedecia a Deus e a ninguém mais. Para si e para os seus cristãos tinha uma única regra: a do evangelho, e não abria exceções para ninguém.

Reformador da Igreja Começou por reformar imediatamente o seu palácio: aboliu as luxuosas recepções para os senhores da corte e suas damas, usando os bens do benefício episcopal para os pobres, tão numerosos pelas ruas da cidade. Pediu para o seu clero que fizesse o mesmo; aos monges, que adornavam com a própria presença as mesas dos ricos, impôs o retorno à clausura, segundo as normas dos padres; a algumas virgens e eclesiásticos que gostavam muito de conviver sob o mesmo teto, conduzindo uma vida mais de cortesãos que de pessoas consagradas, prescreveu severas penas canônicas. Não poupou sequer os nobres da cidade, que apreciavam viver no luxo: “Cristo” – dizia – “é consumido pela fome, e tu estás estourando por causa da tua gula!”.15 “E que dizer então de certas mulheres que fazem fabricar para si urinóis de prata? Mas elas não se envergonham desses abismos de sensualidade, enquanto Cristo tem fome?”.16 “Quem tem possibilidade de dar esmola e não o faz é um assassino dos seus irmãos, como Caim”.17 Não hesitou nem mesmo diante da corte: “O palácio do imperador é um formigueiro de pagãos, de filósofos e de peitos inchados de glória mundana. 15. PG 61, 179. 16. PG 62, 348. 17. PG 62, 444.


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Poderia dizer-se um abrigo de hidrópicos. Esta corte não pode ser outra coisa, já que nela não se encontram senão arrogantes, e o novato recém-chegado a ela apressa-se a se tornar assim também”.18 Não se deteve tampouco diante de certas matronas – entre elas a imperatriz Eudóxia – que se arrogavam o título de “mães da Igreja”, não por criar a comunhão, mas por instigar desordens de todo gênero dentro da comunidade cristã. O povo e toda a parte sadia do clero e dos monges, das virgens e das diaconisas, como a casta Olímpia, regozijavam-se, ao passo que o mau humor se agigantava entre aqueles que não queriam absolutamente mudar de vida. Naqueles anos (399-400), o império estava sendo atacado pelos godos e seu chefe, Gaínas, deu o que fazer ao imperador, chegando até mesmo a entrar em Constantinopla e a impor suas condições. Somente João conseguiu tratar com ele e opor-se a seus injustos pedidos, até que o próprio povo reivindicou sua liberdade, pondo-o em fuga. Mas, passado o perigo, voltaram as orgias. Eudóxia havia feito que a proclamassem Augusta e, se antes agia como patrão em casa alheia, agora até mesmo se vangloriava disso. Pela estima de que gozava também na Ásia, o patriarca foi chamado a pôr ordem em algumas igrejas ocupadas por bispos simoníacos. Esteve fora apenas cem dias, o tempo necessário para restabelecer a paz naquelas igrejas, mas, nesse meio tempo, com o apoio de Eudóxia, em Constantinopla havia sido reorganizada a oposição.

O primeiro exílio Teófilo de Alexandria havia expulsado do Egito, excomungando-os, uma meia centena de monges acusados de heresia. Esses chegaram a Constantinopla e pediram proteção ao patriarca. João não os recebeu na comunhão da sua Igreja, mas após tê-los escutado pediu a Teófilo que viesse a seu encontro, retirando a excomunhão. Bastou isso para que o alexandrino levasse adiante suas tramas até o famoso conciliábulo, chamado de Carvalho junto de Calcedônia, onde um grupo de bispos, de acordo com a corte, declarou herege o patriarca de Constantinopla. O imperador convalidou a condenação, decretando o exílio. João foi afastado. 18. PG 62, 152.


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O ressentimento popular e, fato extraordinário, um terremoto que abalou até mesmo o bem construído palácio imperial, impressionaram a supersticiosa Eudóxia. Por nada menos que três vezes o imperador ordenou que se suplicasse ao patriarca que retomasse seu posto em Constantinopla. O retorno foi naturalmente um triunfo: uma imensa maré de povo enchia a igreja e a praça defronte dela. “Antes que partisse” – disse João – “somente a igreja transbordava de pessoas, mas hoje a praça também se tornou uma igreja. Não vejo senão uma cabeça, desde lá embaixo até aqui, e sem que ninguém vos tenha imposto silêncio, estais todos calados e recolhidos. Não obstante, no circo há diversões! Mas ninguém as assiste. Acorrestes todos para aqui, para a igreja, como uma torrente”.19

A partida definitiva Todavia, a paz com a corte não durou muito tempo. Quando Eudóxia fez construir para si uma estátua nas proximidades de Santa Sofia, dando lugar a festejos paganizantes, João não soube reter sua decidida desaprovação e, tendo sabido que a imperatriz havia ficado ressentida, reforçou a dose: “Mais uma vez” – disse – “Herodíades espuma de raiva, mais uma vez se enfurece; eis aqui ela ainda a dançar e a pedir outra vez ter sobre um prato a cabeça de João”.20 A imperatriz, não podendo exigir materialmente sua cabeça, despachouo direto para o exílio, sem possibilidade de retorno. João compreendeu e, tendo reunido junto de si Olímpia e as outras diaconisas, exortou-as pela última vez a permanecerem fiéis à sua doação a Deus e a amarem com todo o coração a santa Igreja, e acrescentou: “Quem quer que seja que receber a consagração episcopal em meu lugar, com a condição de que não tenha chegado a isso por intriga, mas que tenha sido, ao invés, designado por unanimidade, pois bem, obedecei-lhe como se fosse eu, João, em pessoa, porque é necessário para a Igreja que haja um bispo. E lembrai-vos de mim quando orardes”.21 Foi relegado na fortaleza militar de Cúcusa sobre o monte Tauro, mas seus fiéis, desafiando os furores de Eudóxia, iam continuamente ter 19. PG 52, 439. 20. PG 59, 485. 21. PG 47, 35ss.


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com ele para escutar ainda a sua palavra e para trazer sinais concretos da sua devoção. O papa Inocêncio I procurou intervir em seu favor até afastando da comunhão eclesiástica os seus adversários, porém inutilmente. Antes, a corte procurou eliminá-lo para sempre, submetendo-o a uma viagem extenuante para Pition no Mar Negro. Caiu pelo caminho junto ao Santuário de São Basilisco, depois de ter recebido o conforto da eucaristia e ter repetido sua oração preferida: “Glória a Deus em todas as coisas. Amém”. Era o ano 407. Mais tarde, seu corpo foi transportado para Constantinopla e ele foi chamado Crisóstomo, isto é, boca de ouro. Com efeito, sua palavra formou na fé gerações de cristãos.

16 de setembro São Cornélio papa e mártir († 253) São Cipriano bispo e mártir (210-258) “É impossível dizer toda a alegria e a satisfação que se manifestaram aqui, tão logo chegaram até nós as alegres notícias da vossa coragem e vimos que servistes de guia aos irmãos na confissão, como também que a confissão do chefe foi posta em relevo pela conformidade com os sentimentos dos irmãos... Rezemos cada qual por nossa parte, um pelo outro, nos momentos de perseguição, sustenhamo-nos com uma caridade recíproca e, se a um de nós Deus conceder a graça de morrer rápido e de preceder o outro, que a nossa amizade continue junto ao Senhor, que a oração dos nossos irmãos e das nossas irmãs não cesse de ser dirigida à misericórdia do Pai.” 22

A história entrelaçou admiravelmente a vida desses dois santos que tiveram de lutar não só contra os perseguidores, os inimigos externos em 22. Cipriano, Epist. 60, 1-2.5: CSEL 3, 691-692.694-695 passim.


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relação à Igreja, mas também contra os inimigos internos, os hereges. Por isso, permaneceram unidos também na celebração da liturgia romana. São Cornélio. Após a morte do papa Fabiano em janeiro de 250, a comunidade de Roma foi governada por seus presbíteros e diáconos. O imperador Décio, decidido a fazer que o cristianismo desaparecesse, havia dito que lhe agradaria mais a notícia do comparecimento de um rival para disputarlhe o império do que a da eleição de um novo bispo de Roma. Eleger um novo papa significava, portanto, vê-lo morrer no dia seguinte. Convinha esperar que a tempestade passasse, como de fato aconteceu, quando, na primavera do ano seguinte, Décio teve de ir à Mésia para resistir à investida dos godos, morrendo no campo de batalha. A comunidade aproveitou-se desse fato para reunir-se e eleger o novo Papa. Entre os aspirantes ao alto cargo estava um certo Novaciano, experiente em filosofia estóica e em teologia, que se havia introduzido no clero romano no tempo de Fabiano. Mas a comunidade, no entanto, mais atenta às virtudes dos candidatos do que à palavra fácil dos eruditos, escolheu como Papa o romano Cornélio. Novaciano perdeu o controle e, segundo a narrativa de Eusébio de Cesaréia em sua História eclesiástica, reuniu o grupo dos seus amigos e enviou dois deles “a uma pequena e obscura localidade italiana para fazer virem dali três bispos incultos e simples” e se fez consagrar bispo, repetindo assim o cisma como nos tempos de Fabiano. De Roma, tanto Cornélio quanto Novaciano enviaram cartas às outras Igrejas, próximas e distantes, para comunicar sua eleição, provocando deso­ rientação onde quer que fosse. O bispo de Cartago, Cipriano, em nome de todo o episcopado africano, encaminhou dois enviados seus a Roma para verificar in loco como realmente estavam as coisas. Quando de seu retorno, tendo tomado conhecimento da verdade, escreveu em defesa do legítimo papa. Infelizmente, Novaciano, fazendo-se passar como paladino dos ver­da­dei­ ros mártires e combatendo a práxis pastoral dos papas e do próprio Cipriano de Cartago que, após uma côngrua penitência, readmitia na comunhão eclesial aqueles cristãos que durante a perseguição não tinham tido a força de confessar heroicamente a fé, tinha conseguido ganhar discípulos em muitas igrejas do Ocidente e do Oriente. Cornélio, com a grandíssima maioria do clero do seu lado, convocou então um concílio em Roma. Dele tomaram parte cerca de sessenta bispos – um


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número extraordinário para aquele tempo – e, por unanimidade, condenaram Novaciano e adotaram como própria a práxis penitencial da Igreja de Roma. Pouco antes, também Cipriano havia reunido um concílio para os bispos africanos e havia escolhido a mesma linha de procedimento. Os cânones desse concílio foram incluídos nos do concílio romano e enviados a todas as igrejas. Toda essa confusão ocorreu de março de 251 a junho do ano seguinte, quando o imperador Galo decretou novamente a perseguição contra os cristãos, que, segundo ele, com sua impiedade haviam se tornado responsáveis pela terrível peste que estava dizimando a população do império. O primeiro cristão a ser preso foi exatamente Cornélio, mas quando o povo tomou conhecimento do que estava acontecendo, dirigiu-se maciçamente para o tribunal onde o estavam julgando, para professar juntamente com ele a própria fé. Entre os que afluíram, havia muitos lapsi reintegrados à comunhão eclesial, que agora não queriam mais perder a ocasião de demonstrar com o martírio sua fidelidade a Cristo. Os juízes, antes indignados e depois temerosos de um motim popular, não condenaram o Papa à morte, mas simplesmente o exilaram na cidade vizinha de Centocelle, a atual Civitavecchia. Tão logo soube da notícia, Cipriano escreveu-lhe uma carta comovente, cheia de admiração pelo intrépido testemunho dado pelo pastor e por sua comunidade tão corajosa. Cornélio colhia os frutos do amor misericordioso que havia fortalecido os fracos, dando-lhe testemunhos fiéis. Em Centocelle, o Papa viveu ainda um ano, até junho de 253. Somente em 258 seus despojos foram transladados para Roma e sepultados no cemitério de São Calisto. São Cipriano. Seu nome completo é Cecílio Cipriano Táscio. Havia nascido por volta do ano 210, de família rica, na Ásia proconsular, muito provavelmente em Cartago. Não tendo necessidade de ganhar a vida com o suor da sua fronte ou com o uso das armas, havia se dedicado aos estudos, tornando-se retórico requintado e talvez também advogado; ao mesmo tempo, não negava a si mesmo os prazeres da vida, segundo o costume dos homens de sua classe social. Entrando em contato com o cristianismo, admirou sua doutrina, que não podia deixar de reconhecer como verdadeira, assim como a vida exemplar dos seus seguidores, mas não se sentiu em condições de abraçar um caminho


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que exigia tanto empenho. Justificava-se, dizendo: “Como é possível uma transformação radical? Como é possível rejeitar repentinamente tudo aquilo que cresceu comigo e, com o tempo, se tornou minha segunda natureza?”.23 Tinha então 40 anos ou, segundo outros, 25, e entrou em uma crise profunda, como ele mesmo contava: “Quando suspirava nas trevas e na noite profunda, era arremessado daqui e dali no mar borrascoso do mundo, sem ter conhecimento do escopo da minha vida, longe da verdade e da luz, e assim, na minha miséria moral, parecia-me inalcançável aquilo que a graça do Senhor me prometia para a minha salvação”.24 Por felicidade, encontrou o padre Ceciliano, de mentalidade aberta e coração grande, o qual, delicadamente, mas com firmeza, preparou-o para o batismo. Cipriano conservou para com ele uma gratidão perene. Com o batismo sua vida mudou radicalmente e ele mesmo estava maravilhado com isso. A descoberta de um Deus que é Pai e a nova relação de amor que experimentava para com ele, e que mais tarde expressou admiravelmente em seu comentário ao Pai-Nosso, fazia-o exclamar: “Recebi do céu um novo espírito; o segundo nascimento (o batismo) me transfigurou em um homem novo; o que antes me parecia duvidoso, adquiriu consistência novamente, abriu-se o que estava fechado, as trevas clarearam, o que antes era difícil tornou-se fácil”.25 Em seu coração de estudioso acendeu-se um grande amor pela palavra de Deus e pelos escritos daqueles que tinham sabido penetrá-la. Seu autor preferido era Tertuliano, a quem chamava seu mestre, pelo radicalismo com que estava empenhado na vivência do evangelho. Não querendo deixar-se continuar inoperante, Cipriano vendeu boa parte dos seus bens e deu o produto aos pobres, porque “desde seus primeiros passos na fé acreditou que não podia haver coisa mais digna de Deus do que a observância da continência, persuadido de que somente reprimindo a concupiscência da carne com o exercício vigoroso e constante de uma castidade íntegra, coração e inteligência podem tornar-se idôneos para acolher a verdade em sua plenitude”.26 23. Ad Donatum 3, 4. Cit. In Bibliotheca sanctorum, III. Roma, Città Nuova Editrice, 1990, 1261. 24. Ibid. 25. Ibid. 26. Ponzio. Vita, II, 4. Cit in: Bibliotheca sanctorum, III, cit., 1261.


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Sua conversão provocou alvoroço em Cartago e foi uma verdadeira conquista para os cristãos. O bispo Donato muito rapidamente quis associálo ao colégio dos presbíteros e no ano seguinte, 259, quando ele morreu, Cipriano foi aclamado como sucessor. Uma escolha por ele inesperada, mas que, todavia, não pôde recusar diante da vontade unânime do povo. Infelizmente, a eleição não agradou ao presbítero Novato e a outros quatro. Estes não conseguiam compreender por qual razão o povo tinha preferido um homem chegado à fé havia apenas três anos, depois de uma vida passada nos vícios do paganismo, somente porque era instruído e abastado, deixando de lado alguém dentre eles, que desde sempre tinham vivido na fé e haviam superado até mesmo a prova das perseguições. Novato e o seu grupo começaram a tornar difícil a vida do bispo, tentando todos os caminhos, até mesmo os mais desonestos, para fazer que fosse deposto. Cipriano, homem muito concreto, organizou de maneira eficiente a sua Igreja: tomou a si o cuidado da catequese com uma pregação convincente sobre a reforma dos costumes, precedendo a todos com seu exemplo, sobre a assistência aos pobres, empenhando nela também os seus bens. Reservou uma atenção especial às virgens, que ele considerava o tesouro mais precioso da comunidade, e dedicou-se com esmerado empenho à comunhão com todas as outras igrejas da África das quais era o primaz, e com a de Roma, à qual reconhecia o dever de ser sinal e centro de unidade para todos. Quando, em 250, deflagrou-se improvisadamente a perseguição de Décio, Cipriano foi aconselhado a não se expor inutilmente à morte, mas a esconder-se nas proximidades de Cartago, para não deixar em mãos de aventureiros a direção da Igreja. Novato e os outros quatro presbíteros haviam se oposto duramente à práxis penitencial seguida por seu bispo, defendendo que quem quer que houvesse obtido a recomendação de um confessor da fé devia ser readmitido sem necessidade de um período de penitência. Deste modo, eles aumentaram as fileiras do partido contrário a Cipriano e elegeram um outro bispo, Fortunato. Quando começou a perseguição e Cipriano se retirou para seu esconderijo, Novato e os seus amigos aproveitaram a ocasião e foram para Roma pedir sua destituição. Para serem bem sucedidos em seu intento, aliaram-se a Novaciano que, por ironia da sorte, era do partido oposto, o dos rigoristas. As duas igrejas estavam submetidas a uma dupla desventura: a perseguição e o cisma e, o que era pior, corriam o risco de não se entender entre si. A


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prudência de Cornélio e de Cipriano conseguiu evitar males maiores. Os dois bispos, após uma troca de visitas e de cartas, apoiaram-se reciprocamente e, primeiro Cipriano em Cartago, depois Cornélio em Roma, sancionaram com um concílio a condenação dos fautores da discórdia. Enquanto a Igreja reencontrava a paz interna, também a perseguição se havia acalmado. Cipriano, já de volta à sua sede, recomeçou a reorganizar a vida da comunidade. A situação não era certamente consoladora, porque paralelamente a testemunhos corajosos tinha havido também muitas deserções. Ele escrevia: “Meu coração está dilacerado, nem a minha incolumidade, nem a minha saúde pessoal são úteis para aliviar as minhas penas, porque nas feridas do rebanho há também, e mais profunda, a ferida do pastor. Eu uno o meu coração ao coração de cada um e na tristeza sinto-me oprimido por um cúmulo de afãs... Junto dos irmãos abatidos sinto-me também eu prostrado pela compaixão”.27 Propôs-se a recuperar e a fortalecer com a prática penitencial os cristãos fracos, porém arrependidos, excluindo dela os aproveitadores. Seu olhar não se limitava à própria cidade, mas ampliava-se para a Igreja inteira. Quando os bispos da Numídia, depois de uma incursão dos bárbaros, pediram sua ajuda econômica, ele pôs em ação a generosidade da sua comunidade e enviou aos irmãos nada menos que 200 mil sestércios, uma soma considerável para aquele tempo. Quando, mais tarde, irrompeu a peste no império, do ano 252 a 254, e muitos abandonavam seus próprios seres queridos por medo do contágio, ele, com a caridade dos cristãos, organizou em Cartago uma assistência exemplar, sem fazer distinção entre cristãos e pagãos. Cipriano havia mantido boas relações com os bispos de Roma e havia também manifestado com clareza o seu pensamento acerca da posição preeminente daquela sede para a unidade de todas as Igrejas. Sobre um ponto, porém, houve divergência. Os hereges africanos haviam semeado tamanha e tal confusão entre os cristãos que Cipriano e os bispos daquela região haviam decidido rebatizar aqueles que, abandonando a heresia, queriam entrar na verdadeira Igreja. Parecia-lhes impossível considerar válido o batismo de hereges que ensinavam as coisas mais estranhas à fé. Como poderiam eles, estando voluntariamente fora da comunhão com a Igreja una, conduzir para dentro dela outras pessoas? Parecer diverso, ao invés, era o de Roma que, em sua tradição, sempre havia readmitido na comunhão os cristãos batizados 27. Cipriano. De lapsis, cap. 4. Cit in: Bibliotheca sanctorum, III, cit., 1264.


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pelos hereges, tendo em conta também que muitas vezes eles estavam em boa fé ou, pelo menos, entendiam administrar o batismo ordenado por Cristo. O diálogo entre Cipriano e o novo papa, Estêvão, foi muito difícil e estava quase se encaminhando para uma excomunhão, quando Deus achou bom chamar a si o romano pontífice. Sucedeu-o Sisto II e a questão morreu por si, também porque era preciso fazer frente a uma nova perseguição, que irrompeu por obra do imperador Valeriano. Sisto II, tendo sucedido a Estêvão, retomou os contatos fraternos com Cipriano que, nesse meio tempo, tinha sido exilado em Curubi. Daí continuou a dirigir a comunidade por um ano. A 14 de setembro, tendo sido conduzido a Cartago, foi interrogado pelo procônsul Galério Máximo e condenado à decapitação. O processo desenvolveu-se diante dos olhos da comunidade cristã, que nos transmitiu os respectivos Atos do que aconteceu. Cipriano foi levado para campo aberto, “despojou-se da sobreveste, dobrou os joelhos por terra e prostrou-se em oração ao Senhor”. Ordenou que dessem ao carrasco 25 moedas de ouro, depois “vendou os olhos com as próprias mãos, e não podendo amarrar as faixas aos pulsos, o presbítero Juliano e o subdiácono as amarraram. Assim o bem-aventurado Cipriano sofreu o martírio”.28 Os cristãos haviam estendido em volta dele panos de linho e lenços para recolher seu sangue. Era o dia 14 de setembro de 258. Em breve tempo seu culto propagou-se por todas as igrejas do Oriente e do Ocidente, e alguns dos seus escritos chegaram até nós, sem esquecer que o Vaticano II os citou por diversas vezes, ao tratar da unidade da Igreja.

17 de setembro São Roberto Belarmino bispo e doutor (1542-1621) “Se és inteligente, reflete que foste criado para a glória de Deus e para a tua salvação eterna e que este é teu fim, este é o foco para o qual converge a tua alma, este é o tesouro do teu coração. Se chegares a este fim, serás bem-aventurado; mas pobre de ti se o perderes.” 29 28. Cf. Atti, V, 2-6; CSEL 3, 112-114. Cit. In Bibliotheca sanctorum, III, cit., 1266. 29. São Roberto Belarmino. Elevazione della mente a Dio. Ed. 1862, p. 14.


São Roberto Belarmino

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Belarmino estava assaz consciente de seus extraordinários dotes intelectuais, mas, como bom jesuíta, estava também consciente de havê-los recebido das mãos de Deus e de dever fazê-los frutificar todos e somente para a sua maior glória. Precisamente por esta visão inaciana da vida, tornou-se uma fonte inexaurível de doutrina, como o definiu São Francisco de Sales que, admirando seus escritos, traduziu-os para o francês e adotou o Piccolo catechismo [Pequeno catecismo] para a catequese da sua diocese. Roberto nasceu de família nobre em Montepulciano, a 4 de outubro de 1542, apenas catorze anos depois do falecimento de Santo Inácio de Loyola. Seu pai Vincenzo era magistrado e sua mãe, Cinzia Cervini, era irmã do papa Marcelo II. Aos 15 anos, Roberto ingressou no colégio que os jesuítas acabavam de fundar em sua cidade e durante os três anos seguintes foi de tal modo conquistado pelo carisma vivido por seus mestres que pediu para entrar na ordem. Superadas as resistências paternas, transferiu-se para Roma, onde fez o noviciado e realizou brilhantemente os estudos filosóficos. Após haver ensinado nos colégios de Florença e de Mondovi, foi mandado para Pádua para estudar teologia. Aí permaneceu pouco tempo, porque teve de transferirse para Louvain como pregador dominical em língua latina na igreja da universidade. Os professores e os alunos daquele ateneu, habituados a escutar com espírito crítico pregadores de fama internacional, ficaram pasmados com a profundidade de doutrina e com a clareza de exposição desse jovem jesuíta. “As vastas naves da igreja” – contam os contemporâneos – “não conseguiam conter o público”. E dizer que aquela igreja podia acolher até 2 mil pessoas. Em Louvain, terminados os estudos teológicos, Belarmino foi ordenado sacerdote em 1570 e nomeado professor de teologia e, em seguida, também prefeito dos estudos e diretor espiritual dos alunos. Todavia, o clima do lugar, que estava prejudicando sua abalada saúde, convenceu os superiores a chamá-lo de volta para Roma, onde lhe confiaram a cátedra de teologia do Colégio Romano.

Mestre de teologia Começava para Belarmino o período mais fecundo de sua vida. Suas aulas de teologia, de ano para ano sempre mais apreciadas, foram compiladas em uma obra de três volumes.30 O primeiro dizia respeito à Igreja; o segundo, aos sacramentos; o terceiro, à graça e à salvação. Em tempos em 30. O título completo da obra é Disputationes de controversiis christianae fidei.


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que a polêmica no interior da Igreja católica alcançava por vezes tons muito inflamados e a polêmica que ocorria com os protestantes era sempre áspera e mordaz, Belarmino, nesta sua “Suma teológica”, não apreciava muito se deter no rebater os erros dos outros, mas preferia expor com estilo sereno e profundo as verdades da fé, mostrando seus fundamentos escriturísticos, patrísticos e históricos. A receptividade em relação à sua obra foi extraordinária, tendo sido traduzida, integralmente ou parcialmente, para as principais línguas européias. Da feira do livro em Frankfurt, comunicavam-lhe que seu livro tinha tido grande procura e que, se houvesse 2 mil exemplares, teriam vendido todos eles. Um excelente sucesso editorial para aquele tempo. Após doze anos de ensino, foi exonerado, sempre por causa de sua saúde delicada, e foi-lhe confiado o encargo de diretor espiritual dos estudantes. Entre seus filhos espirituais, teve São Luís Gonzaga. Em 1592, assumiu a direção do Colégio Romano e naquele período deu uma contribuição importante para a formulação da famosa regra para os estudos.31 Dois anos depois, transferia-se para Nápoles como superior dos jesuítas daquela província.

“O servente da cúria” Em 1597, o papa Clemente VIII escolhia-o como seu teólogo, examinador dos bispos e consultor do Santo Ofício. Não obstante estivesse sempre adoentado, teve de colaborar com quase todas as congregações romanas, a ponto de ser chamado “o servente da cúria”. Nesses anos, constatando a ignorância em matéria de religião não apenas no meio do povo, mas também entre o clero, escreveu o Grande catechismo [grande catecismo] e o Piccolo catechismo [pequeno catecismo], que tiveram uma difusão muitíssimo ampla em toda parte. Se a obra Dispute tornou-se o livro-texto de quase todas as faculdades teológicas da área católica, o Grande catechismo foi o livro mais lido pelas pessoas de certa cultura, enquanto que o Piccolo catechismo foi amplamente adotado na catequese paroquial. Criado cardeal em 1599, contra a sua vontade, teve de aceitar por obe­ diência. Na autobiografia, assim descreve sua atitude interior diante do cardi­ nalato: “Continuar sem mudar o modo de viver...; não acumular riquezas nem fazer que os parentes fiquem ricos, mas dar o que foi poupado das rendas à 31. Trata-se da Ratio studiorum, adotada depois em quase todos os ateneus e colégios católicos.


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igreja ou aos pobres; não pedir ao Pontífice maiores receitas nem aceitar dotes dos príncipes”. E por volta do fim da vida, podia registrar: “Tudo isto, eu o observei”. Quando o rei da Espanha lhe enviou seu embaixador, oferecendo-lhe uma rica pensão, ele a recusou decididamente, não aceitando nem mesmo um pequeno presente. Vivia em profundidade o espírito de Santo Inácio e agia sempre e unicamente “para a maior glória de Deus”, obtendo uma grande paz interior e uma plena liberdade diante dos homens. Os sucessos nos estudos, a estima do papa, as honras que lhe eram tributadas e, mais tarde, as acusações infamantes de heresia jamais abalaram o equilíbrio da sua personalidade. Mantinha essa liberdade de espírito também diante do Papa. Quando este lhe pediu que dissesse abertamente seu pensamento acerca de seu modo de conduzir a Igreja, Belarmino escreveu um memorial: O dever principal do Sumo Pontífice, no qual apontava exatamente seis fontes de abusos.

A cruz do jesuíta vestido de vermelho Esta singeleza do “jesuíta vestido de vermelho”, como gostavam de chamálo, começou a suscitar-lhe adversários cada vez mais numerosos na cúria romana. Esses o acusaram de heresia junto ao Papa, e por pouco suas obras não acabaram no índice dos livros proibidos. Não tendo obtido sucesso em seu plano, convenceram o Papa a afastá-lo de Roma, nomeando-o arcebispo de Cápua. Belarmino, a quem não interessavam absolutamente as disputas da corte, transferiu-se imediatamente para sua diocese. Ninguém teria podido imaginar que um homem até aquele momento totalmente imerso nos livros, possuísse extraordinárias capacidades pastorais. Tão logo chegou à diocese, conquistou a amizade dos padres e a admiração do povo. Dedicou especial cuidado aos sacerdotes e aos pobres, e organizou a catequese. Em três anos, visitou três vezes todas as paróquias, não como superior que repreende, mas como amigo que ajuda, e celebrou três sínodos e um concílio provincial.

“A papatu libera me, Domine” Com a morte de Clemente VIII, e depois de Leão XI, tomou parte nos dois conclaves. Na autobiografia, anotava: “Faltou pouco, no segundo conclave,


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para que fosse eleito papa”, e rezava: “Do papado, livra-me, ó Senhor”. Tão logo eleito, Paulo V o chamou a Roma para confiar-lhe, não só numerosos encargos da cúria, mas principalmente as relações com os Estados. Com a mesma prontidão com que se havia dirigido a Cápua, Belarmino retomou o caminho de Roma e engolfou-se novamente nos graves problemas do papado. Naquele período, escreveu um memorial afirmando a necessidade de que os cardeais em conclave na eleição do Papa gozassem da plena liberdade de toda ingerência das autoridades políticas. Teve de ocupar-se das oposições surgidas entre a Santa Sé e os governos da Inglaterra e da França durante uma acirrada polêmica acerca dos direitos dos príncipes e do papa. Belarmino não conseguiu resolver as contendas, mas teve a oportunidade de expressar o seu pensamento acerca da autoridade do Papa sobre os príncipes cristãos. Contra aqueles que afirmavam que o sumo pontífice tinha o poder direto para intervir nos Estados porque era vigário de Cristo, Belarmino afirmou o princípio do poder indireto, a ser exercido com prudência e raramente, para admoestar e repreender o príncipe cristão que houvesse emanado leis contrárias ao Evangelho. Um poder, portanto, moral e não político. Com relação à famosa questão de Galileu, Belarmino, amigo e admirador do grande cientista, sabedor das dificuldades que ele teria encontrado nos homens da cúria romana, convidou-o a movimentar-se com prudência como o famoso astrônomo Copérnico e “a contentar-se com falar por suposição e não de maneira absoluta”, esperando tempos melhores. Galileu não se sentiu, em consciência, estar em condições de contemporizar com a verdade para ele claríssima e Belarmino, em boa fé, cometeu o erro de lhe impor o silêncio. Em 1621, tomou parte em um terceiro conclave, mas após a eleição de Gregório XV pediu para retirar-se entre os seus jesuítas em Santo André, perto do Quirinal, exatamente o tempo para preparar-se para a última etapa da sua viagem. Com efeito, nessa comunidade jesuítica morria, depois de poucos meses, a 17 de setembro de 1621. O cardeal decano daquele tempo recordava-o com estas palavras: “Aconteceu mais de uma vez que toda a congregação, que contava com catorze cardeais, mudasse o próprio parecer depois de ter ouvido o de Belarmino, tanto era o peso que sobre nós exerciam o seu saber, a sua firmeza e a sua consideração. Sua recordação continua também depois da morte a ter efeito


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imutável: apoiamo-nos em suas decisões e elas têm em nossas consultas o mesmo valor de oráculos contra os quais nada se pode objetar”.32 Como jesuíta, havia sido um discípulo fiel de Inácio, em cujo carisma plasmou sua pessoa e empenhou toda a vida; como bispo, tinha tido diante de si como modelos Ambrósio, Agostinho e o papa Gregório, servindo a humanidade de seu tempo com competência e sem interesses humanos; como estudioso, com lucidez e sabedoria, deu um forte impulso à cultura, merecendo para si o título de “doutor da Igreja”.

18 de setembro São José de Copertino (17/jun/1603 – 18/set/1663) O santo dos vôos Em Copertino, sua terra natal, quando pequeno o chamavam “Bocaaberta”, por sua habitual distração. Incapaz de aprender um ofício, como o de carpinteiro ou de sapateiro, trabalhou por alguns anos como garçom em um estabelecimento. Aí se sentia melhor do que em casa, porque a sua era uma pequena cocheira adaptada para habitação humana.

Destinado a servir como pequeno escravo Uma história dolorosa, que havia influído enormemente sobre seu caráter. Não lhe faltava inteligência, mas muitas vezes não tinha o que comer. Seu pai, Félix, “artífice na fabricação de carros”, era homem de confiança dos senhores do lugar, que possuíam um castelo em Copertino. Não era evidentemente um nobre, mas de classe média, e economicamente vivia razoavelmente bem, em comparação com os outros conterrâneos. Por esta razão, havia se casado com Franceschina, uma mulher de família economicamente discreta, industriosa e piedosa, que lhe havia trazido como dote um pequeno patrimônio de ducados. Viviam uma vida tranqüila com cinco filhos e à espera de um sexto, quando o imprevisto aconteceu. Para fazer um favor a um amigo, assinou um aval de mil ducados. O amigo faliu e Félix não somente foi processado, mas perdeu o trabalho e teve 32. Cit. in: Manns, P. I santi, II. Milano, Jaca Book, 1988, p. 243.


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de vender todos os seus haveres, inclusive a casa. Foi morar precisamente em um estábulo, exatamente quando a mulher estava para dar à luz José. Pouco depois, Félix morreu de desgosto e ninguém pensou em ajudar a viúva, ao contrário, lançavam-lhe em rosto a ingenuidade do marido. Por outro lado, naquele período, todos tinham suas queixas, porque a miséria era grande em todo o Salentino. Os próprios membros da administração municipal, endividados até o pescoço, vendiam os bens públicos aos poucos ricos do lugar e a outros que vinham da longínqua Gênova. Os pobres camponeses eram atormentados por taxas infindáveis e tinham de pagar “impostos até sobre a palha, sobre o caroço das azeitonas após a moagem, sobre a água da chuva, e estavam habituados a que fossem exigidos cinco grãos por cada árvore, devido à sombra que cada uma projetava sobre a terra (jus umbrae)”.33 Foram anos duríssimos para a viúva e para os filhos. Por ironia da sorte, como se isso não bastasse, seu credor conseguiu obter do supremo tribunal de Nápoles que José, o filho homem de Félix, fosse condenado a trabalhar sem remuneração até saldar o débito do pai, tão logo houvesse atingido a maioridade. Uma vida, portanto, sem esperança, uma verdadeira escravidão. Tinha, verdadeiramente, de permanecer com a boca aberta. A única maneira de esquivar-se a tamanha desventura era tornar-se padre ou frade. Tornar-se padre era coisa difícil, porque o jovem nada sabia de letras, tornar-se frade talvez fosse possível, porque lhe bastavam os braços e a vontade para trabalhar duramente. A idéia não desagradava a José e a boa mãe era também do mesmo parecer.

Todos o rejeitam Não havia ainda chegado aos 17 anos, quando ele deixou a mãe e dirigiuse ao convento dos conventuais, onde um tio seu havia sido guardião, mas após um período de prova foi mandado embora, “por sua pouca literatura, por simplicidade e ignorância”.34 Passou então para os franciscanos reformados, mas também estes, depois de pouco tempo, o rejeitaram. Bateu à porta dos capuchinhos, então menos exigentes em matéria de cultura, mas também aí se 33. Parisciani, G. – Galeazzi, G. San Giuseppe da Copertino tra storia e attualità. Padova, Ed. Messaggero, 1984, p. 23. 34. Ibid., p. 29.


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deu mal. Estes não o quiseram e depois de oito meses de prova, despacharamno para casa, “porque não era idôneo e hábil para os trabalhos costumeiros a serem realizados entre os capuchinhos”.35 Para livrar-se da condenação do tribunal, José dirigiu-se novamente para Grotella, o convento a dois passos de Copertino, e expôs seu caso ao frade sacristão. Este o alojou em uma água-furtada, onde de noite estudava, enquanto de dia ajudava nos trabalhos mais pesados do convento. Os frades tomaram a peito o seu caso e o admitiram na comunidade, primeiro como oblato, depois como terciário e finalmente como irmão leigo. Era o ano 1625 e José tinha 22 anos.

“Tu és o Espírito e eu a trombeta” No dia 19 de junho daquele ano começou o noviciado e quase de imediato foi admitido aos estudos teológicos e três anos depois foi ordenado sacerdote. O que aconteceu durante aquele período na mente desse jovem foi sempre difícil dizer. Não era certamente um boca-aberta, se o seu saber deixava com a boca aberta personalidades como o padre Andrea Padovani do Colégio universitário de São Boaventura de Roma, que testemunhava: “Eu o ouvi falar tão profundamente dos mistérios de teologia, como não o poderiam fazer os melhores teólogos do mundo”.36 Sabia também colocar a ciência teológica em seu justo lugar. À pergunta de Bonaventura Mastrio, chamado naquele tempo “o príncipe dos escotistas”, sobre como conciliar os estudos com a simplicidade do franciscanismo, respondeu: “Quando te puseres a estudar ou a escrever, repete: ‘Senhor, tu és o Espírito / e eu a trombeta. / Mas sem o teu sopro / nada retumba’”.37 Frei José, como sacerdote e missionário, demonstrou muito bom senso e arguta inteligência prática, mas principalmente um amor especial pelas pessoas pobres. Não só pregava aos pobres e os ajudava de todas as maneiras, mas sabia levantar a voz também contra os abusos dos poderosos e operar até conversões no meio deles. Às tarefas próprias do sacerdote, sabia unir também os trabalhos manuais, ajudando o cozinheiro, fazendo a limpeza do convento, cultivando a horta e saindo humildemente para pedir esmola. Amável e 35. Ibid., p. 30. 36. Ibid., p. 63. 37. Ibid., p. 75.


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exemplar, particularmente sábio no dar conselhos, era procurado dentro e fora de sua ordem. O provincial quis que visitasse todas as casas da província, cerca de cinqüenta, para reavivar a vida evangélica nas comunidades.

A luz que o arrebatava em êxtase Teria, talvez, vivido sempre em paz se, em dado momento, não se tivessem verificado nele fenômenos, para dizer pouco, fora do normal. Com efeito, não era raro que frei José entrasse em êxtase. Ele próprio nos narra algo, com uma linguagem cheia de imagens: “Quem entra em êxtase é como alguém que se lança ao mar nadando (debaixo da água). Ele vê as coisas que estão na profundidade do mar, nem sequer se lembra da terra. Os outros, porém, que estão presentes, não vêem senão os movimentos daquele que está na água, não chegando a ver o que ele vê no vasto mar. Assim sucede no êxtase, porque a alma se junta e entra no mare magnum do sumo Deus e vê aquilo que não se pode sequer narrar, quanto entender o que se passa. Mas quem estiver onde alguém entra em êxtase, não pode considerar outra coisa a não ser a postura do corpo”.38 E com outra imagem: “A alma é como uma rainha que vem acompanhada por suas donzelas, isto é, os sentidos, ao aposento do rei, que é Deus. Onde, tendo chegado, ela entra, porém as donzelas, isto é, os sentidos, permanecem fora, sem fazer movimento algum, porque o espírito ocupado com o rei Criador não estimula nele movimento algum”.39 Se os fatos tivessem permanecido nesse nível, frei José não teria tido tantos aborrecimentos, mas sua vida se complicou enormemente porque, quando menos esperava, enquanto celebrava ou pregava, dentro da igreja ou na praça pública, ele – sem o querer – emitia um forte grito e se elevava da terra até tocar a curva do teto e ali permanecia por alguns minutos, deixando todos com a respiração suspensa. Voltava ao normal tão logo acabado o êxtase ou então porque o superior lho ordenava por santa obediência. Alguém quis apanhá-lo em armadilha, perguntando-lhe: “Dizei, padre Copertino, vós percebeis tudo o que acontece ao derredor de vós, quando estais em êxtase?”. E o santo: “Nada sinto quando estou tão unidamente abraçado a Deus”. “Como sucede, então” – rebateu outro – “que à palavra obediência vós

38. ASV (Archivio Segreto Vaticano), Ritt, 2039, f. 348; IV. Diario Rosmi (7 de fevereiro de 1647), Summarium, p. 603. 39. Parisciani, G. San Giuseppe da Copertino. Osimo, 1967, p. 440.


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despertais prontamente?”. “Não ouço nem mesmo estas palavras” – respondeu frei José – “quando me sucedem semelhantes coisas, mas Deus, que é amante sumo da obediência, somente ao nomeá-la, faz desaparecer a visão que mantém a alma ocupada, e esta, desocupada, volta às suas potências e sentimentos do corpo”.40 Essa era a explicação que dava a seus superiores, enquanto com os outros procurava minimizar. Assim, em Assis, em agosto de 1644, enquanto lhe era consignado o diploma de cidadão honorário pelos deputados da cidade, um deles, vendo-o como que ausente, perguntou-lhe se não estava contente por ter sido feito concidadão de São Francisco. Ele respondeu imediatamente que sim, mas no mesmo instante elevou-se da terra até tocar o teto da sala, ali permanecendo por alguns minutos, entre o pasmo dos presentes. Quando desceu à terra, permanecendo ainda em êxtase, repetia: “Sicut cor tuum! Sicut cor tuum!” (em português, “Conforme o teu coração”). Vendo depois as faces aturdidas dos presentes, desculpou-se dizendo: “Tende compaixão de mim, por favor, porque são defeitos da natureza”.41 Os estudiosos estão hoje indagando para saber se esses fenômenos do santo de Copertino foram de natureza parapsicológica ou de natureza mística. O fato, inegável no parecer dos historiadores, é que eles aconteceram e que José de Copertino não era nem um mago nem um charlatão, mas simplesmente um homem de Deus.

A “via crucis” para entrar no céu No seu tempo, porém, as coisas não caminharam de maneira tão sim­ ples. Intervieram os superiores e interveio também o Santo Ofício. O pobre fradezinho foi submetido a contínuos interrogatórios e processado pelo tribunal inquisitorial de Nápoles. Saiu dele ileso, mas foi-lhe proibido retornar a Copertino. Foi removido de um convento para outro, depois foi mandado para Roma, daí para Assis, para Pietrarubbia, para Fossombrone e, por fim, para Osimo nas Marcas. Em 17 de setembro de 1663, festa dos estigmas de São Francisco, recebeu a eucaristia e rezou de maneira especial pelo Papa e pela Igreja, e 40. Turi, A. M. La levitazione fenomeno mistico e parapsicologico. Roma, Ed. Mediterranee, 1977, p. 171. 41. Parisciani, G. – Galeazzi, G., op. cit., p. 115.


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depois, com seu costumeiro humorismo, comunicou aos frades: “O burrico chegou ao cimo do monte exausto e deve ser morto”. Na noite do dia seguinte, o fradinho, que havia edificado a todos com sua santidade e aturdido a muitos com suas levitações, abriu seu último vôo, desta vez sem retorno.

19 de setembro São Januário bispo e mártir (= 305ca) “Mártir autêntico, testemunhou Cristo com o sangue; impávido diante das ameaças e das lisonjas, obteve a coroa de glória.” 42

Tal como sucede com muitos mártires dos primeiros séculos, é difícil delinear com precisão a figura histórica de Januário. Dado histórico certo é sua existência, sua ligação com a região da Campânia e particularmente com Nápoles, e o seu martírio por volta do ano 305, durante a perseguição de Diocleciano. Já no tempo de São Paulino de Nola, seu culto estava difundido na região. Disso nos fala o biógrafo de São Paulino, o presbítero Urânio. Este, relatando os últimos dias do seu bispo, escreve: “Paulino começou a perguntar com voz clara onde estavam os seus irmãos; então, um dos presentes, acreditando que procurasse por seus co-irmãos bispos que haviam celebrado com ele (a eucaristia em seu aposento), disse: ‘Ei-los, aqui estão os teus irmãos em volta de ti’. Ele, porém, respondendo, acrescentava: ‘Eu entendo falar dos meus co-irmãos no episcopado, Januário e Martinho (de Tours), que há pouco estavam em colóquio comigo, prometendo-me que em breve teriam vindo (buscar-me)’. Daqueles dois bispos, o primeiro, Januário, bispo e mártir, é honra da Igreja de Nápoles”.43

A vida e o martírio Januário, nascido em Nápoles na segunda metade do século III, foi eleito bispo de Benevento. Aí fez-se amar não apenas pela comunidade 42. Cf. Liturgia das Horas. 43. PL 53, 681A.


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cristã, mas também pelos pagãos, em razão do cuidado que ele dedicou aos pobres, sem distinção de pertença religiosa, mas levando em conta apenas suas necessidades. A Igreja tinha vivido um período florescente porque, em um primeiro tempo, Diocleciano havia permitido aos cristãos que ocupassem altos cargos no exército e na administração pública. Somente durante a sua velhice, sob a pressão do seu césar, Galério, assinou nada menos que três decretos contra os cristãos, desencadeando uma das perseguições mais ferozes, atingindo a Igreja em seus membros e também em seus haveres, para impedi-la de socorrer os pobres e ganhar ulteriormente o favor popular. Foi nesse período que foram aprisionados o diácono Sosso, que conduzia a comunidade de Miseno junto de Nápoles, o diácono Próculo que levava adiante a comunidade de Pozzuoli e outros dois cristãos desta mesma cidade, Eutiques e Acúzio. Januário fez chegarem até eles algumas cartas, exortandoos a permanecerem firmes na fé. O procônsul da Campânia, uma vez conhecida a intromissão de Januário, deu ordem para prendê-lo e conduzi-lo à sua presença para lembrar-lhe que as ordens do imperador eram simplesmente obedecidas e que ninguém estava autorizado a instigar os outros à desobediência. À ordem de voltar sobre seus passos, sacrificando aos deuses do império e dando assim o bom exemplo aos outros cristãos, Januário respondeu que não teria jamais honrado os demônios depois de haver servido ao verdadeiro Deus por toda sua vida. A notícia de seu aprisionamento espalhou-se como um relâmpago, suscitando dor também entre muitos pagãos, enquanto a comunidade cristã de Benevento enviava imediatamente o diácono Festo e o leitor Desidério para ajudar o seu bispo. O procônsul fez prender também esses dois e, tendo eles declarado sem reticências que eram cristãos, fê-los transferir juntamente com o bispo para a cidade de Pozzuoli. Aí teria pretendido servir-se deles, juntamente com os outros cristãos do lugar, aprisionados anteriormente, para dar espetáculo público na arena da cidade. Enquanto se preparava a festa, percebeu que a simpatia do povo para com o bispo e seus companheiros aumentava excessivamente, e teve medo de que durante os jogos pudesse se deflagrar um tumulto com conseqüências incontroláveis. Decidiu improvisadamente renunciar à festa e ordenou que os cristãos fossem decapitados. Era o dia 19 de setembro do ano 305.


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Conta-se que durante a execução uma mulher nobre de nome Eusébia conseguiu recolher, em duas âmbulas, os lacrimatórios, uma parte do sangue de São Januário, guardando-o com muita veneração. O fato não é, pois, estranho, se se pensar na veneração que os cristãos tinham para com as relíquias dos seus mártires. A comunidade de Pozzuoli recolheu os corpos dos mártires e sepultou-os no campo Marciano, perto da Solfatara.

A veneração Depois do edito de Constantino do ano 313, um bispo de Nápoles fez transportar solenemente os ossos de São Januário de Pozzuoli para as catacumbas da sua cidade. Durante o trajeto, Eusébia também presenteou o bispo com as duas âmbulas que continham o sangue do mártir. Como lembrança dessa transferência, foram erigidas ao longo do trajeto duas capelas: San Gennariello al Vomero e San Gennaro ad Antignano. Em 432, um outro bispo napolitano, São João I, fez o reconhecimento das relíquias, colocando-as na basílica da Stefania, que era a catedral do tempo. Em 831, os longobardos, após haver conquistado Nápoles, tomaram as relíquias do santo e levaram-nas para Benevento, que haviam escolhido como sua sede. Depois de várias outras transferências, atualmente a cabeça e as âmbulas do sangue do mártir são guardadas na sala do tesouro da catedral de Nápoles. O fenômeno, que já há séculos apaixona não só os napolitanos, mas personagens do mundo inteiro, é a liquefação do sangue. A notícia mais antiga é encontrada em um autor do século XIV, o qual conta que a 17 de agosto de 1389 “foi feita uma procissão solene pelo milagre que o Senhor nosso Jesus Cristo nos mostrou no sangue do bem-aventurado Januário, que estava em uma âmbula e se liquefez como se houvesse saído no mesmo dia do corpo do bem-aventurado”. O fato se repete cada ano no aniversário do martírio, 19 de setembro, no primeiro sábado de maio, em que se recorda a primeira transferência de Pozzuoli para Nápoles, e a 16 de dezembro, aniversário da terrível erupção do Vesúvio detida, segundo a fé dos napolitanos, por intercessão do seu padroeiro. A liquefação ocorreu quando, naquelas datas, as âmbulas com os coágulos de sangue foram aproximadas da urna que contém a cabeça do santo. Presenciaram o fenômeno personalidades famosas, crentes e não crentes, como


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João Batista Vico, Lourenço Lavoisier, Alexandre Dumas e outros. Quando, em Nápoles, ocorreu a liquefação do sangue, também em Pozzuoli aconteceu um fenômeno extraordinário: em uma pedra porosa, que teria servido para a decapitação do santo e, portanto, molhada com seu sangue e que atualmente é conservada em uma igrejinha, as manchas acinzentadas tornaram-se vermelhas e as vermelhas tornaram-se ainda mais vivas. A liquefação do sangue é inegável e não foram encontradas até agora explicações científicas. O seu repetir-se com tanta freqüência deixa alguns autores perplexos, ao passo que algum outro, como Peter Manns, faz a propósito esta observação: “É indubitavelmente importante, neste contexto, seguir o axioma teológico segundo o qual os milagres não devem ser multiplicados sem necessidade; mas cairemos em um erro não irrelevante se, com a teologia, quiséssemos, por assim dizer, prescrever a Deus o que estamos prontos a reconhecer como milagres e quais os milagres concretos que ele pode realizar por intermédio de seus santos”.44 O culto de São Januário difundiu-se rapidamente nas várias igrejas do Oriente e do Ocidente, até a Inglaterra. Para os crentes fica patente o exemplo de um bispo que não hesitou em derramar o próprio sangue por sua Igreja. Também os outros mártires receberam sua porção de glória dos napolitanos, mas como personagens de corte, destinados a servir como coroa para São Januário.

20 de setembro Santo André Kim Taegon sacerdote Paulo Chong Hasang e companheiros mártires coreanos (século XIX) “Irmãos caríssimos, sabei com certeza que o Senhor nosso Jesus, vindo ao mundo, tomou sobre si dores inumeráveis, com a sua paixão fundou a santa Igreja e a faz crescer com as provas e o martírio dos fiéis.” 45 44. Manns, P. I santi, I. Milano, Ed. Jaca Book, 1989, p. 138. 45. Carta de André Kim. Cf. Pro Corea. Documenta. Séoul-Paris, ed. Mission Catholique, 1938, vol. I, pp. 74-75.


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Também a Igreja coreana, em seu nascimento, recebeu o batismo de sangue com o testemunho, dizem os coreanos, de cerca de 10 mil mártires, dos quais cento e três canonizados por João Paulo II em Seul, em 6 de maio de 1984, na ocorrência do bicentenário da evangelização da Coréia.

Uma Igreja nascida dos leigos A fé cristã chegou a esse país nos albores do século XVIII, por iniciativa dos leigos do lugar. Cada ano uma delegação coreana visitava Pequim, na China, para um intercâmbio cultural com essa nação que era então muito estimada em todo o Extremo Oriente. Aqui os coreanos entraram em contato com a fé cristã e levaram para sua pátria o livro do padre Mateus Ricci, A verdadeira doutrina de Deus. Lee Byeok, um leigo, inspirando-se no livro do famoso missionário jesuíta, fundou uma primeira comunidade cristã muito viva. Ele pediu a um amigo seu, Lee-sunghoon, membro da costumeira comissão em visita à China, para se fazer batizar e levar livros e escritos religiosos para aprofundar a nova fé. O amigo voltou com o nome de Pedro na primavera de 1784 e a comunidade cristã teve um novo impulso. Não conhecendo bem a natureza da Igreja, a comunidade se organizou com uma hierarquia própria e começou a celebrar não apenas o sacramento do batismo, mas também o da crisma e o da eucaristia. Quando souberam do bispo de Pequim que para ter uma hierarquia válida era necessário a sucessão apostólica, suplicaram-lhe que lhes enviasse sacerdotes o mais rapidamente possível. O bispo os satisfez enviando um padre, Chu-mun-mo, e em poucos anos a comunidade coreana cresceu para diversos milhares de fiéis. Infelizmente a perseguição, já posta em ação desde 1785, tornou-se cada vez mais cruel e em 1801 matou também o único sacerdote residente na Coréia. A comunidade, porém, não se entregou; ao contrário, continuou a crescer. Em 1802, o rei emanou um edito que se tornou lei do Estado, no qual se ordenava, sem mais, o extermínio dos cristãos: “Não encontrando meio algum para fazer que os cristãos mudem de idéia, é preciso absolutamente fazê-los morrer para destruir o germe da sua loucura”. Tendo ficado sem sacerdote, os cristãos enviaram apelos contínuos e aflitos ao bispo de Pequim, e, por seu intermédio, ao Papa, mas somente em 1837 um bispo e dois sacerdotes das Missões Estrangeiras de Paris conseguiram penetrar às escondidas no país, para serem martirizados dois anos depois.


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Uma segunda tentativa, com êxito mais feliz, foi feita em 1845, por obra de André Kim, que conseguiu fazer entrar no país um bispo e um sacerdote. A partir daquele momento, a Santa Sé não deixará faltar à comunidade cristã a presença de um vigário apostólico. Em 1866 teve-se a perseguição mais encarniçada, mas finalmente em 1882 foi proclamada pelo governo a liberdade religiosa.

Os principais mártires coreanos Os mártires coreanos canonizados até agora pela Igreja são cento e três. Destes, apenas dez são estrangeiros: três bispos e sete sacerdotes. Não podendo falar de todos, damos algumas informações de alguns deles. André Kim Taegon. Nasceu em 1821, de uma nobre família cristã. Para escapar da perseguição, o pai deixou sua aldeia e transferiu-se para uma localidade escondida entre os montes com a mulher, os filhos, a mãe e os irmãos, todos cristãos. Ali se dedicou à agricultura. Sua casa tornou-se uma verdadeira “igreja doméstica”, para onde convergiam em grande número não só os cristãos, mas também aqueles que desejavam ser instruídos por ele na nova fé, para depois receber o batismo. Tinha apenas 44 anos quando foi descoberto pelas autoridades governamentais, que lhe impuseram em vão renegar a fé. Ele preferiu o martírio. Este é o ambiente em que André havia crescido. No entanto, em 1836, chegavam da França os primeiros missionários e André, crescido na escola do heroísmo em família, entrou em contato com padre Maubant, que o mandou a Macau, na esperança de prepará-lo para o sacerdócio. Tinha 15 anos. Voltou à pátria em 1844 como diácono, para preparar secretamente a entrada do novo vigário apostólico, monsenhor Ferréol. Ele armou uma embarcação, com marinheiros todos cristãos e diri­ giu-se ao porto de Shangai para receber o bispo. Lá foi ordenado sacerdote e com uma viagem muito arriscada conseguiu com muita astúcia introduzir o bispo na Coréia, onde trabalharam juntos, sempre em clima de perseguição, recolhendo muitos frutos. Ele era particularmente estimado pelos cristãos, não só porque era coreano e compreendia muito bem a mentalidade do lugar, mas também porque era nobre no trato, exemplar na prática do evangelho e ótimo pregador. Com efeito, sabia transmitir a fé com uma linguagem simples e profunda. Na primavera de 1846, o bispo encarregou-o de fazer chegar cartas à Europa por intermédio do bispo de Pequim. Foi nesta missão que foi


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descoberto casualmente, enquanto se encontrava com as barcas chinesas nos rios da província de Hwanghai-do e foi encarcerado. Conduzido perante o mandarim, este perguntou-lhe: “És cristão?”. André respondeu: “Sim, eu o sou”. “Por que segues esta religião contra a ordem do rei?”. “Porque é verdadeira, ensina-me a honrar a Deus e me conduz à felicidade eterna”. “Se não a renegares, farei que morras sob os golpes”. “Como quiseres, mas eu não abandonarei nunca o meu Deus”. Permaneceu cinco dias nesta primeira prisão, aonde acorriam em quan­ tidade numerosíssima os curiosos que desejavam ver este homem extraordinário e nobre, disposto a morrer por uma nova religião. André aproveitou a oportunidade, respondendo às suas perguntas, para catequizá-los. Transferido para o cárcere de Kaitsu, capital da província, o seu caso foi apresentado ao governador, que quis interrogá-lo na presença de toda a corte. André expôs com sua costumeira limpidez as principais verdades da fé. O governador declarou-lhe: “O que dizes é bom e razoável, mas o rei não permite que sejam cristãos”. Em se tratando de um nobre, foi dada uma informação ao rei, que o quis no cárcere de Seul. Aí fizeram de tudo para levá-lo a apostatar, mas não o conseguindo, muito embora se utilizassem das mais atrozes torturas, foi decapitado aos 16 de setembro de 1846. Do cárcere, havia escrito aos cristãos uma carta que tem o sabor dos escritos apostólicos. Dela transcrevemos um breve trecho no início desta memória. Paulo Chong Hasang. Outro mártir ilustre da terra coreana é o leigo Paulo. Havia nascido em Mahyan em 1795. Seu pai Agostinho e seu irmão Carlos foram martirizados em 1801. Naquela ocasião, ele, a mãe Cecília e a irmã Isabel foram antes aprisionados e depois provados de todos os seus bens. Reduzida à pobreza, a mãe foi morar com um parente seu. No novo ambiente, sentiram-se muito incomodados, não só por causa da pobreza, mas principalmente porque ficaram sem contato com a comunidade cristã. Por isso, tão logo lhe foi possível, Paulo tomou consigo a mãe e a irmã, e transferiu-se para Seul, onde, já com 20 anos, pôde dedicar-se à comunidade cristã, sobretudo ao serviço dos mais pobres. Foi a Pequim pelo menos quinze vezes, enfrentando a pé uma viagem dificílima, para receber os sacramentos e para implorar o envio de sacerdotes. O bispo de Pequim, em primeiro lugar, mandou o padre Sim, o qual, todavia, morreu em viagem, depois sugeriu a Paulo e a seus companheiros que escrevessem ao Papa pedindo um bispo.


Santo André Kim Taegon, Paulo Chong Hasang e companheiros

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A partir desse momento, Paulo dedicou todo o restante de sua vida a garantir a presença de um bispo e de sacerdotes na Coréia. Foi por seu mérito que veio da China o sacerdote Yan e depois foram introduzidos os sacerdotes franceses, padre Pedro Maubant, padre Tiago Chastan e o bispo Lourenço Imbert. O bispo Imbert tomou-o em sua casa juntamente com a mãe e a irmã para prepará-lo ao sacerdócio, porém a perseguição reacendeu-se violenta e o bispo e os missionários foram forçados a esconder-se. Paulo, a velha mãe e a irmã – esta última, juntamente com o irmão, havia se consagrado a Deus na virgindade – permaneceram na casa do bispo e continuaram a manter a comunidade unida. Mas um apóstata os traiu e foram acabar na prisão. Assim se desenvolveu o interrogatório diante do juiz: “É verdade que abandonaste as tradições da Coréia para praticar uma doutrina estrangeira e que arrastas para ela também outros?”. Paulo respondeu: “Se nós aceitamos do exterior objetos úteis para nosso uso, por que deveria eu rejeitar a religião cristã, que é a verdadeira, pelo único fato que vem de fora?”. E o juiz: “Se tu exaltas uma religião estrangeira, pretendes que o rei e os mandarins estejam em culpa porque a proíbem!”. E Paulo: “A estas palavras, nada tenho a objetar. Devo somente morrer”. Depois de havê-lo submetido a torturas insuportáveis sem obter a abjuração, os guardas o decapitaram em 22 de setembro de 1839, juntamente com seu caríssimo amigo Agostinho Nyon, que com ele havia subscrito a petição ao Papa, para que enviasse um bispo para a Coréia. Passados alguns meses, a mãe Cecília, de 79 anos, era encarcerada e morria devido às privações, enquanto a irmã Isabel, de 43 anos, era decapitada. Os missionários mártires. Não podemos omitir um rápido aceno ao heroísmo e ao martírio do bispo Imbert e dos dois padres, Maubant e Chastan, todos os três franceses. Para atenuar as violências e os vexames exercidos sobre os cristãos para que revelassem o esconderijo dos missionários, o bispo apresentou-se espontaneamente às autoridades e sugeriu a seus dois sacerdotes que fizessem o mesmo. Nesta ocasião, o padre Chastan escreveu uma belíssima carta, da qual transcrevemos apenas um trecho: “O nosso bispo, em sua sabedoria, considera oportuno, nas circunstâncias atuais, que é dever do bom pastor dar a vida pelas suas ovelhas: e disso deu o exemplo, apresentando-se ele próprio


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espontaneamente... A ordem de ficarmos escondidos nos havia mantido no segredo; a ordem de nos apresentarmos agradou-nos tanto quanto a primeira”. Os dois sacerdotes, tomados em custódia pelos guardas, foram conduzidos a Seul, tendo-se encontrado com seu bispo na prisão e, depois das costumeiras torturas, todos os três foram decapitados às margens do rio Han-kang, a cinco quilômetros da cidade. Em uma carta aos cristãos, escrita pouco antes do martírio, diziam: “Se algo pudesse diminuir a alegria da nossa partida, seria a de ter que deixar estes fervorosos neófitos que tivemos a alegria de servir nestes anos, e que nos amaram como os gálatas amavam são Paulo. Mas nós vamos a uma festa demasiado grande para permitir que sentimentos de tristeza entrem em nossos corações”. Em seguida, outros dois bispos e cinco missionários derramarão seu sangue junto à fileira dos mártires coreanos, para estabelecer as bases desta Igreja sempre fiel ao evangelho e hoje particularmente florescente.

21 de setembro São Mateus apóstolo e evangelista (século I) “Na missão do teu Filho unigênito, tu nos revelaste o teu amor pelos homens e, misericordioso, chamaste os pecadores para se assentarem no convite do reino. Mateus respondeu generosamente, acolhendo feliz o Mestre em sua casa e, renovado por este encontro de graça, tornou-se anunciador das tuas maravilhas.” 46

Jesus havia se estabelecido em Cafarnaum e com sua pregação e seus milagres suscitava a admiração e o assombro das pessoas. Mateus, chamado também Levi, ouvia-o falar e era tocado por sua mensagem, mas ele era um pecador público e, portanto, um excluído dessas coisas de Deus que exigem certa pureza de espírito. Exercia um ofício considerado infamante como o das prostitutas: com efeito, era coletor de impostos em Cafarnaum. 46. MA II, 1287.


São Mateus

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Por sua posição geográfica, a cidade era um ponto de passagem para a Síria, pelo mar, e havia, portanto, um posto de alfândega. Ninguém jamais teve prazer em pagar os impostos, mesmo quando justos, e menos ainda aqueles muitas vezes extorquidos com todos os meios por esses cobradores hebreus que trabalhavam por conta dos dominadores estrangeiros, os romanos. Eles eram odiados e desprezados como pessoas vendidas ao estrangeiro opressor. O chamado inesperado Mas um dia aconteceu para Mateus um fato inesperado e espantoso para as pessoas. Jesus de Nazaré em pessoa, passando próximo do posto do pagamento das taxas, onde o cobrador das taxas estava sentado, voltando-se para ele, disse-lhe: “Segue-me”. Bastou essa única palavra e Mateus “levantouse e o seguiu” (Mateus 9,9). Compreendia muito bem que devia mudar radicalmente de vida. Até aquele dia havia pensado em acumular tesouros para esta terra, de então em diante seguirá o Filho do Homem que “não tem onde repousar a cabeça” (Mateus 8,20), mas valia a pena, porque experimentava tal alegria no profundo do seu ser que convidou Jesus e os seus primeiros apóstolos a fazerem festa em sua casa. O jantar solene devia servir para saudar seus numerosos amigos, todas as pessoas da sua classe, socialmente um pouco rica, religiosamente distante, politicamente comprometida com os romanos e desprezada e temida pelo povo. Os bem-pensantes entre os hebreus da cidadezinha escandalizaram-se com isso e o fizeram notar aos apóstolos: “Por que come vosso Mestre com os publicanos e com os pecadores?” (Mateus 9,11). O murmúrio chegou aos ouvidos do próprio Mestre, que respondeu: “Não são os que estão bem que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide e aprendei o que significam estas palavras: Eu quero a misericórdia e não o sacrifício (cf. Oséias 6,6). Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mateus 9,12-13). Segundo santo Ambrósio, neste episódio devemos admirar, de um lado a bondade do Senhor, que vai além dos esquemas puritanos do seu tempo e, de outro, a generosidade da resposta pronta e decidida de Mateus. O santo bispo escreve: “Imediatamente depois, vem a mística chamada do publicano, a quem o Senhor ordena segui-lo, não com o corpo, mas com a alma. Assim,


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esse homem, que até esse momento recolhia com avidez os seus proventos dos pagamentos cruelmente e perigosamente arrecadados dos pescadores, chamado com uma única palavra, abandona, ele que roubava os bens dos outros, os seus próprios bens. E deixando o banco vil do coletor, caminha no seguimento do Senhor com todo o ardor da sua alma. E não somente isso, mas prepara um grande banquete: de fato, quem recebe Cristo em sua morada interior é saciado por imensas delícias e por alegrias superabundantes. E o Senhor entra com prazer e senta-se por amor daquele que acreditou”.47

O evangelista Não sabemos mais notícias acerca da vida de Mateus, mas seu nome está ligado ao primeiro dos quatro evangelhos. Mesmo que a redação em língua grega chegada até nós não seja a original escrita por Mateus, é convicção comum que ele o tenha escrito em língua aramaica. Disso nos dá testemunho Eusébio de Cesaréia, referindo-se a uma tradição mais antiga: “Mateus, que pregou em primeiro lugar aos hebreus, presenteou-lhes seu evangelho, composto no idioma pátrio”. Interessante também o testemunho de Orígenes, referido por Eusébio:48 “Em torno dos quatro evangelhos, que são os únicos admitidos sem contestação na Igreja de Deus que está sob o céu, aprendi da tradição que o primeiro foi escrito por Mateus, antes publicano, depois apóstolo de Jesus Cristo; que foi composto em língua hebraica (aramaica) e destinado aos convertidos do judaísmo para a fé (cristã)”. O original aramaico foi perdido, ao passo que a versão ou, talvez melhor, a recomposição em língua grega tornou-se o texto oficial da Igreja. O autor escreve claramente para um público que conhece as tradições hebraicas e se esforça por demonstrar que Jesus de Nazaré é o messias prometido nas Escrituras. A Antiga Aliança encontra, pois, o seu completamento na Nova e ao povo eleito sucede a Igreja de Deus que abrange todos os povos.

O apóstolo Não sabemos ao certo quais regiões foram evangelizadas por Mateus. Segundo uma antiga tradição, ele teria percorrido o Ponto, a Pérsia, a Síria e a 47. Ambrósio. Comentário a Lc, 5, 27-39. Cit. in Bibliotheca santorum, IX. Roma, Città Nuova Editrice, 1989, 123. 48. Eusébio de Cesaréia. História eclesiástica. Cit. in Bibliotheca sanctorum, IX, cit., 119.


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Macedônia. Uma outra tradição pretende que seja apóstolo da Etiópia, onde teria convertido a filha do rei, a virgem Efigênia, e por isso teria sofrido o martírio. Deste país, as relíquias tidas como suas teriam sido transportadas para Pesto e, portanto, para a catedral de Salerno no sul da Itália, onde são ainda hoje veneradas. Como evangelista, ele é representado como um homem alado ou um anjo.

26 de setembro Santos Cosme e Damião mártires (= 303) “Em seguida dá lugar ao médico – pois o Senhor também o criou – que ele não fique distante de ti, porque tens necessidade dele. Existem casos nos quais o sucesso depende de suas mãos. Também eles pedem ao Senhor para que os guie corretamente para aliviar o mal e a cura e para curá-lo, para que o doente, são, retome o seu viver.” 49

A saúde é um bem extraordinário muito apreciado por todos e os profissionais da saúde sempre existiram na história. Quem coloca a serviço do próximo a própria ciência médica no exercício da sua profissão não se depara com uma mercadoria qualquer, mas trata pessoas humanas, necessitadas de especial respeito pela fragilidade de sua saúde. O próprio Jesus nos deu exemplo disso, inclinando-se com infinita ternura sobre os enfermos e recorrendo freqüentemente ao milagre para restituir a saúde. Ao longo dos séculos, a Igreja sempre mostrou uma grande atenção para com os sofredores, tendo ocorrido por sua obra a invenção dos hospitais e a criação de inumeráveis ordens religiosas, masculinas e femininas, dedicadas a este objetivo.

Dois protetores para os profissionais da saúde Pode-se afirmar que os santos Cosme e Damião estão situados na origem desta tradição de bons samaritanos da humanidade enferma. Mesmo que sua história esteja envolvida na lenda, sua existência e o modo com que exerceram a 49. Eclesiástico 38,12-14.


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profissão continuam sendo um maravilhoso exemplo para todos os séculos. Não sem motivo, foram escolhidos como padroeiros dos médicos e dos farmacêuticos.

As informações a seu respeito Segundo a tradição, nasceram em Ege, na Cilícia, estudaram em Pérgamo e foram martirizados em Cirro, sob Diocleciano. Já no século V, a cidade de Cirro havia edificado uma basílica em honra deles e, no século VI, o imperador Justiniano construiu na mesma cidade um grandioso templo para agradecer aos dois mártires por sua cura de uma doença mortal. Seu culto difundiu-se rapidamente nas principais cidades do império e as narrativas de seus milagres deixaram em segundo plano a história verdadeira de sua vida. No século VI, Gregório de Tours nos descreve a tradição chegada até a Gália: “Os dois gêmeos médicos” – conta Gregório – “tornaram-se cristãos e expulsavam as enfermidades dos doentes somente pelo mérito das suas virtudes e pela intervenção das suas orações. Após diversos suplícios, foram reunidos no céu e realizam numerosos milagres para os seus compatriotas. Se um enfermo vier a seu túmulo e aí rezar com fé, obtém imediatamente um remédio para seus males. Conta-se que aparecem em sonho aos enfermos e dão-lhes uma prescrição; estes a seguem e ficam curados”.50 Uma característica recorrente em todas as narrativas da vida dos dois irmãos é a gratuidade com que ofereciam seu serviço aos doentes e o dom igualmente gratuito da fé cristã que transmitiam com seu exemplo. Eles, de fato, queriam imitar Jesus que, curando os corpos, curava as pessoas, restituindo-lhes a dignidade de filhos de Deus.

27 de setembro São Vicente de Paulo sacerdote, fundador dos lazaristas (1581-1660) “Não conseguir ver uma pessoa sofrer sem que se sofra com ela; vê-la chorar sem chorar com ela... É um ato do amor que faz compenetrar os corações um dentro 50. Gregório de Tours, In gl. mart. 98. Cit. in: Lodi, E. I santi del calendario romano. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, p. 450.


São Vicente de Paulo

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do outro e sentir aquilo que o outro sente, bem diferente do agir dos homens que não experimentam sentimento algum no ver o tormento dos aflitos e o sofrimento dos pobres. (...) Ser cristãos e ver o próprio irmão que sofre sem sofrer com ele, sem estar doente com ele, significa não ter piedade, ser cristãos de nome.” 51

O carisma deste gigante da caridade é o amor concreto que enfrenta os problemas e os resolve, não por espírito de filantropia, mas porque vê em quem sofre o próprio Jesus que lhe repete: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber...” (Mateus 25,31ss).

A aventura juvenil Vicente nasceu no dia 24 de abril do ano de 1581, perto de Pouy, na Gasconha, de uma família de pobres camponeses. Embora dotado de uma grande inteligência, até os 15 anos não fez outra coisa senão conduzir à pastagem as poucas ovelhas e os poucos porquinhos para ajudar a família a ir levando a vida. Um advogado da região de Dax, impressionado com o talento do jovem, falou com os pais, dizendo-lhes que era um pecado não fazê-lo estudar e ofereceu-se para pagar-lhe as despesas. Uma providência inesperada e uma grande esperança para o futuro da família. Vicente, por sua vez, não esperava outra coisa e lançou-se sobre os livros com todo o empenho. Naqueles tempos e naquela região, estudar significava encaminhar-se para a carreira eclesiástica, na esperança de agarrar-se o mais rápido possível em uma boa renda. Vicente estudou durante três anos no colégio dos padres franciscanos de Dax; depois tornou-se clérigo e, com a ajuda de seu patrono e com a venda de um par de bois da parte do pai, inscreveu-se na universidade de Toulouse. Aos 19 anos, conseguiu fazer-se ordenar sacerdote pelo bispo de Périgueux e continuou os estudos até tornar-se bacharel em teologia. Esperava obter um bom ganho tornando-se pároco, mas não o conseguiu. No entretempo, perdeu o pai e, para ajudar a família, abriu uma escola particular sem grande sucesso; ao contrário, sobrecarregou-se de dívidas. Nesse período, inseriu-se a história, por ele mesmo narrada: enquanto viajava de Marseille a Narbonne, foi aprisionado por piratas turcos e foi 51. Cit. por Lubich, C. Cristo dispiegato nei secoli. Roma, Cittâ Nuova Editrice, 1994, pp. 92-93.


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vendido como escravo em Tunis, tornando-se servo de um frade que por amor ao dinheiro se fez muçulmano. Vicente o convenceu a voltar atrás e juntos fugiram em uma embarcação leve para a França. Em Avignon, o frade fez sua abjuração nas mãos do delegado pontifício, Pedro Montório, e os três partiram para Roma. Na realidade, o bravo clérigo, segundo alguns, havia administrado de modo falimentar um pensionato que lhe foi confiado em Toulouse e havia fugido carregado de dívidas, dilapidando a herança de uma rica senhora e vendendo um cavalo que tomou como empréstimo. A comovente história africana, sempre de acordo com esta versão, servia para fazer-lhe perdoar os débitos e permitirlhe, após ter ficado dois anos escondido, tentar um novo trabalho. Visto que, não obstante, a carta em que Vicente narra esta aventura é autógrafa, outros historiadores autorizados consideram-na verdadeira. Certamente, até este momento, Vicente não era uma relíquia de santo e o demonstra o fato que, após um ano de permanência em Roma, voltou a Paris em busca de fortuna. Com efeito, conseguiu alistar-se entre os capelães da corte, porém com um estipêndio de fome, que apenas lhe permitia sobreviver sem poder ajudar sua pobre mãe, que se tornara viúva. Finalmente, em 1612, foi nomeado pároco nas proximidades de Paris.

A reviravolta parisiense Contava já com 31 anos de idade e, impressionado com a vida de oração de alguns de seus paroquianos, deixou de lado as preocupações materiais e de carreira, e começou a ensinar o catecismo, a visitar os doentes e a ajudar os pobres. O contato com a vida real reabriu-lhe o coração à oração e à meditação da palavra de Deus. Se os paroquianos foram seus primeiros mestres com sua vida, o instrumento de que a providência se serviu para operar nele uma profunda transformação foi Pedro de Bérulle que, o acolhendo em seu Oratório, o formou em uma profunda espiritualidade. Estava dando os primeiros passos nesta nova vida, quando de Bérulle o aconselhou a aceitar o encargo de preceptor junto à família de Filipe Emanuel dei Gondi, general das galeras régias. Vicente aceitou e foram quatro anos difíceis, tendo de lutar duramente para perseverar em uma escolha de vida verdadeiramente evangélica. Abriam-se diante dele dois caminhos: o da carreira, com a possibilidade de ganhar dinheiro e fazer seu pé-de-meia, e a do serviço aos pobres, com uma vida cada vez mais semelhante à do Mestre.


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Vivendo no castelo de seus senhores, foi-lhe possível verificar com os próprios olhos que havia na França dois estilos de vida: o dos ricos, que gozavam neste mundo dos bens da terra e esperavam gozar no outro os bens celestes; e o dos pobres que, depois de uma vida infeliz neste vale de lágrimas, imaginavam encontrar interceptada também a porta do céu, devido à sua ignorância e aos vícios em que muitas vezes a miséria os afundava. A senhora Gondi também compartilhava as preocupações do seu capelão e ofereceu uma soma de dinheiro àqueles religiosos que, a cada cinco anos, quisessem pregar uma missão às massas camponesas de suas terras. Ninguém se apresentou e Vicente, assustado com uma tarefa tão desmedida, abandonou o castelo sem tampouco avisar os patrões.

O humilde começo Os oratorianos de Bérulle, que alimentavam uma grande confiança nesse padre inquieto, ofereceram-lhe a possibilidade de exercer o seu ministério em uma nova paróquia do campo em Chatillon-le-Dombez. Aí começou a revelarse o carisma vicentino. Ele próprio gostava de contar este humilde começo. Certo domingo, enquanto me vestia para celebrar a missa, vieram me dizer que em uma casa isolada das outras, a um quarto de légua de lá, estavam todos doentes, e em estado de necessidade indescritível. Fui com isso dolorosamente atingido e na pregação não deixei de recomendá-los com afeto... Depois das vésperas, tomei comigo um bom homem, burguês da cidade, e nos pusemos juntos a caminho para ir lá. Pela estrada, encontramos mulheres que nos ultrapassavam, outras que voltavam atrás... Havia tantas que me faziam pensar em uma procissão.... 52

Vicente fez então esta consideração: “Hoje estes pobrezinhos terão mais que o necessário; dentro de alguns dias, estarão novamente em necessidade!”. O que fazer? “Eu propus” – continua o santo – “a todas aquelas boas pessoas, que a caridade havia inspirado, que cada qual se encarregasse de um dia, para trabalhar pela vida também de quem isso viesse acontecer depois”.53 52. Cit. in: Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1988, p. 541. 53. Ibid.


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A caridade organizada! Caridade, porque tudo deve partir daquele amor que faz ver em todo pobre a presença viva de Jesus; organizada, porque os cristãos são tais somente quando se moverem conscientes de formar um só corpo, como na primeira comunidade de Jerusalém. E se deu conta de que, para alcançar o escopo, não era preciso nem mesmo serem ricos, bastava serem freqüentemente solidários. Seu apelo foi imediatamente acolhido e surgiu o primeiro grupo de pessoas dispostas a servir os necessitados. Ele os chamou Caridade e deu às associadas o nome de “servas dos pobres”. Em três meses, a instituição possuía um regulamento próprio, aprovado pelo bispo, mas, acima de tudo, produzia seus frutos. A senhora Gondi não se conformava com o fato de haver perdido seu capelão e conseguiu fazê-lo retornar às suas terras. Vicente aceitou, com uma condição: de poder morar não no castelo, mas no campo, e dedicarse ao cuidado espiritual e material dos camponeses. As condições foram imediatamente aceitas e ele começou a fundar as Caridades em todas as aldeias, agregando a elas não somente mulheres, mas também homens. Era seu desejo que umas e outros trabalhassem juntos, mas devido à mentalidade do tempo não foi possível e somente as Caridades das mulheres permaneceram em ação. Mais tarde, em 1833, sua idéia será absorvida por Emanuel Bailly em Paris que, juntamente com Frederico Ozanam, fará florescer as “Conferências de São Vicente de Paulo”.

As damas da caridade A miséria, porém, não habitava somente nos campos; tinha a sua sede também na capital e em todas as grandes cidades, onde muitas vezes mostrava uma feição ainda mais dolorosa. Em Paris, em 1629, as servas dos pobres receberam o nome de damas da caridade, permitindo assim que também as mulheres nobres tomassem parte sem provocar reações desproporcionadas em seu ambiente e permitindo à nobreza parisiense colocar à disposição do santo seus recursos materiais que, de outro modo, teriam sido consumidos nas vaidades. Entre as damas, havia personalidades de destaque, como Luísa Maria de Gonzaga, futura rainha da Polônia, e a duquesa de Aiguillon, sobrinha do cardeal Richelieu.


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Os lazaristas O apostolado de Vicente nas aldeias rurais obteve tal sucesso que outros sacerdotes se uniram a ele, compartilhando seu ideal de serviço aos pobres e, no final, se encontrou com um excelente grupo de missionários rurais. Não somente os senhores Gondi, que proviam a suas necessidades materiais, mas também o arcebispo de Paris deu o seu apoio. Em Paris, eles receberam uma casa, primeiramente no antigo colégio dos Bons-Enfants, na rua Saint Victor, e depois no priorado de São Lázaro. Daí o nome de lazaristas dado a esses missionários. O grupo dos sacerdotes reunia-se em congregação religiosa sem votos, empenhava-se em não buscar dignidades eclesiásticas e a pregar somente nos campos e nas galeras. No verão, quando os camponeses estão ocupados nos trabalhos dos campos, os missionários dirigiam-se às paróquias da cidade para ensinar o catecismo. Em seguida, Vicente aceitou que seus lazaristas se dedicassem à formação dos sacerdotes, dirigindo seminários e aceitando também missões no exterior, como em Madagascar.

As filhas da caridade Com as missões dos lazaristas, refloresceu nos campos a vida cristã e muitas jovens, trabalhando nas Caridades, sentiam o chamado a consagrarse inteiramente ao serviço de Cristo nos pobres. Vicente, sempre atento aos planos de Deus, confiou-as a uma mulher excepcional, Luísa de Marillac, que compartilhava plenamente seu ideal, para que as formasse. O povo chamou estas jovens “filhas da caridade”, e Vicente e Marillac não quiseram que se tornassem religiosas com o perigo de perderem o frescor de seu carisma porque, como havia acontecido com as visitandinas de são Francisco de Sales, teriam sido forçadas a fechar-se em um convento. O santo dizia-lhes: “Vós tendes por mosteiro somente as casas dos doentes e a da superiora; por cela, um aposento de aluguel, por capela, a igreja paroquial, por claustro as ruas da cidade, por clausura a obediência... por grade o temor de Deus, por véu a santa modéstia!”.54 Eram permitidos 54. Cit. in: Bibliotheca sanctorum, XII, Roma, Città Nuova Editrice, 1990, 1160.


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os votos, mas somente privados e anuais, para que todas desenvolvessem sua missão na mais plena liberdade e por puro amor.

Formar os padres O arcebispo de Paris acompanhava com simpatia a obra apostólica de Vicente e dos seus padres, e desejaria que todas as dioceses da França tivessem padres tão bem formados por doutrina e virtude. Começou por mandar os seus passarem quinze dias entre os lazaristas antes de serem ordenados. Em seguida, muitos retornavam para renovar-se no espírito e surgiram as Conferências da terça-feira. Todas as semanas, naquele dia, muitos sacerdotes se encontravam juntos em uma casa dos missionários e em comunhão fraterna renovavam sua vida à luz do evangelho. A experiência começou a expandir-se como mancha de óleo e homens eminentes se consideraram honrados por poder tomar parte nela. Entre os primeiros, encontramos Olier, fundador dos sulpicianos, e Brandon e, em seguida, Bossuet e Rancé. Richelieu, ao tomar conhecimento do espírito que animava esses padres, quis ter os nomes daqueles que ele pudesse promover a bispos. Também o rei pediu a mesma lista a Vicente e quando este foi chamado junto ao rei moribundo ouviu dizer-lhe que, se fosse curado, teria feito de modo que todos os bispos franceses passassem três anos de formação na casa dos lazaristas. Dos padres aos seminaristas, a passagem foi rápida e muitas dioceses queriam que seus futuros párocos fossem formados pelos lazaristas. Quando da morte do santo, já dirigiam doze seminários.

No Conselho de Consciência Se Vicente possuía um carisma para formar os padres e os futuros bispos, por que não chamá-lo a fazer parte do Conselho de Consciência, onde se decidia exatamente a nomeação dos bispos? A rainha Ana da Áustria impôs a sua escolha e a do príncipe de Condé e de outros dois bispos, mas quem presidia o Conselho era o cardeal Mazarino, político requintado e sem escrúpulos. Suas indicações e as de Vicente eram bem diferentes: o santo preocupava-se em fornecer nomes de ótimos pastores, ao passo que Mazarino queria homens ligados à sua linha política. Vicente de Paulo não resistiu por muito tempo e sugeriu à rainha que afastasse o cardeal da corte, para o bem da França. Não o dissesse nunca!


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Quando Mazarino soube disso, agiu com toda a fúria, e a rainha, que comandava apenas por modo de falar, teve de dobrar-se a contragosto à vontade do cardeal e afastar Vicente para sempre do Conselho.

O jansenismo Se algo existia que estava em contradição com a espiritualidade vicentina era o jansenismo. O pensamento reformista de Cornélio Jansênio foi propagado na França por João du Vergier de Hauranne, conhecido como Saint-Ciran, que tinha sido colega e amigo de Vicente em Bérulle. Quando, porém, ele se opôs ao magistério da Igreja, Vicente dissociou-se formalmente e usou de seu prestígio junto aos bispos para impedir que eles o apoiassem.

Os frutos Dizer o bem que este homem fez à França e à Igreja em geral é impossível. Não houve categoria de miseráveis que ele não socorresse. Falando dos galeotas, dos quais tornou-se capelão, dizia: “Quando elogiei sua resignação, quando compartilhei seus sofrimentos... quando beijei seus grilhões... então me ouviram”. A seu serviço, ele colocou seus missionários, as Damas e as Filhas da Caridade. Ele se empenhou em resgatar os escravos cristãos das mãos dos turcos, levando para a França cerca de mil e duzentos. Outra obra, fruto do seu amor, foi a de garantir uma casa para as crianças abandonadas. Segundo uma indicação dada pelo santo em 1657, suas obras davam assistência a cerca de trezentas e noventa e cinco crianças na cidade de Paris. Durante a tremenda guerra dos Trinta Anos, que destruiu regiões inteiras, semeando por toda parte a fome, foram os seus filhos que levaram socorro onde quer que fosse preciso com os meios então disponíveis, organizando a Obra das Sopas. Em uma única paróquia distribuíam cerca de 5 mil refeições. Diz-se que Vicente recebia uma quantidade extraordinária de meios para suas obras e administrava um balanço que superava o de sua terra natal, com a não pequena diferença que suas moedas eram todas aplicadas a serviço dos pobres e as do Estado serviam muitas vezes para satisfazer as ambições de quem nunca tinha experimentado a fome.


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Os pobres são os nossos patrões De onde, no entanto, hauria este homem tanta vitalidade para entu­ siasmar a si mesmo e a seus filhos e filhas? O segredo do seu carisma era a caridade concreta. Ele havia harmonizado em seu espírito a espiritualidade de Bérulle, a de são Francisco de Sales e a de santo Inácio de Loyola. Do primeiro havia assimilado acima de tudo o espírito de oração que o mantinha unido a Deus também em meio às ocupações materiais mais envolventes; do segundo, havia apreendido o humanismo cristão que lhe permitia levar a santidade para dentro do mundo civil sem necessidade dos muros protetores do convento; por meio do terceiro, havia concentrado a fidelidade à Igreja que o impulsionava a servi-la especialmente naqueles setores onde a presença dos cristãos era mais carente. A nota característica da espiritualidade vicentina nós a encontramos expressa de maneira quase comovente nestas palavras do santo, extraídas das suas Cartas e Conferências: O serviço dos pobres deve ser preferido a tudo. Não deve haver atrasos. Se na hora da oração tiverdes de levar um remédio ou um socorro a um pobre, ide tranqüilamente. Oferecei a Deus a vossa ação, unindo a ela a intenção da oração. Não vos deveis preocupar e acreditar que haveis falhado, se pelo serviço dos pobres haveis deixado a oração. Não é deixar Deus, quando se deixa Deus por Deus, ou seja, deixar uma obra de Deus para fazer uma outra. Se deixardes a oração para dar assistência a um pobre, sabei que fazer isto é servir a Deus. A caridade é superior a todas as regras, e tudo deve referir-se a ela. É uma grande senhora: é preciso fazer o que ela manda. Todos aqueles que amarem os pobres em vida, não terão temor algum da morte. Sirvamos, portanto, os pobres com renovado amor e procuremos os mais abandonados. Eles são os nossos senhores e patrões. 55 Vicente concluiu a sua viagem terrena na manhã do dia 27 de setembro de 1660, atraindo a seu funeral uma multidão imensa composta de personalidades influentes e pessoas humildes. O calor da sua caridade havia unido muitos membros das duas classes sociais tão distantes entre si, despertando em todos a consciência da dignidade comum de filhos de Deus. Diz-se, às vezes, que Vicente criou apenas “enfermarias para os pobres”, sem efetuar uma “mudança nas estruturas”. À parte o fato de que a história tem

55. Cit. in: Lettere e conferenze spirituali. Cf. Carta 2546, citada na Liturgia das Horas.


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seus tempos sempre longos, sem estas “enfermarias”, milhões de pobres teriam desaparecido desta terra sem nunca sentir junto deles o calor de um coração humano e talvez as estruturas teriam se tornado ainda mais desumanas. Vicente de Paulo foi declarado bem-aventurado em 1729 e santo em 1737.

28 de setembro São Venceslau mártir (907/8-929) “Venceslau, por graça de Deus, era exemplar na prática da fé. Ajudava os pobres, vestia os nus, dava de comer aos famintos, acolhia os peregrinos, exatamente como quer o evangelho. Não tolerava que se cometesse injustiça com as viúvas, amava todos os homens, pobres ou ricos que fossem, socorria os ministros de Deus e embelezou também muitas igrejas.” 56

Na vida dos santos reis deste período sempre se dá ênfase ao seu amor para com Deus e para com o próximo, amor que se concretiza no serviço aos pobres e na promoção da vida da Igreja entre os súditos. Em uma sociedade como a deles, em que o chefe era também o modelo a ser seguido, talvez tenha sido este o caminho escolhido por Deus para evangelizar povos inteiros. Os primeiros anúncios do evangelho haviam chegado à Boêmia no século IX por obra tanto de sacerdotes de rito latino provenientes da Alemanha, de Ratisbona, quanto de São Metódio de rito oriental. Segundo uma tradição, este santo teria batizado os avós de Venceslau, o príncipe Borivoj e Santa Ludmila. Naqueles tempos, nas regiões aonde chegava a evangelização da igreja bizantina, nelas se estabelecia normalmente a influência do império do Oriente; e nas regiões aonde chegavam evangelizadores latinos, instaurava-se o influxo do império do Ocidente. Não raro, os poderosos do momento apoiavam-se em um ou outro império para obter o predomínio em suas lutas internas. 56. Da primeira Narração páleo-eslava. Praga, Ed. M. Weingart, 1934, p. 974.


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A infância Em 895, a Boêmia teve de reconhecer a autoridade do imperador alemão e aceitar sacerdotes da diocese de Ratisbona como evangelizadores, para subtraí-la assim de qualquer influência ou pretensão do império bizantino. Também os pais de Venceslau, Vratislau e Drahomira, tiveram de aceitar o batismo com seus dois filhinhos: Venceslau e Boleslau. Vratislau morreu logo em um combate com os vizinhos magiares, Drahomira assumiu a direção da Boêmia como regente, enquanto a avó Ludmila incumbiu-se da educação dos dois meninos. Ludmila havia aceitado a fé de coração aberto e, portanto, não se deteve a estabelecer distinções por causa do rito e transmitiu sua fé aos netos, servindo-se talvez também de um sacerdote eslavo muito culto. Em seguida, Venceslau freqüentou uma escola superior onde aprendeu o latim, que era a língua dos cultos e que lhe permitia o trato com as cortes e as abadias do Ocidente, e exercitou-se também no uso das armas, como convinha a um príncipe herdeiro. Drahomira, embora batizada, não simpatizava muito com os germanos e com a sua fé e continuava a seguir os usos religiosos tradicionais do seu povo, alimentando sentimentos de forte independência, nisto seguida por não poucos chefes do povo. Querendo atrair também o filho Venceslau para suas posições, primeiro afastou a avó e depois a fez estrangular. Era o ano 921. Em seguida, impediu o filho de manter contatos com os sacerdotes, tirando deles qualquer autoridade que exercessem em seu país. Cometeu também a imprudência de mandar soldados em auxílio aos liutizos, gente que estava em luta contra Henrique I.

Rei da Boêmia O rei alemão, tão logo dominou os liutizos, dirigiu-se à Boêmia com seu exército, depôs Drahomira e confiou o governo a Venceslau, firmando em Praga, em 929, um tratado no qual, além de estabelecer que a Boêmia continuava dependente da Germânia, empenhava-se em não mais impedir a evangelização que se fazia mediante os sacerdotes latinos. Para os vencidos não havia outra escolha. Venceslau, muito realisticamente, não perdeu tempo em lamúrias, mas quis unificar sempre mais as diversas tribos que compunham o seu povo e


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conduzi-lo a uma maior promoção humana, sabendo que esta passava pela fé cristã, e que o sistema cristão à sua disposição era o ocidental. Sabendo, porém, que havia chefes que pensavam de maneira diversa, falou-lhes com muita sinceridade desde o início: “Por que quereis impedirme de aprender a lei de Jesus Cristo e de obedecer a seus mandamentos? Se Deus é para vós causa de aborrecimento, por que impedir os outros de amálo? Quanto a mim, liberto-me de vós, rejeito vossos conselhos, porque desejo servir a Deus com todo o meu coração”. Garantiu, depois, que o país tinha necessidade de paz para progredir e que não teria permitido a conselheiros temerários perturbarem a ordem pública, incitando guerrilhas entre as tribos. Palavras claras, que não admitiam subterfúgios; mas também palavras duras que alimentaram o descontentamento de quem não tinha nenhuma vontade de renunciar aos antigos usos e costumes. Às palavras, seguiram-se os fatos. O jovem rei fez exumar os restos da avó Ludmila e os fez transportar para Praga, sepultando-os com grandes honras na Igreja de São Jorge; afastou da corte a mãe Drahomira, chamando-a somente depois que prometeu não mais se interessar por política; e convidou sacerdotes bávaros e eslavos para abrir escolas nas diversas partes do reino. Teve início um período florescente de vida em todo o reino. Drahomira também o reconheceu e passou para o lado do filho. Por seu empenho, surgiram igrejas e mosteiros. No castelo de Praga, fez construir a igreja de São Guido, de comum acordo com o bispo de Ratisbona. Ele próprio aspirava um dia tornar-se monge e, entrementes, vivia como tal, conquistando para si a estima e o amor dos súditos. Era admirável na administração da justiça na qual todos, inclusive os pobres, eram ouvidos.

O martírio Os chefes que lhe eram contrários não se deram por vencidos e instigaram o irmão Boleslau, dizendo-lhe que Venceslau estava conjurando juntamente com a mãe para matá-lo e que valia a pena fazê-lo antecipadamente, tirando o reino de suas mãos. Continuemos, porém, a primeira Narração páleo-eslava: Sucedeu que num domingo, festa dos santos Cosme e Damião, Venceslau encaminhou-se para a cidade de Alt-Bunzlau. De fato, tinha por hábito dirigir-


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se às várias cidades quando nelas deviam ocorrer celebrações especiais. Antes, nunca deixava de comparecer quando se festejava a dedicação das igrejas. Dessa vez, portanto, após haver participado do sacrifício eucarístico, queria retornar a Praga, porém Boleslau o entreteve com perversa intenção, dizendolhe: ‘Por que queres partir tão depressa, irmão?’. No dia seguinte, ao alvorecer, soaram os sinos para o ofício da manhã. Venceslau, ao ouvi-los, exclamou: ‘Louvor a ti, Senhor, porque me concedeste viver até este dia’. Boleslau, já emboscado à porta, apanhou-o. Venceslau viu-o e disse-lhe: ‘Irmão, até ontem tu te mostraste para comigo como um humilde servidor!’. O outro, porém, sob a sugestão do diabo, que lhe pervertia o coração, com a espada desembainhada, respondeu-lhe: ‘E agora quero me tornar melhor!’. Assim dizendo, golpeou-o na cabeça com a espada. Venceslau, então, olhando-o no rosto, exclamou: ‘Mas que fazes tu, irmão?’ e, agarrando-o, lançou-o por terra. Acorreu, todavia, um dos conse­lheiros de Boleslau, que feriu Venceslau em uma das mãos. Ferido na mão, abandonou a presa do irmão e fugiu para a igreja. Mas outros dois celerados o perseguiram e o mataram na soleira da porta. Um quarto celerado, por fim, traspassou-o no costado, de lado a lado. Venceslau exalou imediatamente o último suspiro, exclamando: ‘Em tuas mãos, Senhor, recomendo a minha alma.

Padroeiro e herói nacional O delito ocorreu no dia 28 de setembro do ano 929. A mãe, que não havia tomado parte na conjuração, fez recolher o corpo do filho e, depois de havê-lo sepultado honrosamente na igreja dos santos Cosme e Damião, julgou oportuno fugir do castelo do filho Boleslau. Boleslau, sucedendo-o no trono, em pouco tempo se deu conta, juntamente com os grandes do ducado, que não valia a pena opor-se ao império do Ocidente e retomou a política do irmão a que antes tanto se opunha. Três anos mais tarde, o corpo de Venceslau, já tido por todos como um santo, foi transportado para Praga, na igreja de São Guido, que ele havia feito edificar. Seu exemplo de vida cristã, concluída com o martírio, acelerou a evangelização dos seus súditos.


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28 de setembro São Lourenço Ruiz e companheiros mártires filipinos (= 1637) “Na hora do martírio, o jovem pai de família (Lourenço Ruíz), proclamou e levou à realização a catequese cristã que havia recebido na escola dos frades dominicanos de Binondo: uma catequese que tem seu único centro no mistério de Cristo: é Cristo que é anunciado e é Cristo que fala pela boca do seu mensageiro.” 57

Lourenço Ruiz é o protomártir das Filipinas, o país mais católico do Extremo Oriente, porém o seu martírio, juntamente com outros 15 compa­ nheiros, não se consumou em sua terra, mas sim no Japão.

A fidelidade dos cristãos japoneses A longa e feroz perseguição contra os cristãos no Japão os havia privado de sacerdotes, mas não havia destruído sua fé. Quando, em 1634, alguns comerciantes espanhóis desembarcaram nas ilhas Okinawa, os fervorosos cristãos que aí se encontravam pediram-lhes insistentemente que lhes mandassem missionários. Eles teriam encontrado a maneira de introduzi-los secretamente nas outras ilhas, para levar conforto às comunidades cristãs, que viviam em clima de catacumbas. O apelo chegou ao provincial dos dominicanos em Manila e este, no decurso de dois anos, conseguiu preparar um grupo de missionários e fretar uma pequena nave que devia partir secretamente para Okinawa, tendo o governador espanhol proibido o envio de pessoas ao Japão, devido às tensões políticas entre os dois países.

Os seis missionários A comitiva era composta de seis pessoas. O responsável pela missão, candidato a tornar-se bispo do Japão, era o padre Antonio González, espanhol,

57. João Paulo II na Homilia da canonização: AAS, 73, 1981, 342.


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professor de teologia, que desde 1631 estava estudando a língua japonesa. Era seguido imediatamente por padre Guillaume Courtet, francês, também professor de teologia, que desde jovem sonhava substituir os missionários franciscanos e jesuítas martirizados no Japão; o padre Miguel de Aozaraza, espanhol, que havia trabalhado com sucesso como missionário na ilha de Luzón; e o padre Vicente Shiwozuka da Cruz, que quando menino havia fugido do Japão, talvez de Nagasaki, e nas Filipinas havia se tornado sacerdote, dedicando-se principalmente aos cristãos japoneses refugiados nesse país e ensinando a língua da sua terra aos missionários. Não lhe pareceu verdade quando se apresentou a oportunidade de voltar a seu país para ajudar os cristãos perseguidos e uniu-se com entusiasmo ao grupo do padre González. A estes juntou-se também outro japonês, um leigo, Lázaro de Kioto. Tinha sido banido de sua cidade em 1632, porque era cristão e doente de lepra. Agora se oferecia para servir de guia e intérprete aos missionários. Por fim, também Lourenço Ruiz juntou-se ao grupo por puro acaso. Lourenço havia nascido em Binondo (Manila), por volta do ano 1600, de mãe tagala e pai chinês. Tinha vivido muito ligado ao convento dos dominicanos, fazendo parte da confraria do Rosário e havia se tornado um tabelião de fama na cidade. Era casado e tinha dois filhos. Enquanto estava se preparando para a viagem dos missionários, achou-se envolvido em um fato criminoso não bem identificado e era procurado pela polícia. Para não se deixar aprisionar e também pelo desejo de encontrar um novo lugar de trabalho para onde pudesse se transferir posteriormente com toda a família, pediu e obteve permissão para partir com os missionários, mas sem nenhuma intenção apostólica. Depois de um mês de tempestuosa navegação, a comitiva tocava a ilha de Okinawa, muito bem acolhida pelos cristãos do lugar. Não conseguindo esconder o seu fervor, depois de alguns meses, em setembro de 1636, foram identificados como cristãos e foram aprisionados, tendo sido transportados para Nagasaki para o processo.

As torturas e os interrogatórios Segundo o costume do país, os prisioneiros eram torturados com métodos particularmente desumanos. Eram forçados a engolir com um funil uma grande quantidade de água para depois fazê-la lançar fora mediante violenta pressão sobre seu ventre; eram-lhes cravados pedacinhos de cana de bambu


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sob as unhas e nos órgãos sexuais; eram suspensos pelos pés a uma forca, mergulhando a cabeça em uma fossa de escórias presa em torno do pescoço por dois pedaços de madeira circulares. Eram depois expostos em uma jaula na praça ou transportados pelas ruas da cidade para serem escarnecidos pela multidão. As torturas eram tão cruéis que o padre Vicente, em um momento de fraqueza, se declarou pronto a renunciar à fé cristã. O mesmo sucedeu com Lázaro. Mas quando, ao anoitecer, os missionários se encontraram sozinhos no cárcere, os dois pediram perdão a todos e reafirmaram a vontade de morrer mártires. A 23 de setembro, recomeçaram os interrogatórios e as torturas. Quando perguntaram a Lourenço Ruiz se estava disposto a renegar a fé para salvar a vida, ele respondeu com decisão que estava pronto a morrer por seu Senhor: “Quereria dar mil vezes a minha vida por ele. Jamais serei apóstata. Podeis me matar, se quiserdes. A minha vontade é de morrer por Deus”. Os prisioneiros foram condenados à morte e, conduzidos à colina da cidade de Nagasaki, foram submetidos à tortura da forca e da fossa. Resistiram três dias, sem que nenhum deles renegasse a fé. Os algozes, cansados de esperar e desejosos de tomar parte de uma batida de caça, decapitaram-nos. Era o dia 29 de setembro de 1637. Quando a notícia de seu martírio chegou a Manila, o povo e as autoridades quiseram honrar solenemente sua memória.

30 de setembro São Jerônimo padre e doutor (347-420) “São Jerônimo penetrou tão profundamente as divinas Escrituras, que deste tesouro pôde dispensar a antiga sabedoria e a nova, incitando-nos com o seu exemplo a buscar sem fim nas páginas sagradas Cristo, Palavra viva.” 58

Este texto litúrgico testemunha o reconhecimento da Igreja por Jerônimo, que, com sua tradução da Bíblia (uma tradução nobre na forma e fiel no 58. MA II, 1305.


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conteúdo), favoreceu na cristandade ocidental o acesso à palavra de Deus. E tal era sua intenção, visto que escrevia: “Nós dizemos homem espiritual, porque tudo julga e por ninguém é julgado, aquele que, conhecendo todos os segredos da Escritura, os compreende de maneira sublime; e vê Cristo nos livros divinos”.59 E no Prólogo ao Comentário do profeta Isaías acrescentava: “Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo, porque aquele que não conhece as Escrituras não conhece o poder de Deus e a sua sabedoria”.

Um caráter difícil Jerônimo, nascido na cidade de Stridon, na Dalmácia, no ano 347, de uma família cristã, foi educado na fé dos pais. Revelou desde pequenino seu caráter independente e passional, mas também uma memória extraordinária e uma inteligência aguda. Estudou primeiro em sua cidade, depois foi para Milão e, por fim, para Roma. Seu mestre foi o célebre retórico Donato e seu condiscípulo e amigo caríssimo, Rufino de Aquiléia. Roma encantava Jerônimo por sua beleza monumental, sua história, sua cultura, sua tradição cristã. Aos domingos, muitas vezes visitava as catacumbas e refletia sobre a vida heróica dos mártires. Havia, porém, outro aspecto da cidade dos Césares, o da doce vida. Jerônimo, como a maioria dos estudantes, não soube resistir à vida libertina que se vivia nas termas, no circo e em outros lugares pouco recomendáveis. Para sorte sua, o amor aos estudos não o fez descuidar a formação intelectual e a educação cristã recebida em família o impeliu a pedir o batismo e a empreender uma vida menos indigna de um cristão. Foi batizado aos 19 anos pelo papa Libério.

Os inícios da vida ascética Terminados os estudos, transferiu-se para Treviri, para aí iniciar sua carreira, mas aí Deus esperava por ele no vau. Se em Roma havia contemplado as catacumbas, lamentando, por vezes, por não ter vivido no tempo dos mártires, em Treviri descobria a experiência do monaquismo em toda sua grandeza e compreendeu que também o asceta é um verdadeiro mártir, não por um único momento, mas por toda a vida: “O mérito do martírio 59. PL 26, 417 A.


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não se atribui exclusivamente à efusão do sangue; o serviço realizado sem mácula por uma alma que se entregou a Deus é, também este, um martírio cotidiano”.60 Jerônimo sentiu-se fascinado; passional e decidido como era, abandonou a incipiente carreira e, de volta à Dalmácia, contra a vontade dos seus familiares, começou em Aquiléia a vida monástica com seu amigo Rufino. Não foi vida fácil, seja por seu caráter, seja pelas dificuldades cada vez maiores que os parentes lhe criavam. Tomou então sua parte de herança e sua biblioteca, e partiu para o Oriente, o berço do monaquismo, em busca daquela paz e daquela comunhão com Deus que foi a aspiração de toda sua vida. Devido à sua saúde abalada, teve de deter-se em Antioquia junto do padre Evágrio, que se tornou seu amigo e mecenas, e aproveitou para aprofundar os conhecimentos da língua grega. Sua inteligência havia sido conquistada pelos autores latinos e não se cansava de ler e reler, por exemplo, as obras de Cícero, enquanto a vocação de asceta exigia que mergulhasse na leitura assídua da Bíblia, deixando de lado a vã sabedoria dos pagãos. A luta foi duríssima. Desapegado da vida mundana, havia abandonado os parentes e a pátria, mas “da minha biblioteca, levada comigo para Roma com tanto amor e tanto trabalho, dela não soube exatamente me desapegar. Pobre de mim! Jejuava e depois ia ler Cícero... Se às vezes, ao retornar em mim mesmo, abria os livros dos profetas, seu estilo simples me provocava náusea”.61 Na quaresma do ano 375, uma doença o reduziu ao fim da vida e aconteceu-lhe um fato imprevisto. “De repente, tenho como um êxtase espiritual. Sinto-me arrastado ao tribunal do Juiz, e venho a me encontrar envolto em tal fulgor de luz que se irradia de toda parte que eu, arremessado por terra, não ouso levantar o olhar para o alto. Perguntam-me quem sou: ‘Um cristão!’, respondo. O Juiz, porém, de seu trono, exclama: ‘Mentiroso! Tu és ciceroniano, e não cristão! Onde está o teu tesouro, lá está o teu coração!’ Permaneço de improviso, sem palavras. Sob as vergastadas (o Juiz, de fato, havia dado ordem para me bater), sinto-me lacerar ainda mais pelo remorso da consciência, e dentro de mim vou repetindo: – No inferno, quem cantará os teus louvores?”.62

60. Lettere 108,31. 61. Lettere 22,30. 62. Ibid.


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No deserto de Cálcide Aprendida a lição, Jerônimo transferiu-se para o deserto de Cálcide nos confins da Síria e iniciou uma dura vida de anacoreta. Aproveitou este tempo para aprender o hebraico e poder ler assim, diretamente nos originais, o Antigo Testamento. Não foi coisa fácil, mas, com sua vontade obstinada, ele o conseguiu. “Quando era jovem, mesmo encontrando-me protegido pela solidão do deserto, não conseguia frear as tendências viciosas e o ardor do meu temperamento; procurava domá-lo com freqüentes jejuns, mas o meu espírito encontrava-se em completa ebulição pelas fantasias. Para domá-lo, coloqueime na escola de um irmão convertido do judaísmo; após as delicadezas de Quintiliano, a eloqüência de Cícero, a gravidade de Fronton e a suavidade de Plínio, tive de aprender um novo alfabeto e repetir as palavras estridentes e aspiradas. Não lhe conto o trabalhão que me custou e as dificuldades que tive de enfrentar! A cada tanto me desesperava, diversas vezes me rendi; mas depois retomava, pela obstinada decisão de aprender. Minha consciência sabe algo sobre isso (eu sei o que sofri!) e também a daqueles que viviam comigo. Agora agradeço ao Senhor, porque da semente amarga de tais estudos recolho frutos saborosos”.63 Ao estudo do hebraico, que depois continuará em Belém, unia o do grego, e para ganhar o pão e repousar a mente, dedicava o restante do tempo aos trabalhos manuais. No deserto, havia sonhado a paz, mas encontrou a guerra. O primeiro terrível inimigo era o seu passado: Quantas, quantas vezes, mesmo habitando neste deserto sem limites, queimado por um sol tórrido, nesta esquálida morada oferecida aos monges, acreditava deveras estar no meio da vida jubilosa de Roma! Estava sentado absolutamente só, com a alma túmida de amargura. O meu corpo, desfigurado pelo jejum, causava terror; a pele suja e endurecida tornava meu aspecto esquálido... Lágrimas e gemidos todos os dias! Se, não obstante os meus esforços, o sono me assaltava de improviso, achatava os ossos todos desconjuntados, estendido sobre a terra nua. Não te falo do alimento e da bebida: no deserto, também os doentes usam água gelada; um prato quente é uma gulodice! 63. Lettere 123,32.


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Eu, portanto, sim, exatamente eu que me havia imposto sozinho tão dura prisão por temor do inferno, sem outra companhia que as feras e os escorpiões, freqüentemente parecia encontrar-me entre meninas dançantes. O semblante era pálido devido ao jejum, não obstante, em um corpo já murcho, o pensamento ardia de desejo; diante da mente de um homem já morto na carne, borbulhava o tormento da paixão. Privado de ajuda, prostrava-me aos pés de Jesus, umedecia-os com lágrimas, enxugava-os com os cabelos, domava a carne rebelde com semanas de jejuns. Não me envergonho de confessar estas misérias; quando muito, choro por não ter mais o fervor de outrora. (...) Lembro-me: freqüentemente os meus gemidos ligavam o dia à noite; não me abstinha de bater no peito a fim de que, pelas ameaças do Mestre, não voltasse a bonança. A cela também me causava terror, quase como se fosse ela cúmplice dos pensamentos impuros; irritado contra mim mesmo e inflexível, avançava sozinho no deserto. (...) Todavia, o Senhor me é testemunha: depois de prantos a não mais acabar, depois de haver mantido por longo tempo o olhar fixo no céu, parecia-me, por vezes, encontrar-me entre as fileiras dos anjos.... 64

Nestes momentos de luz, assim descrevia sua nova morada: “Ó deserto, repleto das flores de Cristo! (...) Ó ermo, em que se goza a intimidade com Deus! (...) Gozo por haver deposto o fardo da carne, e por voar para o céu, luminoso e limpo...”.65 Muito rapidamente se deu conta de que aquelas belas flores haviam se transformado em vergônteas espinhosas e em cardos venenosos. O orgulho, unido muitas vezes à ignorância, havia operado entre os monges uma pro­funda cisão. Jerônimo constatava angustiado: “Nós nos vestíamos de saco e rolávamos na cinza, mas excomungávamos os bispos”. As disputas provocadas pela heresia ariana encontravam o terreno mais adequado em meio a homens que se diziam espirituais. Discutiam acerca da Trindade e freqüentemente não sabiam sequer cultivar uma horta e manter limpa a própria gruta. O pior era que os bispos procuravam os seus favores, sabendo da estima que eles gozavam junto ao povo. Jerônimo, primeiramente escreveu ao papa Dâmaso para perguntar-lhe em que bispo podia confiar, e depois, não recebendo resposta, abandonou aquele lugar, tornado já uma cova de serpentes, e voltou para Antioquia, onde 64. Lettere 22,7. 65. Lettere 14,10.


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foi acolhido com afeto pelo bispo Paulino, que quis ordená-lo padre, mesmo deixando-lhe em plena liberdade de movimento. Com efeito, dali a pouco estava em Constantinopla junto de Gregório de Nazianzo, para gozar da sua amizade e para engolfar-se com imensa alegria na riquíssima biblioteca daquela sede episcopal.

Secretário do papa Quando o papa Dâmaso I chamou os bispos a Roma no ano 382 para um concílio, Paulino fez-se acompanhar do seu douto presbítero. Após haver contribuído brilhantemente aos trabalhos conciliares, Jerônimo foi requisitado como secretário pessoal do papa. A permanência em Roma durou até 385, mas foi especialmente fecunda. Entre os outros trabalhos, o papa, que estava fazendo uma profunda reforma litúrgica, encarregou-o de traduzir dos textos originais a Sagrada Escritura, de modo a tornar sua leitura acessível aos fiéis nas assembléias litúrgicas. O trabalho durou cerca de vinte e cinco anos, porque Jerônimo não se limitou somente aos textos litúrgicos, mas quis abranger toda a Escritura. Derramou nela todo o seu talento, doando à Igreja do Ocidente um tesouro impagável. Sua Bíblia, denominada Vulgata, impôs-se de fato até os nossos dias como o texto oficial, garantido pela autoridade da Igreja. Mas também em Roma, onde gozava de grande prestígio por sua pro­xi­ midade com o papa, Jerônimo não se esqueceu nunca de que era monge e não se deixou atrair pela febre do carreirismo. Com sua vida límpida e pobre, com seu ensinamento lúcido e ocasionalmente mordaz, conquistou grandes amigos e numerosos inimigos. À parte Dâmaso I, que o estimava muitíssimo e o consultava conti­ nuamente, algumas damas nobres o convidavam à sua casa para instruir-se na palavra de Deus. Nasceu assim no Aventino uma espécie de cenáculo na casa de Marcela. Além dela, tomava parte a mãe Albina, a virgem Asela, a viúva Paula e as suas duas filhas, Blesila e Eustóquio. Todas elas almas eleitas, que não só escutavam com inteligência e com interesse as lições bíblicas, mas, além disso, empenhavam-se em fazê-las tornar-se vida com a prática cotidiana da ascese. A vida deste grupo deu na vista, não tanto porque se tratava de pessoas nobres, mas porque contrastava com a de muitos cristãos de Roma. No clima de reforma da Igreja que Dâmaso levava adiante, o exemplo decidido


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destas mulheres e a palavra mordaz de Jerônimo incomodavam muitos, principalmente aqueles monges, aquelas virgens e aqueles padres que haviam reduzido o evangelho a simples celebração litúrgica. Começaram a circular até mesmo calúnias injuriosas acerca das relações de Jerônimo com as damas nobres do Aventino. Enquanto Dâmaso viveu, os sussurros contra o monge eram contidos, mas depois da morte do papa, tornaram-se gritos ameaçadores e forçaram Jerônimo a ir embora. Juntamente com seu irmão Pauliniano, com Eusébio de Cremona, com o padre romano Vicente, transferiu-se para Belém, depois de haver efetuado uma longa peregrinação, visitando Alexandria do Egito, os monges da Nítria e, portanto, todos os lugares santos da Palestina. Ele desejava encarnar uma vida monástica séria e ao mesmo tempo sonhava levar adiante seu trabalho de tradução de todos os livros da Bíblia. E para fazer isso, qual o melhor lugar senão a Terra Santa?

Belém: última etapa Aqui foi alcançado por Paula e por sua filha Estóquia. Elas levaram uma soma considerável de dinheiro, que foi empregado na construção de um mosteiro para os monges, outro para as mulheres, uma casa de recolhimento para os peregrinos e uma escola monástica. Longe de Roma, teria finalmente encontrado a paz? Impossível. Ele não era um homem que pudesse se retirar na vida privada. Os acontecimentos da Igreja atingiam vivamente sua própria carne. Escreveu primeiro dois livros contra o monge Joviniano que propagava em Roma idéias falsas sobre o ascetismo monástico e desprezava a virgindade; depois entrou em polêmica com João, bispo de Jerusalém, suspeito de heresia origenista. Na disputa, chocou-se também com seu antigo amigo Rufino, que possuía um mosteiro próprio, sobre o Monte das Oliveiras e se havia unido ao bispo. Os dois trocaram palavras duras e acusações pesadas. Agostinho, desconcertado, fez ouvir de Hipona sua voz: “Desagradou-me muito que entre pessoas tão afeiçoadas e familiares, ligadas por um vínculo de amizade muitíssimo conhecido por todas as Igrejas, tenha surgido uma discórdia tão grave... Qual amigo não será tido por um futuro inimigo, se entre Jerônimo e Rufino pôde deflagrar-se o que todos lastimamos?”. 66

66. Agostinho. Ep. 73,6.


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Para complicar ainda mais a situação, o bispo Epifânio de Salamina enfileirou-se com Jerônimo contra os origenistas e, sem a autorização do bispo de Jerusalém, ordenou sacerdote Pauliniano, o irmão de Jerônimo. Quando o caso já havia se tornado escandaloso, conseguiu-se milagro­ samente, em 397, fazer que se reconciliassem os três principais con­ten­dores: João, Rufino e Jerônimo. A paz durou pouco, também por culpa dos amigos dos três protagonistas. Antes ainda que terminasse a controvérsia origenista, irrompeu a pelagiana e também aqui Jerônimo interveio com ímpeto em defesa da reta doutrina, encontrando em Agostinho de Hipona seu mais precioso e estimado aliado. Os pelagianos não perdoaram a tomada de posição do monge e assaltaram o mosteiro, mataram um diácono e incendiaram uma parte do edifício. Jerônimo salvou-se do incêndio por milagre. No decurso de poucos anos, morreram Paula e Estóquia, e chegaram também de Roma notícias muito tristes: Marcela havia morrido e os bárbaros, guiados pelo feroz Alarico, haviam saqueado Roma. Jerônimo escrevia desolado na introdução do Comentário a Ezequiel: “Roma está sitiada! As lágrimas sufocam as minhas palavras, enquanto vou ditando; cai a cidade que dominou o mundo inteiro”. Definha também a sua saúde: “Dito estas páginas (o Comentário a Ezequiel) à luz vacilante da minha lâmpada. O trabalho exegético distrai um pouco a tristeza da minha alma, consternada no mais profundo do ser. A estas preocupações que me vêm de fora, juntam-se as outras, sob meus olhos já fracos pela velhice e ameaçados de cegueira, pela dificuldade de ler à luz débil da minha lâmpada os textos hebraicos, com caracteres tão diminutos que só podem ser decifrados com dificuldade, mesmo na plena luz do dia, quando o sol resplandece”. Tendo ficado sozinho em seu mosteiro semidestruído e continuamente ameaçado por bandos de saqueadores, colocou de lado os livros e empenhou-se em acolher aqueles que, para fugir da fúria devastadora dos bárbaros, vinham também de longe buscar refúgio em seu abrigo. A 30 de setembro do ano 419-420, o “Leão de Stridon” apresentava-se humilde e manso a seu Senhor, repetindo-lhe sua oração aflita: “Perdoa-me, Senhor, porque sou dálmata!”. Para a Igreja, que tanto havia amado, deixava o tesouro inestimável dos seus escritos.


OUTUBRO

1o de outubro Santa Teresa do Menino Jesus virgem e doutora (1873-1897) “Compreendi que a Igreja tinha um coração, e que este coração ardia de Amor. Compreendi que somente o amor levava os membros da Igreja a agir, que se o Amor se extinguisse, os apóstolos não teriam mais anunciado o Evangelho, os mártires teriam se recusado a derramar seu sangue... Compreendi que o Amor era tudo... Então exclamei: – A minha vocação é o Amor!” 1

O historiador Joseph Lortz, falando dos homens que mais influíram na renovação da Igreja no século XIX, cita também Teresa de Lisieux, dizendo que “ela não é aquela santa sentimental tal como se acreditou durante certo tempo devido a certa devoção convencional”.2 Somente em 1956, quando os seus manuscritos foram publicados integralmente, foi revelada ao mundo a figura extraordinária desta mulher. Filha do seu tempo, quando o ateísmo já abria caminho na cultura européia, 1. Todas as citações, se não forem indicadas de maneira diversa, são tomadas de: Teresa de Lisieux. Storia di um’anima – Manoscritti autobiografici. Brescia, Editrice Que­ria­ niana,1990. 2. Lortz, J. Storia della chiesa, II. Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1987, p. 495.


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mesmo vivendo dentro dos muros de um Carmelo, ela “teve” – continua Lortz – “uma magnânima compreensão para com os não-cristãos, para com os incrédulos e até mesmo para com os excomungados”.3 Teresa não hesitou em sentar-se à mesa dos sem-fé e a tomar por seu o tormento deles. Assim, do buraco negro da incredulidade, por intermédio de seu coração de virgem, o grito doloroso dessa porção da humanidade subia até o céu.

Uma infância inocente, porém não superprotegida Teresa nasceu em Alençon, na Normandia, a 2 de janeiro de 1873, filha de Zélia Guérin e Luís Martin; ela, mulher rendeira muito apreciada, e ele, relojoeiro experiente. Os dois tinham desejado entrar para a vida conventual, mas, tendo percebido que este não era seu caminho, pediram a Deus uma família numerosa. Tiveram nove filhos, mas apenas cinco sobreviveram, todos eles mulheres. Teresa, a caçula, contava com pouco mais de três anos quando a vida da mãe foi truncada por um câncer de mama. Afortunadamente, a harmonia que reinava na casa Martin entre as filhas e o pai era tão grande que a pequena Teresa não sofreu nenhum trauma pelo desaparecimento precoce da mãe. Em 1877, a família transferiu-se para Buissonnets, perto da cidade de Lisieux, próximo do tio Guérin que, com prazer, quis dar uma mão a Martin. Teresa descreveu com cores vivazes sua infância transcorrida na serenidade de uma família profundamente cristã: a menina sabia apreciar as belezas da natureza, estava circundada pelo afeto dos que lhe eram queridos e abria-se como uma flor ao sol da graça. “Além disso, o que dizer das lindas tardes de inverno, principalmente as dominicais? Como era doce, depois de uma partida de damas, sentar-me com Celina sobre os joelhos de papai... Ele cantava, com sua bela voz, motivos que enchiam a alma de pensamentos profundos... ou também, embalando-nos docemente, recitava poesias inspiradas nas verdades eternas... Depois descíamos de seus joelhos para a oração comum... e não precisava senão observá-lo para saber como rezam os santos...”. Aos dez anos, Teresa adoeceu gravemente a ponto de fazer temer por sua vida, porém, após dois meses de sofrimento, curou-se improvisamente. 3. Ibid.


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Ela o atribuiu a uma intervenção de Maria: “De repente, a Virgem Santa me apareceu bela, tão bela que jamais tinha eu visto nada semelhante. Seu semblante exprimia uma bondade e uma ternura inefáveis, mas o que penetrou até o fundo em minha alma foi o sorriso encantador da Santa Virgem”.

A Primeira Comunhão: uma fusão Aos 11 anos, segundo o costume do tempo, Teresa recebeu a primeira comunhão, depois de uma esmerada preparação de três meses na abadia das beneditinas de Lisieux. Foi um momento importante, inesquecível. Eis como ela o recordava: “Já há tempos Jesus e a pobre pequenina Teresa haviam se olhado e compreendido... Mas naquele dia, já não era mais um olhar: era uma fusão; eles não eram mais dois, Teresa havia desaparecido como a gota dágua que se perde no seio do oceano. Restava somente Jesus: o Mestre, o Rei. Não lhe havia Teresa pedido que lhe tirasse a sua liberdade, por que a sua liberdade lhe causava medo?”. Um mês depois, festa da Ascensão, o confessor deu-lhe a permissão para comungar em todas as principais festas. Foi progressão crescente na união com Jesus, e Teresa sentiu fortemente o desejo de amar o sofrimento e repetia – “não por minha vontade, mas como uma criança que repete as palavras que lhe foram inspiradas por uma pessoa amada” – a oração da Imitação de Cristo: “Ó Jesus, doçura inefável, transforma para mim em amargura todas as alegrias da terra!”. No Pentecostes do mesmo ano recebeu o sacramento da confirmação. “Na descida do Espírito Santo, não notei um vento impetuoso, mas, antes, aquela brisa ligeira, cujo murmúrio foi percebido por Elias sobre o monte Horeb... Naquele dia recebi a força de sofrer, pois bem depressa devia começar o martírio da minha alma”. Teresa morava como pensionista na abadia beneditina e continuou sua vida normal. Divertia-se muito contando fábulas às suas companheiras e cada vez inventava outras novas, com sua poderosa fantasia. A mestra teve de intervir e “proibiu-me que continuasse meu ofício de oradora, porque nos queria ver brincar, correr e não conversar”. Saía-se muito bem nos estudos, porém, uma dolorosa crise de escrúpulos e fortes hemicranias [dores de cabeça] aconselharam seu retorno para casa, onde o pai lhe providenciou uma professora particular, a senhora Papinau. Teresa descreve-a com fino humor: “Ela era uma pessoa boníssima, muito


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instruída, mas com certas atitudes de mocinha. Vivia com sua mãe e era delicioso ver a pequena família composta de três pessoas (porque a gata fazia parte da família e eu tinha de suportar que ronronasse sobre meus cadernos e até admirar seu gracioso aspecto)”. No entanto, a saúde melhorava e também os escrúpulos desapareciam. Na noite de Natal de 1886, Teresa percebeu ter já saído da infância. Ela recordava aquela noite como uma “noite de luz”, na qual Jesus operou algo profundo em sua alma: “O brado de Jesus na cruz: – Tenho sede! Ressoava continuamente em meu coração e aquelas palavras acendiam dentro de mim um fogo irreprimível e vivíssimo... Queria dar de beber a meu Dileto e sentiame eu mesma devorada pela sede das almas... Não eram ainda as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas sim as dos grandes pecadores que me faziam arder de desejo de as livrar das chamas eternas”.

A preparação para a missão Jesus preparava Teresa para a sua missão particular de oferecer-se pelos afastados de Deus, de experimentar-lhes os tormentos, mas com a capacidade de bradar por eles a fé em Deus. Para fazê-la chegar à altura de tal tarefa, o Mestre instruía Teresa pessoalmente com iluminações particulares juntamente com sua irmã Celina. Em uma noite, do mirante de casa contemplavam o céu estrelado, suas almas foram como que raptadas para um outro céu: “Talvez esteja enganada, mas parece-me que o terno abandono das nossas almas poderia ser comparado ao de santa Mônica com o seu filho quando, no porto de Óstia, abandonavamse ao êxtase vendo as maravilhas do Criador!... Tenho a impressão de que recebíamos graças de uma ordem tão elevada quanto as concedidas aos grandes santos”. O confessor permite a Teresa receber a comunhão quatro vezes durante a semana e Jesus a formava diretamente na sua escola: “Inclinava-se para mim, instruía-me em segredo sobre as coisas do seu amor, porque eu era pequena e frágil. Oh, sim, se acontecesse que sábios, com uma vida de estudo no seu acervo, tivessem vindo interrogar-me, certamente ficariam maravilhados ao constatar como uma menina de 14 anos compreendia os segredos da perfeição, segredos que toda sua ciência não lhes pôde desvendar, porque é preciso ser pobres no espírito para possuí-los!...”.


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A primeira conquista Com tanta luz no coração, Teresa observava o mundo e não podia permitir que homens, seus irmãos, se perdessem. Veio a saber que um criminoso impenitente estava para ser executado. Teresa, juntamente com Celina, pediu a Jesus a sua conversão, fazendo também celebrar uma missa com esta intenção. “Disse ao bom Deus que eu estava certíssima de que teria perdoado o pobre infeliz Henrique Pranzini, que acreditava nisso mesmo que ele não se houvesse confessado e não houvesse dado sinal algum de arrependimento... mas que lhe pedia um sinal de arrependimento, para o meu simples conforto”. E houve o sinal: Pranzini, que havia recusado a confissão, enquanto estava para introduzir a cabeça no buraco da guilhotina, “de repente, tomado por súbita inspiração, voltou-se, tomou o crucifixo” e o beijou pelo menos três vezes. Recebido o sinal, Teresa considerou esse pecador convertido como o seu primeiro filho e dispôs-se a pagar o preço de uma maternidade que exigia o heroísmo. Profundamente consciente de ser esposa de Cristo, parafraseando Ezequiel, escrevia: “Jesus, passando a meu lado, viu que havia amadurecido para mim o tempo de ser amada; enamorou-se de mim e eu me tornei sua”. Todavia, o lugar onde o esposo esperava por sua esposa era o Carmelo. Como chegar lá o mais rápido possível? Teresa obteve a permissão do pai e, com um pouco de resistência, também a do tio, seu tutor, mas não podia imaginar que a maior oposição devia vir dos homens de Igreja. O superior eclesiástico do Carmelo mostrouse irremovível: ingressava-se no Carmelo com a maioridade, e ele não estava disposto a dar dispensa a uma menina de apenas 15 anos. O bispo também, mesmo admirando a generosidade de Teresa e de seu pai, não quis contrariar as decisões de seu delegado. Não restava senão ir até o papa, aproveitando-se de uma peregrinação a Roma. Enquanto isso, o Mestre continuava a instruir Teresa. “Uma noite, não sabendo como expressar a Jesus o meu amor e o quanto desejava que fosse amado e glorificado por toda a parte, pensei com amargura que não teria nunca podido receber do inferno um único ato de amor; então disse ao Bom Deus que, para agradá-lo, teria consentido de boa vontade em ser nele arremessada, para que fosse amado eternamente naquele lugar de blasfêmias.” Um dia experimentará algo do inferno durante a noite escura da alma.


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A peregrinação a Roma Da peregrinação a Roma, Teresa recordava de algumas etapas importantes. A primeira, em Paris. Na igreja de Notre-Dame teve a confirmação de que verdadeiramente tinha sido a Virgem Santa que sorriu para ela e a curou. “Compreendi que velava sobre mim, que eu era sua filha e que, portanto, não podia mais chamá-la senão com o nome de mamãe...”. Depois de haver contemplado as encantadoras paisagens suíças, a comitiva chegou a Milão, a Veneza, a Bolonha. Houve aqui um pequeno incidente, porque um séqüito de jovens estudantes divertia-se em segui-los para admirar as belas jovens francesas, entre as quais se destacavam as Martin. Enquanto a comitiva estava subindo ao trem, um deles aproximou-se de Teresa, tomou-a por um braço e a arrastou para fora do grupo, tentando dar-lhe um beijo. A reação imediata e decidida de Teresa e a pronta intervenção de Celina deixaram o amargor na boca do jovem. A etapa seguinte foi Loreto. “Loreto me fascinou! O que posso dizer da santa casa?... Ah, a minha emoção foi profunda ao encontrar-me sob o mesmo teto da Sagrada Família, contemplando os muros sobre os quais Jesus havia fixado seus olhos divinos, calcando a terra que são José havia banhado de suor, onde Maria havia carregado Jesus entre seus braços, depois de havê-lo levado em seu seio virginal...”. Em Roma, visitando os túmulos de santa Cecília e santa Inês, sentiu essas virgens dos primeiros tempos como irmãs, por sua total doação a Cristo. De Cecília, escreveu: “Sabendo que tinha sido proclamada rainha da harmonia, não por sua bela voz ou por seu talento musical, mas em recordação do canto virginal que fez ouvir a seu Esposo Celeste escondido no fundo de seu coração, senti por ela algo mais que uma devoção: uma verdadeira ternura de amiga... Tornou-se minha santa predileta, minha confidente íntima... Tudo nela me encantou, principalmente o seu abandono, a sua confiança ilimitada que a tornaram capaz de manter virgens almas que sempre haviam desejado somente as alegrias da vida presente...”. Também o Coliseu deixou uma profunda impressão na alma de Teresa: “Pedi a graça de ser também eu mártir por Jesus e senti que no profundo a minha oração era ouvida!...”. Finalmente, a audiência com o papa Leão XIII. Ajoelhada diante dele, Teresa faz o seu pedido em francês: “Santíssimo Padre, em honra do seu jubileu, permita-me entrar no Carmelo aos 15 anos!”. E o Papa, não tendo


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compreendido bem, pede explicação ao vigário geral da diocese Bayeux, que responde: “Santidade, é uma menina que deseja ingressar no Carmelo aos 15 anos, mas os superiores estão examinando o pedido”. E o Papa: “Pois bem, minha filha, faça aquilo que os superiores lhe disserem”. Teresa fez uma outra tentativa, porém inutilmente, antes, aproximaram-se dois guardas e a levaram embora quase à força.

“Nem mesmo o sol ousou brilhar” Um sonho rompido, a amargura no coração, embora a paz permanecesse no profundo do seu ser. Teresa comentava: “Nem mesmo o sol ousou brilhar naquele dia, e o belo céu azul da Itália, carregado de nuvens escuras, chorou continuamente comigo”. O turismo continuou em Pompéia, em Nápoles, na Florença e depois novamente em Roma. Teresa, mesmo sofrendo pela recusa recebida, sabia ver tudo na luz: “Em Roma, Jesus furou o seu joguinho. Queria ver o que havia dentro e em seguida, depois de ter visto, contente com sua descoberta, deixou cair a sua bolinha e adormeceu”. Era preciso esperar o despertar! E, no entanto, Teresa se interessava por qualquer particular que dissesse respeito à vida de Jesus, as relíquias da sua paixão, as pinturas de seus mártires. Intrometia-se por toda parte e ficava admirada quando alguém a advertia que não ultrapassasse certos limites, sob pena de excomunhão, principalmente para as mulheres! “Ainda me é impossível compreender porque as mulheres na Itália são tão facilmente excomungadas; diziam-nos a todo momento: – Não entrem aqui... não entrem lá, serão excomungadas! Ah, essas pobres mulheres, quão pouca importância tiveram sempre!... Não obstante, são mais as mulheres que os homens que amam o bom Deus, e durante a paixão de Nosso Senhor foram as mulheres que tiveram mais coragem que os apóstolos, porque desafiaram os insultos dos soldados e ousaram enxugar a adorável face de Jesus...”. Certo dia, adiantando-se no claustro interno de um mosteiro carmelita, foi surpreendida por um velho religioso que de longe lhe fez sinal para afastar-se. Teresa, ao contrário, aproximou-se ainda mais e procurou fazê-lo compreender que estava admirando as lindas pinturas do claustro. O velho “certamente se deu conta, por meus cabelos soltos sobre os ombros, e por meu modo de agir, que era ainda uma menina; então sorriu-me com bondade e foi embora, vendo que não se encontrava diante de um inimigo. Se tivesse podido falar-lhe


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em italiano, eu lhe teria dito que era uma carmelita que estava germinando, mas não me foi possível, por causa dos construtores da torre de Babel”. Passando por Pisa e Gênova, voltou para a França. A 28 de dezembro daquele mesmo ano, o bispo deu permissão para ingressar no Carmelo, mas as carmelitas pediram que esperasse o fim da quaresma, talvez para não assustar a jovem aspirante com a severidade quaresmal do convento. Teresa sofreu pelos “três meses de exílio” e aproveitou-os para conduzir “uma vida séria e mortificada mais do que nunca”. “Minhas mortificações consistiam no quebrantar a minha vontade sempre pronta a impor-se, no conter uma palavra de réplica, no prestar pequenos serviços sem aparecer, em não me apoiar com as costas quando estava sentada, etc. Foi somente com a prática destas insignificâncias que me preparava para me tornar a noiva de Jesus...”.

Finalmente em casa Tendo ingressado no Carmelo a 9 de abril de 1888, Teresa sentiu-se finalmente em casa, mas sem ilusões: “Jesus me fez compreender que queria dar-me almas por meio da cruz, e minha atração pelo sofrimento cresceu na proporção do aumento de sofrimento. Por cinco anos, segui este caminho; mas externamente não transparecia nada do meu sofrimento, tanto mais penetrante quanto mais era ignorado por todos”. Teresa sabia que estava no lugar certo, o mais belo do mundo, e gozava por isso de uma grande paz escondida no mais profundo de sua alma; mas ao mesmo tempo sofria, porque o Amor não era amado, porque via excessivo número de pessoas que não acreditavam no Amor misericordioso e se oferecia como vítima por eles. Chegou o tempo da sua consagração definitiva. “O meu retiro para a profissão foi de grande aridez, como de resto todos aqueles que vieram depois...”. Na vigília, uma dúvida atroz e a vocação lhe “apareceu como um sonho, uma quimera... O caminho do Carmelo era certamente muito belo para mim, porém o demônio me sugeria a certeza de que não era feito para mim, que enganava os superiores continuando a caminhar em uma direção para a qual não era chamada... A escuridão era de tal modo profunda que só via e compreendia uma coisa: Não tinha a vocação!...”. A prova foi superada tão logo Teresa, trepidante, abriu-se com sua mestra e pôde fazer a profissão com a


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alma “inundada por um rio de paz”. Mas era apenas uma trégua para preparála para a prova maior. Assim ela mesma nos conta os preliminares: “Passava por grandes provas interiores, de toda espécie, a ponto de me perguntar, por vezes, se existia um céu”. Teresa havia haurido sempre muita luz na leitura das obras de São João da Cruz, até os 17 e 18 anos, “porém mais tarde todos os livros me deixaram na aridez, o que acontece ainda agora. Quando abro um livro escrito por um autor espiritual (ainda que seja o melhor, o mais comovente), sinto imediatamente o meu coração encerrar-se; leio, por assim dizer, sem compreender ou, se compreendo, o meu espírito se detém, sem poder meditar... Nesta impotência, socorrem-me a Sagrada Escritura e a Imitação, encontrando nelas uma sólida e puríssima nutrição. Mas é sobretudo o Evangelho que me prende durante a oração, encontrando nele tudo quanto é necessário para a minha pobre alma. Nele descubro continuamente luzes novas, significados ocultos e misteriosos...”. “Compreendo e sei por experiência que o Reino de Deus está dentro de nós. Jesus não tem absolutamente necessidade de livros ou de doutores para instruir as almas; ele, o Doutor dos doutores, ensina sem rumor de palavras... Nunca o ouvi falar, mas sinto que está em mim, em todos os momentos, e guia-me inspirando o que devo dizer ou fazer. Exatamente no momento em que disso tenho necessidade, descubro luzes que ainda não havia visto e que me vêm mais copiosas não tanto na oração, quanto em meio às ocupações da minha jornada.” Em 1894, o pai Martin partiu para o céu e também Celina pôde entrar para o convento. Agora estão no Carmelo quatro irmãs Martin e uma delas é a priora, ao passo que a Teresa é confiado o noviciado. Sua relação com as noviças é muito espontânea e elas lhe dizem tudo, “mesmo aquilo que em mim lhes desagrada”. Segundo o costume do tempo, são confiados a Teresa um seminarista e um missionário, para que os acompanhe com sua oração. A propósito de sua relação com eles, ela escreveu: “Com a graça de Jesus, nunca procurei voltar para mim os seus corações; compreendi que minha missão era a de conduzi-los a Deus”. Mas ela não se podia contentar com apenas duas almas: “Espero ser útil a mais de dois missionários, nem poderia esquecer de rezar por todos... Em suma, quero ser filha da Igreja como o era a nossa madre santa Teresa, e rezar segundo as intenções do Santo Padre, sabendo que elas abraçam todo o universo”.


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“A minha vocação é o amor” Mesmo vivendo dentro dos muros de um convento, ela estendia o seu olhar sobre o mundo inteiro e teria querido chegar a toda parte. Teria querido ser mártir, apóstolo, missionário, doutor... Além disso, lendo o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, encontrava a resposta e exclamava: “A minha vocação é o Amor!... No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor...”. E pôs-se imediatamente à obra, semeando por toda a parte atos de amor, porque entendia que servindo a humanidade que encontrava no mosteiro teria chegado até os extremos confins da terra. Por esta razão, amava com amor novo todas as co-irmãs, especialmente aquelas mais difíceis na convivência, e tratava-as com tanto afeto que elas não se davam conta de que a faziam sofrer com seu modo de agir.

E quem não crê? Aproximava-se, no entanto, a prova final. Na noite entre a quinta-feira e a sexta-feira santa do ano de 1896, Teresa tem a primeira hemoptise, que ela aceita com alegria como o anúncio da chegada do esposo: “Gozava então de uma fé tão viva e clara que o pensamento do Céu fazia toda a minha felicidade; não podia imaginar que houvesse ímpios sem fé. Acreditava que falavam contra aquilo que efetivamente pensavam, quando negavam a existência do Céu, do belo Céu onde o próprio Deus teria querido ser sua eterna recompensa. “Durante os dias, todos plenos de alegria do tempo pascal, Jesus me fez sentir que existiam verdadeiramente almas que não possuem a fé, que perdem este tesouro precioso pelo abuso das graças, esta fonte das suas alegrias puras e autênticas. Permitiu que a minha alma fosse inundada pelas mais espessas trevas e que o pensamento do Céu, tão doce para mim, fosse apenas um assunto que ocasionava luta e tortura.... Esta prova não devia durar senão alguns dias, algumas semanas, mas devia terminar na hora assinalada pelo bom Deus e... esta hora ainda não havia chegado... Gostaria de exprimir o que sinto, mas, ai de mim!, creio que seja impossível. É preciso ter viajado nesta cavernosa galeria para compreender suas trevas...”. Jesus fazia que Teresa compreendesse o drama de quem não crê e ela se oferecia por eles: “Tua filha, porém, compreendeu, Senhor, a tua luz divina e te pede perdão por seus irmãos. Aceita comer, pelo tempo que quiseres, o pão


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da dor e não quer, absolutamente, levantar-se desta mesa cheia de amargura onde comem os pobres pecadores antes do dia por ti estabelecido... Assim sendo, não pode também ela, talvez, dizer em seu próprio nome, e em nome de seus irmãos: Tem piedade de nós, Senhor, porque somos pobres pecadores. Oh!, devolve-nos justificados, Senhor... Todos aqueles que não são iluminados pelo esplendoroso facho da fé possam vê-la finalmente brilhar...”. “Jesus, se for necessário que a mesa por eles profanada seja purificada por uma alma que te ama, aceito com prazer comer sozinha o pão da prova até o dia em que quiseres me introduzir em teu reino luminoso. Peço-te apenas a graça de jamais te ofender!...”. E, dirigindo-se à superiora, escrevia: A minha pequena história, que parecia um sonho de fada, tornou-se repentinamente uma oração, uma oração angustiante... Desde pequenina havia crido na existência do céu e, de certo modo, o havia experimentado. Por essa razão, havia fugido do mundo para correr à sua procura e agora tinha a sensação de haver corrido em vão.

Como o gênio fazia Cristóvão Colombo pressentir a existência de um novo mundo, enquanto ninguém havia pensado nisso, assim eu sentia que uma outra terra me teria servido de morada estável. Mas, de repente, as trevas que me circundavam tornaram-se mais espessas, penetrando em minha alma e envolvendo-a de modo tal que não me é mais possível encontrar nela a doce imagem da minha pátria: tudo ficou inutilizado! Quando quero repousar o meu coração cansado pelas trevas que o circundam, recordando o país luminoso para o qual me inclino, o meu tormento torna-se maior: tenho a sensação de que as trevas, com a mesma voz dos pecadores, dizemme, zombando de mim: – Tu sonhas com a luz, uma pátria envolvida nos mais suaves perfumes, tu sonhas com a posse eterna do Criador de todas estas coisas maravilhosas, crês sair um dia das névoas que te circundam! Continua, continua mesmo a alegrar-te por uma morte que te oferecerá, não o que tu esperas, mas uma noite ainda mais profunda, a noite do nada!

Na luta que a atormentava, Teresa continuava a crer e dizia a Jesus que estava “contente por não gozar deste belo céu sobre a terra, para que ele o abra aos pobres incrédulos pela eternidade”. Na realidade, a julgar por seu comportamento externo, ninguém teria imaginado que espécie de noite escura se encerrava em sua alma. Externamente,


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parecia que o véu da fé se houvesse aberto para ela, mas na realidade não havia apenas um véu, porém “um muro que se eleva até o céu... Quando canto a eterna posse de Deus, não experimento alegria alguma; canto simplesmente aquilo em que quero crer. Verdade é que, com intervalos, algum raio de luz chegou a iluminar minhas trevas; então a prova cessa por um momento, mas depois a lembrança destes raios, longe de me causar alegria, torna as minhas trevas ainda mais espessas”. No entanto, a doença avançava inexorável e ela, consciente da aproximação do fim, escrevia: “... finalmente, chegará também para mim a última noite; gostaria, então, poder dizer-te, ó meu Deus: – Glorifiquei-te sobre a terra; cumpri a obra que me deste para fazer...”, e continuava a transcrever livremente a oração sacerdotal de Jesus, não encontrando palavras melhores para exprimir os seus mais profundos sentimentos e a sua identificação com aquele que se encaminhava para o abandono sobre a cruz.

A agonia para o estado puro A 8 de julho de 1897, Teresa é conduzida definitivamente para a enfermaria, onde a hemoptise se repete continuamente. Desta data até 30 de setembro, dia do seu falecimento, Teresa consuma o seu sacrifício. Mesmo em meio a dores físicas torturantes e imersa na noite escura do espírito, encontrava o modo de gracejar com suas co-irmãs, não querendo lhes impor um peso que não teriam podido suportar. Abriu-se com o capelão, em confissão, mas, pobre dele!, também ele, não conhecendo esses fenômenos espirituais, nem por ciência e muito menos por experiência, ficou assustado e recomendou a Teresa que ficasse atenta a tais pensamentos, por serem muito perigosos. Somente a superiora podia participar deles, mas também ela, a seguir, tinha de manter o caso escondido de suas irmãs e do mundo, pelo temor de escandalizar. A 30 de setembro, suas três irmãs estavam em torno de seu leito durante a celebração da missa e Teresa, olhando para uma imagem de Nossa Senhora, confiava-lhes: “Ó, tenho suplicado a ela com fervor!... Mas é a agonia em estado puro, sem uma gota de consolação”. Alguns meses antes, falando da “morte de amor” que tanto ambicionava, havia escrito: “Não vos angustieis, minhas irmãzinhas, se sofro muito e se não vedes em mim, como já vos disse, nenhum sinal de felicidade no momento da minha morte. Também Nosso Senhor morreu Vítima de Amor, e contudo vedes qual foi a sua agonia!...”.


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E pouco depois, em julho de 1897: “Morrer de amor não significa morrer aos ímpetos. Vo-lo confesso francamente, parece-me ser isto o que eu experimento”. Entre as suas últimas palavras, acolhidas por madre Maria de Gonzaga, há expressões como esta: “Ó minha madre, asseguro-lhe que o cálice está cheio até as bordas!...”, mas depois acrescentava também: “E eu não me arrependo de me haver entregado ao Amor”.

4 de outubro São Francisco de Assis fundador, patrono da Itália (1182-1226) “Ninguém me ensinava o que eu devia fazer; mas o próprio Altíssimo me revelou que devia viver segundo o santo Evangelho.” 4

Estas palavras, escritas por Francisco pouco antes de morrer, revelam que o seu carisma veio inteiramente do alto. Por isso, é o maior santo do fim da Idade Média, uma “figura desabrochada completamente pela graça e por sua interioridade, não explicável, em absoluto, pelo ambiente espiritual de que provinha. E, todavia, precisamente ele, de uma forma que se poderia definir como providencial, deu a resposta às interrogações mais profundas de seu tempo”.5 E não somente isso, mas tendo ele posto em clara luz na sua vida os princípios universais do evangelho com uma amabilidade e uma simplicidade desconcertantes, sem nunca impor nada a ninguém, teve uma influência extraordinária, que perdura ainda hoje, não só no mundo cristão, mas também fora dele. Pode-se dizer que Francisco é patrimônio da humanidade.

O rei da irrefletida juventude Nasceu em Assis, por volta do ano 1182, sendo seus pais Pietro Bernardone, rico comerciante que, na ocasião, se encontrava na Provença em 4. Testamento de São Francisco. Cf. Fonti francescane. Assisi, Ed. Movimento Francescano, 1977, p. 132. 5. Lortz, J. Storia della chiesa, I. Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1987, p. 527.


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uma de suas viagens de negócios, e Giovanna, chamada de dona Pica. Foi batizado com o nome de João, em homenagem a São João Batista, porém o pai, ao regressar, apelidou-o de Francisco, isto é, Francês, para honrar aquela terra que ele tanto admirava e da qual obtinha tanta riqueza para a sua casa. Francisco, o primogênito, estava destinado ao comércio como o pai, mas, no entanto, devia preparar-se aprendendo os elementos fundamentais do saber na escola paroquial de São Jorge, enquanto o próprio pai se incumbia de lhe ensinar a língua da Provença. Nasceu também um segundo filho, Ângelo, mas o pai apostava todas suas esperanças no primogênito. Este, com efeito, crescendo nos anos, não parecia desiludi-lo. Era inteligente, despreocupado, gentil e, embora um pouco perdulário, engrandecia muito bem o nome da família, uma vez que era admirado por todos e reconhecido como o rei da juventude de Assis.

O duro cativeiro em Perúgia Participou com paixão da revolta do povo contra os nobres da cidade, escravizados ao imperador e desfrutadores dos seus concidadãos, e quando estes, expulsos da fortaleza de Assis, se refugiaram em Perúgia e com a ajuda dos perugianos moveram guerra a Assis, Francisco foi também combater sobre a Ponte San Giovanni, certo de uma segunda vitória. Ao contrário, sucedeu para ele um longo, e terrível ano de prisão. Voltou para casa depois que os seus pagaram um bom resgate e com a saúde já comprometida. A mãe, dona Pica, teve de empregar toda a sua arte materna para recolocá-lo em forma, mas, mesmo curado, Francisco não era mais o de antes. Não sentia nenhuma atração pela vida despreocupada, seus antigos amigos não tinham mais nada a lhe oferecer, nem ele estava disposto a oferecer aquilo que eles tão insensatamente desejavam. Alguém havia cavado em seu coração um sulco indelével e ele não sabia mais o que fazer.

A voz misteriosa Como todo espírito nobre de seu tempo, pensou em alistar-se na cavalaria e escolheu a de Gualtiero de Brienne que, de acordo com o Papa, lutava contra o imperador. O pai providenciou cavalo e arreios, e Francisco partiu para Apúlia, mas a viagem teve seu fim em Spoleto, porque ali uma voz misteriosa convidou-o a servir “o patrão ao invés do servo”.


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Voltou para casa e foi recebido com preocupação pelo pai e com certo desprezo pelas pessoas de bem. Não importava a Francisco o que os outros pensavam, sentindo que ardia no coração um único desejo: servir o grande Rei. Não sabendo como, empreendeu uma peregrinação a São Pedro em Roma: talvez no coração da cristandade ouvisse de novo aquela voz e teria percebido com mais clareza o que Deus lhe pedia concretamente. Dava início, assim, à sua vida de penitente, vivendo de esmolas e dedicando-se à oração.

Vai e repara a minha Igreja Em Roma, porém, Deus não lhe falou, ao passo que o esperava em Assis, quando de sua volta. Aí, na igrejinha de São Damião, no outono do ano 1205, ouviu do crucifixo bizantino algo que lhe era dito com muita clareza: “Francisco, vai e repara a minha Igreja, que, como vês, caminha toda para a ruína”.6 Pensou na reconstrução material de São Damião e pôs-se imediatamente à obra, fazendo uso de suas mãos e do dinheiro paterno. A essa altura o pai, considerando-o já irrecuperável, antes, e mais que isso, perigoso, acusou-o junto ao tribunal do bispo como dissipador dos bens de família. É do conhecimento de todos a célebre cena deste processo: a separação definitiva de Francisco em relação à sua família e o gesto do bispo que, acolhendo-o nu sob seu manto, o tirava da jurisdição civil para colocá-lo sob a da Igreja. O bispo o confiou a um convento de beneditinos, na esperança de que ali encontrasse a satisfação para suas profundas exigências espirituais. Francisco obedeceu e entre ele e os beneditinos nasceu uma relação profunda de estima mútua que durou para sempre. Todavia, o mosteiro não era sua casa e ser monge não era sua profissão. Permaneceu por breve tempo com os beneditinos e depois retomou sua vida de “arauto do grande Rei”, percorrendo as ruas de Assis e das cidades vizinhas, dedicando-se à oração, à reconstrução das igrejinhas destruídas de São Damião, de São Pedro em Spira e da Porciúncula, e colocando-se ao serviço dos mais pobres. Muito importante nesse período foi o encontro com um leproso à beira de uma estrada de campo. Aproximou-se dele, procurou curar-lhe as feridas, beijou-o vendo nele a figura do Senhor e o conduziu a um leprosário. Assim 6. Tomás de Celano. Vita seconda, 10; Boaventura de Bagnoregio. Leggenda maggiore, II. Cf. Fonti francescane, cit., respectivamente pp. 562 e 845.


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ele conta o episódio em seu testamento: “O Senhor mesmo me conduziu entre eles e usei com eles de misericórdia. E ao afastar-me deles, aquilo que me parecia amargo se transformou em doçura de espírito e de corpo. E dali em diante, deixei-me ficar ainda um pouco e saí do mundo”.7 Mas a vocação de Francisco se delineou com plena clareza na Porciúncula, que acabava de ser reconstruída por ele, em abril de 1208, durante a celebração eucarística, escutando do sacerdote a leitura do evangelho sobre a missão dos apóstolos. Francisco compreendeu que lhe eram dirigidas estas palavras do Mestre: “Não leveis nem ouro nem prata, nem dinheiro em vossos cintos, nem mochila para a viagem, nem duas túnicas, nem calçados, nem bastão; pois o operário merece o seu sustento. Nas cidades ou aldeias onde entrardes, informai-vos se há alguém ali digno de vos receber, ficai ali até a vossa partida” (Mateus 10,9-11).

Não o penitente, mas o poverello ou pobrezinho Foi a resposta há tanto tempo aguardada. Compreendeu então que as palavras do Crucificado em São Damião não se referiam à reconstrução dos templos de pedra, mas à renovação da Igreja em seus membros. Depôs a veste eremítica com o cinturão de couro, as sandálias e o bastão, e revestiu-se com a veste de “menorita”, cingindo os flancos com uma corda grosseira, cobrindo a cabeça com o capuz em uso entre os camponeses da época e usando como sapatos a pele nua dos seus pés. Tomando ao pé da letra as palavras do Cristo – o Evangelho vivido “sine glossa” (sem circunlóquios) foi, a partir daquele momento, sua característica –, iniciou a vida apostólica desposando a “senhora Pobreza” e pregando com o exemplo e com a palavra a Boa-Nova, como os primeiros apóstolos. Decorrido pouco tempo, chegaram os primeiros companheiros: Ber­ nardo de Quintavalle, rico comerciante; Pietro Cattani, doutor em leis; Egí­ dio, camponês; e mais tarde Leão, Rufino, Elias, Junípero, totalizando doze, in­clu­sive Francisco. Começava assim em uma choupana, na localidade de Rivotorto, em uma planície abaixo da cidade de Assis, junto à Porciúncula, “a primeira escola” de formação onde, durante um ano, Francisco enamorava os primeiros companheiros com a beleza do carisma que Deus lhe havia dado. 7. Testamento, 2-3, p. 131.


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Com uma nova viagem a Roma – desta vez a conselho do bispo e junto com seus primeiros companheiros –, Francisco obteve a aprovação oral da primeira regra e a permissão papal para pregar em toda a parte. A ordem nascente prometia obediência ao Papa, recebia a tonsura, passando a fazer parte do clero, e parece que nessa ocasião Francisco tenha recebido o diaconato. Mesmo tendo a aprovação pontifícia, a nova comunidade era de tal modo original que despertava preocupações nos bem-pensantes. O amor à pobreza extrema, a humildade a ponto de alegrar-se com a humilhação, o hábito não apenas modesto, mas miserável: eram coisas que não condiziam com a dignidade do estado religioso. E o entusiasmo que conseguia suscitar em torno de si não poderia um belo dia degenerar em revolta, amotinando as massas contra a ordem constituída? Não havia acontecido assim com muitas seitas religiosas? Todavia, a regra que Francisco havia dado a si mesmo e aos seus companheiros tinha finalidades bem diferentes. Ele queria, sem dúvida, operar uma profunda revolução da Igreja, mas na obediência a seus pastores. “Todos os frades sejam católicos e vivam e falem catolicamente. Se alguém, com palavras ou fatos, se afastar da fé e da vida católica e disso não se emendar, seja totalmente expulso da nossa irmandade. E consideremos todos os sacerdotes e todos os religiosos como patrões naquelas coisas que dizem respeito à salvação da alma e que não nos desviam da nossa religião...”8 E falando dos sacerdotes em seu testamento, dirá: “O Senhor me concedeu e me concede tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da santa Igreja romana... que se devessem perseguir, quero recorrer a eles. E se eu tivesse tanta sabedoria quanta teve Salomão, e me encontrasse entre sacerdotes pobrezinhos deste mundo, nas paróquias onde moram, não quero pregar contra a vontade deles. Estes e os outros quero temer, amar e honrar como meus senhores, e não quero considerar neles o pecado, porque neles eu vejo o Filho de Deus e são meus senhores.”9

Clara, o espelho puríssimo Ainda que muitos ficassem perplexos ou escandalizados pelo estilo de vida de Francisco, outros eram irresistivelmente atraídos por seu ideal. E 8. Regola non bollata, XIX. Cf. op. cit., p. 115. 9. Testamento, 8-11. Cf. op. cit., p. 131.


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não somente homens, mas também mulheres. Clara, da nobre família dos Offreducci, apresentou-se a Francisco de noite, na igrejinha da Porciúncula, e à pergunta de Francisco: “O que desejas?”, respondeu: “Deus!”. Sim, Deus, aquele Deus que Francisco havia encontrado e com o qual convivia. Francisco cortou-lhe a bela cabeleira em sinal de separação da mentalidade do mundo e, de comum acordo com o bispo, enviou-a provisoriamente às beneditinas, esperando que se acalmassem as iras dos pais. Clara, juntamente com suas primeiras companheiras, será a encarnação, em estilo feminino, do ideal franciscano.

Anunciar o evangelho com a vida Francisco havia compreendido o que Deus queria dele, como dos primeiros apóstolos, o anúncio do Evangelho. Por esta razão seus frades não abandonavam o mundo para ingressar no mosteiro e salvar sua alma, mas deviam viver em meio ao mundo, em contato direto com a vida normal das pessoas, pregando o evangelho primeiro com o exemplo e depois com a palavra. Deviam ser pobres sem nada possuir, nem mesmo uma casa onde morar ou uma provisão de alimento para matar a fome. Viviam em habitações pobres cedidas por empréstimo e ganhavam seu pão trabalhando com as próprias mãos e recorrendo à esmola, como todo verdadeiro pobre, após haver exaurido qualquer outro meio para providenciar seu alimento. Com este espírito os frades espalharam-se pela Itália anunciando a todas as classes sociais, classes muitas vezes em luta entre si, a Boa-Nova, que resumiam no binômio “Paz e bem”. Os frutos não consistiam somente na conversão de pecadores inveterados, na reconciliação entre os inimigos de longa data, mas também na afluência de pessoas que queriam seguir o ideal do Poverello de Assis.

Não cruzadas, mas amor Francisco desejava para si e para seus frades a evangelização dos infiéis, e particularmente dos sarracenos, como então eram chamados os muçulmanos. Se no seu tempo a mentalidade dos cristãos era ainda a da luta contra os sequazes de Maomé, Francisco inverteu essa mentalidade e foi o primeiro a ver neles irmãos a quem anunciar o evangelho, não o impondo com as armas, mas oferecendo-o com amor e dispondo-se a sofrer, se necessário, também o martírio.


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Enviou os seus frades a Marrocos e foram martirizados. Não desanimou. Tentou duas vezes dirigir-se a eles pessoalmente, mas da primeira vez a nave o conduziu para a costa da Dalmácia e, na segunda vez, chegado à Espanha, adoeceu e teve que voltar atrás. Na terceira vez, conseguiu aproar na Palestina e apresentar-se ao sultão Al-Malik al-Kamil, que o recebeu com honra e o escutou com interesse. Embora não tenha havido a conversão do soberano, Francisco havia mostrado que era possível o diálogo do amor entre as duas grandes religiões que têm as raízes comuns em Abraão. Em seu retorno à Itália, Francisco teve de enfrentar graves problemas na sua ordem. Os frades haviam crescido excessivamente em número, viviam em pequenas comunidades espalhadas em várias províncias na Itália. Todos os anos Francisco reunia todos na planície de Assis, inflamava-os com a sua palavra e resolvia eventuais controvérsias. Entretanto, o grande número – em um dos capítulos foram mais de 5 mil! – exigia decisões importantes: era preciso prover o mais rápido possível à sua formação e também a uma melhor organização.

Suavizar a regra? Surgiram contrastes em meio aos frades e, no final, sob a orientação do cardeal Hugolino, foram introduzidas algumas modificações na regra, permitindo aos frades possuírem casas para a formação dos noviços. Francisco aceitou a contragosto e, por todo o resto da sua vida, exortou-os a habitarem nelas como hóspedes e peregrinos. Levantou-se também o problema do estudo. Havia chegado de Lisboa Antônio, doutor em ciências teológicas, filosóficas e científicas. Ele poderia abrir uma escola superior para os seus co-irmãos, sobretudo para aqueles que se dedicavam à pregação e ao ministério da confissão. Francisco examinou o caso e respondeu-lhes com uma carta que é uma obra-prima de sabedoria, autorizando Antônio a ensinar “a sagrada teologia aos frades”, porque Antônio com a sua vida lhe dava a certeza de que o estudo não teria destruído a sabedoria. Em 1219, Francisco havia enviado seus frades a todos os países europeus, exceto a Grã-Bretanha, onde chegaram em 1224. Em 1223, aprovou, no capítulo, a segunda regra que insiste na po­ breza, no trabalho manual, na pregação, na missão entre os infiéis e no equilíbrio entre ação e contemplação. Após um intenso período de atividades apostólicas, Francisco desejava que os seus frades se retirassem a um eremitério para dedicar-se à contemplação, revivendo a realidade evangélica de Maria,


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enquanto um deles teria feito a parte de Marta, mantendo os contatos com o mundo e provendo às suas necessidades materiais. Quis que os seus filhos providenciassem o alimento com o próprio trabalho: Trabalhem com fidelidade e com devoção, de tal modo que, afastado o ócio, inimigo da alma, não dissipem o espírito da santa oração e devoção, ao qual todas as outras coisas temporais devem servir. Como recompensa do trabalho para si e para seus frades, recebam as coisas necessárias ao corpo, exceto dinheiro ou pecúnia, e isto humildemente, como convém a servos de Deus e seguidores da santíssima pobreza.10

Por essa razão, os frades não podem acumular reservas e por isso poderão vir a encontrar-se em necessidade e, então, como todos os pobres desta terra, pedirão a esmola: “E quando for necessário, vão pela esmola como os outros pobres”.11 Enquanto Francisco estava ainda em vida, sucederam-se várias regras, na tentativa de vir ao encontro das necessidades de uma família que se tornava cada vez mais numerosa e que, por vezes, não conseguia andar no mesmo passo que seu fundador. É importante notar que a regra franciscana, mesmo partindo da pobreza evangélica freqüentemente heróica, tem sempre, como finalidade, o amor fraterno.

Não mosteiros, mas pequenas fraternidades De fato, o Poverello (o pobrezinho) não quis fundar mosteiros ou algo semelhante, mas simples fraternidades, pequenos grupos de irmãos que vivessem em meio ao mundo, mostrando que a felicidade não consistia no possuir as coisas, mas no viver em perfeita harmonia, segundo o mandamento do Senhor. Por isso sua saudação que se repete ainda hoje entre os seus filhos é: paz e bem! A relação que ele desejava entre os seus seguidores pode ser compreendida por estas suas palavras: “E cada um ame e nutra o seu irmão como a mãe ama e nutre o próprio filho”;12 e acrescentava: “Pois que, se a mãe nutre e ama o seu filho carnal, com muito maior afeto alguém deve amar e nutrir o seu irmão espiritual!”.13 10. Regola bollata, cap. V. Cf. op. cit., p. 126. 11. Regola non bollata, cap. VII. Cf. op. cit., p. 126. 12. Ibid., cap. IX. Cf. op. cit., p. 108. 13. Regola bollata, cap. VI. Cf. op. cit., p. 127.


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Essa relação de amor mútuo não se devia exaurir no interior da fraternidade, mas devia irradiar sua luz também fora. Toda fraternidade devia acolher qualquer homem, sem considerar sua posição social nem sua situação moral: também os ladrões eram irmãos que, amados como Cristo os ama, podiam se converter. Francisco havia dado disso várias provas, tanto que se multiplicaram em torno de sua pessoa os fioretti [casos], como o do lobo de Gúbio. No início, Francisco não pensava em fundar uma ordem, mas simplesmente viver o evangelho. Posteriormente o bom Deus deu-lhe uma imensa família e ele foi obrigado a governá-la com o instrumento tradicional de uma regra. Na verdade, nunca havia pensado nisso, convencido de que bastaria o evangelho, mas submeteu-se ao querer da Igreja e à sua experiência secular e escreveu: “A regra do frade menor é o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo”. Encontrou-se circundado não apenas por homens que haviam deixado tudo para viver humildemente como ele em pobreza, castidade e obediência, mas também o haviam seguido as damas pobres de São Damião com irmã Clara, que constituíam o seu conforto, o seu ideal realizado em toda a pureza. Mas não terminava aqui a multidão dos seus discípulos: muitíssimos homens e mulheres casados desejavam viver em fraternidade. Para eles, ele constituía a Ordem Terceira.

Presépio vivo em Greccio e calvário vivo em Verna Em Greccio, próximo de Rieti, no dia 24 de dezembro de 1223, Francisco quis reviver o nascimento de Jesus. Preparou uma manjedoura com o boi e o burrinho, tomados emprestados dos camponeses da região, vestiu a pequena túnica festiva do diácono, e depois de haver cantado ele próprio o evangelho do nascimento durante a missa solene da meia-noite, depôs com grande júbilo a imagem do Menino na gruta. Nascia o “presépio”, diante do qual já há séculos milhões de homens se detêm a contemplar a cena do Filho de Deus feito homem. Humanamente se poderia dizer que Francisco havia completado sua obra, mas, na realidade, havia ainda uma última etapa, particularmente importante. A 17 de setembro de 1224, sobre o monte Alverna (a Verna), aonde ele se havia retirado juntamente com alguns dos seus primeiros companheiros, recebeu os estigmas, sinal externo da sua perfeita identidade com Cristo. Entretanto, teve de descer deste lugar de experiências místicas profundas, porque sua saúde já estava nos extremos, a visão havia quase desaparecido e as hemoptises se repetiam. Aceitando os conselhos de frei Elias e do cardeal Hugolino, em Rieti, submeteu-se aos cuidados dos médicos da corte papal com tão dolorosas quanto


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inúteis cauterizações para recuperar a vista, depois voltou para Assis, hóspede por algum tempo no palácio episcopal, onde continuou a seguir outros cuidados segundo os conselhos afetuosos das clarissas de São Damião. Tudo foi inútil. Nesse entretempo, Francisco ditou o seu famoso Testamento: o último brado de amor do Poverello aos seus filhos para que permanecessem fiéis à senhora Pobreza. Ditou também, em São Damião, o Cântico das criaturas. Lendo essa sublime poesia, depreende-se o quanto Francisco penetrara na mais íntima realidade da natureza, contemplando sob toda criatura a presença adorável de Deus. Se a fé o havia feito redescobrir a fraternidade universal dos homens, todos filhos do mesmo Pai, e por isso ele havia fundado não mosteiros, mas fraternidades, no Cântico das criaturas – não sem uma luz recebida do alto – colhia o vínculo do amor que une todas as criaturas, animadas e inanimadas, entre si e com o homem, quase em um abraço planetário de irmãos e irmãs que têm um único escopo: dar glória a Deus. Escutando esse cântico, tem-se a impressão de que “os céus novos e as terras novas” já se tornaram realidade. Sentindo aproximar-se a “irmã morte corporal”, quis ser levado à Porciúncula. Antes de morrer, ceou com os seus irmãos e distribuiu a cada um deles um pedaço de pão, à imitação da última ceia. Depois quis ser posto sobre a terra nua para esperar a irmã morte. Na noite de 3 de outubro de 1226, após haver entoado o salmo 141: “Faz sair da prisão a minha alma...”, pediu que um frade lhe lesse o capítulo 13 do Evangelho de João, que fala do mandamento novo de Jesus, completando assim o seu Testamento. Senhora Pobreza, de fato, no pensamento e na vida de Francisco, só tinha tido sentido porque finalizada para o amor. Morria com a idade de 45 anos. A 16 de julho de 1228, o papa Gregório IX, na presença da mãe, dona Pica, do irmão Ângelo, de outros parentes, do bispo de Assis, Guido II, que havia acolhido o jovem nu sob seu manto, de numerosíssimos bispos e cardeais e de uma multidão de povo nunca vista, inscrevia solenemente Francisco no álbum dos santos.

6 de outubro São Bruno sacerdote, fundador dos cartuxos (1035ca-1101) “Somente a quem dela fez a experiência é dado saber quanto proveito e quanta alegria produzem a solidão e o silêncio do eremitério naqueles que os amam. (...)


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Com efeito, no eremitério adquirem-se aquele olhar tranqüilo que fere de amor o Esposo divino e aquele amor tão puro com que se pode contemplar a Deus.” 14

Naquele período obscuro que foi o século X, a Igreja parecia afastar-se sempre mais do evangelho: o papado estava nas mãos da nobreza local ou do imperador; a eleição dos bispos, transformados já em príncipes temporais, não fugia da mesma práxis e não raramente era contaminada por simonia; o restante do clero era quase sempre ignorante e muitas vezes também moralmente corrupto; e pode-se muito bem imaginar o estado de abandono de um povo que se chamava cristão apenas porque fora batizado. Não obstante, do seio dessa Igreja tão arruinada germinaram movimentos de reforma de uma vitalidade evangélica surpreendente: o movimento monástico de Cluny, na França, que influiu sobre toda a Europa; o eremítico toscano na Itália com São Romualdo, São Pedro Damião e São João Gualberto; o movimento cisterciense que atingiu o esplendor máximo com São Bernardo de Claraval, também na França; o premonstratense, com São Norberto de Xanten, na Alemanha e, por fim, o dos cônegos agostinianos; e, antes ainda, o dos cartuxos de São Bruno. Uma característica desses movimentos espirituais é a influência que eles exerceram bem além dos confins de seu berço de nascimento, também porque a Europa era então um corpo unitário. Bruno nasceu em Colônia, por volta do ano 1035, da nobre família dos Hartenfaust e, após os primeiros estudos em sua cidade, foi enviado para aquela que era a melhor universidade da região, a escola episcopal de Reims, para depois transferir-se para a de Tours, muitíssimo respeitada, onde se torna mestre de filosofia. De volta à pátria, estudou teologia e foi ordenado sacerdote. Não permaneceu aí por muito tempo, porque o bispo de Reims, em 1056, o quis primeiro como professor em sua escola, e depois reitor, quando o mestre que igualmente se chamava Bruno, que ocupava aquele posto, se retirou para a vida monástica.

Mestre admirado e seguido Durante vinte anos, Bruno manteve alta a fama deste centro acadêmico e nele formou discípulos famosos como Otton de Châtillon que se tornou o papa Urbano II, Santo Hugo, bispo de Grenoble, Ruggero, cardeal e bispo de Reggio Calabria, Roberto, bispo em Langres, e ainda outros. 14. São Bruno. Carta a Raul Le Verd: PL 152, 421B.


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O ensino era-lhe congênito. Sentia-se bem em seu exercício por dois motivos: o estudo não o distraía da união com Deus, ao contrário, fazia-o penetrar na sabedoria e muitas vezes na contemplação; além disso, dava-lhe a oportunidade de formar homens capazes de operar uma verdadeira reforma no mundo eclesiástico e civil. Reformar: era essa a palavra de ordem que animava todos aqueles que, como Bruno, aderiam com toda a alma à orientação dada à cristandade ocidental por Gregório VII. Reims havia tido até aquele momento bispos dignos sob todos os aspectos e quando o piedoso Gervásio morreu, todos pensavam que seu sucessor teria sido Bruno. Ao invés, aconteceu o imprevisto. Devido a um pacto simoníaco estipulado entre o rei da França, Filipe, e um pupilo seu, foi eleito arcebispo certo Manassés. O recém-chegado, conhecendo a popularidade e a influência de Bruno, em um primeiro momento procurou conquistá-lo para sua causa e nomeou-o chanceler. Quando, porém, se deu conta que ele se opunha às suas intrigas, exonerou-o de todos os encargos e expulsou-o da diocese. O clero rebelou-se e acusou o bispo no concílio de Autun, que o destituiu. O bispo não aceitou a condenação e apresentou recurso a Roma. À espera do pronunciamento papal, vingou-se cruelmente dos seus adversários, destruindo até mesmo suas habitações e atentando contra sua vida.

A escolha do eremitério Finalmente, durante o concílio de Lyon em 1080, o bispo foi deposto e a paz voltou para Reims. Todos queriam que Bruno aceitasse o governo da diocese, mas ele já havia amadurecido um outro projeto. Havia voltado a Reims, não já para receber o anel e o báculo, mas para recolher os seus amigos mais fiéis, oito doutíssimos homens e retirar-se com eles para Sèche-Fontaine sob a proteção do abade de Solesmes, São Roberto, e iniciar uma experiência de vida eremítica. No entanto, aí permaneceu pouco tempo, sentindo fortemente o chamado a uma observância ainda mais estrita. Se os eremitas dos primeiros séculos, para salvar a autenticidade da vida cristã, haviam fugido para o deserto, também hoje – pensava Bruno –, para realizar uma verdadeira reforma na Igreja, era preciso dar sinais fortes. Com seis companheiros, transferiu-se para Grenoble, onde o esperava o santo bispo Hugo, já seu aluno em Reims. Ele havia abandonado o episcopado e havia se retirado para a vida eremítica, porém depois, por vontade do papa Gregório VII, teve de retomar o governo da diocese. Sentiu-se naturalmente bem feliz por oferecer no seu território um vale solitário chamado Cartusia – de onde provém o nome de cartuxa e cartuxos – dado a este grupo de homens instruídos e corajosos, guiados


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por seu muitíssimo amado mestre. Entre eles estavam Landuíno de Lucca, Estêvão de Bourg, Estêvão de Die e certo Hugo, chamado de o capelão. Estava lançada a primeira semente daquela que depois se tornou a famosa Cartuxa de Grenoble. Durante seis anos, Bruno e seus companheiros puseram em ação o seu ideal em perfeita harmonia entre si e tendo no coração a certeza de não mais ter de se intrometer nos assuntos da política do mundo. Não o pensava do mesmo modo um outro discípulo de Bruno, Otton de Châtillon, chamado, não à paz do eremitério, mas à cátedra de Pedro, onde, naquele período, de paz nem sequer se podia falar. Urbano II levava adiante, com decisão, a reforma iniciada por Gregório VII, mas tinha contra si, a dois passos, na cidade de Ravena, o antipapa Guiberto, apoiado militarmente por Henrique IV, sem contar as oposições surdas que serpenteavam entre o clero.

Ao lado do papa, mas por pouco tempo Urbano quis próximo de si o antigo mestre, que veio a Roma com um grupo de companheiros. Foi-lhes concedida uma localidade junto às Termas de Diocleciano com a igreja de São Ciríaco. Seu exemplo – pensava o papa – teria sido precioso para o clero e para o povo romano, sem falar no quanto ele contava com a colaboração pessoal de Bruno. A passagem da bem-aventurada e rústica solidão da Cartuxa de Grenoble para a rumorosa e inquieta metrópole romana revelou-se demasiado brusca para os cartuxos que, depois de pouco tempo, pediram para retornar à França. O Papa consentiu, porém reteve Bruno junto de si. Entrementes, o antipapa conquistava Roma com a força e Urbano II e seu amigo foram forçados a fugir para a Calábria. Aqui o Papa tentou nomeá-lo arcebispo de Reggio Calábria, porém Bruno não aceitou e propôs em seu lugar um antigo discípulo seu, Ruggero, que era abade de Cava no Salernitano.

A fundação calabresa Para si, ao invés, conseguiu fundar um eremitério em um lugar muito rústico denominado La Torre, perto de Catanzaro, onde imediatamente o seguiram os primeiros discípulos que, crescendo rapidamente em número, forçaram-no a abrir um segundo eremitério não muito distante do primeiro. Foi essa a sua última faina, especialmente abençoada por Deus, apoiada pelo papa e pelos bispos vizinhos, e confortada pela ajuda concreta dos príncipes normandos que governavam a região.


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Aqui veio visitá-lo seu fidelíssimo discípulo que dirigia a Cartuxa de Grenoble, Landuíno, que quis se assegurar de que conduzia os cartuxos segundo o espírito genuíno do mestre. Nessa ocasião, Bruno, homem muito douto, em uma carta a todos os seus filhos, dirigiu um pensamento especial aos numerosos monges iletrados, dizendo-lhes: “É com as obras que vós mostrais o que amais ou o que sabeis, uma vez que, enquanto com toda a atenção e empenho pondes em prática a verdadeira obediência, é evidente que sabeis ler o fruto suavíssimo e vital da divina Escritura. Deus mesmo pode escrever com o seu dedo nos vossos corações não só o amor, mas também o conhecimento da sua santa lei”. Bruno morreu a 6 de outubro de 1101, no eremitério de La Torre. Antes de morrer, quis pronunciar a profissão de fé e reafirmar de maneira especial sua fé na presença real de Cristo na eucaristia. Ainda que seus filhos nunca tenham sido muito numerosos, a vida cartuxa teve uma grande influência sobre todas as formas de vida monástica que se seguiram. Um monge famoso, Guilherme de Saint-Thierry, em sua carta aos irmãos de MontDieu, chamada de Carta de ouro, dizia aos cartuxos: “Aos outros compete servir a Deus, a vós, unir-vos a ele. A obra dos outros é a de crer, de saber, de amar, de venerar; a vossa é de saborear, de compreender, de conhecer e exultar”.15 Se o amor à sabedoria e à contemplação permaneceu vivo na comunidade cristã e se em nossos dias ainda apaixona não somente os monges, mas muitos leigos imersos no mundo, muito se deve aos filhos de são Bruno.

9 de outubro São Dionísio (bispo) e companheiros mártires (250ca) “Bem-aventurada a cidade que conserva a tua gloriosa e venerável cabeça, os teus despojos dignos de louvor, ó mártir insigne, grande pregador e pontífice, como a dos teus companheiros que apresentaste a Deus, vítima sem mancha, perfume de incenso.” 16 15. Lettera d’oro, no 16. Ed. Quiquajon, 1988, p. 42. 16. Do panegírico proferido em homenagem ao santo no dia 3 de outubro de 833 pelo vigário do patriarca de Jerusalém. Cit. in: Lodi, E. I santi del calendário romano. Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1990, p. 499.


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Segundo a tradição, Dionísio era um dos sete bispos que a Igreja de Roma enviou para as Gálias no século III. Nomeado bispo de Lutécia, a atual Paris, que naquele tempo era pouco mais que um povoado, cristianizou a região e organizou a Igreja. Foi martirizado por decapitação, por volta do ano 250, juntamente com o presbítero Eleutério e o diácono Rústico. Destes dois companheiros, não temos informações particulares, porém sua existência confirma que naquela época a Igreja de Lutécia era já bem constituída. As numerosas narrativas do seu martírio, escritas nos séculos subseqüentes, dizem que Dionísio era um cristão de Roma de origem gaulesa e por isso o papa São Clemente o teria ordenado bispo e enviado a evangelizar o seu povo, juntamente com outros seis. Chegados às Gálias, cada um deles devia ter tomado uma direção e Dionísio teria escolhido a zona central, em torno da Paris nascente. Na Vida de Santa Genoveva, escrita por volta do ano 520, fala-se da basílica que a santa fez erigir no lugar onde o mártir sofreu a morte, o Vico Catulliaco. Mais tarde, surgiu aqui o famoso complexo monástico de SaintDenis, inaugurado solenemente na presença de Carlos Magno. A região tomou o nome de Montmartre, do latim Mons Martyrum, colina dos mártires. Já antes de Carlos Magno, o culto desses santos tinha sido unido ao desenvolvimento de Paris e à ascensão dos francos ao poder, mas depois se propagou para além dos confins da Gália. Dionísio foi reconhecido como o fundador da Igreja parisiense e francesa. Na tentativa de aproximar o mais possível a origem da Igreja francesa aos tempos apostólicos, chegou-se a confundir este Dionísio com o Areopagita de Atenas, do qual se fala nos Atos dos Apóstolos. Em seguida, sua fama será igualada somente à de São Remígio, bispo de Reims, que batizou Clóvis, rei dos francos, no século VI.

9 de outubro São João Leonardi sacerdote e fundador (1541/43-1609) “Não se procure no corpo aquilo que não se encontra na cabeça; comecemos pelos primeiros – cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos e párocos, aos quais é pedido diretamente o cuidado das almas – e desçamos até os últimos, isto é, dos chefes


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às crianças, para que estas não sejam descuidadas por aqueles pelos quais deve começar a reforma dos costumes eclesiásticos.” 17

O carisma deste reformador pós-tridentino de vistas largas tinha sido posto em ação para o saneamento de todos os componentes da Igreja, em sintonia com os outros santos seus contemporâneos como Filipe Néri, Borromeu, Calasans.

Arregaçar as mangas Nascido em Diecimo di Borgo em Mozzano, na província de Lucca, em 1541 ou 1543, foi mandado a estudar farmácia naquela cidade, em ebulição pelo fervilhar do Renascimento e pela pregação de Ochino. O jovem Leonardi não se deixou arrastar nem pelo protesto do capuchinho, nem pela vida deleitosa do neopaganismo, mas, brilhante e corajoso como era, conseguiu conquistar a estima de outros jovens e, sob a orientação de um padre dominicano, fundou a associação conhecida como dos pombinhos, com o escopo de arregaçar as mangas e, ao invés de perder tempo nas discussões, colocar-se a serviço dos pobres, dos enfermos, dos peregrinos e, acima de tudo, ensinar a doutrina católica às crianças. Entrementes, amadurecia nele o desejo de consagrar-se totalmente a Deus e pediu para ingressar entre os franciscanos, mas estes não o aceitaram. Seu confessor aconselhou-o então a preparar-se para o sacerdócio. João deixou de lado os estudos de farmácia e iniciou os teológicos.

Um reformador absolutamente versátil Ordenado sacerdote em 1571, o bispo confiou-lhe a igreja de São João della Magione, em Lucca. Ajudado por seus pombinhos, instituiu uma escola de catequese para as crianças do bairro, que teve tal sucesso que estimulou o bispo a lhe confiar o ensino da doutrina cristã, primeiramente em todas as igrejas de Lucca e depois naquelas de toda a diocese. Para atender a esta tarefa, fundou a Companhia da doutrina cristã, que admitia leigos e leigas desejosos de dedicar-se à catequese dos pequeninos e dos grandes. Aprovada pelo bispo diocesano e depois pelo papa Clemente 17. De uma carta do santo a Paulo V, conservada no arquivo da Ordem.


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VIII, ela se propagou amplamente, primeiro em Lucca e depois também em Roma e em Nápoles. Para estes catequistas e para os párocos, Leonardi escreveu um opúsculo que teve muitíssimas edições: Dottrina cristiana da insegnarsi dalli curati nelle loro parrocchie a’ fanciulli della città di Lucca e sua diocesi [Doutrina cristã para ser ensinada pelos párocos em suas paróquias a crianças da cidade de Lucca e sua diocese]. Deu-se conta, porém, de que enquanto os seus catequistas, com o exemplo e com o ensino, não só formavam para a vida cristã fileiras de crianças e de jovens, mas operavam numerosas conversões entre os próprios adultos, no entanto, não havia sacerdotes preparados para colherem tais frutos com o ministério da confissão e da direção espiritual. Fundou então a Confraria dos padres reformados (1574), que mais tarde (1614) foi aprovada por Paulo V com o nome de Clérigos Regulares da Mãe de Deus.

O vento da perseguição Quando a jovem congregação estava se afirmando e contava entre seus membros também pessoas ilustres, desencadeou-se a perseguição. Alguns clérigos laxistas e outros leigos que detinham o poder político na cidade, sentindo-se ameaçados pela obra de reforma e pela ascendência que o santo conquistava junto ao povo, coligaram-se contra Leonardi. Declararam-lhe a guerra mais desapiedada, chegando até mesmo a privar não somente ele, mas também sua comunidade, do reabastecimento de víveres e forçando-o a pedir esmola. Mesmo constrangido a deslocar-se para uma igreja menos central, Leonardi não se rendeu, também porque gozava do apoio do bispo que, nesse meio tempo, aprovava a jovem congregação. Encorajado por este decreto diocesano, dirigiuse imediatamente a Roma para obter a aprovação pontifícia. Os adversários, aproveitando-se de sua ausência, obtiveram dois sucessos contra ele: mediante um decreto, os magnatas da cidade o baniram in perpetuo de Lucca como perturbador da ordem pública; além disso, algumas más línguas conseguiram semear a divisão não só entre os fiéis, mas na própria comunidade do santo. Leonardi não se surpreendeu com a sentença injusta dos juízes de Lucca, aos quais pediu em vão que provassem as acusações contra ele, mas sentiuse profundamente magoado pela ferida causada à nascente congregação pela infidelidade de alguns de seus filhos; uma ferida que por diversas vezes procurou curar com imensa caridade, porém sem sucesso.


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Em Roma, para toda a Igreja Naquele momento, não era prudente voltar a Lucca e, portanto, per­ maneceu em Roma. A cidade toscana perdia um de seus melhores apóstolos e a Urbe ganhava um dos mais eficazes colaboradores na reforma eclesiástica já em ação na Igreja. Com efeito, os papas do tempo, apreciando não só a santidade de Leonardi, mas também seus dotes diplomáticos, confiaram-lhe incumbências delicadíssimas e difíceis, nas quais outros prelados não haviam obtido sucesso. Foi enviado ao reino de Nápoles para resolver uma espinhosa questão do santuário de Nossa Senhora do Arco na diocese de Nola. Resolvida a controvérsia, precisou deter-se por mais tempo na cidade napolitana, porque foi tomado por uma enfermidade. De volta a Roma, obteve do senado de Lucca, com a mediação do colé­ gio cardinalício, poder reentrar na sua cidade natal, onde não permaneceu por muito tempo, porque Clemente VIII, depois de haver aprovado sua congregação, encarregava-o de outra difícil missão: a reforma da abadia de Montevergine, junto de Benevento. Com um trabalho longo e paciente de vários anos, Leonardi pôs em dia esta antiga e gloriosa abadia, à qual estavam ligados outros numerosos mosteiros beneditinos da região. Após haver suprimido alguns mosteiros sem número canônico de membros e ter restabelecido a observância em todos os outros, substituindo vários superiores e o próprio abade, trouxe Montevergine de volta a seu verdadeiro papel de centro de espiritualidade beneditina. Entretanto, Lucca continuava a fazer guerra contra ele. Apenas eleito superior da congregação pela segunda vez, houve uma verdadeira revolta na cidade e ele, por amor à paz, teve de renunciar. O Papa, para demonstrar-lhe sua estima diante dos habitantes de Lucca, nomeou-o visitador apostólico da cidade rebelde. Ao invés de melhorar, a situação piorou, porque Leonardi foi apontado por seus inimigos como um inquisidor, e seus religiosos, como outros tantos espiões. Sua vida tornou-se quase impossível e alguns, na tentativa de salvar a nascente congregação, afastavam-se das diretrizes do fundador. Este, após haver feito todo o possível, com uma caridade que sabia esquecer toda injustiça sofrida, no sentido de trazer de volta a harmonia entre os seus, voltou para Roma com o coração despedaçado. Aí o esperava o encargo de reformar a ordem fundada no Monte Vallombrosa e de adequar às exigências tridentinas o dos servitas e das Escolas Pias. Foi nesse período que conheceu São José Calasans e estreitou com ele


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uma amizade tão profunda que por vários anos as duas ordens religiosas por eles fundadas permaneceram unidas.

A ajuda fraterna de são Filipe Néri Embora Leonardi nunca houvesse perdido a esperança de restabelecer a paz com Lucca, foi-lhe aconselhado abrir uma casa em Roma, onde gozava da estima do Papa e de muitos amigos. A comunidade dos padres reformados, os mais fiéis ao fundador, estabeleceu-se em Santa Maria in Pórtico e a nova congregação foi posta sob a proteção do cardeal Barônio. Este, por conselho de Filipe Néri, quis que Leonardi fosse eleito novamente superior geral, não obstante os protestos inveterados dos habitantes de Lucca, e empenhou-se de todos os modos para favorecer o desenvolvimento da nova fundação. Eram tempos de grande fervor missionário e Leonardi queria, também ele, enviar alguns de seus filhos a terras distantes, mas São Filipe Néri o desaconselhou, entendendo que a questão mais urgente no momento era buscar a consolidação da congregação em Roma. O conselho revelou-se providencial, porque dentro em pouco Leonardi encontrou-se com o sacerdote espanhol G. B. Vives e com ele fundou um seminário que preparasse em Roma os sacerdotes para as terras de missão. Nasceu assim o que mais tarde se tornou o Colégio Urbano de Propaganda da Fé. Essa foi a última obra brotada do coração e da mente de São João Leonardi. Em 1609, prestando assistência aos doentes de peste, contraiu o mal e morreu a 8 de outubro daquele ano. Sua santidade heróica foi atestada com profunda convicção por São Filipe Néri, por Barônio, por São José Calasans, por Vives e por muitos outros que com ele haviam partilhado anseios e alegrias pela reforma da Igreja. Foi sepultado em Santa Maria in Campitelli e em 1938 foi declarado santo.

14 de outubro São Calixto papa e mártir († 222?) “Desde os primeiros tempos alguns cristãos foram chamados, e o serão sempre, a prestar (com o martírio) este testemunho máximo de amor diante dos homens


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e especialmente diante dos perseguidores. Por isto o martírio, com o qual o discípulo se tornou semelhante ao Mestre... e a ele se conforma na efusão do sangue, é considerado pela Igreja dom insigne e prova suprema de caridade. Que, se a poucos é concedida, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo diante dos homens.” 18

Calixto era um escravo felizardo, porque seu patrão era Carpóforo, um cristão de grande coração. Sendo muito rico e aparentado com a família imperial de Cômodo, havia posto seus bens e sua influência a serviço da comunidade cristã. Apreciando os dotes de inteligência e de sagacidade de Calixto, seu escravo, ele o havia feito instruir na fé e nas letras e, após havê-lo libertado da escravidão com o batismo, havia-lhe confiado a gestão de muitos bens. Calixto, que apreciava comerciar com o dinheiro, havia aberto o que nós hoje diríamos um banco junto à piscina que mais tarde se tornou as Termas de Caracala. Os negócios prosperavam e o jovem banqueiro, a essa altura, deixou-se conduzir para a doce vida, esbanjando não só o seu dinheiro, mas também o que lhe foi confiado por seu patrão. Quando se viu no aperto, pensou em desaparecer de Roma. Correu para o mar, na foz do Tibre, e mal havia subido à nave, quando chegaram os guardas para apanhá-lo. Como última tentativa, lançou-se na água, mas foi igualmente alcançado e reconduzido a Roma por Carpóforo. Diante do acontecido, o nobre romano duvidou da sinceridade da conversão de Calixto, parecendo-lhe que ele amava mais o dinheiro que Jesus Cristo e o reduziu novamente à escravidão, com a tarefa de girar a mó do moinho enquanto não houvesse quitado seus débitos. Uma ocupação pesada que o jovem não havia jamais sonhado em ter de cumprir. Protestou sua inocência, declarando que havia se enganado com o dinheiro, confiando em clientes sem escrúpulos, mas não havia nunca pensado em renegar o evangelho. Devia ser sincero, já que os irmãos cristãos acreditaram nele e suplicaram a Carpóforo que lhe desse uma outra oportunidade. Ele não apenas se deixou convencer, mas perdoou os débitos. Calixto estava de novo livre e tornou a transacionar com dinheiro chegando até a praticar a usura, mas também desta vez não se deu bem. Tendo

18. LG no 42.


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emprestado uma bela soma a um hebreu que não sonhava absolutamente restituí-la com juros, foi procurá-lo na sinagoga em dia de sábado, durante o culto, e irrompeu uma briga entre os dois. O hebreu o denunciou, então, junto ao tribunal da cidade, acusando-o de ter perturbado o culto sagrado e ser cristão. Carpóforo procurou em vão intervir em sua ajuda. Foi condenado às minas na Sardenha. Desta vez nada parecido com girar a mó do moinho na propriedade de Carpóforo! Nas minas a vida era pior do que a dos animais de carga. Os próprios carcereiros, em geral também eles escravos, desejavam deixar aquele lugar. A companhia e sobretudo o exemplo dos numerosos cristãos condenados às minas fizeram que Calixto recobrasse a razão no sentido de que, tendo precisado abandonar o ofício de banqueiro, desta vez começasse a pensar seriamente em seguir Jesus Cristo. Enquanto isso em Roma, Márcia, a mulher de Cômodo, a pedido do papa Vítor, havia obtido a libertação de uma lista de cristãos condenados às minas. Calisto, mesmo não estando naquela lista, uma vez que sua experiência passada não o recomendava mais a tanto, conseguiu sensibilizar o presbítero encarregado do assunto e das minas sardas reapresentou-se na comunidade de Roma. O Papa o fez compreender que era melhor se manter à distância da cidade eterna, onde o seu passado era demasiado conhecido e mandou-o para Anzio. Aí Calixto demonstrou que sua conversão havia lançado já sólidas raízes e colocou os seus não raros talentos a serviço da comunidade, conquistando a estima e o afeto de todos. Era tão experiente e diligente no administrar os bens que Zeferino, que havia sucedido Vítor no governo da Igreja de Roma, o quis como seu secretário, ordenando-o diácono. Cumpriu muito bem sua tarefa e, com a morte de Zeferino, a comunidade de Roma elegeu-o Papa. Havia, porém, em Roma o padre Hipólito, homem douto e asceta severo, que não conseguiu aceitar esta eleição. Em torno dele, reuniram-se outras pessoas descontentes, em geral pessoas ricas, e o elegeram Papa. Pela primeira vez, a Igreja de Roma conhecia o cisma. Calisto teve de enfrentar sérios problemas no interior da comunidade. O que fazer com aqueles cristãos que durante a perseguição haviam sacrificado aos ídolos, não por convicção, mas por medo? E as mulheres que depois do batismo haviam caído em pecados carnais? Além disso, era possível admitir entre os cristãos o matrimônio entre escravos e livres, indo contra o direito romano?


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O Papa e a maior parte dos cristãos eram por uma linha mórbida, concedendo o perdão aos arrependidos depois de uma penitência côngrua, e não estabelecendo distinção entre escravos e patrões, nem mesmo quando se tratasse de núpcias. Outros eram pela linha dura, e entre esses estava Hipólito em Roma e Tertuliano na África. E estes últimos eram pessoas que sabiam manejar a pena, fazendo-a tornar-se, por vezes, venenosa e pungente. Em seu livro De pudicitia, Tertuliano escrevia: “O pontífice máximo, o bispo dos bispos, perdoa os adúlteros e os fornicadores. E onde será afixado este edito tão liberal? Nas portas dos prostíbulos, onde vivem as prostitutas? Não! Será exposto na igreja, a esposa virgem de Cristo”.19 Não se sabe com certeza se ele se referia ao bispo de Roma ou ao primaz de Cartago, mas certamente exprime bem o rigorismo que o colocava em comum com Hipólito. Com efeito, este não se dava por vencido e acusava Calixto de laxismo: “Calixto permitiu até mesmo às mulheres não casadas, toda vez que se apaixonassem por um homem de condições inferiores e quisessem evitar o casamento perante a lei para não perder sua classe social, unir-se ao homem de sua escolha, quer escravo, quer livre, e tê-lo por esposo, sem recorrer ao matrimônio legal”.20 Calixto escolheu a linha evangélica, a da misericórdia e da prudência, sem se deixar atemorizar, e não permitiu que a comunidade cristã se tornasse uma seita de puritanos. Não teve medo nem mesmo quando se reacendeu a perseguição e testemunhou com o sangue sua fidelidade a Cristo. Por volta do ano 222 foi feito prisioneiro e de uma janela de sua moradia foi lançado em um poço e apedrejado. Os cristãos recuperaram seu corpo e às escondidas o depuseram no cemitério de Calepódio na via Aurélia, não podendo correr o risco de levá-lo à cripta dos papas, construída por ele nas catacumbas que ainda hoje conservam seu nome.

19. Tertuliano. De pudicitia. Cit. in: Rendina, C. I papi. Milano, Newton Compton ed., 1993, p. 43. 20. Hipólito. Philosophoumena, 9, 12. Cit. in: Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno, X. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 126.


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15 de outubro Santa Teresa de Jesus virgem e doutora (1515-1582) “Bendito seja Deus que nos permitiu ver uma santa que todos podemos imitar; come, dorme e fala conosco, e vive sem muitas cerimônias.” 21

Eis um traço característico da personalidade de Teresa de Jesus, tal como o captaram as franciscanas “reais” de Madri, que a hospedaram por algum tempo em sua casa. Teresa, mulher extraordinária em muitos aspectos, nunca perdeu o contato com a normalidade da vida, sabendo conjugar a mais alta contemplação com uma ação sagaz e eficiente. Estamos no século XVI, quando a Espanha atravessava seu período histórico mais florescente. Livre já da dominação islâmica, havia passado ao contra-ataque e sonhava com a conquista do império muçulmano e a libertação da Terra Santa; além disso, tendo descoberto a América, estava totalmente inclinada a implantar no novo mundo sua civilização e sua fé, haurindo incalculáveis riquezas. Um empreendimento muito discutido. É difícil imaginar hoje a Espanha daquele tempo, na qual religiosidade e patriotismo se identificavam e afervoravam não só uma elite de nobres e de ricos, mas todo o povo. Neste ambiente, a 28 de maio de 1515, em Ávila, nasceu Teresa de Cepeda y Ahumada, de uma família economicamente abastada e profundamente cristã. Ainda menina, entusiasmou-se com a narrativa da vida dos mártires que tombaram sob as cimitarras dos muçulmanos e convenceu seu irmãozinho Rodrigo a ir com ela para morrerem mártires na “terra dos mouros” que, em sua fantasia, imaginava estar situada a dois passos de Ávila. Não houve tempo para ultrapassarem a soleira de uma porta da cidade, quando foram surpreendidos pelo tio e levados de volta para casa. Não podendo satisfazer o desejo do martírio, Teresa procurou então imitar a vida dos eremitas, mas não era fácil recriar o ambiente do deserto no alvoroço de uma casa em que era a sexta de nada menos que nove filhos: seis homens e três mulheres. 21. Cit. in Bibliotheca sanctorum, XII. Roma, Città Nuova Editrice, 1990, p. 402.


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A segunda fuga Com a idade de 13 ou 14 anos, perdeu improvisamente a mãe e, nessa ocasião, escolheu Maria como mãe. Para proporcionar-lhe uma boa formação intelectual e moral, o pai confiou-a às monjas agostinianas de Ávila, mas depois de apenas um ano Teresa adoeceu gravemente e teve de deixar a sua cidade por uma localidade mais adequada a seu tratamento. De volta a Ávila, após a leitura de algumas cartas de são Jerônimo, pediu insistentemente para ingressar no mosteiro das carmelitas. O pai opôs-se, temendo também por sua saúde. Ela esperou pacientemente por dois anos e depois fugiu para o convento. Quando era já monja professa havia um ano, sobreveio-lhe novamente uma misteriosa enfermidade que a obrigou a deixar temporariamente o mosteiro. Neste período, leu um livro de espiritualidade então muito difundido na Espanha: Terceiro abecedário espiritual, do franciscano Francisco de Osuna, que lhe reacendeu fortemente na alma o desejo da santidade. Enquanto isso, foi confiada aos cuidados de uma camponesa que gozava da fama de curandeira e correu o risco de ser sepultada viva durante um colapso que por quatro dias fez que parecesse morta. Superado este período, foi imediatamente reconduzida ao mosteiro onde, após três anos de paralisia parcial, começou a recuperar-se até a cura completa, que ela atribuiu a uma intervenção milagrosa de São José. Até aquele momento, Teresa havia lutado com todas suas forças para viver uma vida de perfeição e, mesmo tendo experimentado algumas graças místicas, não tinha conseguido seu intento. Desencorajada, e fisicamente muito sofrida, entrou em uma longa crise. Deus se mostrava inatingível e Jesus, por quem se havia apaixonado desde pequena, não a atraía mais como antes. Embora nunca tenha pensado em retornar à vida no mundo, sentia certa atração pelas vaidades das quais estava repleta a sociedade do seu tempo e deixou um pouco de lado a tendência para a santidade. Tal relaxamento, em seguida considerado por ela o erro mais grave da sua vida, durou cerca de dez anos, nos quais Teresa viveu em uma dolorosa insegurança: desejava ser toda de Deus, mas não conseguia lhe entregar seu tempo e seus afetos; queria progredir na união com ele mediante a oração, mas agradavam-lhe, no parlatório, as conversas inúteis com a nobreza do lugar e, quando por motivos de saúde estava fora do mosteiro, gostava de visitar os palácios onde o mundanismo brilhava como se fosse parte da casa.


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E agora, seu empenho é sério Continuou assim até 1554, quando contava já com 39 anos. Foi então que, lendo as Confissões, de Santo Agostinho, deu-se conta de haver perdido demasiado tempo em coisas vãs. Um encontro com Jesus, que se mostrou a ela em seu estado sofredor, deu-lhe o golpe de graça. Teresa decidiu mudar de vida e teve início para ela um período extraordinário de luz que o Senhor lhe comunicava mediante visões e iluminações. Esses fenômenos desusados deixaram-na perplexa, mas providencialmente encontrou são Francisco Borja e são Pedro de Alcântara que a tranqüilizaram quanto à origem divina de tanta luz e a incentivaram a segui-la. Teresa tornou-se outra pessoa: em sua união com Deus não havia interrupções, tanto na oração quanto no trabalho. Não se distinguia das outras e, não obstante, era diferente de todas. Deu-se conta, então, de que uma vida de verdadeira e profunda união com Deus por meio da oração era quase impossível dentro das estruturas de um mosteiro que possuía dois limites intransponíveis: devido às numerosas dispensas obtidas no passado, bem pouco havia restado da genuína regra carmelitana e isso tirava a autenticidade da vida monástica; vivia-se, além disso, em uma comunidade demasiado numerosa – 150 monjas – o que impedia às co-irmãs de conduzirem uma verdadeira vida de família, condição importante, na opinião de Teresa, para andar expeditamente no caminho da oração e alcançar assim a santidade. Concebeu então a idéia de um novo mosteiro, pequeno e com a primitiva regra da ordem e, estimulada por são Pedro de Alcântara, falou a esse respeito com algumas co-irmãs.

Começa a Reforma Em 1562, o sonho tornou-se realidade: era inaugurado em Ávila o pequeno mosteiro de São José e as quatro primeiras noviças já recebiam o hábito. Muito embora o fato não tenha agradado a muitas pessoas influentes, que fizeram de tudo para fechar a nova fundação, Teresa obteve a aprovação da Santa Sé e, no início de 1563, transferiu-se definitivamente para o São José, onde foi eleita priora. A fama do novo mosteiro propagou-se rapidamente, suscitando por toda parte admiração e animosidade. O geral dos carmelitas, João Batista de’ Rossi, após um encontro com Teresa, autorizou-a em 1567 a prover com o mesmo


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espírito outras fundações femininas e a dar início também à reforma dos mosteiros masculinos, fundando dois conventos de carmelitas contemplativos. Começava, para Teresa, um período de extraordinária fecundidade apos­ tólica. Em continuação, viajando, disseminou mosteiros por toda a Espanha e alguns também fora. Encontrando-se com um jovem sacerdote de 25 anos, João Matias, que queria ingressar na Cartuxa, convenceu-o a tornar-se o primeiro carmelita descalço e chamou-o João da Cruz. Foi seu colabo­rador direto e, em sua escola, tornou-se aquele grande místico que todos conhecemos. Em suas viagens para a fundação dos mosteiros, Teresa encontrouse imersa na humanidade do seu tempo e com sua inteligência aguda e seu senso prático, movimentou-se com muito tato. Tratando com personalidades influentes, tomou conhecimento dos enredos diplomáticos e das velhacarias dos políticos; ao encontrar reis, núncios apostólicos, bispos, gerais de Ordens religiosas, professores universitários, soube fazer valerem suas razões, suscitando muitas vezes admiração por seu gênio feminino; escutando os relatos dos missionários que voltavam do Novo Mundo, apercebeu-se de que a Igreja não se encontrava diante de uma gloriosa conquista de novos fiéis, mas estava correndo um grave perigo em sua obra evangelizadora, por causa do mau exemplo dos conquistadores e da sua insaciável fome de ouro. Exprimiu então o desejo de implantar naquelas terras numerosos mosteiros masculinos e femininos, como outras tantas centrais de vida evangélica. Não conseguiu ver este sonho realizado durante sua vida, mas, em seguida, seus filhos e filhas o fizeram de maneira admirável, alcançando até mesmo lugares perdidos em meio aos indígenas da floresta amazônica. Teresa não manteve contato apenas com os grandes, mas aproximou também pessoas humildes, dos párocos dos campos aos camponeses, dos carroceiros aos carteiros, e tinha para com todos a mesma atenção, conquistando sua estima e colaboração.

“Tu serás minha esposa” Inesperadamente, em 1570, o visitador apostólico nomeou-a priora do seu antigo mosteiro da Encarnação em Ávila, para que nele implantasse sua reforma. A obra não era fácil, mas ela soube agir com circunspeção e no ano seguinte chamou aí para confessor da comunidade o seu João da Cruz. Foi nesse lugar que, aproximadamente nos fins de 1571, durante a comunhão eucarística, Jesus apareceu-lhe e lhe disse: “De hoje em diante,


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tu serás minha esposa... De agora em diante tu cuidarás de minha honra não somente porque sou o teu Deus e o teu Criador, mas também porque tu és minha verdadeira esposa. A minha honra é tua, e a tua é minha”. A seguir, as visões se sucederam e Teresa não só contemplava a Trindade e a Humanidade do Verbo encarnado, mas vivia em um colóquio ininterrupto com as divinas Pessoas e em contínua companhia do Salvador. Esta vida de contemplação não a desviava minimamente das suas ocupações, mas dava-lhe ao mesmo tempo uma grande segurança e uma paz profunda que não perdeu nem mesmo quando as perseguições se encarniçaram contra ela, procurando destruir sua obra.

Sob a cruz para reformar os frades Se a fundação dos mosteiros femininos foi duramente contrariada, maio­ res dificuldades suscitou a dos mosteiros masculinos. Todos, naquele período, reformados e não reformados, permaneciam ainda sob uma única jurisdição e os atritos entre as duas correntes chegaram até a calúnia, apontando Teresa como a causa de tantas discórdias. Por isso, em 1577, foi afastado dali João da Cruz, que foi encarcerado em um convento de Toledo, onde o mantiveram escondido. Teresa procurou em vão descobrir o cárcere e pediu a intervenção do rei em seu favor. Por sorte, seu lugar de conselheiro e confessor, já há um ano, havia sido tomado pelo padre Jerônimo Gracián, certamente muito menos santo que João, mas muito mais experto no tratar com os grandes deste mundo e, principalmente, sempre fiel às diretrizes de Teresa. Quando, em 1578, João da Cruz conseguiu fugir do cárcere, a situação para os descalços e para Teresa piorou enormemente. O novo núncio apostólico, Filippo Sega, estava convencido de que era uma “mulher inquieta, vagabunda, desobediente e contumaz, que sob a cor da devoção inventava más doutrinas, saindo da clausura contra as ordens do concílio de Trento e dos superiores, e ensinando como mestra, em oposição ao que escreveu são Paulo, que proibiu as mulheres de ensinar”. O núncio tinha sido muito mal informado e bem rápido mudou de idéia e apoiou Teresa junto ao rei, para que desse parecer favorável junto à Santa Sé para a constituição autônoma da província dos carmelitas descalços. Com efeito, Gregório XIII acolheu o pedido e o primeiro capítulo provincial, por sugestão de Teresa, elegeu como primeiro superior dos reformados o padre Gracián.


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João da Cruz, uma vez readquirida a plena liberdade, veio a Ávila para rever aquela que tinha sido sua mãe e mestra, na secreta esperança de levá-la consigo a Granada para inaugurar uma nova fundação. Teresa não pôde satisfazê-lo e dirigiu-se a Burgos para a última de suas fundações. Dali tinha de dirigir-se a Alba de Tormes, onde morria a 15 de outubro de 1582, pronunciando estas que foram suas últimas palavras e o seu testamento: “Senhor, sou filha da Igreja”.

A herança de Teresa: “O Castelo Interior” Teresa nos deixou uma abundância de escritos espirituais. Suas obras principais são a Vida, o Caminho, os Pensamentos sobre o amor de Deus e o Castelo interior, reconhecido como sua obra-prima. São escritos dirigidos principalmente às suas filhas, são frutos da sua experiência espiritual e não têm pretensão alguma de apresentar-se como tratados teológicos, embora tenham uma densidade teológica tão profunda que a fazem merecer o título de “doutora da Igreja”. Escritos em um estilo acessível a todos, esses textos exerceram grande influência não só no interior de seus mosteiros, mas sobre toda a Igreja. Em um período em que a vida consagrada era fortemente combatida e em alguns países legalmente suprimida de todo como inútil e daninha para a sociedade, Teresa, com seus escritos, fazia redescobrir seu valor evangélico, não somente pelo bem da Igreja, mas também pelo progresso da sociedade civil. Com efeito, para Teresa, os religiosos e as religiosas, enquanto atendem à sua santificação pessoal até alcançar os mais altos graus da mística, conformando-se com Cristo e penetrando com ele na vida trinitária, estão a serviço da Igreja e do mundo, porque com o seu exemplo chamam os homens aos valores eternos para os quais foram criados.

O redescobrimento dos conselhos evangélicos Na base dos conselhos evangélicos, Teresa, embora obedientíssima a toda norma da Igreja, não colocou o juridicismo, e sim o mandamento do amor fraterno sem o qual as mesmas “Regras e Constituições para nada servem... (sendo) simples meios para realizar mais perfeitamente este amor” (Castelo 1, 2,17); um amor que, sendo divino, é também autenticamente humano e cria na pequena comunidade do mosteiro um clima de serenidade e de alegria, no qual se experimenta a presença de Deus.


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A pobreza nos mosteiros teresianos não é uma simples renúncia à propriedade da parte dos indivíduos, mas uma realidade da comunidade em seu conjunto: vive-se como pobres, com o estritamente necessário, para salvaguardar a liberdade interior de cada um, para evitar qualquer ingerência externa e para recordar aos cristãos que os bens deste mundo são apenas meios, ao passo que os verdadeiros valores são os celestes. A castidade nunca foi vista por Teresa como sacrifício difícil ou renúncia imposta por uma norma desumana. Para ela, quem se doa a Deus desposa Cristo e reserva para ele o melhor de si, dando-lhe todo o seu amor e todos os seus afetos e construindo com o amor fraterno o ambiente da comunidade, onde a presença do Amado se faz sentir de modo particular. Quanto à obediência, Teresa a vê como o meio para realizar com segurança a vontade de Deus sobre a terra. Assim sendo, ela não é nunca submissão cega à vontade de uma outra criatura, mas obediência à Igreja, a única que pode garantir na terra a genuinidade de uma vida cristã. Custe o que custar, tudo deve ser submetido à Igreja, também as inspirações pessoais e as revelações celestes. Seus mosteiros deviam ser como outros tantos pequenos oásis de paraíso, onde a presença de Deus fosse palpável e onde a Igreja possuísse suas centrais de santidade em benefício de toda a humanidade. Teresa foi proclamada santa em 1622, juntamente com Inácio de Loyola, Francisco Xavier e Filipe Néri. Certamente não fazia má figura ao lado desses gigantes da reforma católica, ao contrário, Teresa, que será chamada a “grande”, superará todos eles em 1970, quando o papa lhe conferiu, juntamente com Catarina de Siena, o título de doutora da Igreja. Era a primeira vez na história que tal título era atribuído a uma mulher.

16 de outubro Santa Edviges princesa da Silésia (1174-1243) “Ao egoísmo e à soberba, Edwiges respondeu com a doçura para com os súditos, a mansidão para com os inimigos, o constante desejo de paz, seja nas contendas internacionais como nas rixas da corte.” 22 22. Bargellini, P. Mille santi del giorno. Firenze, Vallecchi Editore, 1988, p. 579.


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Por longo tempo, na Igreja, a mulher foi mantida em estado de inferio­ ridade em relação ao homem, mas no início do século XII ela começou a ocupar o justo lugar na consideração social. E assim São Bernardo de Claraval podia escrever: “Não digas mais, ó Adão: a mulher que me deste me ofereceu o fruto proibido; mas, preferivelmente, dize: a mulher que me deste nutriu-me com o fruto bendito”. Se os teólogos começaram a demonstrar grande respeito para com a mulher, é porque ela, e isto se observa na Polônia e na Boêmia, assume uma função não indiferente na administração dos próprios bens, na fundação e na direção de abadias e, por vezes, também na direção da política. Uma destas figuras de mulher forte foi Edviges da Silésia.

A fonte inspiradora Havia nascido na Alta Baviera em 1174, filha do conde Bertoldo IV de Andechs. Sua família lhe assegurava um lugar de respeito na sociedade, tendo dois irmãos bispos, uma irmã abadessa, uma outra irmã rainha da Hungria (a mãe de Santa Isabel) e uma terceira irmã, Inês, esposa de Filipe II Augusto de França. A fim de bem prepará-la para sua missão, os pais a confiaram desde pequena às beneditinas de Kitzigen. Aí aprendeu o amor à Sagrada Escritura e inflamou-se nela o desejo da santidade. Conforme o costume de então, Edviges não teve sequer o tempo de crescer e aos 12 anos foi dada como esposa a Henrique I, conhecido como o Barbudo, príncipe da Silésia. Sendo a Silésia uma região economicamente rica em recursos, foi sempre objeto de disputa entre a Polônia, a Alemanha e a Boêmia. Naquela época, sua população era quase inteiramente polonesa.

Mulher forte e laboriosa A jovem princesa não só não perdeu o ânimo indo morar em uma terra para ela estrangeira, mas quis cercar-se de pessoas do lugar e, pondo de lado qualquer nostalgia por seu país, aprendeu a nova língua quase brincando, tornando-se desde logo simpática para com os próprios súditos.


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Amava o príncipe seu marido, mesmo tendo este um caráter de rude guerreiro. Ela não se havia oposto quando lho deram como marido, mas o havia aceitado como um dom de Deus. Do seu matrimônio nasceram quatro filhos e três filhas, que ela procurou educar cristãmente. Não foi fácil. As lutas, seja internas, seja com outros Estados, levaram à morte seus filhos e a dor maior ela a teve quando dois deles morreram em uma luta fratricida. Edviges estava convencida de que somente o cristianismo, penetrando na vivência do seu povo, teria garantido um futuro de paz para a Silésia. Empenhou-se então de todos os modos junto ao marido para favorecer a fundação de igrejas e mosteiros. Mesmo salvando as conveniências sociais de sua classe, viveu em uma grande pobreza: empregava para si apenas um por cento das suas rendas, enquanto que todo o restante era usado em benefício dos pobres e na fundação da famosa abadia cisterciense feminina de Trebnitz. Quando estava em casa, longe dos olhos do público, preferia caminhar de pés nus para poupar o calçado. Repreendida por seu confessor, que via nisso um perigo de escândalo junto ao povo, fez preparar para si um par de meias sem solas, mantidas firmes por duas ligas escondidas sob a planta dos pés, de tal modo que ninguém pudesse perceber que andava descalça. Mesmo conduzindo uma vida austera, era especialmente jovial e a sua companhia, tão agradável que um biógrafo, seu contemporâneo colocou estas palavras na boca dos jovens da corte: “É melhor comer como mendicante à mesa da soberana, do que como príncipes à mesa do soberano”. Com a morte do marido em 1238, retirou-se para a abadia de Trebnitz, por ela fundada, onde a abadessa era sua filha Gertrudes. Para não interferir na vida interna da abadia, Edviges não quis se tornar monja, mas viveu dentro dos muros do mosteiro como terciária. Quando recebeu a notícia de que também seu filho Henrique II havia morrido em um combate com os tártaros, não só não se deixou abater, mas foi ela quem confortou a nora e a filha. Morreu a 15 de outubro de 1243 e foi canonizada em 1267. Em curto espaço de tempo, a fama de santidade ultrapassou os confins da Silésia para difundir-se em todos os países vizinhos.


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16 de outubro Santa Margarida Maria Alacoque virgem (1647-1690) “Parece-me que o grande desejo de nosso Senhor, de que o seu Sagrado Coração seja honrado de modo particular, tem como escopo renovar nas almas os efeitos da sua redenção.” 23

Margarida Maria Alacoque tornou-se famosa pela devoção ao Sagrado Coração, tão difundida na Igreja católica. Em um período histórico em que o culto litúrgico em língua latina e a piedade iluminada dos teólogos estavam ao alcance de poucas pessoas, a massa do povo cristão buscou outros caminhos para aproximar-se da mensagem evangélica. Para vir de encontro a esta necessidade, “o Espírito Santo revelou de modo singular a pessoas devotas algum estado íntimo do Senhor e por vezes fez perceber em que modalidade sensível concreta tal perfeição do Senhor podia ser comunicada, participada e levada a ser vivida na assembléia cristã”.24 Foi o que sucedeu em Paray-le-Monial com Margarida Maria Alacoque.

A resposta de uma humilde irmã Margarida Maria nasceu na Borgonha, em Lautecour (Verosvres), na diocese de Autun no ano 1647, de uma família numerosa de média burguesia, foi educada cristãmente e já aos 4 anos de idade recordava ter se sentido impelida a doar-se totalmente a Deus. Bem depressa perdeu o pai, que era o tabelião do lugar, e a mãe viúva teve de enfrentar enormes sacrifícios para levar adiante a numerosa filharada. Felizmente, Margarida, com a idade de 8 anos, conseguiu um lugar no colégio das clarissas urbanistas de Charolles, onde encontrou o ambiente favorável para estudar e para formar-se cristãmente. Com o crescer em idade e ciência, confirmava-se nela o desejo de consagrar-se à vida religiosa, mas uma enfermidade forçou-a a voltar para casa. 23. Das Cartas de Margarida Maria, in: Vie et oeuvres, 2, Paris, 1915, 321. 24. Goffi, T. – Zovatto, P. La spiritualità del Settecento. Bologna, Ed. Dehoniane, 1990, p. 162.


Santa Margarida Maria Alacoque

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Curada depois de quatro longos anos, teve de enfrentar enormes dificuldades no âmbito da própria parentela e estava já duvidando que o Senhor a quisesse no convento. Algumas vezes deixou-se também tomar pelas vaidades que tanto atraíam suas contemporâneas, porém, no dia 25 de maio de 1571, enquanto estava em visita ao mosteiro de Paray-le-Monial, sentiu em seu íntimo uma voz que lhe dizia: “É aqui que te quero”. Estava para completar 24 anos e, sem interpor protelações, depois de apenas três semanas ingressava entre as visitandinas daquele mosteiro e no ano seguinte emitia os votos.

Uma aventura inesperada Em 27 de dezembro de 1673, festa de são João Evangelista, enquanto se ajoelhava na capela do convento, junto à grade do coro, apareceu-lhe Jesus e convidou-a a colocar sua cabeça sobre o próprio peito, como o apóstolo João havia feito na última ceia. “O meu coração” – disse-lhe Jesus – “está tão apaixonado de amor pelos homens... que, não podendo mais encerrar em si mesmo as chamas da sua ardente caridade, tem necessidade de expandi-las... Eu te escolhi, abismo de indignidade e de ignorância, para realizar este grande desígnio, a fim de que tudo seja feito por mim”. Mesmo com esta promessa bem clara, como teria podido ela cumprir tal missão? Jesus a tranqüilizou, dizendo-lhe que ele próprio se incumbiria de instruí-la, revelando-lhe “as maravilhas do seu amor e os segredos inexplicáveis do seu Coração, que ficaram escondidos até aquele dia”. Margarida pôs sua superiora ao corrente, mas quando chegou ao conhe­ cimento das outras irmãs, houve no convento um grande falatório. Era Margarida uma visionária ou uma pessoa escolhida por Deus? Cada qual dizia a sua e os julgamentos não eram certamente encorajadores. O próprio confessor do mosteiro pensava que Margarida tivesse ficado fora de si e que “tinha necessidade de comida”, mitigando os jejuns e as penitências. Mas, não obstante todas as precauções tomadas pelos superiores, às quais Margarida obedecia escrupulosamente, as aparições continuavam. No início de 1674 viu, imerso em um mar de luz, o Coração do Salvador “circundado por uma coroa de espinhos simbolizando as feridas infligidas por nossos pecados, e transposto por uma cruz significando que, desde os primeiros instantes da sua encarnação, isto é, a partir do momento em que o Sagrado Coração havia sido formado, a cruz estava plantada nele e desde o primeiro instante tinha estado repleto de toda amargura”.


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Sempre no mesmo ano, na sexta-feira, após a festa do Corpus Domini, Jesus apareceu de novo “todo fulgurante de glória, com as suas cinco chagas brilhando como cinco sóis e daquela sagrada humanidade saíam chamas de toda parte, mas sobretudo do seu admirável peito, que se assemelhava a uma fornalha e, tendo-se aberto, ela descobriu que o todo amante e todo amável Coração era a verdadeira fonte daquelas chamas”. O Senhor lamentou-se das ingratidões dos homens e pediu-lhe que as reparasse recebendo-o na comunhão todas as vezes que a obediência lho permitisse, principalmente na primeira sexta-feira de cada mês e de manter-se em adoração por uma hora inteira, das 23 às 24 horas da noite que precede a primeira sexta-feira. Deste modo, estavam já indicadas as duas práticas de devoção que se tornaram mais famosas: a hora de adoração reparadora e a comunhão na primeira sexta-feira por nove meses consecutivos. Uma outra aparição particularmente importante ocorreu em 1675, durante a oitava do Corpus Domini. Jesus confidenciou a Margarida que, se estava ferido pelas numerosas ofensas dos simples fiéis e das pessoas distantes da prática da fé, mais ainda o estava pelas ofensas das pessoas a ele consagradas. “O que mais me dói é que são os corações a mim consagrados que me tratam assim.” À pergunta de Margarida que lhe indagou: “Tu me concedeste tantas graças e também eu queria retribuir-te amor por amor”, Jesus respondeu que se empenhasse para que a sexta-feira após o Corpus Domini fosse dedicada ao culto do seu Coração e acrescentou: “Dirige-te a meu servo (padre Cláudio de la Colombière) e diz-lhe de minha parte que faça o possível para estabelecer esta devoção e dar esta alegria ao meu divino Coração”.

A colaboração de Colombière Esta indicação foi decisiva. O padre de la Colombière era o superior dos jesuítas de Paray e confessor das irmãs. Ele se deu conta da objetividade das revelações e empenhou-se por todos os meios para estabelecer a devoção ao Sagrado Coração, começando pelo mosteiro. Também a superiora tomou a peito a missão de Margarida, ordenando-lhe que colocasse por escrito todas as revelações recebidas. Com o consentimento das outras irmãs, nomeou-a sua assistente e, posteriormente, mestra das noviças. Margarida transcorria os seus últimos anos vendo com alegria que finalmente o apelo do Redentor era acolhido por suas co-irmãs e no mosteiro podia-se celebrar a festa do Sagrado Coração.


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Quando, a 17 de outubro de 1690, Margarida deixava este mundo, com a idade de apenas 43 anos, talvez não se desse conta do bem que havia realizado na Igreja, fazendo reflorescer na consciência cristã a verdadeira imagem de Deus: não aquela altíssima e severíssima do jansenismo, mas a que se revela no coração de carne do Verbo feito homem. Ela havia deixado escrito: “Se o Senhor nos concedesse a graça, uma vez, de imprimir este amor em nosso coração, tudo se tornaria fácil e realizaríamos muita coisa, em pouco tempo e sem trabalho”. Tinha sido a sua experiência no caminho de santidade, uma santidade profundamente cristocêntrica e ao alcance de todos, até das pessoas mais simples.

17 de outubro Santo Inácio de Antioquia bispo e mártir (50ca-110/15) “Eu busco aquele que morreu por nós, quero aquele que por nós ressuscitou. Está próximo o momento do meu nascimento... Todo meu desejo terreno está crucificado e não existe mais em mim chama alguma pela matéria, mas uma água viva murmura dentro de mim e me diz: ‘Vem ao Pai’. Não me deleito mais com um alimento corruptível, nem com os prazeres desta vida. Quero o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da estirpe de Davi, quero por bebida o seu sangue que é a caridade incorruptível.” 25

Nos primeiros séculos, o martírio era a aspiração dos cristãos mais fervorosos, porque permitia a imitação perfeita do mestre e a entrada na plenitude da vida. Ser cristão significava testemunhar Cristo crucificado e ressuscitado, e a palavra grega martyrio quer dizer precisamente testemunho. O martírio não devia ser provocado, mas, quando era infligido, aceitava-se como um dom do céu. Inácio, temendo que os cristãos de Roma pudessem interceder para poupar-lhe a vida, antecipou-se escrevendo-lhes uma carta comovente, a fim de que eles não lhe fizessem perder uma ocasião tão preciosa: “Para mim, 25. Inácio de Antioquia. Lettera ai Romani, IV, 1-2; 6, 1: ed. Funk, 1, 217-223 passim.


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pedi vós somente a força interior e exterior de ser cristão não só com a boca, mas com o coração; não só de nome, mas também de fato. Porque somente se for reconhecidamente cristão (com os fatos), poderei ser chamado tal e ser reconhecido fiel quando desaparecer deste mundo”.26

O bispo apostólico Pouco sabemos da vida de Inácio. Nasceu por volta dos anos 50 e morreu entre os anos 110 e 115. São João Crisóstomo, confirmado também por São Jerônimo, diz que “teve relações com os apóstolos”. A informação é reforçada por sua fidelidade ao ensinamento apostólico e por sua luta contra as heresias que já então pululavam no Oriente. Acredita-se que tenha sido o terceiro bispo de Antioquia, depois de São Pedro e Evódio. Era muito estimado em toda a Ásia Menor. Quando se espalhou a notícia da sua condenação e ele empreendeu a viagem para Roma escoltado por nada menos que dez guardas, as igrejas enviaram seus bispos com uma representação das respectivas comunidades em toda cidade em que o navio ancorava. Todos queriam dar o último adeus ao homem apostólico e ouvir suas últimas palavras. Inácio não deixou de manter as esperanças. Aproveitava-se de toda parada para exortar as igrejas a se manterem firmes na tradição apostólica e, para que a sua voz pudesse chegar não somente aos presentes, mas a todas as comunidades por eles representadas, registrava por escrito suas palavras. Em Esmirna, encontrou a comunidade do lugar com seu bispo Policarpo. Os dois se compreendiam perfeitamente e Inácio, depois de haver falado a esta Igreja, escreveu – como nos informa Eusébio27 – “uma carta à Igreja de Éfeso, da qual recorda o bispo Onésimo; uma à Igreja de Magnésia sobre o Meandro, onde faz menção do bispo Dama; e uma outra à Igreja de Trali, da qual nos informa que o bispo era Políbio. Ele próprio pôde entregar as cartas aos respectivos bispos vindos para saudá-lo”. “Além de ter escrito para estas comunidades” – continua Eusébio – “escreveu também para a Igreja de Roma, para implorar-lhe que não o privasse, com inoportunas intercessões, do martírio, seu desejo e sua esperança... Tendo partido de Esmirna, foi para Trôade e de lá expediu novas cartas: aos Filadelfos, à Igreja de Esmirna, e uma em particular ao bispo 26. Ibid. 27. Eusébio. Storia ecclesiastica, III, 36, 3-5.


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Policarpo, ao qual, conhecendo-o por homem inteiramente apostólico, como verdadeiro e bom pastor confia o seu rebanho de Antioquia, garan­ tindo que teria com ele desvelo especial”.28 As etapas subseqüentes afastaram-no cada vez mais da Ásia. Foi conduzido a Neápolis na Macedônia, depois a Filipos e a Durazzo, e daí chegou à Itália pelo porto de Brindisi. Percorrendo a via Ápia, chegou a Roma.

O padre da Igreja Inácio nos deixou sete cartas, todas escritas sem interrupção durante sua viagem para Roma. Não são organizadas por assuntos, como se quisesse escrever um tratado, mas exatamente por isso, constituem um tesouro inestimável: testemunham a doutrina e a vida da Igreja imediatamente após o desaparecimento dos apóstolos. Quanto à doutrina, Inácio a defende com freqüência das heresias que serpejavam pela Ásia Menor. Contra grupos de judaizantes escreveu aos magnésios: “Não vos deixeis seduzir por doutrinas errôneas, nem pelas velhas fábulas, inúteis e nocivas. Se de fato nós vivermos ainda de conformidade com o judaísmo e a lei de Moisés, com isto confessamos não ter parte alguma com a graça”.29 E aos tralianos, em cuja comunidade haviam se infiltrado os docetistas, que negavam a realidade da encarnação: “Fechai os vossos ouvidos quando alguém vos fala desconhecendo o mistério de Jesus Cristo, descido da estirpe de Davi, filho de Maria, que realmente nasceu, comeu e bebeu, foi realmente perseguido sob Pôncio Pilatos, foi realmente crucificado e morreu... e realmente ressuscitou dos mortos”.30 “Rendo glória a Jesus Cristo... que descende realmente da estirpe de Davi segundo a carne, é Filho de Deus segundo a vontade e o poder divino, nascido realmente de uma virgem, batizado por João... realmente, sob Pôncio Pilatos e o tetrarca Herodes, foi por nós traspassado pelos pregos na carne”.31 Este era o ensinamento que Inácio havia aprendido da boca daquele que havia tocado com as suas mãos o Verbo da vida; era preciso serem surdos e obtusos para não compreender. 28. Ibid. 29. Lettera ai Magnesi, VIII. 30. Lettera ai Traliani, IX, 1-2. 31. Lettera agli Smirnesi, I, 1-2.


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O doutor da unidade Outro ponto firme, sempre presente em suas cartas, é a unidade da Igreja. Ela é concebida, antes de tudo, como o corpo de Cristo: “Com a sua ressurreição, Cristo reuniu no corpo único da sua Igreja os seus santos e os seus crentes”;32 e a ela comunicou a incorruptibilidade.33 “Cristo é a porta do Pai, pela qual entraram Abraão, Isaac, Jacó, os Profetas, os Apóstolos e a Igreja”.34 “Por meio da cruz, Cristo, na sua paixão, vos convida a ser seus membros; a cabeça não pode existir à parte, sem seus membros”.35 Mas quem garante a unidade no corpo de Cristo, que é a sua Igreja? Inácio tem idéias muito claras a respeito, mas certamente refletem a doutrina e a prática das Igrejas apostólicas. O centro da unidade é o bispo, cercado pelos presbíteros e pelos diáconos. Na carta aos magnésios, ele recomendava: “Procurai fazer todas as coisas sob a orientação do bispo, que ocupa o lugar de Deus, e dos presbíteros que ocupam o lugar do senado apostólico, e dos diáconos, a mim caríssimos, que são encarregados do serviço de Jesus Cristo... O Pai de Jesus Cristo é o bispo universal... Quem engana o bispo visível busca enganar o invisível”;36 e aos tralianos: “Todos respeitem os diáconos como Jesus Cristo, o bispo como a imagem do Pai e os presbíteros como o senado de Deus e como o colégio dos Apóstolos; sem eles, não existe Igreja”. Os diáconos e os presbíteros devem agir em plena sintonia com o bispo e todos os fiéis devem, por sua vez, conformar-se com esta harmonia. Escreveu aos efésios: “É vosso dever estar de acordo com o pensamento do vosso bispo, como de resto já fazeis. Com efeito, o vosso venerável colégio sacerdotal, digno de Deus, está harmonicamente unido ao bispo como as cordas à cítara; assim, no acordo dos vossos sentimentos e na harmonia da vossa caridade, vós cantais Jesus Cristo. E cada um de vós participe deste coro, a fim de que concordes na harmonia, e, tomando em uníssono o tom de Deus a uma voz por meio de Jesus Cristo, cantai hinos ao Pai, e ele vos escute

32. Ibid. 33. Lettera agli Efesini, XVII, 1. 34. Lettera ai Tralliani, IX, 1. 35. Ibid., XI, 2. 36. Lettera ai Magnesi.


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e vos reconheça, pelas vossas boas obras, como os membros do seu Filho. É, portanto, útil para vós estar em uma inseparável unidade, para participar sempre de Deus”.37 Nada se faça fora desta unidade: “Não é permitido, prescindindo do bispo, nem batizar nem celebrar o ágape; mas tudo aquilo que ele aprova é agradável também a Deus. Assim, tudo aquilo que se fizer será seguro e legítimo. Ninguém faça sem o consentimento do bispo coisa alguma daquilo que diz respeito à Igreja. Seja considerada legítima somente aquela eucaristia celebrada sob a presidência do bispo ou de quem dele tenha recebido o encargo”.38 Também os matrimônios sejam contraídos diante do bispo: “É dever dos esposos e das esposas contrair sua união com a aprovação do bispo, a fim de que o matrimônio seja segundo o Senhor e não segundo a concupis­ cência”.39 E recomenda a virgindade: “Se alguém quiser conservar-se na castidade em honra da carne do Senhor, assim permaneça sem ensoberbecer-se”. Quando se dirige à Igreja de Roma, ele não dá mais conselhos: “Eu não vos dou ordens como Pedro e Paulo: eles eram apóstolos, eu um condenado; eles eram livres, e eu, até agora, um escravo”;40 antes, reconhece que esta Igreja “preside a caridade” e confia às suas orações também a Igreja de Antioquia, que ele deve agora deixar para seguir Cristo sobre a cruz.

O mártir Inácio entrava na arena do circo romano para festejar o triunfo de Trajano sobre os dácios. Os cristãos de Roma recolheram com suma devoção o que restou do seu corpo, conservando-o com cuidado e, na primeira oportunidade, restituíramno aos irmãos de Antioquia. São João Crisóstomo, falando aos antioquenos no panegírico da festa, fez este comentário: “Vós usufruístes o seu episcopado e os romanos admiraram o seu martírio. O Senhor vos tirou por pouco tempo este precioso tesouro para 37. Lettera agli Efesini, IV. 38. Lettera agli Smirnesi, VIII. 39. Lettera a Policarpo, V, 2. 40. Lettera ai Romani, IV, 3.


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mostrá-lo aos romanos; e vo-lo restituiu com glória maior, do mesmo modo que é restituída, acrescida de juros, a soma dada como empréstimo”.41 Mas o tesouro de Inácio continua a frutificar ainda hoje em benefício não só de Antioquia mas de toda a cristandade.

18 de outubro São Lucas evangelista (fim do século I?) “Muitos empreenderam compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que se tornaram ministros da palavra. Também a mim me pareceu bem, depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo, para que conheças a solidez daqueles ensinamentos que tens recebido.” 42

Com estas palavras, o autor do terceiro Evangelho e dos Atos dos Apóstolos nos faz entrever com que respeito se aproximava da palavra de Deus. Ele não pretendia absolutamente promover sua pessoa e por isso não dizia nada de si, nem mesmo o nome: considerava-se simplesmente um ministro a serviço da mesma Palavra e desejava transmiti-la com fidelidade absoluta a todos aqueles que, como ele, não tinham conhecido Jesus pessoalmente, mas haviam feito experiência dele na fé, dentro da comunidade cristã. De sua parte, a Igreja, acolhendo estes escritos entre os livros sagrados, reconheceu nele um homem inspirado por Deus.

O ministro da palavra Quem é, no entanto, esse autor? A tradição cristã, desde o tempo de santo Irineu, deu-lhe um nome: Lucas, “o caríssimo médico” (Colossenses 4,14), discípulo e companheiro de Paulo em suas viagens apostólicas, fiel a ele até a última prisão no cárcere romano (2Timóteo 4,11). 41. PG 50, 394. 42. Lc 1,1-4.


São Lucas

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Hoje, os estudiosos são de opinião que o autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos não pode ser o Lucas contemporâneo de São Paulo, porque a redação dos dois livros a ele atribuídos remonta a época mais tardia. Deixando aos estudiosos a tarefa de esclarecer esse assunto, vamos nos deter brevemente na figura um tanto extraordinária desse evangelista que, como eles, continuaremos a chamar Lucas. Pensa-se com sério fundamento que ele era médico ou, pelo menos, um homem de boa cultura, pelo modo que fala das doenças e dos enfermos no evangelho. Conhecia muito bem a língua grega e a versão bíblica dos Setenta, ao passo que não parecia conhecer igualmente bem a língua e as tradições hebraicas. O evangelista provinha de uma comunidade cristã do mundo helênico e precisamente devido a esse ambiente, para confirmar a fé dos cristãos vindos do paganismo, escreveu “um relato ordenado” da vida e dos ensinamentos de Jesus até sua ressurreição e glorificação, e, além do mais, com os Atos dos Apóstolos dá também a difusão do reino de Deus no mundo mediterrâneo. Em seu trabalho, Lucas serviu-se, como ele mesmo atesta, de todas as fontes escritas e orais que já circulavam nas comunidades cristãs, com­ pondo-as em unidade. Seguiu a ordem do evangelho de Marcos, porém enriqueceu-o enormemente.

Características de Lucas Algumas características do seu evangelho o tornaram muito atraente. Antes de tudo, ele dá ênfase ao amor misericordioso de Deus para com a humanidade, principalmente para com os pecadores, como os publicanos e as prostitutas, e aqueles que não têm com que se alimentar nem se vestir, como o pobre Lázaro. A esse respeito são célebres as parábolas do filho pródigo e a do rico Epulão. Pode-se dizer também que Lucas possuía um eminente sentido social. Estava muito interessado em um novo tipo de sociedade, baseada no amor fraterno, até o compartilhamento dos bens, como se pode ver na parábola do bom samaritano e na descrição da primeira comunidade de Jerusalém. Para Lucas, quem desejava fazer parte da comunidade cristã devia assumir livremente o empenho de renegar a si mesmo e o velho estilo de vida, desapegando-se dos próprios bens e dispondo-se a tomar todos os dias sobre si a própria cruz, para seguir desimpedidamente as pegadas do Mestre.


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Outro aspecto típico encontrado em Lucas é a ausência de discriminação entre homem e mulher: A mulher adquire personalidade, principalmente no evangelho da infância (Maria, Isabel, Ana); tampouco pode ser esquecida a importância que Lucas atribui às mulheres na Igreja primitiva. Ele tem especial predileção por juntar episódios que colocam em cena, respectivamente, um homem e uma mulher, com a intenção evidente de afirmar a igualdade dos sexos, ou melhor, o amor de Deus por todos sem discriminação: assim, ao canto de Simeão, seguem-se os louvores da profetisa Ana, o primeiro milagre diz respeito a um endemoninhado (em Cafarnaum) e a sogra de Pedro, a cura do servo do centurião faz-se acompanhar pela ressurreição do filho da viúva de Naim, etc. Esse fato deve ser atribuído, em parte, à sensibilidade helenística de Lucas; mas, acima de tudo, ele tomou realmente a sério o ensinamento e o comportamento de Jesus em relação à mulher, como também de outros tipos de pessoas marginalizadas, tais como os pecadores, os samaritanos; ele se dirige à humanidade do homem considerado pessoa amada por Deus além das barreiras religiosas, morais, sociais ou de sexo. 43

Protetor dos médicos e pintores Nada se sabe com certeza acerca da morte do evangelista. Muitos pensam que ele, quando jovem, havia sido um ministro itinerante da Palavra e que mais tarde, em idade avançada, tenha parado em uma comunidade da Acaia, onde, rico em santidade, experiência e material recolhido nos anos precedentes, teria escrito a sua obra. Os médicos o escolheram como patrono, mas também os pintores o quiseram como seu protetor, porque, segundo a lenda, ele teria pintado por primeiro o retrato de Nossa Senhora. Embora seja difícil demonstrar historicamente que tenha sido um artista do pincel, não se pode negar que ele, com a sua pena, nos deixou a imagem mais perfeita da mãe de Jesus. “São Lucas” – segundo antigos testemunhos – “morreu na Beócia e foi sepultado em Tebas. Daí, como refere São Jerônimo, seus ossos foram transportados para Constantinopla, para a basílica dos santos Apóstolos. Posteriormente, constando de fontes que pesquisas históricas estão explorando, foram transferidas para Pádua”.44 43. Rossé, Gérard. Il Vangelo di Luca. Roma, Città Nuova Editrice, 1992, p. 13. 44. Carta de João Paulo II, in: L’Osservatore Romano, 17/10/2000, p. 4.


Santos João de Brébeuf, Isaac Jogues e companheiros

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19 de outubro Santos João de Brébeuf Isaac Jogues e companheiros mártires canadenses (1593-1649; 1607-1646) “Por dois dias contínuos, senti um grande desejo do martírio e desejei suportar todos os tormentos que os mártires sofreram... Ou melhor, que a isto desejo me obrigar, que quando receber o golpe mortal, o acolherei das tuas mãos com sumo prazer e alegria da alma... Deus meu, quanto me dói que tu não sejas conhecido, que esta... região não se tenha convertido toda a ti, que o pecado ainda não tenha sido banido daqui!” 45

Essa oração exprime muito claramente a disposição de alma com que os jesuítas desempenhavam seu ministério missionário pelo mundo: não se importando com os perigos e desejosos somente de levar o evangelho aos indígenas. Fiéis ao espírito do seu fundador, quer no sul, quer no norte da América, eles não tomaram a si apenas o cuidado dos filhos dos imigrantes europeus, mas lançaram-se, acima de tudo, à evangelização e à defesa dos indígenas com experiências, como as Reduções, que suscitam admiração ainda hoje. Com todos os limites que se encontram naqueles que fazem as primeiras experiências, os missionários jesuítas foram, sem dúvida alguma, pioneiros no que hoje se chama inculturação. Os jesuítas franceses e italianos que semearam o evangelho no Canadá foram os únicos defensores dos indígenas, mesmo quando estes os trataram como inimigos, não conseguindo distinguir os missionários portadores do amor cristão dos outros europeus famintos por enriquecimento. A história dos oito mártires canadenses é narrada com riqueza de pormenores nos Relatórios enviados regularmente pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa. Os fatos se desenvolveram em três localidades diferentes: a primeira situada ao norte dos Estados Unidos, onde atualmente está situada a cidade de Auresville, na zona dos grandes lagos habitada pela belicosa nação dos iroqueses que de modo algum aceitavam nas próprias terras a presença de franceses, encorajados nisto pelos holandeses e pelos ingleses que mantinham 45. Prece de João de Brébeuf. Cit. in: Liturgia das Horas.


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naquela região alguns centros comerciais; a segunda região estendia-se para Quebec e era habitada pela nação rival dos huronianos que, depois de muitas resistências, haviam aceito a fé cristã e eram favorecidos pelos franceses; a terceira, enfim, era uma região montanhosa, chamada de Tabaco pelos franceses, devido à presença dessa planta na região, e era habitada pelo povo dos petuns, amigo dos huronianos, e também, por isso, malvisto pelos iroqueses. Em Auresville, entre os iroqueses, foram martirizados Isaac Jogues, sacerdote, Renato Goupil, irmão leigo, e João de La Lande, cooperador leigo; nas várias missões do Ontário encontraram o martírio outros cinco jesuítas, todos sacerdotes: João de Brébeuf, Antônio Daniel, Gabriel Lalemant nas missões dos huronianos; e Carlos Garnier e Noel Chabanel na missão de São João e Santa Maria entre os petuns. Damos algumas informações sobre cada um deles.

Mártires entre os iroqueses Isaac Jogues. Nascido na França em Orléans, a 10 de janeiro de 1607, tornou-se jesuíta e, ordenado sacerdote em fevereiro de 1636, no mesmo ano foi enviado como missionário para o Canadá. Por uma carta sua, escrita ao provincial a 5 de agosto de 1643, enquanto era prisioneiro dos iroqueses próximo de Auresville, ficamos conhecendo a primeira parte de sua dolorosa aventura. No mês de junho daquele ano tinha se posto em viagem partindo de sua missão junto aos huronianos para Quebec, para se encontrar com seus confrades, tomar conhecimento das notícias vindas das suas casas européias e para fazer os oportunos reabastecimentos antes do inverno. A viagem de ida durou aproximadamente quarenta dias e desenvolveuse sem incidentes, embora muito fatigantes. Após alguns dias de repouso e de fraterna convivência, retomou a viagem de volta. Sabia muitíssimo bem que, além dos perigos da natureza, sua comitiva podia deparar-se com bandos de guerreiros iroqueses que, tendo jurado ódio mortal aos huronianos e aos franceses, seus protetores, tinham o prazer de torturá-los e de queimá-los a fogo lento quando conseguiam tê-los em suas mãos. Com efeito, os iroqueses haviam se escondido em emboscada e sem grande dificuldade conseguiram capturar o padre Jogues, o irmão Goupil, alguns franceses e 14 huronianos cristãos ou catecúmenos, enquanto poucos outros se salvaram, entregando-se à fuga. Começou assim uma dolorosa viagem para as terras dos iroqueses. Todos os prisioneiros, especialmente os dois religiosos,


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eram continuamente submetidos a opressões e carregados como animais de carga com todos os utensílios e provisões alimentares destinados às missões. Ao padre, arrancaram-lhe as unhas, morderam-lhe os dedos e em seguida o espancaram até deixá-lo com o corpo todo ferido. Depois dele, o mais maltratado foi o irmão leigo Renato Goupil. Ele havia nascido na França, em Anjou, em 1607, e se havia unido como voluntário aos missionários jesuítas vindos para o Canadá em 1640, dando uma preciosa contribuição às missões com suas capacidades práticas. Durante a dolorosa viagem, foi atingido na cabeça por um iroquês, caiu por terra invocando o nome de Jesus e expirou. O padre Isaac, que se havia aproximado dele para socorrê-lo e para dar-lhe a última absolvição, foi também golpeado na cabeça, mas não mortalmente, e, com a permissão dos iroqueses e com a ajuda dos outros cristãos, conseguiu dar-lhe sepultura. Na carta ao provincial Isaac, assim escreveu a respeito dele: “Havia apenas completado 35 anos; era um homem sem a mínima malícia e de uma singular simplicidade de vida...; havia-se devotado inteiramente ao serviço dos neófitos e dos catecúmenos para os quais era de grande ajuda com a sua arte de cirurgião; somente poucos dias antes havia se ligado com os votos solenes”. Chegados ao destino, os prisioneiros foram distribuídos e consignados como escravos a diversas famílias. Isaac, depois de ter sido vendido e revendido diversas vezes a várias pessoas, foi reconhecido e resgatado pelos holandeses presentes na região e reenviado para a França. Aí, depois de haver narrado sua aventura até na corte do rei da França, suscitando por toda parte admiração pela obra missionária dos jesuítas, conseguiu voltar para o Canadá. Em 1646, estava de novo em Quebec e, conhecendo a língua e os costumes dos iroqueses, foi encarregado pelo governador de dirigir-se para aquela nação indígena para consolidar a paz entre os iroqueses e os franceses. Foi bem sucedido na sua tentativa mesmo que a paz não tenha durado muito tempo. Encorajado por esse primeiro sucesso, iniciou em Auresville a fundação de uma missão. Voltou pela terceira vez, com o propósito de passar com eles o inverno. Nesse período, os indígenas estavam recolhidos em suas cabanas e o missionário teria podido iniciar uma catequese mais sistemática, porém, contra toda previsão, receberam-no com maus modos, despiram-no e quebraram-lhe a cabeça, sem lhe conceder a mínima possibilidade de defender-se. Durante sua ausência, os iroqueses tinham sido convencidos de que na arca, onde ele guardava os paramentos para a missa, estava encerrado


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um espírito mau a seu serviço que teria comido e destruído todas as reservas alimentares para o inverno; a única maneira de libertar-se desse infortúnio era matar seu patrão, o missionário. Com o padre Isaac, tinha vindo desta vez também um leigo, João de La Lande, originário de Dieppe, na Normandia. Ele não era jesuíta, mas se havia oferecido como seu colaborador. Após haver matado o sacerdote, no dia seguinte os iroqueses fizeram desaparecer a golpes de machadinha o jovem francês, pelo temor de que também ele tivesse poderes mágicos. Era o dia 19 de outubro de 1646. O sangue dos três mártires dará em seguida os seus frutos entre os iroqueses, porque também eles abraçarão a fé cristã.

Mártires entre os huronianos Os missionários tinham tido maior sucesso junto à nação dos huronianos. Ainda que os inícios tenham sido muito duros, por volta de 1640 havia já missões bem constituídas no estilo das Reduções jesuíticas da América do Sul, cada uma das quais com o nome de um santo. O padre Antônio Daniel, também nascido em Dieppe a 27 de maio de 1601, encontrava-se na missão de São José em julho de 1648. Os homens da aldeia, acreditando estar em um período de paz, haviam partido todos para a caça e para exercitar-se para a guerra nas florestas. Seus inimigos, os iroqueses, estando bem informados por alguns huronianos prisioneiros de guerra acerca da localização das missões e dos costumes de seus habitantes, atacaram de improviso a aldeia indefesa. O padre colocou-se no meio, para impedir o avanço dos guerreiros, porém inutilmente. Ele foi imediatamente morto, a aldeia incendiada, os idosos e os enfermos exterminados a golpes de machadinha e os outros, cerca de setecentas pessoas entre mulheres e crianças, foram levados embora pelos agressores. Era o dia 4 de julho de 1648. O padre Antônio, que nesta missão havia ficado cerca de quinze anos, era bem conhecido e amado pelos huronianos, e seu martírio provocou conversões em massa nesta nação. A esta altura, os missionários procuraram convencer os huronianos a prevenir os assaltos de seus rivais, fortificando as missões. Uma das missões melhor defendidas era a de Santo Inácio e, de fato, durante o inverno de 1648, ela resistiu muito bem a um primeiro assalto dos iroqueses. Estes, porém, não renunciaram à sua conquista e na primavera, aproveitando-se de um período em


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que os homens tinham ido à caça em busca de alimento, entraram na aldeia e, seguindo o seu costumeiro ritual, levaram a efeito a mais completa destruição. Da distante missão de São Luís, os padres João de Brébeuf e Gabriel Lalemant viram elevarem-se grossas colunas de fumaça e se deram conta do desastre. Com efeito, não tardaram a chegar alguns cristãos que se haviam livrado da carnificina para anunciar que os guerreiros iroqueses estavam para chegar também até eles. Os chefes da aldeia ajudaram as mulheres e as crianças a fugir e suplicaram aos missionários que fizessem a mesma coisa, mas estes preferiram permanecer no lugar. Foi inútil. Os iroqueses, superiores em número e em astúcia, passaram a aldeia a ferro e fogo, e arrastaram consigo os homens que ficaram vivos, entre os quais os dois sacerdotes. O padre João foi amarrado a uma grossa tora de madeira que devia arrastar-se atrás dele, de modo a impedir-lhe a fuga. E dado que ele exortava os seus a não se desesperarem, mas a abandonar-se nas mãos de Deus, os iroqueses primeiramente cortaram-lhe a língua, depois cortaram-lhe pedaços de carne de várias partes do corpo, comendo-as em sua presença e, por fim, vendo que o missionário não se desesperava, admirando sua coragem, abriramlhe o peito, arrancaram o coração e o comeram, para que sua extraordinária força passasse para o corpo deles. Esse missionário tinha sido o primeiro a difundir a fé naquela região e tinha aprendido muito bem a língua dos indígenas que o consideravam um pai. Em vista da sua morte, cerca de 8 mil huronianos abraçaram a fé cristã. João de Brébeuf nasceu na diocese de Bajeux e morreu com a idade de 56 anos. O padre Gabriel Lalemant nasceu em Paris, de família nobre e, não obstante sua constituição física delicada, suportou bem os incômodos das missões, aprendeu de modo invejável a língua dos huronianos e foi o braço direito do padre João. Os iroqueses, após inumeráveis maus-tratos, envolveramno com uma cortiça verde de uma árvore resinosa, atearam fogo e o deixaram ardendo por um dia e uma noite, para depois dar-lhe um fim com um golpe de espingarda. Era o dia 17 de março de 1649.

Mártires entre os petuns As notícias dos massacres sofridos pelas outras missões haviam chegado aos ouvidos dos petuns e estes haviam se preparado para a defesa. Viviam com eles os padres Carlos Garnier e Noel Chabanel.


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Padre Carlos Garnier nasceu em Paris, a 27 de maio de 1606. Devido à sua saúde frágil e à oposição do pai, encontrou dificuldades para ingressar na Companhia de Jesus e, quando conseguiu, obteve permissão para partir como missionário para o Canadá, onde chegou em junho de 1636. Havia sido designado para a nação dos petuns e havia conduzido esse povo à fé, auxiliado no apostolado por padre Chabanel. Os dois encontravam-se na missão de São João e temiam os ataques dos iroqueses, mas os guerreiros petuns, ao invés de esperar o inimigo em sua aldeia, preferiram ir-lhes ao encontro na floresta. Foi um erro fatal, porque os iroqueses, com um jogo de astúcia, não se deixaram encontrar e, enquanto eles estavam distantes da aldeia, caíram de improviso sobre ela e a destruíram. O padre Garnier foi ferido com um golpe de espingarda e morreu enquanto se arrastava para prestar socorro a outro ferido. Era o dia 17 de dezembro de 1649. O padre Noel Chabanel, nascido na província de Toulouse a 2 de fevereiro de 1613, havia chegado ao Canadá em 1643 e tinha trabalhado em plena sintonia com Garnier. Embora não conseguisse aprender a língua dos indígenas e adaptar-se ao clima, não quis nunca voltar para a França, antes, fez voto de permanecer para sempre entre os indígenas e pediu a graça de poder um dia morrer mártir. Quando Garnier teve a impressão da chegada dos iroqueses em São João, mandou o padre Noel à missão de Santa Maria, para que ao menos um missionário pudesse se salvar do perigo da morte ou da prisão. Chabanel, sempre obediente, empreendeu a viagem juntamente com um grupo de oito cristãos e depois de haver percorrido 19 léguas sobre estradas intransitáveis, toda a comitiva decidiu deter-se para fazer um pouco de repouso. Enquanto repousavam, ouviram o grito de guerra dos iroqueses e os lamentos dos seus prisioneiros: a missão de São João tinha sido destruída e agora os inimigos corriam para Santa Maria. A comitiva dos petuns entregou-se à fuga, mas, passado algum tempo, o padre Noel, vendo que não fazia sentido continuar a viagem, pediu-lhes que continuassem sozinhos, sem se preocupar com ele: “Pouco importa” – teria dito a eles – “se eu morro aqui. Esta vida é bem pouca coisa diante do paraíso!”. Era o dia 8 de dezembro de 1649. A partir daquele dia, não se teve mais notícias dele. Talvez tenha sido encontrado e morto pelos inimigos, talvez tenha morrido de frio e de fome, perdido na floresta. O Senhor tinha ouvido sua oração heróica e, se sua pregação não tinha sido brilhante entre os petuns durante a vida, pelo pouco conhecimento da sua língua, seu amor por eles selado pelo martírio multiplicou as conversões.


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Os mártires canadenses foram beatificados em 21 de junho de 1925 e canonizados em 28 de junho de 1931.

19 de outubro São Paulo da Cruz sacerdote, fundador dos passionistas (1694-1775) “Quereria dizer-vos grandes coisas, mas quem não ama não sabe falar de amor: esta é uma linguagem que é ensinada somente pelo amor... Quereria ser todo fogo de amor; mais, mais: quereria saber cantar no fogo do amor e manifestar as grandes misericórdias que o Amor incriado concede à nossa alma. Quereria que viesse a nós tanto fogo de caridade, a ponto de abrasar quem nos passa perto, e não somente quem está próximo, mas também os povos distantes, as línguas, as nações, as tribos e, em uma palavra, todas as criaturas, a fim de que todas conhecessem e amassem o sumo Bem.” 46

No século das luzes o jansenismo impelia muitos cristãos empenhados para um conservadorismo rigorista. Simultaneamente, o iluminismo criava um fosso entre a cultura corrente e a fé, apresentando-se como símbolo de liberdade e progresso. Os homens de Igreja, por sua vez, muitíssimas vezes não conseguiam ler os sinais dos tempos e a vida cristã corria o perigo de permanecer ancorada ao passado sem incidir no caminho da história. Mas justamente nesse período Deus suscitou carismas, como o de São Paulo da Cruz, capazes de restituir à Igreja sua fisionomia evangélica e a abertura para novos horizontes.

Em busca do seu caminho Paulo Francisco Danei nasceu em Ovada, no Piemonte, a 3 de janeiro de 1694, de uma família de nobres empobrecidos e recebeu uma profunda educação cristã, sobretudo por obra da mãe, Ana Maria Massari. Os apuros econômicos domésticos obrigaram a família a deslocar-se continuamente para

46. Lettera 1, 296, 315.


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ganhar o pão com o comércio. Em 1709, Paulo estava em Gênova, onde pôde dedicar um pouco de tempo ao estudo, mesmo continuando a ajudar seu pai no trabalho. Aos 19 anos, depois de uma conversa com um sacerdote, sentiu o chamado de Deus a segui-lo e pensou em responder-lhe partindo para a cruzada que a república de Veneza estava organizando contra os turcos. Em Crema, onde se havia dirigido para inscrever-se, compreendeu que bem outra era a milícia a que Deus o chamava. Voltou para casa e durante alguns anos continuou a perguntar-se o que fazer. Certo dia, enquanto entrava em casa, “fui elevado em Deus com altíssimo recolhimento, com esquecimento de tudo e grandíssima suavidade interior”. “Naquele tempo” – é ele quem escreve – “eu me vi em espírito vestido de preto até a terra, com uma cruz branca no peito e sob a cruz estava escrito o nome santíssimo de Jesus”.47

Quarenta dias de luz Tinha 26 anos e compreendeu que não havia tempo a perder. Abriu a sua alma ao bispo de Alexandria, Gattinara. Este permitiu que vestisse um hábito de eremita e se retirasse para uma igrejinha solitária em Castellazzo Bormida para escrever a regra que Deus lhe teria inspirado. Com a obrigação, porém, de mantê-lo ciente de tudo. Recolhido em um quartinho úmido debaixo da escada, atrás da sacristia, e vestido apenas com uma rude túnica, os pés descalços e um pedaço de pão com água, o novo eremita deu início à sua experiência. Era o dia 23 de novembro de 1720. Como um dia Bento na gruta de Subíaco e Inácio de Loyola na de Manresa, sem o saber Paulo entrava em uma escola na qual Deus mesmo se teria feito seu Mestre. Nós tivemos a sorte de acompanhá-lo porque ele deixou o Diário, que escrevia para manter o seu bispo atualizado com as informações, e dele recordou os episódios mais marcantes em suas cartas. É digno de nota o fato de que todas as luzes que Paulo recebia provinham da eucaristia que um sacerdote celebrava todas as manhãs para ele. “A santa comunhão” – escreve um de seus melhores biógrafos – “fazia-o gozar de alegrias inefáveis, mesmo em meio aos sofrimentos do corpo, e um doce repouso no

47. Lettera 4, 217.


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sumo Bem”. Os sofrimentos físicos não faltavam, porém o júbilo espiritual era mais forte. Ele próprio, recordando aqueles dias, escreveu: “O frio, a neve, o gelo pareciam suavidade e os desejava com grande fervor, dizendo a meu dileto Jesus: as tuas penas, querido Deus, são os penhores do teu amor; e depois permanecia assim, fruindo o meu dileto Jesus em altíssima suavidade e paz, sem movimentos das potências, mas em silêncio”.48 Mesmo quando lhe sobrevinham distrações involuntárias, sua alma per­ ma­necia profundamente unida a Deus. Contava-o ele próprio, tomando por empréstimo uma imagem que era muito aprazível a são Francisco de Sales. “Como quando uma criança, estando presa ao seio da mãe, sorve o leite. Agita as mãos e esperneia com os pés, se contorce, mexe a cabeça e outras coisas semelhantes, mas, de qualquer maneira, sempre se nutre, porque permanece colado ao seio da mãe. Sem dúvida, seria para ele mais proveitoso se ficasse quieto... e, todavia, alimenta-se... Assim a alma. A vontade que é a boca não deixa de se nutrir do santo amor, embora as potências, a memória e o intelecto passam a evadir-se. O benefício que sente é certamente maior quando elas permanecem quietas e unidas”. A luz que recebia em grau superabundante produzia nele alegria e dor ao mesmo tempo: “Quando me sobrevêm estes afãs ou aflições, parece-me estar sepultado em um abismo de misérias; parece-me ser o homem mais miserável e desolado que existe, e contudo a alma o abraça, porque sabe que é vontade de Deus, e que são as alegrias de Jesus. A propósito, me ocorre dizer com santa Teresa: ou sofrer ou morrer”.49 Deus lhe mostrava o seu nada e ao mesmo tempo o configurava a Cristo sofredor e isso fazia Paulo dizer: “(Eu) temo mais a supressão dos sofrimentos, (do que um avarento) perder as suas riquezas”.50 Certa manhã, depois da comunhão, enquanto adorava, todo recolhido, o seu Senhor sacramentado, “o meu querido Deus me dava inteligência infusa do gozo que terá a alma quando o virmos face a face, que estará unida a ele em santo amor”.51 De dia para dia, Deus o fazia contemplar a santa humanidade do Verbo até introduzi-lo no seio do Pai. “Estando a alma totalmente unida àquela humanidade santíssima de Jesus Cristo verdadeiro Deus, não pode fazer nada menos do que

48. Lettera 1,4. 49. Lettera 1,6. 50. Lettera 1,12. 51. Lettera 1,6.


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abismar-se totalmente no oceano infinito da divindade.” Paulo compreende de maneira profunda que é preciso morrer com Cristo, eliminando todo egoísmo, por pequenino que seja, de modo que a natureza humana se deixe penetrar e governar pelos dons do Espírito que a fazem nascer de novo “no seio do Pai”.

A regra em cinco dias Em 28 de novembro do mesmo ano, sempre depois da comunhão eucarística, enquanto estava imerso na oração e invocava a intercessão da Virgem e dos santos fundadores para que o ajudassem a escrever a regra, viu o céu aberto e os anjos e santos, especialmente os fundadores das várias ordens religiosas, todos recolhidos em adoração com Maria diante do Pai que, unânimes, lhe pediam a fundação dos passionistas. Sob o influxo desta luz, em cinco dias, Paulo escreveu a regra. “Sabemos” – escreveu, recordando este evento – “que quando escrevia, escrevia tão rápido (= rapidamente), como se houvesse alguém na cátedra que me ditava; sentia que as palavras me vinham do coração. Agora escrevi isto, a fim de que se saiba que tudo é inspiração especial de Deus, uma vez que, no que diz respeito a mim, não vi senão iniqüidade e ignorância”.52 No último dia do seu retiro, 1o de janeiro de 1721, sempre depois da comunhão, viu sua humanidade feita uma única coisa com a do Verbo encarnado e foi “penetrado por um conhecimento altíssimo e sensível (= experiencial) da Divindade...”. “Nesta estupenda e altíssima maravilha”, conheceu tantas e tais coisas em Deus que ele não conseguiu nunca explicá-las aos seus com palavras humanas. “São coisas” – dizia – “que se experimentam e se entendem em um átimo – ao menos para a alma assim parece ser – porque, se durassem mil anos, não lhe pareceriam a meu modo de entender senão um momento, porque a alma está em seu bem infinito e não deseja outra coisa senão a sua glória, o seu amor e que (ele) seja respeitado e amado por todos”.53

A confirmação do bispo Paulo desceu do seu Tabor, onde havia contemplado o céu e onde Deus havia imprimido em seu coração o sinal da paixão, morte e ressurreição de 52. Lettera 4, 221. 53. Diario, 1/1/1721.


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Cristo, e colocou tudo nas mãos do seu bispo. Gattinara escutou-o com muito respeito e compreendeu que Deus estava em ação, mas para ter uma confirmação pediu a Paulo que fosse a Gênova e que relatasse tudo a um piedoso e douto religioso, o padre Colombano, homem experiente no discernir as divinas inspirações das piedosas exaltações. Paulo, enfrentando um inverno rigorosíssimo, sem perder tempo foi a Gênova, encontrou-se com o padre Colombano e retornou imediatamente ao bispo. Este, tendo em vista o parecer positivo do santo religioso genovês, aprovou a regra e autorizou Paulo a experimentá-la na própria pele, retirandose a um pequeno eremitério próximo a Castellazzo. Paulo, revestido apenas da rude túnica da Paixão, deixou-se ficar no lugar e atravessou momentos tão difíceis que foi tentado por diversas vezes a voltar para a casa dos seus ou jogar-se pela janela: às vezes, tinha a impressão de que era tudo um engano do demônio. Momentos terríveis que Paulo, no entanto, conseguia superar recordando a luz que havia recebido anteriormente. O irmão João Batista, que ele estimava muitíssimo, observava-o com admiração e visitava-o a cada tanto. Paulo falava das graças recebidas, mas não das provas que enfrentava, por temor de que o irmão se espantasse e o estimulasse a voltar atrás. Na realidade, João não era um tipo que se amedrontasse, antes, sentiu-se cada vez mais atraído pela luz que emanava do irmão e decidiu segui-lo.

A aprovação do Papa Mais tarde, Paulo dirigiu-se a Roma para pedir a aprovação pontifícia, tendo já consigo alguns companheiros. Apresentou-se ao Papa e foi rechaçado. Retirou-se então para um eremitério no monte Argentário, à espera de tempos melhores. Após várias peripécias, obteve uma permissão oral de Bento XIII em 1725, até que o mesmo Papa, ao se dar conta da santidade de Paulo e dos seus companheiros, quis ordená-lo sacerdote juntamente com o irmão na basílica de São Pedro, encorajando-o em sua missão para a renovação da Igreja. Teve início, assim, oficialmente, a vida “passionista” no Argentário, berço do novo Instituto, atraindo a si numerosas vocações. No período de 1744 a 1749, Paulo fundou outra casa em Vetralla e a 3 de maio de 1771 fez surgir o primeiro mosteiro das passionistas. Em 1773, encontramo-lo em Roma como geral da jovem florescente congregação com sede no mosteiro dos santos João e Paulo sobre o monte Célio, presente pessoal do papa Clemente XIV. Esta, em resumo, é a cronologia dos fatos, mas o que sucedeu na alma de Paulo naqueles anos?


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A experiência mística do “vazio de Deus” Depois do maravilhoso e doloroso retiro dos quarenta dias, Paulo havia sido transportado em pouco mais de um mês àquela altíssima união com Deus que os místicos chamam “matrimônio espiritual”, uma meta que normalmente os santos alcançam depois de um longo período de purificação espiritual (as noites dos sentidos e do espírito), por volta do fim da vida. Para Paulo, o caminho foi diferente. Na contemplação de Deus em Castellazzo, havia tomado consciência da sua identificação com o Verbo encarnado: agora não lhe restava outra coisa senão percorrer o mesmo caminho, a via dolorosa do Calvário. Sua vida foi, portanto, totalmente marcada por provas as mais diversas: aversão por parte de outras ordens religiosas que fizeram de tudo para impedir a aprovação do seu instituto, o abandono de alguns dos seus primeiros companheiros que, após terem sido conquistados pela luz do carisma, não tiveram a coragem de perseverar; sem falar das inumeráveis moléstias físicas que muitas vezes o impediam até mesmo de permanecer em pé. Todavia, as provas mais dolorosas foram de ordem espiritual. Após haver revivido todas as etapas da Paixão, Paulo foi introduzido naquele misterioso “vazio de Deus”, que é o abandono de Jesus sobre a cruz. E neste “vazio de Deus”, Paulo permanece por cerca de cinqüenta anos! Um biógrafo seu – padre Luigi M. de Santa Teresa – assim descreve este longo inverno: “Paulo não via mais Deus em sua alma, não o sentia mais em seu coração. A fé viva de há algum tempo parecia esvaecida em uma noite de densas trevas. Parecia que o céu não mais se destinasse a ele e que o inferno se abrisse a seus pés. Sem apoio, nem no céu, nem na terra, invocava um sustentáculo, implorava um raio de luz...! Tinha sido atormentado pelos demônios, perseguido pelos homens, experimentado por Deus com dolorosas enfermidades, mas não era esta a parte mais aguda das suas penas; a espada que de maneira maior feria seu coração, a suprema agonia de sua alma era o temor de ter perdido o seu Deus, de não mais ver a sua face divina. Parecia, para Paulo, que Deus estivesse fortemente irritado contra ele. Era o cume da Paixão, o último traço de semelhança com Jesus no abandono do Calvário”. Ele mesmo declara que todos os outros sofrimentos são um nada em comparação com este que “há tantos anos experimento sem conforto...; parece-me um granizo que dá cabo de todas as coisas e fico... como quem está em pleno mar-alto em violenta tempestade, sem ter quem lhe dê uma tábua


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para escapar ao naufrágio, nem do alto, nem da terra. Existe uma pequenina luz de fé e de esperança, mas tão minúscula, que mal me apercebo dela...”.54 Seu recurso supremo na hora da agonia era o abandono em Deus, como Jesus abandonado que se lança em seus braços: “Pai, em tuas mãos encomendo a minha alma!”. Deus parecia fugir dele, mas Paulo protestava que sempre o teria amado e seguido por qualquer parte aonde fosse, querendo ser todo seu”. A cada tanto, nesta longa e indizível prova, Deus lhe concedia momentos de alívio, para que o seu físico não sucumbisse. Somente nos últimos anos em Roma ele voltou a encontrar uma serenidade contínua e profunda, talvez prelúdio do paraíso que o esperava. Morreu em 18 de outubro de 1775 e foi declarado beato em 1853, e santo em 1867.

A herança de Paulo Paulo da Cruz não escreveu grandes tratados espirituais; temos dele, além do Diário espiritual e da Regra, mais de 2 mil Cartas, nas quais, com estilo informal, ele derramou sua espiritualidade profundamente cristocêntrica e mariana. Por isso, ele é considerado “o maior místico e o maior escritor espiritual do século XVIII”.55 Nestes anos foi encontrado, em um convento de contemplativas da Espanha, um pequenino, porém interessante tratado intitulado Morte mística, para as pessoas já bem encaminhadas no caminho da santidade.56 Ele próprio, mais tarde, reformulou o escrito, para que fosse utilizado para a formação dos seus filhos. Paulo quer que os seus religiosos revivam a Paixão, tal como Deus lho havia feito conhecer e experimentar, isto é, como mistério pascal de morte e ressurreição, de dor transformada em amor. Daqui provindo o quarto voto de promover junto aos fiéis o conhecimento da Paixão, para provocar neles o abandono confiante em Deus e o propósito de libertar-se de tudo quanto os afasta da experiência de seu amor infinito. Sobre este binário de contemplação e de espoliação, desenvolve-se a vida nos “retiros”, como gostava de chamar seus conventos. Aqui os passionistas vivem imersos na contemplação da Paixão de Jesus, no estudo e na experiência jubilosa da caridade fraterna, que exige uma contínua purificação. Feitos homens novos 54. Lettera 2, 1002. 55. Revue d’Ascétique et de Mystique, 27 (1950), 134ss. 56. Lettere di San Paolo della Croce, aos cuidados de Chiari, C., III. Roma, 1977, pp. 9-17.


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pelo evangelho vivido, partem juntos para as missões junto do povo, doandose sem poupar qualquer coisa ao ministério da Palavra e do sacramento da penitência, para depois retornar novamente ao recolhimento do seu “retiro”.

23 de outubro São João de Capistrano sacerdote (1386-1456) “Aquele que é elevado ao governo dos outros deve mostrar em si mesmo como convém que os outros se comportem.” 57

Foi essa a regra de ouro em toda a sua vida: fazer que o exemplo sempre precedesse à palavra, mesmo quando arriscava a pele. Capistrano não é seu sobrenome, mas sim o nome do lugar de onde provém na província de Áquila, entre as montanhas do Gran Sasso nos Abruzos, onde a família possuía um castelo. Aí nasceu João, filho de um barão alemão transplantado para a Itália e de uma jovem dos Abruzos. Sendo o último nascido, foi também o caçulinha da casa, acarinhado por todos, porém não dispensado de uma disciplina rigorosa e gentil ao mesmo tempo, segundo a tradição daquela região. Recebeu em casa a formação intelectual no trívio e no quadrívio, revelando uma inteligência penetrante e, ao mesmo tempo, prática. Era um jovem de belo aspecto, alto e robusto, de “cabelos loiros que” – como ele próprio chegou a dizer – “pareciam fios de ouro, e eu os mantinha longos, conforme a moda da minha terra, de tal modo que se movimentavam como uma bela dança”.

Giantudesco de casa Por suas raízes teutônicas pelo lado paterno foi chamado Giantudesco [Joãotedesco]. Ainda muitíssimo jovem, sua família e a do conde de São 57. São João de Capistrano. Lo specchio dei chierici, III, Parte I. Venezia, 1580, 2. Cf. Liturgia das Horas.


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Valentino combinaram seu matrimônio e aos 19 anos casou-se, mas a esposa era jovem demais e Giantudesco andava tão comprometido com os próprios estudos que tanto ele quanto ela continuaram a viver cada qual com seus familiares, prorrogando para tempos futuros a convivência. Infelizmente sua irreflexão juvenil foi perturbada demasiadamente rápi­ do devido a um doloroso acontecimento. Devido às rivalidades regionais, em poucos dias sua família foi completamente destruída, quatro irmãos trucidados, a moradia do pai e a herdada pela mãe foram arrasadas. Giantudesco encontrouse sozinho para enfrentar a vida. Foi acolhido em um colégio da universidade de Perúgia, fundada pelo cardeal Niccolò Capocci para jovens pobres e especialmente dotados e aí estudou Direito. Obteve tal sucesso que se encontrou rapidamente entre os primeiros quatro estudantes colaboradores do reitor da universidade. Concluídos brilhantemente os estudos, parece ter trabalhado na cúria do rei de Nápoles. Em 1413 encontramo-lo de novo em Perúgia como o lugartenente do prefeito. Cumpriu tal função sem jamais deixar-se corromper pelos grandes da cidade.

Do cárcere ao convento Na guerra entre Perúgia e os Malatesta de Rimini João, escolhido para negociar um acordo entre as partes, foi preso por traição e posto no cárcere. Na alma de Giantudesco, que havia sempre acreditado na palavra empenhada e na força da justiça, reabriu-se a chaga dolorosa já infligida anos atrás na destruição da sua família. O cárcere foi uma experiência dolorosa e inexplicável para ele. Tentou a fuga, arremessando-se de uma janela, mas ficou com as pernas quebradas e foi transferido para uma cela mais segura. A resposta a suas perguntas angustiantes sobre a maldade humana, ele a obteve certa noite do Poverello de Assis que, aparecendo-lhe, o convidou a seguilo, porque o mundo não tinha grande necessidade de juízes que soubessem aplicar o direito, e sim de homens que semeassem a fraternidade. João respondeu, sim, imediatamente, pagou uma elevada soma em troca da liberdade e bateu às portas do convento de Monteripido, próximo de Perúgia, um dos conventos de estreita observância governados por são Bernardino de Siena. Não havia feito bem, porém, suas contas, porque uma jovem, à qual os pais haviam lembrado que era mulher legítima de Giantudesco, acorreu


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desesperada ao convento, suplicando-lhe que não a abandonasse. Os frades ficaram consternados, mas o jovenzinho disputado, com uma afabilidade que não lhe era usual, falou com a jovem, explicando-lhe que realmente ela lhe havia sido dada como esposa pelos homens, mas que ele nunca a havia tratado como tal, e contou-lhe com calma o que lhe havia acontecido. Podia ele recusar o chamado de Deus por parte de são Francisco? Depois desses fatos, teria havido algum sentido irem viver juntos? Convenceu-a assim a voltar para casa e a oferecer, também ela, sua virgindade a Deus, se isso fosse de seu agrado. Separaram-se de comum acordo e a jovem não permitiu mais a seus pais que interferissem na vida de Giantudesco. Superado esse obstáculo, vestiu o hábito de são Francisco e começou com entusiasmo o ano de noviciado. Entretanto, o entusiasmo durou pouco, uma vez que, diante das atividades da vida passada e da carreira tão bem iniciada no mundo, as ocupações humildes do convento lhe pareciam um contra-senso. Por que havia estudado tanto, se agora, para seguir a Cristo, bastava descascar batatas ou trabalhar com a enxada na horta? A esses pensamentos, juntavamse tentações contra a castidade, nunca antes experimentadas. Perguntava a si mesmo se não tinha errado o caminho. Os próprios superiores, para terem certeza de sua vocação, submeteram-no a contínuas e duras provas. Giantudesco, lenta, mas tenazmente, deixou-se trabalhar pela graça e tornou-se João, um fradezinho humilde e serviçal, sem nunca perder sua carranca de homem decidido a conseguir o escopo almejado. Terminado o noviciado, a 4 de outubro de 1417, fez a profissão religiosa e iniciou os estudos teológicos em Perúgia, na escola de Bernardino de Siena. Já especialista em direito civil e canônico, aprofundou a Escritura, a patrística e a teologia dogmática. Conheceu são Bernardino, leu suas obras e imitou seu zelo.

Inquisidor pontifício Tornando-se sacerdote, o papa Martinho V confiou-lhe o encargo de inquisidor dos Fradinhos que estavam semeando desordem na Itália com a sua pregação e com comportamentos extravagantes e, por vezes, até imorais. Esses, como é sabido, nascidos da corrente franciscana dos Espirituais, separaram-se desses e pregavam uma Igreja totalmente espiritual em oposição à hierárquica, e a invalidade dos sacramentos porque contêm elementos sensíveis. Com a pregação junto do povo, João conseguiu fazê-los desaparecer quase completamente.


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Apóstolo da Itália Bem depressa tornou-se famoso como pregador e as cidades italianas o disputavam. Com freqüência, as praças eram insuficientes para conter os ouvintes e ele fazia sua pregação aberta de maneira campal. O papa, o ministro geral da ordem e as próprias cidades lhe confiavam encargos difíceis e delicadíssimos para a reforma dos costumes e para a pacificação dos ânimos. Para poder deslocar-se com liberdade e pregar por toda parte a palavra de Deus, não aceitou o episcopado de Chieti nem o de Áquila. Desta cidade dirigiu-se a Roma para defender diante da cura pontifícia o seu pai e mestre são Bernardino de Siena, acusado de propagar a idolatria porque pregava a devoção ao nome de Jesus com a sigla apresentada no monograma JHS gravado em tabuinhas. Sua defesa calorosa e clara foi muito convincente e são Bernardino foi-lhe reconhecido. Dirigiu-se a Lanciano para estabelecer a paz entre essa cidade e a limítrofe, Ortona, em litígio pelo porto de São Vítor; restabeleceu a paz também entre Sulmona e a rainha Joana de Nápoles; pregou em Veneza, em Verona e em Trento, onde reconciliou o bispo-príncipe com a sua diocese e ajudou-o no sínodo para a reforma da sua Igreja. Além disso, interveio no concílio de Florença, onde deu uma grande contribuição para a reunificação das Igrejas. Seu geral enviou-o à Palestina, onde reorganizou a Custódia franciscana da Terra Santa. De Jerusalém retornou à Itália e por dois anos consecutivos pregou a quaresma na diocese de Milão. João tinha uma grande facilidade não só no pregar operando conversões, mas também no escrever tratados sobre vários temas, todos ligados a problemas concretos. Pregando em Verona sobre o vício da usura, que naquele tempo estrangulava os pobres, escreveu Sulla cupidigia [Sobre a cobiça], em Trento, durante o sínodo, Lo specchio dei chierici [O espelho dos clérigos] para a formação dos sacerdotes, no concílio de Florença, Sull’autorità del Papa e del Concilio [Sobre a autoridade do Papa e do Concílio], em Milão, para todos os cristãos, Lo specchio della coscienza [O espelho da consciência]. Além disso, para a formação dos clérigos, escreveu nove tratados de dogmática, catorze de moral, seis de direito canônico, dez sobre o franciscanismo.

Apóstolo da Europa Para a reforma da sua ordem, foi enviado à França onde pregou em várias cidades em favor da unidade da Igreja para desmascarar os últimos apoiadores


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do antipapa. Da França passou aos Países Baixos, onde levou a paz entre o príncipe Filipe e a cidade de Gand. Daí teve de retornar a Pádua onde, em 1443, era celebrado o capítulo geral da ordem que o nomeou vigário geral dos frades observantes das províncias cismontanas. Antes de empreender a nova tarefa, retirou-se em Verna e de lá escreveu a primeira circular aos frades. Quando são Bernardino morreu, encontrava-se na Sicília; acorreu imediatamente a Áquila e se pôs à obra para preparar a causa de beatificação do seu grande amigo, escrevendo sua vida. A pedido do imperador Frederico III, foi mandado novamente para além dos Alpes pelo papa Nicolau V e pregou percorrendo a Áustria, a Caríntia, a Hungria, a Transilvânia, a Turíngia, a Polônia, a Morávia e a Boêmia.

Atuando em defesa da fé Era seu propósito combater as heresias e consolidar a unidade da Igreja, quando se mostrou ameaçadora no horizonte a sombra dos turcos que haviam subjugado Constantinopla e avançavam rumo ao centro da Europa. Organizou-se às pressas e com furor uma cruzada que foi confiada ao capitão Hunyadi, ao cardeal legado Carvajal e a João de Capistrano, mas, enquanto os turcos possuíam um exército aguerrido e bem organizado, os cristãos tinham conseguido reunir pessoas sem nenhuma experiência militar, embora cheia de entusiasmo. A este ponto, surgiram sérias divergências entre os três, porque o capitão e o cardeal queriam optar por uma negociação, ao passo que João não pretendia ceder minimamente ao avanço dos turcos. No final, conseguiu impor-se e ele próprio entrou na batalha carregando o estandarte da cruz e incitando os soldados. A batalha de Belgrado, de 14 a 22 de julho de 1456, foi vencida pelos cristãos. Todos lhe atribuíram a vitória que, no entanto, lhe custou caro, dado que, tendo adoecido gravemente durante a guerra e não tendo tido tempo para se tratar, morreu a 23 de outubro do mesmo ano em Vilek, na Iugoslávia. Seus restos mortais permaneceram expostos durante oito dias para dar tempo a todos, também aos grandes que vinham de longe, de apresentar-lhe sua derradeira saudação. O povo o proclamou imediatamente santo, mas algumas cartas, escritas durante a cruzada, davam realce negativo à sua atitude diante do cardeal legado e foram interpretadas como desobediência à autoridade. No processo de canonização, elas retardaram por cerca de duzentos e trinta e


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quatro anos o reconhecimento oficial das suas virtudes heróicas. Além disso, parecia que seu temperamento fogoso e sua linguagem contundente não condiziam com a santidade de um filho de são Francisco. A história fez justiça a essas acusações superficiais, reconhecendo em são João de Capistrano o apóstolo da Europa, que, sem um homem de sua têmpera, talvez houvesse conhecido tempos bem tristes.

24 de outubro Santo Antônio Maria Claret fundador dos claretianos (1807-1870) “Pequeno em estatura, porém gigante em espírito; de aparência modesta, mas muitíssimo capaz para incutir respeito até aos grandes da terra; forte de caráter, porém amável como quem conhece o freio da austeridade e da penitência; sempre na presença de Deus, mesmo em meio à sua prodigiosa atividade exterior; caluniado e admirado; celebrado e perseguido. E, entre tantas maravilhas, aquela luz suave que tudo ilumina, a sua devoção à Mãe de Deus.” 58

Antônio Maria Claret viveu em uma época de grandes transformações sociais e políticas, quando a Europa se debatia entre as resistências conser­ vadoras e as tendências progressistas e liberais que haviam tomado impulso com a Revolução Francesa. Quando, por volta dos fins de sua vida, o Esta­do Pontifício foi suprimido, muitos preconizavam o desaparecimento já iminen­ te do papado na história. Nesse clima, também a vida religiosa do povo tradicionalmente cristão atravessava um período de crise profunda. Claret, catalão autêntico, de caráter forte e de coração profundamente religioso, não se deixou arrastar nem abater por nenhuma das duas tendências opostas, mas sentiu-se chamado por Deus a ser apóstolo de seu tempo. Nasceu em 23 de dezembro de 1807, na província de Barcelona, de uma família de tecelões. Como o quinto de dez filhos, teve de acompanhar o pai em seu duro trabalho, para levar adiante a numerosa família. Em razão disso, só pôde entrar no seminário aos 22 anos, tornando-se sacerdote seis anos depois. 58. XII. Homilia da canonização, in: AAS, 42, 1950, 480.


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Missionário em sua pátria No seminário, havia se apaixonado pela vida missionária e, passados os primeiros anos de ministério paroquial, pediu e obteve a permissão para ir a Roma a fim de oferecer-se à congregação de Propaganda Fide (para propagação da fé) como missionário “ad gentes” (para os povos). Aí encontrou os jesuítas e, após um curso de “exercícios espirituais”, entrou para o noviciado deles. A espiritualidade de Inácio de Loyola o atraía e a experiência missionária dessa ordem respondia às suas aspirações mais íntimas. Todavia, passados aproximadamente seis meses, sobreveio uma doença e Claret não foi considerado idôneo para enfrentar a vida austera dos jesuítas e muito menos a aventura de uma vida missionária no exterior. Foi-lhe aconselhado que voltasse para seu bispo e que se dedicasse às missões em sua pátria. Aceitou com serenidade esses conselhos e voltou para sua diocese, onde, com a aprovação do bispo e com o espírito que havia assimilado em Roma junto aos filhos de santo Inácio, percorreu toda a Catalunha pregando as missões e renovando por toda parte a vida cristã, não somente do povo mas do próprio clero. Foram oito anos de incansável e fecunda evangelização.

A antecipação dos tempos Em contato com as necessidades espirituais das pessoas, ele se deu conta da necessidade de ter colaboradores, e colaboradoras leigas, e de colocar em suas mãos aquele instrumento moderno, que era a imprensa. Constituiu então várias instituições leigas, entre as quais as “Filhas do Imaculado Coração de Maria”, antecipação dos modernos institutos seculares, e fundou para elas a “Librería religiosa”, uma editora com tipografia, que imprimiria e difundiria livros e opúsculos para a formação cristã do povo. Da Catalunha passou às Ilhas Canárias, onde pregou as missões durante aproximadamente um ano. Entrementes, amadurecia em seu coração a fundação de uma congregação masculina, a dos “Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria”, que se concretizou em seu retorno à pátria, a 16 de julho de 1849.

Apóstolo de Cuba A fama do seu apostolado havia chegado à corte da Espanha e a rainha Isabel, a católica, exercendo seu direito de patronato, apresentou-o ao Papa


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como candidato a arcebispo de Santiago de Cuba. Aquela sede estava vacante há catorze anos e chegavam tristes notícias acerca da vida cristã daquelas populações; quem melhor do que este prodigioso missionário teria podido remediar a situação? Ao receber a nomeação, Claret ficou surpreso e perturbado, mas o conselho de seu confessor e o estímulo do seu bispo o impeliram a aceitar: com efeito, não se tratava de uma promoção mundana, mas de uma missão. Não tinha ele sempre sonhado em ser missionário em terra estrangeira? Concluídas todas as exigências burocráticas e consagrado bispo, embarcou imediatamente para Cuba. Era o dia 28 de dezembro de 1849. Durante a viagem, que durou até meados de fevereiro do ano seguinte, organizou uma missão a bordo, com os passageiros e a tripulação. Tão logo chegado a Santiago, pôs em ação seu carisma de missionário, pregando exercícios ao clero e missões ao povo. Em seis anos, visitou três vezes toda a diocese, tomando conhecimento da situação real em que viviam os fiéis e os párocos. Reestruturou o seminário não somente quanto à arquitetura, mas dotando-o de bons formadores e professores; fundou uma “confraria da doutrina cristã” para garantir aos fiéis uma catequese regular e aumentou o número de paróquias, de quarenta para noventa e três; e conseguiu criar em muitos lugares fervorosas comunidades religiosas. Em 1852, terremotos e epidemias dizimaram a população de Cuba e Claret mobilizou todos os recursos humanos e pecuniários da diocese para socorrer os necessitados. Entretanto, os males não provinham somente destas calamidades públicas, dolorosas, mas passageiras; havia males endêmicos que muitos desejavam perpetuar para o próprio proveito. Em Cuba, havia ainda a escravidão dos negros utilizados nos trabalhos mais pesados; o analfabetismo reinava soberano entre o povo; a pobreza dos camponeses, unida à ignorância, tornava insuportável sua vida nos campos.

Acusado e perseguido Com a ajuda de uma mulher, Maria Antônia Paris, Claret fundou o instituto apostólico de Maria Imaculada para o ensino aos jovens do povo, instituiu em cada paróquia uma caixa de poupança, para evitar a agiotagem; escreveu até mesmo um livro, As delícias do campo, para instruir os camponeses sobre os princípios da condução agrícola. Estabeleceu também as bases para uma escola agrária, mas não conseguiu ter a aprovação do governo, porque sua presença já havia se tornado incômoda


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para muitos ricos. Suas obras sociais, sobretudo sua firme oposição à escravidão, conquistaram-lhe muitos inimigos que pelo menos quatro vezes atentaram contra sua vida.

Confessor na corte A rainha Isabel II, para acalmar as iras dos notáveis de Cuba e, ao mesmo tempo, para ter na corte um conselheiro confiável, chamou o arcebispo, nomeando-o seu confessor. Claret obedeceu, mas não quis se estabelecer na corte, freqüentando-a apenas o estritamente necessário para o cumprimento de seus compromissos. Era seu dever aconselhar a rainha acerca da escolha dos bispos e ele o fez sempre com competência e circunspeção. Devia também acompanhar a corte que se deslocava para as várias cidades da nação e ele aproveitava para pregar ao povo. Assim pôde falar em Albacete, Alicante, Valência, Almansa, La Coruña, Santiago de Compostela, Valladolid, Santander, Palencia, Burgos e outras localidades na Catalunha e nas Ilhas Baleares. Quando Pio IX foi privado dos Estados Pontifícios, que passaram para o domínio dos Savóia, e a rainha Isabel precisou dar seu reconhecimento diplomático, Claret foi a Roma para fazer uma consulta ao Papa sobre o assunto. Este o aconselhou a voltar a Madri e não renunciar a seu encargo.

Exilado Então os fatos precipitavam-se e, em 1868, a revolução expulsava da Espanha a rainha e também Claret foi forçado a tomar o caminho do exílio, refugiando-se em Paris. Começava assim o seu doloroso Calvário na última etapa da sua vida. Ironia do destino! Ele, tão aberto aos problemas sociais e tão ativo na promoção do povo, tinha sido carimbado como comunista em Cuba; e agora, na Europa, era considerado um perigoso conservador! De Paris, dirigiu-se para Roma para o Concílio Vaticano I, onde tomou parte ativa com um discurso em favor da infalibilidade pontifícia, mas quando voltou para a França para reunir-se aos seus missionários, também eles expulsos da Espanha, esperava-o uma ordem de prisão da parte do embaixador de seu país. Para fugir dela, escondeu-se na abadia cisterciense de Fontfroide, onde morreria com a idade de 63 anos.


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Escritor fecundo Claret escreveu muitíssimo e suas obras são todas de caráter pastoral e em estilo popular. Sua obra-prima é O caminho certo, que teve muitas edições em muitas línguas. Com este livro, ele conseguiu difundir um estilo de vida evangélica e apostólica adequado não só a religiosos, mas também aos leigos de toda classe social e de toda profissão. Ele propôs uma espiritualidade profunda e popular, cristocêntrica e mariana. Seu nome de batismo era Antônio, mas quando foi consagrado bispo, quis acrescentar o de Maria. “Ela” – escreveu – “é a minha mãe, a minha protetora, a minha mestra e o meu tudo, depois de Jesus”. Sobre essa devoção a Maria, concentrou toda sua vida e a vida de seus filhos espirituais, mas – como justamente observa Tullio Goffi – “não se trata nem de um culto, nem de contemplação, nem de imitação das virtudes de Maria: é receber dela um amor apostólico para com Jesus. Um empenho espiritual vivido meditando a Palavra, cujo escopo é converter mais do que ensinar, vivificar mais do que governar, afervorar mais do que dirigir”.59 Por isso, o santo podia dizer: “Depois da missa, sinto-me aniquilado; vivo a vida de Deus; experimento a presença contínua de Deus”.

25 de outubro Santo Antônio de Sant’Ana Galvão presbítero (1739-1822) Frei Antônio de Sant’Ana Galvão nasceu em 1739, em Guaratinguetá, no interior do Estado de São Paulo, cidade que na época pertencia à diocese do Rio de Janeiro. Com a criação da diocese de São Paulo, em 1745, frei Galvão praticamente aí viveu: 1762-1822.

Família religiosa O ambiente familiar era profundamente religioso. O pai, Antônio Galvão de França, capitão-mor, pertencia às Ordens Terceiras de São Francisco 59. Goffi, T. La spiritualità del Ottocento. Bolonha, EDB, 1989, p. 322.


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e do Carmo, dedicava-se ao comércio e era conhecido por sua particular generosidade. A mãe, Isabel Leite de Barros, teve o privilégio de ser mãe de onze filhos e morreu com apenas 38 anos de idade com fama de grande caridade, a tal ponto que na morte não se encontrou roupa nenhuma: dera tudo aos pobres. Antônio cresceu com seus irmãos em uma casa grande e rica, pois seus pais gozavam de prestígio social e influência política.

Primeiros estudos Seu pai, querendo lhe dar uma formação humana e cultural segundo suas possibilidades econômicas, mandou Antônio, com a idade de 13 anos, para Belém (Bahia) a fim de estudar no Seminário dos padres jesuítas, onde já se encontrava seu irmão José. Ficou no Colégio de 1752 a 1756 com notáveis progressos no estudo e na prática da vida cristã. Desejoso de seguir a vida consagrada, queria entrar na Companhia de Jesus, mas o pai preocupado com o clima que se criara contra os jesuítas, provocado pela atuação do Marquês de Pombal, aconselhou seu filho a entrar na Ordem dos Frades Menores Descalços da reforma de São Pedro de Alcântara. Estes tinham um convento em Taubaté, não muito longe de Guaratinguetá.

Ordenado sacerdote Aos 21 anos, no dia 15 de abril de 1760, Antônio ingressou no noviciado no Convento de São Boaventura, na Vila de Macacu, no Rio de Janeiro. Durante o noviciado, distinguiu-se pela piedade e pela prática das virtudes, tanto que, no livro dos “Religiosos Brasileiros”, encontra-se grande elogio a seu respeito. Aos 16 de abril de 1761 fez a profissão solene e o juramento, segundo o uso dos franciscanos, de se empenhar na defesa da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, doutrina ainda controvertida, mas aceita e defendida pela Ordem Franciscana. Um ano depois da profissão religiosa, frei Antônio foi admitido à ordenação sacerdotal, aos 11 de julho de 1762. Os superiores permitiram a sagrada ordenação porque julgaram suficientes os estudos teológicos feitos anteriormente. Esse privilégio foi também um sinal evidente da confiança que nutriam pelo jovem clérigo.

Primeiros trabalhos Depois de ordenado, foi mandado para o Convento de São Francisco, em São Paulo, com o intuito de aperfeiçoar os estudos de Filosofia e Teologia, e


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exercitar-se no apostolado. Sua maturidade espiritual franciscano-mariana teve sua expressão máxima na “entrega a Maria” como seu “filho e escravo perpétuo”, entrega assinada com o próprio sangue aos 9 de novembro de 1766. Terminados os estudos, em 1768, foi nomeado pregador, confessor dos leigos e porteiro do convento, cargo este considerado importante porque pela comunicação com as pessoas podia fazer um grande apostolado, ouvindo e aconselhando a todos. Foi confessor estimado e procurado. Quando era chamado, a fim de atender alguém fora do convento, ia sempre a pé, mesmo aos lugares distantes.

O Recolhimento Em 1769-1770 foi designado confessor de um recolhimento de piedosas mulheres, as “Recolhidas de Santa Teresa” em São Paulo. Naquela casa, encontrou irmã Helena Maria do Espírito Santo, religiosa de profunda oração e grande penitência, observante da vida comum, que afirmava ter visões pelas quais Jesus lhe pedia fundar um novo recolhimento. Frei Galvão, como confessor, ouviu e estudou tais mensagens e solicitou o parecer de pessoas sábias e esclarecidas, que reconheceram tais visões como válidas. A data oficial da fundação do novo Recolhimento foi 2 de fevereiro de 1774. Irmã Helena queria modelar o Recolhimento segundo a ordem carmelitana, mas o bispo de São Paulo, franciscano e intrépido defensor da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, quis que fosse segundo as Concepcionistas, aprovadas pelo papa Júlio II em 1511. A fundação passou a se chamar “Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição da Divina Providência” e frei Galvão é o fundador de uma instituição que continua até nossos dias. O Recolhimento, no início, era uma casa que acolhia jovens para viver como religiosas sem o compromisso dos votos. Foi este um expediente do momento histórico para subtraí-lo do veto do marquês de Pombal60, que não permitia novas fundações e novas consagrações religiosas. Para toda decisão de certa importância em âmbito religioso era necessário o “placet regio” (aprovação do rei). 60. Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como “Marquês de Pombal” (16991782), foi secretário-de-estado do Reino (Portugal e colônias, entre as quais, o Brasil) durante o reinado de dom José I (1750-1777). Foi um dos principais responsáveis pela expulsão dos jesuítas de Portugal e de suas colônias.


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Morte da fundadora Aos 23 de fevereiro de 1775 morreu, subitamente, irmã Helena. Frei Galvão encontrou-se como único sustentáculo das Recolhidas, missão que exerceu com humildade e grande prudência. Entrementes, o novo capitãogeneral de São Paulo, homem inflexível e duro (ao contrário do seu predecessor), retirou a permissão e ordenou o fechamento do Recolhimento. Frei Galvão aceitou com fé e também as Recolhidas obedeceram, mas não deixaram a casa e resistiram até o extremo das forças físicas. Depois de um mês, graças à pressão do povo e do bispo, o Recolhimento foi reaberto. Devido ao grande número de vocações, frei Galvão se viu obrigado a aumentar o Recolhimento. Para tanto contribuíram as Recolhidas, muitas das quais sendo ricas, podiam dispor dos escravos da família como mãode-obra. Durante quatorze anos (1774-1788), frei Galvão cuidou da construção do Recolhimento. Outros quatorze (1788-1802) dedicou-se à construção da Igreja, inaugurada aos 15 de agosto de 1802. A obra “materialização do gênio e da santidade de frei Galvão”, em 1988, tornou-se por decisão da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura), UNESCO, “patrimônio cultural da humanidade”.

Recolhimento – Mosteiro Frei Galvão, além da construção e dos encargos especiais, dentro e fora da Ordem Franciscana, deu muita atenção e o melhor de suas forças à formação das Recolhidas. Para elas, escreveu um regulamento ou estatuto, excelente guia de vida interior e de disciplina religiosa. O Estatuto é seu principal escrito e o que melhor manifesta sua personalidade. O bispo de São Paulo acrescentou ao Estatuto a permissão para as Recolhidas emitirem os votos, enquanto permanecessem na casa religiosa. Em 1929, o Recolhimento tornou-se Mosteiro, incorporado à Ordem da Imaculada Conceição (Concepcionistas).

Exilado A vida discorria serena e rica de espiritualidade, quando sobreveio um episódio doloroso. Frei Galvão foi mandado para o exílio pelo capitão-general de São Paulo. Este, homem violento, para defender o filho que sofrera uma pequena ofensa, condenou à morte um soldado (Gaetaninho). Como frei


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Galvão tomasse a defesa do soldado, foi afastado e obrigado a seguir para o Rio de Janeiro. A população, porém, se levantou contra a injustiça de tal ordem, que imediatamente foi revogada.

Mestre de noviços e guardião do convento Em 1781, frei Galvão foi nomeado mestre do noviciado de Macacu, Rio de Janeiro, pelos dotes pessoais, profunda vida espiritual e grande zelo apostólico. O bispo, porém, que o queria em São Paulo, não fez chegar a ele a carta do superior provincial “para não privar seu bispado de tão virtuoso religioso (....) que desde que entrou na religião até o presente dia tem tido um procedimento exemplaríssimo pela qual razão o aclamam santo”. Frei Galvão foi nomeado guardião do Convento de São Francisco em São Paulo em 1798 e reeleito em 1801. A nomeação de guardião provocou desorientação nas Recolhidas da Luz. À preocupação das religiosas acrescente-se a do “Senado da Câmara de São Paulo” e do bispo da cidade, que escreveram ao Provincial: “todos os moradores desta Cidade não poderão suportar um só momento a ausência do dito religioso. (....) Este homem, tão necessário às religiosas da Luz, é preciosíssimo a toda esta cidade e vilas da Capitania de São Paulo, é homem religiosíssimo e de prudente conselho; todos acodem a pedir-lho; é o homem da paz e da caridade”. Graças a estas cartas, frei Galvão tornou-se guardião sem deixar a direção espiritual das Recolhidas e do povo de São Paulo.

Conselheiro das ordens religiosas e visitador-geral Em 1802, frei Galvão recebeu o privilégio de definidor (conselheiro de ordens religiosas) por solicitação do Provincial ao Núcleo Apostólico de Portugal porque “é um religioso que, por seus costumes e por sua exemplaríssima vida, serve de honra e de consolação a todos os seus irmãos e todo o povo daquela Capitania de São Paulo, Senado da Câmara, e o mesmo bispo diocesano o respeita como um varão santo”. Em 1808, pela estima que gozava dentro de sua Ordem, foi-lhe confiado o cargo de visitador-geral e presidente do Capítulo, mas devido a seu estado de saúde foi obrigado a renunciar, embora desejasse obedecer prontamente. Em 1811, a pedido do bispo de São Paulo, fundou o Recolhimento de Santa Clara, em Sorocaba (SP). Lá permaneceu onze meses para organizar a comunidade e dirigir os trabalhos iniciais da construção da casa. Voltou frei Galvão para São Paulo e ainda viveu dez anos.


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Enfermidade, morte e canonização Quando as forças o impediram do ir-e-vir diário do Convento de São Francisco ao Recolhimento, obteve dos seus superiores (bispo e guardião) a autorização para ficar no Recolhimento da Luz. Durante sua última doença, frei Galvão passou a morar em um “quartinho” (espécie de corredor) atrás do Tabernáculo, no fundo da Igreja, graças à insistência das religiosas que desejavam lhe prestar algum alívio e conforto. Terminou sua vida terrena aos 23 de dezembro de 1822, pelas 10 horas da manhã, confortado pelos sacramentos e assistido pelo seu padre guardião, dois confrades e dois sacerdotes diocesanos. Frei Galvão, a pedido das religiosas e do povo, foi sepultado na Igreja do Recolhimento que ele mesmo construíra. Seu túmulo sempre foi, e continua sendo até os nossos dias, lugar de peregrinações constantes dos fiéis, que pedem e agradecem graças por intercessão do “homem da paz e da caridade” e fundador do Recolhimento de Nossa Senhora da Luz, cujo carisma é a “laus perennis”, ou seja, adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento, vivida em grande pobreza e contínua penitência com alegre simplicidade. “Entre os heróis que plasmaram o destino de São Paulo” – escreve Lúcio Cristiano em 1954 – “merece lugar de destaque a inconfundível figura de Frei Antonio de Sant’Ana, o apóstolo de São Paulo entre os séculos XVIII e XIX”, cuja lembrança continua viva no coração do povo paulista. O processo de beatificação e canonização, iniciado em 1938, foi reaberto solenemente em 1986. Aos 8 de abril de 1997 foi promulgado o Decreto das Virtudes Heróicas e, aos 6 de abril de 1998, o respectivo Decreto sobre o Milagre pelo santo padre João Paulo II, que o beatificou aos 25 de outubro de 1998, em Roma. Com o segundo milagre, frei Galvão foi canonizado pelo papa Bento XVI, aos 11 de maio de 2007, em São Paulo (SP). Santo Frei Galvão, como ficou sendo chamado pelo povo, tem sua data litúrgica no dia 25 de outubro. Todo dia 23 de cada mês, porém, celebra-se sua memória, por ter sido nesse dia que faleceu (23 de dezembro de 1822).

Pílulas de santo Frei Galvão Em texto público explicativo, fornecido pelo Mosteiro da Luz, situado na cidade de São Paulo, lê-se o seguinte:


Santos Simão e Judas Tadeu

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Certo dia, um moço que se debatia com fortes dores provocadas por cálculos renais pediu a santo Frei Galvão que o abençoasse para ficar livre da dor. O santo, lembrando-se do poder de intercessão da santíssima virgem Maria, escreveu em um papelzinho o verso do breviário (atual Livro das Horas): “Depois do parto, permaneceste virgem, mãe de Deus, intercede por nós”. Recortou-o em pequeninos pedaços em forma de pílula e mandou que o moço as ingerisse. Este assim o fez, confiando em Nossa Senhora, e expeliu os cálculos sem dificuldade. Caso semelhante ocorreu do modo seguinte: santo Frei Galvão foi procurado por um senhor, pedindo ajuda para sua mulher que se achava em difícil trabalho de parto e corria risco de vida. O santo lembrou-se do caso do moço curado e deu àquele senhor as pílulas de papel com os mesmos dizeres. Depois de ter ingerido as pílulas, a mulher deu à luz sem problemas.

Essa foi a origem das pílulas que, desde aquele momento, começaram a ser muito procuradas pelos devotos de santo Frei Galvão e são fornecidas pelas irmãs do Mosteiro da Luz às pessoas que confiam na sua intercessão.

28 de outubro Santos Simão e Judas Tadeu apóstolos (século I) “Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu os guias, os mestres do mundo e os dispensadores dos seus divinos mistérios. Quis, além disso, que eles resplandecessem como luminares e que iluminassem não apenas o país dos judeus, mas também todos os outros... Os seus apóstolos foram as colunas e o fundamento da verdade. Cristo declara ter conferido a eles a mesma missão que ele recebeu do Pai.” 61

Era esta a convicção dos primeiros cristãos e eles construíam a própria vida sobre a fé transmitida pelos apóstolos, isto é, por aqueles que compartilharam a vida com Cristo, desde seu batismo até a paixão e a ressurreição. Judas e Simão, que a Igreja venera em uma única festa, sem dúvida fazem parte do colégio apostólico. Além do chamado de Jesus a segui-lo, não temos deles quase nenhuma outra informação.

61. PG 74, 707.


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Simão é cognominado cananeu, o zelota, dois termos que têm o mesmo significado, isto é, zelante. Alguns pensam que tal título lhe foi dado por seu apego à Lei e às tradições judaicas. Segundo a tradição transmitida por Egesipo do século II, ele teria sucedido a São Tiago, o menor, no governo da comunidade cristã de Jerusalém, do ano 62 ao 107. A seguir, teria sofrido o martírio em Pela, onde se havia refugiado com sua comunidade para fugir da segunda guerra judaica. Outras tradições o levam para a Abissínia, onde teria sido crucificado, e outras ainda falam de um martírio mais cruel, o da serra. Tais tradições representam talvez a lembrança dos sofrimentos dos primeiros cristãos torturados com todos os meios. E os apóstolos não foram poupados a seme­ lhantes experiências. Judas tem, também ele, um sobrenome: Tadeu, que significa magnâ­ nimo. No Novo Testamento, encontramos uma carta de um certo Judas, irmão de Tiago, porém os estudiosos não são de opinião que possa ser atribuída ao nosso apóstolo. Talvez o autor seja um mestre judeu-cristão que resume nesta breve carta de apenas vinte e cinco versículos “um riquíssimo testemunho de fé, vida, oração e esperança das comunidades judeu-cristãs no final do século I”.62 Uma informação segura, ao invés, é a pergunta dirigida ao Mestre depois da última Ceia: “Pergunta-lhe Judas, não o Iscariotes: ‘Senhor, por que razão hás de manifestar-te a nós e não ao mundo?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos a nossa morada’” (João 14,22-23). A resposta de Jesus, que à primeira vista parece não levar em conta a pergunta, é de tonalidade muitíssimo expressiva: Deus se manifesta a quem estiver disposto a acolhê-lo, porque só o amor pode conhecer o Amor. Com efeito, Jesus continua: “Aquele que não me ama, não guarda as minhas palavras. A palavra que tendes ouvido não é minha, mas sim do Pai que me enviou” (João 14,24). Segundo a tradição recolhida pelo historiador Nicéforo Calisto, o apóstolo Judas evangelizou a Palestina, a Síria e a Mesopotâmia, e morreu mártir em Edessa. A Igreja siríaca, ao invés, recorda-o como mártir em Arad, próximo de Beirute.

62. Knoch, O. Lettera di Giuda. Brescia, Morcelliana, 1996. Cit in: Jesus, no 12 (1996), p. 128.


NOVEMBRO

3 de novembro São Martinho de Lima dominicano (1579-1639) “Amava os homens porque os estimava sinceramente como filhos de Deus e irmãos seus; também os amava mais que a si mesmo, porque com a humildade que tinha tomava todos como mais honestos e melhores que ele próprio.” 1

No Livro de Batizados da igreja de São Sebastião, em Lima, no Peru, se lê que Martinho, nascido em 9 de dezembro de 1579, é filho de Ana Vásquez e de pai desconhecido, se bem que todos soubessem quem era seu pai, João de Porres, nobre cavaleiro espanhol da Ordem de Alcântara, alto funcionário do rei da Espanha.

As duras leis dos homens João de Porres encontrava-se no Panamá quando se enamorou de Ana Vásquez, uma belíssima jovem negra, filha de escravos provenientes da África. À proposta do nobre espanhol queria tornar-se sua companheira, ela não opôs nenhuma resistência porque negar-se a isso teria sido, acima de tudo, uma 1. João XXIII, em AAS 54, 6 de maio de 1962.


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ofensa à nobreza do pretendente e, depois, porque o que o nobre espanhol pretendia lhe representava e para sua família uma grandíssima honra. Mesmo que nessa ocasião tenha sido proclamada “liberta”, sabia muito bem que jamais teria podido desposá-lo de acordo com a lei. Mas o que podia ela fazer contra uma norma iníqua imposta pelos homens e contrária ao amor? Pensava no seu íntimo que o Senhor bom Deus não a castigaria por isso. Quando o primeiro filho nasceu, ela esperava dar-lhe o nome do pai, mas João de Porres, que também amava ternamente mãe e filho, disse-lhe que não era possível, porque o pequeno, mesmo não sendo exatamente negro, também não era branco: era mulato, e reconhecer como próprio um filho de cor ter-lhe-ia arruinado a carreira política. Depois, passados dois anos, nasceu uma irmãzinha que foi chamada Joana em homenagem ao pai, também ela mulata. Passaram seis anos e, talvez por remorso, talvez porque já se havia firmado politicamente, o pai decidiu dar aos dois filhos seu sobrenome, colocando, porém, uma difícil condição: ambos os filhinhos deviam separar-se da mãe para seguirem com ele para Guaiaquil, no Equador, para onde fora transferido, porque os Porres, mesmo que mestiços, tinham direito a uma educação à altura do sangue nobre que corria em suas veias. A presença da mãe negra não teria ficado bem ao lado do homem político e devia permanecer sozinha em Lima. Para Ana foi um duro golpe, mas aceitou para o bem dos filhos. Além do mais, naqueles tempos e naquele ambiente, uma mulher de cor negra não tinha nenhuma possibilidade de escolha. Nessa época Martinho tinha 8 anos e Joana 6. Permaneceram no Equador por mais cinco anos, recebendo uma acurada formação escolástica e humanística, até o momento em que o pai foi nomeado governador do Panamá e, passando por Lima, confiou a filha a seu tio Dom Diego de Miranda e Martinho à própria mãe com a obrigação de fazê-lo estudar, ao passo que ele não deixaria faltar o dinheiro necessário.

Martinho e a mãe Martinho, inteligentíssimo, percebia bem a situação de sua mãe e seu relacionamento com ela foi sempre muito terno e profundo. Ana, constrangida a viver sempre de maneira silenciosa e sem evidência, devido à cor da sua pele, encontrava na fé a força para conservar intacta sua dignidade de mulher e pôs seu filho em contato com homens ilustres pela santidade e doutrina como o


São Martinho de Lima

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bispo da cidade, Turíbio de Mongrovejo, ou os frades Francisco Solano e João Massias: eles tinham a visão certa das relações entre os homens, sem se deter diante da cor da pele ou do poder econômico. Martinho encontrou-se muito bem junto deles e começou a pensar em como fazer para lhes seguir o exemplo. Enquanto isso, freqüentava a farmácia do casal Mateus Pastor e Francisca Vélez Michel que o amavam como a um filho e lhe transmitiam todos os segredos da medicina que conheciam; depois passou para a loja de Marcelo Rivera, onde se tornou um valente “cirurgião”, isto é, barbeiro e cirurgião ao mesmo tempo, como se usava naquele tempo.

O cirurgião de Lima Tinha sempre gostado da medicina e agora a exercia com habilidade e sucesso e, embora muito jovem, tornou-se o melhor cirurgião de Lima com grande satisfação do pai que via coroado com sucesso seu empenho em fazê-lo estudar. Agora Martinho honrava o nome dos Porres e podia juntar uma boa fortuna, mas ele não era ávido por dinheiro. Desde pequeno, freqüentando os palacetes dos nobres e os casebres dos pobres, havia aprendido a conhecer a distância existente entre espanhóis, índios, mulatos e negros. Havia presenciado a avidez de tantos nobres que espezinhavam os mais sagrados direitos para enriquecer e conhecia também o tormento de alguns deles – como o seu pai – escravos de normas impostas pela sociedade dominante. Fascinavamno os exemplos de homens como o bispo Turíbio e os padres franciscanos e dominicanos que tinham a coragem de defender os pobres – não importando a cor que tivessem – e de proclamar que todos são filhos de Deus e todos têm os mesmos direitos.

Frei Vassoura Aos 15 anos, já cirurgião afamado, pediu para entrar para o convento dos dominicanos de Nossa Senhora do Rosário. Primeiramente foi admitido só como “oblato”, porque, sendo filho ilegítimo, não podia por lei canônica fazer parte da ordem. Oblato queria dizer, na prática, servo, dedicado aos trabalhos mais humildes da casa e por isso foi chamado de frei Vassoura. Quando o pai teve conhecimento ficou furioso, fez tudo para dissuadilo, mas inutilmente porque Martinho queria dispor livremente da sua vida. No convento não usava só a vassoura, mas também o bisturi de cirurgião com


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grande sucesso tanto com os frades como com pessoas que vinham de toda parte da cidade e também de longe. Sua cela no andar térreo, bem diferente das habitações dos frades, tornou-se seu quartel-general, para onde acorriam pessoas de todo gênero, dos pobres famintos aos doentes, dos eclesiásticos à procura de conselhos até o mesmo vice-rei que o havia escolhido como seu conselheiro, dando-lhe em troca ajudas econômicas substanciais para suas obras de caridade que na cidade faziam mais bem que todas as organizações da assistência pública. De fato Martinho, sem ter programado nada, encontrou-se na obrigação de instituir e manter uma mesa para os pobres, uma escola para rapazes (a primeira da América Latina para meninos pobres) e um hospital que, iniciado com alguns pequenos locais no edifício do convento, fora transferido para a casa que sua irmã Joana havia recebido do pai e que ele havia adaptado para esse objetivo. Mas onde frei Vassoura obtinha as forças para uma vida evangélica tão ativa e profunda? Ele não nos deixou escritos, mas alguns episódios da sua vida são significativos a esse respeito. Havia compreendido de maneira clara que em todo homem, especialmente no pobre, existe uma presença particular de Deus. Se durante o dia estava em contemplação diante de Cristo presente no homem, de noite passava horas inteiras diante do seu Senhor presente na Eucaristia e freqüentemente foi favorecido com graças particulares de luz, como quando foi convidado a colocar seus lábios no costado aberto do Salvador. Com esta luz, que partindo do Crucificado lhe inundava a alma, Martinho valorizava a dor de todo sofredor e com sua arte médica e sua palavra sábia curava-lhes o corpo e a alma. Diante das virtudes de frei Vassoura e da estima que já gozava em todos os ambientes da cidade, os padres dominicanos obtiveram a dispensa canônica para que pudesse fazer sua profissão solene na Ordem de São Domingos. A proposta o surpreendeu e ele opôs uma certa resistência: tornando-se dominicano com tanta solenidade, não se afastaria sequer um pouco dos últimos, dos prediletos de Jesus? Aceitou por obediência, mas continuou a viver como oblato, a serviço de todos. Em certa ocasião, o convento chegou a se encontrar em situações econômicas tão precárias que correu o perigo de ser fechado. Martinho sabia o que isso representava para a cidade, sobretudo para os pobres índios, negros e mestiços. Ofereceu-se então para ser vendido como escravo e com isso saldar a dívida. Quem não o teria comprado pagando-o a peso de ouro?


São Martinho de Lima

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Felizmente a proposta não foi aceita e a Providência pouco depois veio em socorro dos frades. Uma tentativa de levá-lo de Lima para outro lugar foi feita por Feliciano de Vega quando foi nomeado arcebispo do México. Depois que o fradinho o havia curado de uma pleurite, o prelado convenceu os dominicanos a deixar Martinho partir com ele para o México, também para subtraí-lo – dizia-lhes – do perigo de envaidecer-se devido à estima que gozava em Lima. A tentativa, porém, não obteve resultado, porque Martinho nesses dias foi atingido por uma febre tifóide que o levou para o túmulo. Era esse o dia 3 de novembro de 1639 e ele tinha 60 anos de idade. Para o povo morrera um santo, como a Igreja reconhecerá solenemente um dia.

Símbolo do povo latino-americano São Martinho de Lima é muito importante para o povo latino-americano, representando a melhor síntese da experiência vivida pelos habitantes deste continente depois da chegada dos europeus. Martinho é um mulato, como o são hoje muitos milhões dos seus habitantes, formados nestes cinco séculos do encontro-desencontro entre nativos índios, escravos provenientes da África negra e europeus conquistadores e imigrantes. Martinho estava consciente da sua origem, mas não sentia vergonha disso. A fé havia penetrado tão profundamente no seu próprio ser a ponto de lhe dar uma grande liberdade de espírito junto com a clara consciência de que os homens, não obstante a cor da sua pele, diante de Deus são todos iguais. Escolheu ser religioso, mas não quis ser sacerdote. Era dotado de uma grande inteligência e, depois do seu encaminhamento para os estudos por instâncias de seu pai, aprofundou por sua própria conta o conhecimento da fé estudando a Summa theologiae de Santo Tomás de Aquino e ajudando os estudantes que a ele recorriam para que lhes explicasse páginas difíceis de Santo Tomás. Ele explicava melhor que os professores porque usava uma linguagem não-acadêmica, mas vivencial. Era filho de um cavaleiro espanhol, mas sentia-se feliz por apresentar sua mãe negra; recebia e aconselhava o vice-rei, mas o fazia esperar fora da porta se estava atendendo um pobre escravo. Com muita justiça, em 1939 o governo do Peru quis honrá-lo como o primeiro cidadão peruano que, antecipando os tempos, havia enfrentado o problema social do seu povo. Ainda hoje continua a proclamar ao mundo que


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todos os homens e mulheres do mundo são irmãos e irmãs, e que a variedade da cor da pele não foi criada por Deus para a discriminação, mas – como a variedade das flores – para tornar mais bela a convivência humana.

4 de novembro São Carlos Borromeu bispo (1538-1584) “Todas as vossas coisas sejam feitas na caridade, assim poderemos superar todas as dificuldades que inumeráveis devemos experimentar dia após dia; e assim teremos as forças para gerar Cristo em nós e nos outros.” 2

Estas palavras não só ecoam como um testamento na boca de São Carlos Borromeu, tendo sido pronunciadas por ele no último sínodo diocesano, mas revelam também a santidade alcançada por um homem que por caráter era levado mais à severidade do comando que à doçura da persuasão. Seus genitores, Gilberto Borromeu e Margarida de Medici, eram proprie­ tários da fortaleza de Arona e das terras em torno do Lago Maggiore, na Itália do norte. Pessoas nobres e muito benquistas, porque Gilberto tratava bem seus serviçais, dependentes e Margarida, pessoa profundamente religiosa, inteiramente dedicada à família e aos pobres, não o era menos. Em Arona nasceu primeiramente Frederico, seguido de Carlos a 2 de outubro de 1538 e de outras quatro filhas.

Destinado à carreira eclesiástica Segundo o costume do tempo, Frederico estava destinado a continuar o nome da família, ao passo que Carlos devia empreender a carreira eclesiástica. Se a vocação para essa vida não o atraísse, devia procurar um jeito de fazer fortuna; e por este motivo, aos 7 anos, já estava incluído dentro no clero milanês. Para as meninas devia-se procurar um bom partido no matrimônio,

2. Do discurso pronunciado por São Carlos no último sínodo diocesano, presidido por ele, na sua arquidiocese de Milão. Cf. Acta Ecclesiae Mediolanensis, 1599, 1178.


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se não quisessem entrar para um convento. Eram problemas, estes, que naquele momento não interessavam aos meninos que cresciam em um clima de grande tranqüilidade. Infelizmente sua alegria foi perturbada pela morte prematura da mãe em 1547, uma tristeza que não durou muito tempo, porque o pai voltou a casar-se com a marquesa Taddea, que também tinha enviuvado, e ela para os filhos do conde foi verdadeiramente uma mãe. Aos 12 anos, Carlos foi nomeado comendatário de uma abadia de Arona, que rendia à tonsura do rapaz a maravilha de 2 mil escudos. Este, recebida a investidura, precipitou-se para o pai para comunicar-lhe que havia decidido gastar aquela dinheirama toda com os pobres. Aos 14 anos foi mandado para a Universidade de Pavia, tendo já completado brilhantemente os estudos preparatórios. Aos 21 anos era doutor in utroque jure, mas à festa não pôde estar presente seu pai que havia falecido no ano anterior, deixando em dificuldades econômicas a família, que apenas conseguira salvar a propriedade da fortaleza de Arona.

Secretário de Estado Desse problema foi informado Pio IV, irmão da mãe dos Borromeus, o qual chamou logo para Roma os dois sobrinhos e nomeou Frederico capitãogeneral do Estado Pontifício e Carlos, sendo eclesiástico, o tornou protonotário apostólico. Iniciava-se assim para o jovem Carlos a ascensão vertiginosa para os mais elevados cargos eclesiásticos. Pio IV, efetivamente, assim que se apercebeu das qualidades do sobrinho nomeou-o cardeal – mesmo que tivesse apenas 22 anos – e o associou a si no governo da Igreja, nomeando-o – como se diria atualmente – secretário de Estado. O sobrinho não desiludiu as esperanças do tio e se impôs à admiração e ao respeito de todos. Por mérito seu reabriu-se e se concluiu o Concílio de Trento (1562-1563); sob seu impulso os decretos conciliares foram logo aprovados pelo papa e foi criada a congregação do Concílio para sua aplicação nas dioceses. Carlos havia se inserido muito bem na vida romana. Jovem correto e de mente aberta, amava a arte e a cultura e, embora submergido nas ocupações, encontrou tempo para fundar uma academia chamada “Noites Vaticanas”, onde reunia seus amigos mais cultos. Não desdenhava a caça, o jogo dos dados, as recepções solenes, e gostava de tocar alaúde e violoncelo. Gostava muito de seu irmão e de suas irmãs, interessando-se pessoalmente por arranjar-


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lhes ótimos matrimônios. Duas coisas, porém, era preciso admirar no jovem cardeal: sua vida privada era moralmente irrepreensível e no seu serviço ao lado do tio buscava o bem da Igreja. Em 1560 foi nomeado administrador da arquidiocese de Milão, uma diocese imensa que estendia sua jurisdição também sobre parte da Ligúria, do Vêneto e do Cantão Ticino. Para governá-la naquele momento devia-se pensar em um bispo vigário, porque a presença de Carlos, que além do mais não era ainda nem mesmo padre, era mais útil na cúria romana. Os rendimentos do jovem cardeal em Roma, com aqueles provenientes de Milão, somavam em 1563 a quantia de 48 mil escudos. Era de enlouquecer ter nas mãos todo esse ouro, quando uma triste notícia constrangeu Borromeu a refletir seriamente sobre o verdadeiro sentido da vida. O seu irmão mais velho, Frederico, que tanto amava, morrera imprevistamente e ele se tornava o herdeiro legítimo do nome e dos bens da família. Na cúria romana todos estavam convencidos de que, para recolher a herança familiar, teria abandonado o estado eclesiástico encontrando pleno apoio do papa que, dando-lhe as necessárias dispensas canônicas, o teria empregado em outros encargos bem pagos no Estado Pontifício.

A escolha evangélica Mas a decisão do jovem cardeal surpreendeu a todos. Depois de ter feito um curso de exercícios espirituais sob a direção de um santo jesuíta, o padre Ribera convenceu-se de que, se Deus o havia levado para Roma e lhe havia confiado tarefas tão delicadas na Igreja, ele devia renunciar de maneira radical e definitiva ao mundo e seguir os exemplos de homens exemplares como Caetano de Thiene, Inácio de Loyola e Filipe Néri. Decidiu, portanto, fazer-se ordenar sacerdote renunciando ao mesmo tempo a todas as atividades mundanas, mesmo que moralmente lícitas. Seu tio ficou contente, mas quando se apercebeu da severidade com que o sobrinho conduzia sua nova vida censurou-o por ser “teatino demais”! Dos teatinos, de fato, tomou o amor pela humildade e, mais tarde, suprimirá do seu brasão de família os sinais da força e do poder para fazer triunfar somente a escrita humilitas. Dos jesuítas, ao invés, aprendeu a obediência absoluta à Igreja e o empenho em fazer que as leis fossem obedecidas por seus súditos. Também são Filipe Néri teve uma certa influência sobre sua personalidade, convidando-o a abrandar com a caridade pastoral o caráter muito decidido e às vezes quase inflexível.


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Tendo-se tornado padre por livre escolha em julho de 1563 e tendo tomado a sério uma vida evangélica, devia agora aceitar-lhe as conseqüências. Não havia ele lutado para que o Concílio de Trento obrigasse os pastores a residir nas suas dioceses e a tomar a seu cuidado diretamente o clero e os fiéis? Devia tomar também ele o seu posto. A 7 de dezembro de 1564, festa de santo Ambrósio, foi ordenado bispo e no janeiro seguinte recebeu o pálio arquiepiscopal: todas elas etapas preparatórias para assumir diretamente o governo da sua arquidiocese. Como bom diplomata que era, entendia que primeiro era necessário organizar bem, também quanto ao futuro, as coisas em Roma. Ao tio idoso e doente era preciso providenciar um sucessor. Convenceu-o a nomear novos cardeais, todos favoráveis à reforma na Igreja e à aplicação do Concílio Tridentino, de modo que elegessem um papa que continuasse a obra de renovação. Feito isto, pediu ao tio que o mandasse temporariamente para Milão como legado papal para presidir o concílio provincial que os bispos da região celebravam e encaminhar com eles a aplicação das normas conciliares. O Papa aceitou e Carlos Borromeu, realizada sua primeira visita à diocese, apenas teve tempo de retornar para Roma e assistir o tio que expirou entre seus braços no dia 9 de dezembro de 1565. No conclave que se seguiu, Carlos dispunha de dois terços dos votos e teria podido fazer-se eleger Papa, mas não quis; aos seus amigos pediu somente que escolhessem um Papa disposto a pôr em realização as reformas previstas pelo concílio. Foi eleito São Pio V. A missão de Carlos Borromeu em Roma estava concluída e ele podia partir definitivamente para Milão.

Sobre as pegadas de Ambrósio Na sede de Santo Ambrósio sua atividade não teve descanso. Ele era um organizador tão extraordinário e um trabalhador tão incansável a ponto de fazer são Filipe Néri exclamar: “Mas este homem é de ferro!” Já havia escolhido como vigário-geral um bispo piedoso e instruído, Niccolò Ornameto, que compartilhava de maneira plena sua vontade reformadora e que, ainda antes de sua chegada a Milão, havia organizado o seminário para a formação do clero e a reforma dos mosteiros femininos e masculinos. Usando do seu ascendente e dos seus conhecimentos, Borromeu cercouse de homens capazes e exemplares tomando-os onde os encontrasse, a ponto de merecer uma fraterna e simples admoestação do seu amigo Filipe Néri que, mesmo


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encorajando-o no seu trabalho de reforma, devia apresentar-lhe as queixas que o seu modo de agir estava provocando um pouco por toda parte: “A (sua) Senhoria Ilustríssima” – escreveu-lhe – “tem fama não só de ser zeloso pelos seus interesses, mas também de maroto, porque é empreendedor e insinuante no tratar com os superiores gerais das ordens religiosas para tomar para si as pessoas peritas”. O amigo queria dizer-lhe: “Vá em frente, mas com cuidado, não saia fora dos trilhos...”. A repreensão fraterna foi bem aceita por Borromeu; sem diminuir sua marcha, esforçou-se por colocar um pouco mais de óleo nos mecanismos da sua visão diplomática.

Santo, mas também estrategista Como bravo estrategista, dividiu a arquidiocese em doze circunscrições eclesiásticas: seis para a área citadina e seis para a área camponesa. A parte rural, onde os centros habitados eram distantes uns dos outros, foi subdividida em vicariatos forâneos, de modo que a ação pastoral pudesse chegar a todos. Cada paróquia devia, pois, organizar a catequese e por isso ele facilitou o surgimento das “escolas da doutrina cristã” que chegaram ao número de setecentos e quarenta, cobrindo quase todas as paróquias, com 50 mil inscritos entre alunos e mestres. Todo pároco, pois, além dos tradicionais registros de arquivo, devia compilar também o livro do “estado de almas”, onde se registrava o recenseamento dos habitantes e sua posição na Igreja, e se anotava a história da paróquia e as atividades das várias organizações ou associações eclesiais. O “estado de alma” devia ser a radiografia da comunidade, que o bom pastor devia ter sempre diante dos olhos para poder realizar com boa visão suas intervenções, empregando todas as forças vivas à sua disposição. Certamente um dos capítulos mais importantes da atividade de Carlos Borromeu foi a formação do clero, que ele queria solidamente preparado no campo intelectual e espiritual. Fundou em Milão o seminário maior, confiando sua direção espiritual aos padres jesuítas, todavia com a obrigação de não recrutar candidatos para a Companhia entre os clérigos do seminário. Quando percebeu que os sacerdotes diocesanos estavam maduros para assumir a tarefa de formadores, dispensou os jesuítas da direção e colocou aí os “oblatos de Santo Ambrósio”, um instituto sacerdotal diocesano que continua ainda hoje. Instituiu também numerosos seminários menores em Como, em Bérgamo, em Arona e na Suíça no Cantão Ticino. Fundou também um seminário para vocações adultas e um outro para preparar sacerdotes para as pequenas paróquias da área rural onde eram suficientes pastores de costumes sadios e de boa formação catequética, sem pretender deles uma formação intelectual de nível universitário.


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Pastor no meio do seu povo Carlos Borromeu, mesmo sendo um hábil organizador, não se contentou em comandar do seu quartel-general, mas foi um pastor no sentido mais concreto da palavra, visitando pessoalmente as paróquias e mantendo contato direto com os seus padres e com o povo. Apenas um ano depois do ingresso na diocese, em 1566, começou a visita pastoral, iniciando com as paróquias das cidades no tempo quaresmal e prosseguindo um ano depois com as paróquias rurais durante o verão por motivo de viabilidade. Como se desenvolvia a visita pastoral? Alguns dias antes um delegado do arcebispado e um grupo de sacerdotes iam para a paróquia e iniciavam uma espécie de missão pregando para o povo, convidando-o para a confissão, resolvendo problemas morais que não tinham necessidade da intervenção do bispo e dando o último retoque na preparação dos jovens para a crisma. Na igreja se expunha solenemente o Santíssimo Sacramento para a adoração das “Quarenta horas” e em toda a comunidade se vivia um clima de oração e de expectativa. Quando o bispo chegava, era recebido processionalmente na entrada da localidade e ele a pé se dirigia como um peregrino para o templo. Aí celebrava a santa missa, fazia o discurso programático, administrava a crisma e distribuía pessoalmente a comunhão. Nos dias seguintes encontrava-se com os representantes da população: os chefes de família, os responsáveis pelas associações religiosas, os chefes dos artesões e as autoridades civis. Com eles examinava a vida cristã da paróquia nos seus vários aspectos: da educação dos filhos na família até a vida dos mosteiros, da administração dos bens eclesiásticos às das obras caritativas. Todo paroquiano, pois, podia conversar diretamente com o bispo, também porque isso gerava maior submissão ao clero e aos notáveis que às vezes lhe experimentavam a severidade, o que não acontecia ao povo simples que lhe admirava a simplicidade. Os párocos, envolvidos em primeira pessoa em toda esta atividade, eram conhecidos na sua capacidade de pastores e recebiam as oportunas diretrizes. O bispo queria também ver pessoalmente os 47 livros e registros paroquiais que cada pároco devia ter em ordem e bem atualizados.

Promotor do laicato Carlos Borromeu, mesmo dando uma grande importância ao papel do clero segundo as diretrizes tridentinas, deu igualmente um forte impulso –


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como era possível no seu tempo – ao apostolado dos leigos, não só no campo estritamente religioso como no campo das associações leigas, mas promovendo para eles o mundo da cultura. Se em Roma havia fundado as “Noites Vaticanas” e havia dado impulso aos estudos de arqueologia, merecendo a seguir o título de co-fundador dessa disciplina, na sua província eclesiástica favoreceu o surgimento de vários centros de estudo e de numerosos colégios mantidos por religiosos, especialmente teatinos e jesuítas. Como arcebispo fundou em Pavia o “Almo Collegio” que ainda hoje traz o seu nome e em Milão a Universidade de Brera com as faculdades de letras, filosofia e teologia. A ação pastoral de Carlos Borromeu não se deteve dentro dos limites da arquidiocese de Milão, onde celebrou cerca de onze sínodos diocesanos, mas teve sua benéfica influência também sobre as quinze dioceses do Piemonte, da Lombardia e da Ligúria, das quais ele era metropolita. Nelas fez suas visitas canônicas e para elas organizou seis concílios provinciais sempre visando à aplicação do Concílio Tridentino. Sua obra de reforma encontrou também oposições tanto no campo religioso por parte de algumas ordens religiosas quanto de algumas autoridades civis. Um frade da Ordem dos Humilhados disparou-lhe um tiro de fuzil enquanto estava em oração na sua capela particular, mas Borromeu saiu ileso, aumentando a admiração dos diocesanos que viram no triste episódio uma intervenção miraculosa e uma confirmação do alto à sua linha pastoral reformista. Por ocasião de um carnaval desentendeu-se também com o governador espanhol da cidade, mas, na queda do braço de ferro, o arcebispo teve a melhor, porque até mesmo a mulher do governador proibiu aos seus filhos de participar das festas mundanas organizadas pelo pai.

Anjo entre os atacados pela peste Mas o afeto do povo pelo seu pastor atingiu o ápice durante a peste que grassou em Milão em 1576. Assim que se esparramou a notícia do aparecimento da terrível doença, o governador da cidade fugiu com toda sua família, enquanto o arcebispo Borromeu, que se encontrava em visita pastoral fora da cidade, apressou-se a retornar e começou logo a organizar os socorros, empenhando todos os recursos da diocese e vendendo até mesmo o principado de Oria, na Apúlia, que fazia parte do seu patrimônio familiar. Nesse apuro, tão doloroso para os milaneses, seu arcebispo foi o único ponto de referência e de conforto. Ele publicou um diretório para a assistência aos atacados de


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peste e ele próprio, além de empenhar os bens materiais, se colocou entre os doentes para assisti-los e confortá-los. Sua dedicação era tal a ponto de suscitar as preocupações do papa que temia pela sua saúde. A peste foi superada e Milão retomou sua vida normal, mas a vida de Borromeu já estava minada pelas fadigas suportadas sem descanso. Estava fazendo os exercícios espirituais no Sacro Monte de Varallo, aqueles exercícios que em Roma lhe haviam inundado a alma de luz assinalando a virada decisiva da sua vida, quando foi surpreendido por uma febre persistente. Quis voltar para Milão, enfrentando uma viagem incômoda e morreu poucos dias depois na sua sede, a 3 de novembro de 1584. A 1º de novembro de 1610 Paulo V declarou-o santo, apresentando-o como modelo a todos os pastores da Igreja.

10 de novembro São Leão Magno papa e doutor da Igreja (390/400-461) “Imita o bom pastor, que vai em busca das ovelhinha e a coloca sobre seus ombros... No teu zelo pelo serviço de Deus comporta-te de maneira tal que aqueles que de qualquer maneira se tenham desviado da verdade, tu os ganhes para Deus com as orações da sua Igreja. O misterioso edifício da fé não permite mudança de sorte; por verdadeira e solícita guia das almas reúne-as todas sob o teu teto.” 3

O papa Leão I escrevia esta carta a 18 de agosto de 460, um ano antes da sua morte, e a dirigia a Timóteo, eleito bispo de Alexandria do Egito, depois de um período turbulento em toda a cristandade daquele país. Os conselhos fraternos que lhe oferece são o espelho da sua vida: ele foi verdadeiramente o bom pastor que nunca se enfureceu contra as ovelhas rebeldes, mas sempre usou da mais terna caridade para trazê-las para o redil. Seu princípio era: “Mesmo quando deves corrigir, salva sempre o amor”. Nasceu entre o ano 390 e o 400 de uma família de origem toscana, recebeu uma ótima educação em Roma tanto no campo dos estudos quanto no da vida 3. Carta de são Leão Magno a Timóteo, neo-eleito bispo de Alexandria.


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cristã. Bem cedo estava ao lado do papa Celestino I como arquidiácono. O pontífice lhe confiava não só a administração dos bens da Igreja romana, mas também importantes missões junto das Igrejas irmãs. A própria corte imperial recorreu ao arquidiácono Leão, enviando-o para a Gália para servir de mediador no dissídio deflagrado entre o general Ézio e o senador Albino, e evitar assim a guerra civil. Encontrava-se exatamente na Gália para cumprir esta missão de paz, quando lhe chegou a notícia da morte de Celestino I e da sua nomeação para sucessor de Pedro. Os historiadores do tempo assinalaram que, contrariamente às experiências passadas, a eleição aconteceu em um clima de “admirável paz” e os romanos souberam aguardar o retorno do escolhido com outra tão “admirável paciência”. Tendo entrado em Roma, foi consagrado bispo a 29 de setembro do ano 440. Eram tempos particularmente tormentosos: os povos latinos estavam ameaçados pelas contínuas incursões dos assim chamados bárbaros que, como os gafanhotos das pragas do Egito, se atiravam de improviso sobre regiões do velho Império Romano, saqueando cidades, incendiando campos, esparramando terror e morte, e difundindo epidemias. Também no interior da Igreja estava sendo colocada em perigo a unidade da fé com três heresias principais: o maniqueísmo na África e até mesmo em Roma, o monofisismo no Oriente e o priscilianismo na Espanha. A autoridade imperial, impotente diante do fenômeno das violentas migrações dos novos povos, continuava a intervir nas controvérsias doutrinais, aumentando a divisão dentro da Igreja.

Bispo de Roma Leão era um homem sábio, objetivo e enfrentou a problemática do seu tempo com mente lúcida e coração de pastor. Tinha um elevado conceito da sua missão como bispo de Roma e como pastor universal. Roma era para ele “a cidade que Pedro havia evangelizado mais que todas as outras” e, portanto, devia brilhar como “nação santa, povo escolhido, cidade sacerdotal e régia”: as outras Igrejas tinham o direito de encontrar aí um modelo de vida cristã. Para esse objetivo Leão dedicou todas as suas energias no cuidado da sua diocese. O primeiro dever do bispo é pregar e ele aproveitava todas as festas litúrgicas para instruir o povo. Escrevia suas prédicas em um estilo simples e digno, profundo pelos conteúdos e compreensível na linguagem, mas


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sobretudo tocava sempre argumentos vitais e de atualidade, incidindo sobre a vida concreta de cada um. Era verdadeiramente um formador de consciências, ouvido com prazer e seguido com empenho, também porque o que dizia eram coisas que já se viam encarnadas na sua vida. Por ocasião do aniversário da sua consagração para bispo na Sé de Pedro, reunia ao redor de si não só os fiéis de Roma, que instruía com uma oportuna homilia sobre o primado de Pedro, mas também todos os bispos suburbicários e aqueles da sua jurisdição de metropolita, que se estendia da Toscana até a Sicília, a Sardenha e a Córsega. Com eles estreitava a unidade da fé em um clima de grande fraternidade e tratava de todos os problemas referentes às suas Igrejas. Na cidade de Roma chegou a eliminar o maniqueísmo e os resíduos de práticas pagãs, convertendo-as em festas cristãs. Por exemplo, a festa da cátedra de São Pedro substituía a festa pagã dos Jogos Apolinários; a festa das Coletas – uma coleta extraordinária de dinheiro ou de bens in natura para as necessidades dos pobres – substituía a Cara Cognatio, uma festa pagã para recordar os mortos.

Defensor da cidade O bispo de Roma precisou assumir responsabilidades que por si mesmo competiam ao império, mas, diante do avanço dos hunos, a corte imperial do Ocidente havia se refugiado em Roma e se sentia impotente. O papa foi pessoalmente ao encontro do terrível Átila que descia do norte, diretamente para Roma. O encontro aconteceu em Mântua e Átila aceitou retirar-se para além do Danúbio. Um fato incrível! Até hoje os historiadores tentam encontrar uma explicação humanamente plausível. O fato é que Leão não lhes ofereceu dinheiro nem outras vantagens e eles inexplicavelmente retomaram o caminho de volta para o seu país. Roma foi salva e a Itália voltou a respirar. Mais tarde em uma outra ocasião, quando Genserico, vindo da África com os seus vândalos, se aproximou de Roma, Leão não conseguiu detê-lo, mas conseguiu que não entrasse em Roma a ferro e fogo, e se retirasse depois de ter depredado o necessário para saciar a fome de espólio de guerra dos seus soldados.

Pastor universal Leão estava consciente da sua missão de pastor de toda a Igreja. Já no dia da sua eleição tinha afirmado: “Como continua valendo para sempre aquilo que Pedro acreditou de Cristo, assim dura para sempre aquilo que Cristo pôs em Pedro”.


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Esta consciência do seu papel não o ensoberbecia, porque sabia distinguir bem entre a elevação da tarefa e a pessoa que a cumpre. Ele vê a sua tarefa como um empenho a amar mais: “Nós tornamos nosso o cuidado de todos e participamos da tarefa de guiar cada um; do mundo inteiro de fato refugiamse na sede de Pedro e todos aguardam do bispo de Roma o amor à Igreja universal assim como a Pedro foi recomendado pelo Senhor”. Para realizar bem essa sua tarefa ele queria estar a par da vida de todas as Igrejas e por isso em cada região pôs um vigário apostólico: o bispo de Arles para as Gálias e o bispo de Tessalônica para o Oriente. Para manter as boas relações com o imperador de Constantinopla, nomeou junto dele um seu representante, que mais tarde se chamará apocrisário e constituirá a semente das nunciaturas apostólicas. Suas intervenções nas Igrejas aconteceram sempre a pedido e foram muito prudentes. Suas cartas, muito claras e bem estudadas, resolviam os problemas pela raiz e doutrinalmente constituíram regras de fé pela sua fidelidade à sã tradição. Assim aconteceu com a carta a Turíbio de Astorga, na Espanha, sobre o priscilianismo. O Papa com uma clareza invejável refutou ponto por ponto a doutrina dos priscilianos. Para Rústico, bispo de Narbonne, na Gália, que lhe havia pedido que o exonerasse do cargo, respondeu infundindo-lhe coragem: “Desagrada-me que a tua caridade esteja cansada com a multidão dos escândalos, a ponto de desejares a libertação dos pesos do episcopado. Desejas passar a vida no silêncio e no repouso, em vez de permanecer agarrado aos deveres que te são confiados. Mas o Senhor disse: ‘Bem-aventurado quem persevera até o fim’. De onde virá para ti o bem da perseverança se não da virtude da paciência? (...) Quem guiará o navio entre as vagas do mar, se o timoneiro abandonar o seu posto? (...) A justiça deve ser mantida com constância (...) A clemência oferecida amorosamente (...). Cristo é a nossa força e o nosso conselho e sem ele nós não podemos nada, mas com ele tudo podemos”. As cartas eram sempre redigidas em duas cópias originais: uma para o destinatário e outra para o arquivo do Papa, porque muitos outros bispos lhe pediam cópias autênticas. Mas a intervenção mais famosa foi sem dúvida aquela da carta chamada Tomus ad Flavianum [Carta a Flaviano], bispo de Constantinopla. Para resolver a controvérsia de Eutíquio, o papa havia aceito, de acordo com o imperador, convocar um concílio. Para lá mandou três dos seus legados: um bispo, um padre e um diácono. Eles deviam presidir o concílio em nome do Papa e


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tornar conhecidos de todos a carta que o Papa havia enviado a Flaviano e da qual eles eram os portadores. O concílio se reuniu em Éfeso, mas o patriarca Dióscoro, imposto em Alexandria pelos monofisitas depois que haviam matado o bispo legítimo, com o apoio do imperador, tomou em suas mãos a direção do concílio, maltratou até a morte o bispo de Constantinopla, impediu a leitura da carta do papa e aprovou a doutrina de Eutíquio. O concílio não foi reconhecido e o Papa o apelidou de “latrocínio de Éfeso”: mais que uma reunião de bispos, foi um assalto de bandidos. Todavia, o triste episódio teve conseqüências dolorosas, porque alimentou a revolta dos monges na Palestina e no Egito, perpetuando nas Igrejas do Oriente uma confusão sem fim. Só depois da morte do imperador Teodósio II com a nomeação do imperador Marciano foi possível reunir uma outra assembléia de bispos na Calcedônia. O Papa não podia intervir, porque a Itália estava sob a pressão dos hunos, mas também desta vez mandou seus legados, que presidiram o concílio em nome do Papa, e quando se tratou da questão de Eutíquio foi lido o Tomus ad Flavianum. Mansi traz algumas impressões dos padres conciliares logo depois da leitura do documento papal: “Eis a fé dos padres, eis a fé dos apóstolos! Nós todos cremos assim, os que têm a fé certa crêem assim! Anátema a quem crê de maneira diferente! Pedro falou pela boca de Leão! Leão ensinou segundo a piedade e a verdade!” O concílio, além das definições doutrinais, estabeleceu alguns cânones disciplinares, entre os quais o famoso cânon 28 que atribuía à sé de Constantinopla, “segunda Roma”, uma preeminência sobre as outras Igrejas do Oriente. O Papa – como haviam feito antes os seus legados – não aprovou esse cânon, salientando que a supremacia de uma Igreja não provém da importância política da cidade, mas da tradição apostólica que dá o primeiro lugar às Igrejas em que Pedro foi bispo: antes de tudo em Roma, onde ainda repousa; depois em Antioquia, onde esteve de passagem; e por fim em Alexandria, que fundou por intermédio do seu discípulo Marcos. Para que o imperador não se sentisse ofendido, escreveu-lhe: “Eu seria culpado se as disposições dos padres fossem lesadas com minha aprovação e se o desejo de um irmão tivesse para mim mais valor que o bem comum de toda a casa do Senhor”.


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Doutor da Igreja Por ocasião de sua morte, a 10 de novembro de 461, a paz reinava em toda a Igreja tanto no Oriente quanto no Ocidente. Ele deixava de presente aos vindouros como mestre os seus sermões e as suas cartas, como liturgista um novo missal, o Sacramentário leoniano, como construtor a renovação das basílicas de São Pedro e de São Paulo, e a edificação de outras igrejas e obras de utilidade pública, mas sobretudo uma Igreja recolhida na unidade ao redor do sucessor de Pedro em um momento histórico no qual a autoridade civil não conseguia mais manter unidos os povos do antigo Império Romano. A história lhe deu justamente o título de Magno, porque ele foi grande pela santidade da vida, pela defesa da verdadeira fé, pela sua sábia política e pelos seus escritos. Já João Cassiano, em um trabalho escrito por inspiração de Leão contra a heresia monofisita e a ele dedicado, dele havia dito “uma glória para a cátedra de Roma e para o serviço de Deus”. Em 1770, Bento XIV o incluiu entre os doutores da Igreja, um título bem merecido, porque há tempos ele exercia esse ofício através dos seus escritos. Tendo sido sepultado no átrio da basílica de São Pedro, mereceu um novo título: foi chamado Janitor arcis, sentinela posta por Deus para vigiar a defesa do carisma de Pedro.

11 de novembro São Martinho de Tours bispo (316-397) “Soldado por força, bispo por obrigação, monge por escolha.” 4

Parece uma história dos nossos dias aquela que Sulpício Severo, discípulo e contemporâneo do santo, narra de Martinho menino. Tinha apenas 10 anos quando fugiu de casa. Uma fuga inexplicável para seus pais, porque na família não lhe faltava nada. 4. Citado por: Lodi, E. I santi del calendario romano. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, p. 580.


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Queriam que fosse soldado Seu pai havia deixado a Panônia – a atual Hungria – para se estabelecer em Ticinum, a atual Pavia. Esse lugar de fato havia recebido, como recompensa pelo serviço prestado ao império na qualidade de tribuno, uma magnífica feitoria. Ora, os escravos cultivavam aquela terra fértil e lhe garantiam um rendimento não desprezível e a sua única preocupação era providenciar um futuro seguro para o filho Martinho, rapaz muito esperto, que certamente teria tido a honra de fazer uma bela carreira militar. Não sem razão o havia chamado de Martinho, pequeno Marte, deus da guerra. Parece, porém, que a profissão de soldado não atraía muito as simpatias do garoto, visto que logo quis colocar o seu nariz fora dos limites da propriedade paterna. Por felicidade sua encontrou uma família de cristãos que, depois de tê-lo acolhido e alimentado, notando sua contrariedade à proposta de voltar logo para casa, deram um tempo e o retiveram entre eles. Colocá-lo porta afora seria abandoná-lo a qualquer aventura desagradável e perigosa. Foi assim que Martinho conheceu um ambiente muito diferente daquele em que tinha vivido até esse momento. As relações entre as pessoas não eram como entre patrão e servos, e depois todos eram alegres. Descobriu que não só aquela família amiga, mas outras mais viviam assim: eram cristãos. Quis imitálos e tornou-se catecúmeno, assumindo a obrigação de viver o evangelho, de amar o único e verdadeiro Deus e o próximo. Depois, com delicadeza, seus amigos fizeram-no entender que era necessário, porém, voltar para casa, para não fazer morrer de um ataque do coração a sua boa mãe e o seu bom pai, que sob a couraça militar tinha também um coração de ouro. O rapaz deixou-se convencer e voltou para casa, mas já entrara no seu coração uma luz que o fazia sonhar em crescer rapidamente para realizar seus projetos. Ao retornar foi bem acolhido em casa, porque o pai considerou aquela fuga uma simples extravagância de adolescente que logo a disciplina militar teria apagado da sua memória. Aos 15 anos, segundo o costume do tempo, Martinho, filho de um tribuno, tinha a honra de vestir o uniforme de soldado para iniciar a prestigiosa carreira. Tentou novamente a fuga, mas inutilmente: desta vez foi recapturado e precisou submeter-se à lei romana que neste ponto não transigia. Mesmo contra a vontade, tornou-se legionário eqüestre, vestiu a armadura de metal, o elmo na cabeça, recebeu a espada e a lança e foi recoberto com uma maravilhosa clâmide branca inteiramente forrada por


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dentro de cândida lã de ovelha. Foi-lhe designado também um serviçal: um escravo a seu completo serviço.

O evangelho era levado a sério Designado para o corpo dos lanceiros de Sabaria foi mandado para as Gálias, em Reims, e depois para Amiens. Exatamente nesta última cidade o jovem soldado, no inverno de 338, uma noite, enquanto fazia a ronda, encontrou um pobre enregelado de frio. Sem pensar duas vezes, dividiu em duas partes sua clâmide e deu metade dela para o pobre. Não lhe haviam dito os cristãos que não existem mais nem escravo nem livre, porque todos somos um em Cristo? Se a lei o obrigava a servir como soldado, não podia impedi-lo de viver sua fé, quando o próprio imperador oficialmente a havia reconhecido verdadeira. Sulpício Severo narra que naquela mesma noite Jesus lhe apareceu revestido com o meio manto doado ao pobre. Não podemos verificar a historicidade da aparição, mas fica o fato de que Martinho, ainda catecúmeno, vivia a lei do amor, tratando de modo igual o escravo que o servia e ganhando sua estima e o respeito de todos, também do seu tribuno. Finalmente, durante a vigília pascal de 339, com a idade de 22 anos, recebeu o batismo, mesmo continuando ainda no exército por alguns anos. A oportunidade para abandonar a vida militar lhe foi oferecida quando sua legião estava para lutar contra as tropas dos francos. No dia antecedente à batalha, os legionários foram reunidos para receberem a gratificação pecuniária e para serem devidamente instruídos. Martinho não se apresentou para receber o dinheiro, sinal claro de que não queria combater. Foi logo aprisionado e, para sua felicidade, no dia seguinte os inimigos pediram para tratar da paz e tudo terminou em uma festa. Martinho foi colocado em liberdade e o seu tribuno deixou que fosse embora.

Sob a orientação de Santo Hilário Em 350 encontramo-lo em Poitiers para completar sua formação cristã sob a orientação do bispo Hilário. A figura deste pastor, homem sábio, defensor da verdadeira fé, admirador da virgindade, exerceu uma grande influência sobre o jovem Martinho que depois de seu convite aceitou ser ordenado exorcista.


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Com a bênção do seu bispo, Martinho tornou a visitar seus velhos pais na esperança de comunicar-lhes sua fé. A mãe compartilhou sua felicidade e se fez batizar; o pai, ao invés, mesmo respeitando sua escolha, não conseguiu convencer-se de ter acreditado toda a vida em uma religião falsa, mas surpreendeu-se de que a doutrina cristã, entendida sempre como fator de subversão da ordem pública, tivesse subido à cabeça de seu filho a ponto de fazê-lo abandonar a gloriosa carreira militar à qual ele honrosamente o havia encaminhado. Mas o que podia fazer, se até mesmo os imperadores já seguiam essa estranha novidade vinda do Oriente? Depois Martinho visitou sua cidade natal, Sabaria, onde há tempos havia chegado a fé cristã. Com sua surpresa, o bispo havia abraçado a heresia ariana. Ele procurou reconduzi-lo à verdadeira fé com os mesmos argumentos usados por Hilário, mas sem sucesso. Assim, seus concidadãos, instigados pelo bispo, maltrataram-no e o expulsaram da cidade. Retornando para a Itália, soube que também o seu bispo tinha sido expulso de Poitiers por causa dos hereges. Convenceu-se então de que o mundo pagão que ainda existia e aquele mundo herege que avançava seriam convertidos não tanto com a linguagem veemente das polêmicas, e sim com aquela mais convincente do evangelho vivido. Retirou-se por isso para a ilha de Galinara na costa da Ligúria para viver uma existência eremítica.

Sacerdote sim, mas para a gente simples Quando, porém, soube que Hilário havia retornado à direção da sua comunidade, correu novamente para Poitiers. Os dois narraram um ao outro tantas coisas sobre a vida atribulada da Igreja por causa de bispos mais interessados no apoio do imperador do que no cumprimento da missão que lhes era atribuída. Hilário propôs a Martinho que aceitasse o diaconato e depois o sacerdócio. Talvez o santo bispo pensasse em preparar seu sucessor. Martinho deixou-se convencer, mas com a condição de poder viver como asceta e dedicar-se à evangelização da gente simples do campo. Até aquele momento, de fato, o cristianismo havia se difundido sobretudo nas cidades ao longo das estradas consulares e havia obtido bons resultados tanto entre as classes humildes quanto entre os nobres e os letrados, e também pelo impulso dado já pelo favor imperial. Nos campos, ao invés, a massa dos camponeses e dos escravos permanecia fortemente ligada à religião tradicional e a sua evangelização se apresentava particularmente difícil.


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Martinho tomou a peito a situação dessa pobre gente e ao lado da paixão pela vida monástica alimentou também a paixão pela evangelização dos pobres. Sua experiência de monge-pastor foi retomada depois por outros, a começar por São Patrício, e obteve muitos frutos para a Igreja. Com este projeto no coração, de acordo com Hilário, retirou-se para a localidade de Ligugé a uma casa de campo de propriedade do bispo e que já funcionava como casa de formação – como se diria hoje – para os catecúmenos. Ali Martinho encarnava seu carisma de monge e ao mesmo tempo evangelizava os campos da vizinhança com muito sucesso, enquanto se difundia nos arredores sua fama de santidade.

Bispo por traição No ano 371 chegou um pequeno grupo de cristãos que lhe pediram que fosse com eles para visitar uma mulher que estava morrendo em um casebre no campo. Martinho seguiu-os com solicitude, mas durante a caminhada saíram das moitas homens armados que o intimaram a segui-los, explicando-lhe que tinham sido mandados pela comunidade cristã de Tours que, tendo ficado sem bispo, o haviam escolhido como seu pastor. Chegados na cidade dirigiram-se diretamente para a igreja onde junto com os fiéis já estavam também os bispos das cidades próximas chamados exatamente para a consagração do novo eleito. Não faltaram, porém, algumas contestações, sobretudo entre os bispos, que não entendiam digno do episcopado um monge rude na aparência e desleixado no vestir. Na realidade, e não era a aparência externa de Martinho, mas o seu modo de vida que lhes causava um certo incômodo, porque constituía uma censura tácita à conduta deles. Mas nenhum, nem os bispos nem o próprio Martinho puderam escapar da vontade do povo que na igreja continuava a aclamá-lo seu bispo. O neobispo, com 54 anos de idade e uma saúde de ferro, entregou-se logo ao trabalho, tendo um conceito bastante amplo, “novo e pessoal, até mesmo grandioso” da sua missão. Não se limitou ao território restrito de Tours, mas logo transpôs seus limites; e nem mesmo se trancou entre os seus aldeões, grosseiros e supersticiosos, que ele amava com imenso afeto, mas soube no decorrer do tempo mover-se e agir no vasto mundo político do império, viajando até a corte imperial de Treviri e evangelizando as cidades por onde passava. Mas para uma obra de evangelização séria são necessários homens e mulheres bem preparados na doutrina e na prática cristã. Martinho via os


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desastres da heresia como fruto da ignorância do clero e da aspiração dos clérigos em assimilar-se mais à classe dos nobres do que àquela dos discípulos de Cristo. Seguindo o exemplo de Eusébio de Vercelli, de Ambrósio de Milão e de outros bispos, tomou a peito o cuidado com a formação do clero. Se em um primeiro momento, deixando a ermida de Ligugé, pensou em habitar junto com alguns monges em uma pequena casa de madeira perto da sua igreja para estar próximo do seu povo, logo se apercebeu de que não teria podido desenvolver de maneira frutuosa seu ministério. Com o intuito de estrategista, ele fundou o mosteiro de Marmoutier em uma estupenda planície ao longo do rio Loire, distante duas milhas de Tours. As vocações não faltaram, até acorriam numerosas. O mosteiro não tinha uma regra escrita. Os monges habitavam em casebres de madeira ou em grutas naturais ou artificiais, muito numerosas naquele lugar. Contrariamente à tradição, eles não deviam se ocupar de trabalhos manuais, salvo aqueles indispensáveis para a sobrevivência, mas além dos tempos dedicados à oração, deviam sobretudo transcrever códices: a Sagrada Escritura, os escritos dos padres e vários comentários à Palavra de Deus. Sobretudo os jovens deviam especializar-se nessa tarefa, porque estava convencido de que só por intermédio da vida ascética e da instrução na fé a Igreja teria tido presbíteros e bispos à altura do seu ministério. Marmoutier de fato pode ser considerado um dos primeiros centros de formação do clero. Aqui se converteram e se adestraram na vida cristã Sulpício Severo e aquele famoso literato, Paulino, que depois se tornou bispo de Nola na Campânia. Parece incrível, mas foi exatamente um homem vindo da área militar e sem cursos superiores que deu um impulso extraordinário aos estudos. “E desde o início” – escreve acertadamente Régine Pernoud – “pode-se prever o que será a seguir o scriptorium de Tours, um dos mais célebres e importantes da alta Idade Média e, portanto, da época carolíngia”, ao lado daqueles de Corbie e de Bobbio que nasceram muito tempo depois. Também o sábio arcebispo de York, Alcuíno, quis se deter alguns dias em Marmoutier para admirar essa fonte de cultura.

Inventou as visitas pastorais Mas a ação pastoral de Martinho não se detinha no mundo monástico e na promoção da cultura. Ele inaugurou entre os bispos a prática, que


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permanece viva ainda hoje, das visitas pastorais. Sabia que o mundo camponês não se transformava facilmente, por estar inteiramente ocupado com as múltiplas tarefas rurais. Tomando então consigo dois ou três monges sacerdotes, encaminhava-se a pé ou a cavalo ou de barco para dirigir-se aonde encontrasse um aglomerado de casas ou uma simples feitoria. A presença dos monges atraía a curiosidade respeitosa de todos e Martinho tinha também a possibilidade de interessar-se pelos seus problemas, colocando-se a seu serviço com os seus conselhos, e depois anunciava o evangelho, a boa notícia que o Senhor havia destinado a todos, não apenas aos habitantes da cidade. Primeiramente, com muito tato, mas em certas ocasiões com muita energia, mostrava como as forças da natureza – aquelas que eles temiam e adoravam como divindades nas fontes, nas árvores e nos fenômenos atmosféricos – não eram outra coisa senão simples criaturas, colocadas a nosso serviço pelo único verdadeiro Deus, nosso Criador e nosso Pai. Quando em um lugar se formava um bom grupo de convertidos, ele aí deixava um dos seus companheiros para levar adiante a formação dos neófitos. Nasciam desse modo aquelas comunidades cristãs que no futuro se chamarão paróquias. Uma outra criação sua foi a fundação de pequenos mosteiros rurais, sobretudo masculinos, mas também femininos. Isso foi importantíssimo para o contato dos aldeões com o carisma dos monges, com vantagens para as duas partes: cresciam as vocações para o mosteiro e entre os cidadãos difundiam-se a fé e a cultura. Com esta sua atividade pastoral Martinho foi muito além dos limites materiais da sua diocese, não com o desejo de grandeza, mas por espírito missionário, ora tomando a iniciativa, ora respondendo aos apelos dos habitantes. Não invadia nunca o campo dos outros bispos, entrando sem convite nas suas cidades, mas o campo era terra de missão. Foi sobretudo com a difusão destas comunidades martinianas que aconteceu a evangelização da Gália rural nos séculos IV e V.

Defender os fracos Uma coisa Martinho não aceitava: a injustiça, a opressão, sobretudo aquela exercida por motivos políticos, ainda que revestida de aparente religiosidade. Entendia como seu dever de bispo defender os mais fracos, também diante dos poderosos.


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Máximo, depois de ter feito assassinar o imperador Graciano, usurpandolhe o posto, havia encarregado Aviciano, já vigário na África, de percorrer as Gálias e prender e matar todos os adversários políticos. O comissário imperial chegou a Tours arrastando com si uma multidão de prisioneiros, tendo já predisposto uma série de torturas com as quais os faria morrer. A cidade ficou estarrecida diante de tanta ferocidade. Martinho, de noite, apresentou-se no palácio do comissário e inverteu a situação. Ninguém soube o que é que ele disse a Aviciano, mas este não só não continuou sua feroz repressão, mas tornou-se amigo do bispo com grande alegria dos habitantes de Tours. Martinho, como Ambrósio, no momento oportuno, soube enfrentar também os imperadores. Reconheceu a tempo que os bispos e o imperador perseguiam Prisciliano da Espanha e os seus seguidores, acusando-os de heresia, não tanto por amor à reta fé, mas por aversão à sua vida ascética, que se opunha à vida dissoluta da corte e de muitos bispos. “Uma pessoa era declarada herege” – escrevia Sulpício Severo – “apenas com base na palidez do seu rosto e à pobreza das suas vestes, não com base em suas crenças”. Foi a intervenção firme do bispo de Tours que, mesmo se opondo à heresia, impediu que o imperador ordenasse um massacre de priscilianos na Espanha.

Morreu chegada a sua hora Aproximadamente no fim do ano 397, no outono, Martinho estava em visita pastoral em Candes, para estabelecer a paz entre os presbíteros daquela comunidade. Apenas havia terminado aquela missão, quando foi surpreendido por uma febre imprevista. Percebeu que estava para morrer. Foi-nos referido por Sulpício Severo este colóquio entre o bispo moribundo e os seus filhos espirituais. Seus discípulos, com voz unânime e chorando, suplicavam-lhe que pedisse a Deus a cura: “Sabemos que tu desejas encontrar-te com Cristo, mas os teus méritos estão garantidos e não diminuirão se forem diferidos. Tem, pois, piedade de nós e não nos abandones”. Martinho se comoveu e dirigindo-se a Deus orou: “Senhor, se achas que eu ainda sou necessário ao teu povo, não recuso o trabalho: faça-se segundo a tua vontade...”. Depois, voltando à sua linguagem militar, acrescentou: “Senhor, não recuso o trabalho, se tu me mandas continuar a vigiar o teu campo... A tua vontade, Senhor, é para mim um bem”. Mas já tinha chegado a sua hora e adormeceu no Senhor. A viagem dos restos mortais para Tours foi um triunfo, porque a multidão engrossava à medida que o cortejo se aproximava da cidade. Por sua vontade foi


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sepultado no cemitério comum e em terra nua, como convinha a um monge, mas logo sobre aquele túmulo surgia uma igreja e Martinho continuava através dos séculos a anunciar o evangelho vivo não só aos habitantes de Tours, da Gália, mas ao mundo inteiro. Foi, de fato, o primeiro cristão não mártir a receber as honras dos altares na Igreja do Ocidente.

12 de novembro São Josafá Kuncewycz bispo, mártir da unidade (1580-1623) “Vós me odiastes de morte, enquanto que eu vos trago todos no meu coração, e estarei contente de morrer por vós.” 5

Com estas palavras Josafá acolheu seus perseguidores que, completa­ mente armados, irromperam na casa episcopal de Vitebsk decididos a expulsálo. Eles atiraram-se contra ele e, depois de tê-lo maltratado barbaramente, acabaram com ele a golpes de machado, atirando o corpo no rio Dzwina. Era o dia 12 de novembro de 1623. Josafá nascera em Wolodymyr, em Volynia, na Ucrânia, de uma família nobre decadente de tradição ortodoxa. Na fonte batismal, os pais o chamaram João. Educaram-no na Ortodoxia e pensaram em fazer dele um comerciante de sucesso. Para este objetivo foi mandado para Vilna onde havia a possibilidade de aprender com sucesso a arte rendosa do comércio.

A praga da divisão religiosa Nessa cidade ele se apercebeu da divisão religiosa que existia no seu povo. A antiga Rutênia compreendia toda a região metropolita de Kiev e tinha recebido o evangelho dos gregos, permanecendo ligada eclesiasticamente ao patriarcado de Constantinopla durante longo tempo, mas depois com a subdivisão do principado de Kiev entre a Rússia e a Polônia, tinha sido subdividida também eclesiasticamente. 5. Citado por: Lodi, E. I santi del calendario romano. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, pp. 584-585.


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Na parte que permanecia sujeita à influência da Polônia existiam os latinos, que geralmente eram poloneses que tinham importado o rito deles, ao qual aderiam alguns nobres do lugar mais para agradar os patrões do que por livre escolha pessoal. Existiam, pois, os bispos e os fiéis de tradição ortodoxa que na conferência de Brest, em 1595, tinham aceitado a união com Roma e por isto se chamavam uniatas. E, finalmente, existiam todos aqueles que, não tendo aderido à união com Roma, permaneciam fiéis à sua antiga tradição ortodoxa. Entre os três grupos não havia grande entendimento, mesmo se a maioria do povo não entendesse nada desta divisão religiosa, pelo fato de que na celebração litúrgica os uniatas e os ortodoxos quase não se distinguiam.

Imerso na oração e no estudo Em Vilna, contrariamente às expectativas dos pais, João não se imiscuiu no comércio, sentindo forte atração para os estudos e para a vida religiosa. Freqüentemente se retirava sozinho para orar no mosteiro basiliano da Santíssima Trindade, embora esse mosteiro atravessasse uma situação de decadência por falta de vocações. Teve também a ventura, naquele período, de encontrar os jesuítas que muito o ajudaram nos estudos. Encontrando-se no meio de cristãos em luta, João quis aprofundar sua fé com o estudo e a oração e chegou à convicção de que a unidade com o sucessor de Pedro fazia parte da tradição dos padres. Convenceu-se também de que o povo rutênio, para viver em comunhão com o papa, não precisava efetivamente passar para o rito latino como muitos diziam, mas podia muitíssimo bem continuar na sua tradição oriental. Aos 24 anos tomou a decisão de entrar para o mosteiro basiliano da Santíssima Trindade, onde tomou o nome de Josafá. Com sua presença, o mosteiro começou a reflorescer, multiplicaram-se as vocações e os superiores encarregaram-no de fundar outros dois mosteiros basilianos nas cidades de Byten e de Zyrowiche.

Monge e apóstolo Com os seus dotes extraordinários de pregador e de catequista, unidos à fama de monge santo, atraiu muitos rutênios para a Igreja uniata, que depois


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o quis para arquimandrita de Vilna. Sobre ele havia colocado os olhos também o metropolita de Kiev, seu amigo e admirador, que o constrangeu a aceitar a ordenação episcopal e o tomou como coadjutor e depois sucessor do bispo de Polotzk, Vitebsk e Mstyslaw. Daquela data, novembro de 1617, até sua morte, Josafá prodigalizou-se para renovar a vida cristã dos rutênios. O impulso renovador, que havia imprimido anteriormente nos seus mosteiros, agora se dirigia de modo especial para o clero diocesano. Ele visitava os seus sacerdotes, ouvia-os com atenção, dava as sugestões oportunas, mas sobretudo lhes oferecia os meios para formar o povo não só através da bela liturgia oriental, mas também com uma acurada catequese. Redigiu para esse objetivo um Catecismo elementar, reuniu cada ano o sínodo diocesano para avaliar a situação junto com o seu clero e tomar de comum acordo as decisões oportunas, reorganizou a administração dos bens eclesiásticos, destinando-lhe os recursos não mais para o enriquecimento dos nobres, como tinha acontecido no passado, mas para o culto e para as obras caritativas. Pessoalmente vivia como pobre: sabe-se que uma vez, não tendo nada, empenhou o pálio arquiepiscopal para socorrer uma pobre viúva. Além do mais visitava as comunidades cristãs nas várias cidades e nos vários povoados, e o povo acorria para ouvi-lo, tendo ele uma linguagem cheia de sabedoria e acessível a todos. Embora defendesse claramente a necessidade de serem unidos a Roma, na sua pregação jamais empregava palavras que pudessem ofender quem pensava de maneira diversa. Josafá foi um pastor muito amado pelo povo, mas também hostilizado pelos nobres que, mesmo sendo na maioria católicos latinos ou uniatas, eram seus inimigos porque havia tirado deles o privilégio de usufruir dos bens da Igreja.

Prepara-se para o martírio Encontrou oposições, é claro, também entre cristãos orientais que não tinham aderido à união com Roma. A situação tornou-se particularmente tensa quando, em 1620, Teófanes, que se dizia patriarca de Jerusalém, durante uma visita a Moscou consagrou um metropolita para Kiev e outros bispos para diversas dioceses para opô-los contra aqueles que haviam aderido à união com o papa. Para Polotzk mandou Melézio Smotryckyi, homem culturalmente bem preparado e ao mesmo tempo decidido à defesa da autonomia em relação a Roma.


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Entre os rutênios criou-se uma situação de extremo desconforto e de confusão. Nunca Josafá havia pensado que a sua paixão pela união pudesse causar tanta discórdia. Parecia que todo o seu trabalho pastoral tivesse se despedaçado e a sua própria vida estava em perigo contínuo. Já tinha contra a sua pessoa grande parte da nobreza, ferida nos seus interesses, e mais aquela parte dos rutênios que se reconhecia na Igreja ortodoxa, e finalmente – ironia da sorte! – também a corte do rei da Polônia que, preocupada pelo avanço dos mulçumanos, queria garantir para si o apoio militar do mundo ortodoxo. Josafá não perdeu a paz, mas continuou o seu trabalho de bom pastor. Enquanto se encontrava em Vitebsk em visita pastoral, foi surpreendido pelos seus sicários. Sua morte causou uma enorme impressão entre os rutênios e até o seu mais acérrimo inimigo, o bispo Melézio, aderiu à causa tornando-se defensor da união com Roma. Todavia os tempos não estavam ainda maduros para um entendimento pacífico entre as duas igrejas do Oriente e do Ocidente. Josafá, segundo as possibilidades e os limites do seu tempo, foi disso um profeta e para este ideal ofereceu a própria vida. Seu corpo retirado do rio, depois de várias peripécias, repousa em uma urna na basílica vaticana sob o altar de São Basílio Magno.

15 de novembro Santo Alberto Magno doutor (1200-1280) “Para todos foste uma luz. Tu te tornaste famoso pelos teus escritos e iluminaste o mundo, porque conheceste tudo aquilo que se podia saber.” 6

Alberto, chamado “Magno” quando ainda estava vivo, bem mereceu esse título, porque foi um grande homem não somente nas ciências humanas, mas 6. Pedro da Prússia, citado in: Alves, J. Os santos. São Paulo (Brasil), Ed. Paulinas, 1990, p. 644.


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também na sabedoria cristã, cultivando durante toda a vida uma profunda união com Deus e um grande amor pela humanidade. Viveu entre o fim do século XII ao século XIII, quando foram publicadas inclusive por seu mérito as grandes sínteses teológicas de Tomás de Aquino e de Boaventura.

Nobre no espírito e no corpo Os pais de Alberto queriam encaminhá-lo para a carreira militar e política, a atividade do pai, mas ele desde menino mostrou particular tendência para o estudo. Nasceu aproximadamente no ano 1200 em Lauingen, na Baviera, e, quando o pai se transferiu para a Itália no séquito de Frederico II, aproveitou para continuar seus estudos na Universidade de Pádua, onde era muito vivo o interesse pelas ciências naturais. Aí encontrou o sucessor de São Domingos, o beato Jordão de Saxônia, geral dos dominicanos. Ele tinha ido a Pádua para pregar aos jovens universitários e tinha a impressão de ter perdido o seu tempo, visto que a turma dos estudantes universitários não tinha nenhuma vontade de escutá-lo. Precisou mudar de opinião, porque dez estudantes pediram para seguir o ideal dominicano. Entre esses estavam, como escreveu ele mesmo em uma carta, “dois filhos de dois grandes nobres alemães; um era chefe da polícia militar, um homem de grande honra e de imensa fortuna; o outro tinha renunciado a conspícuos benefícios e era realmente nobre no espírito e no corpo”. Parece que o segundo era o próprio Alberto de Lauingen. Era um jovem robusto e belo quanto à aparência, atento e inteligente. Um dominicano ao vê-lo pela primeira vez teria exclamado: “Que pecado se um corpo tão belo e uma alma tão bem formada tivessem de perder-se!”. Mas no coração do belo jovem floresciam já nobres sentimentos expressos mais tarde nesta oração: “Senhor Jesus Cristo, escutai a voz da nossa dor. No deserto dos penitentes gritamos para vós, para não sermos seduzidos por vãs palavras tentadoras sobre a nobreza da família, sobre o prestígio da ordem, sobre o que a ciência tem de atraente”. Embora os estudos fossem sua paixão, colocou de lado os seus livros e correu atrás do ideal de São Domingos. Jordão de Saxônia, que havia percebido o talento do rapaz, mandou-o logo para Colônia. Tinha cerca de 23 anos e, depois do noviciado e dos estudos teológicos, Alberto foi mestre de teologia nas escolas da sua ordem, primeiro em Hildesheim, depois em Friburgo, em Ratisbona, em Strasburgo, em Colônia, em Paris e daí novamente em Colônia.


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O artífice da escolástica Neste período teve a oportunidade de aprofundar seu conhecimento de Aristóteles. O pensamento aristotélico estava penetrando no mundo acadêmico daquele tempo por intermédio do filósofo Averróis, que o apresentava como inimigo da visão cristã tradicional, a visão agostiniana. Alberto, homem sereno e objetivo, quis estudar Aristóteles sem precon­ ceitos, procurando as traduções imperfeitas existentes e não encontrou nele, pois, aquele inimigo da Igreja que outras pessoas lhe haviam descrito. A pedido dos seus confrades começou a escrever uma vasta enciclopédia. Comentando Aristóteles e citando também autores como o árabe Averróis e o judeu Moisés Maimônides, teve a oportunidade de aprofundar a lógica, a retórica, a ética, a política, a metafísica e as várias ciências naturais, como a matemática, a astronomia, a física, a biologia, tudo quanto tinha sido produzido na bacia mediterrânea dos tempos antigos até aquele momento. Durante vinte anos trabalhou nessa obra monumental, abrindo o pensa­ mento europeu para a experimentação e estimulando os cristãos a não terem medo das ciências humanas, porque elas são portadoras da verdade e não podem senão ajudar na compreensão das verdades da fé. Naturalmente ele não aceitava de olhos fechados tudo o que Aristóteles, Platão e os seus comentaristas haviam escrito. Expunha com objetividade o pensamento de outrem, mas também o corrigia, o completava e às vezes o refutava. Refutava, por exemplo, o ensinamento de Aristóteles sobre a eternidade do mundo, do movimento e do tempo; o pensamento de Averróis que queria um único intelecto para toda a humanidade, tornando vã e sem sentido a liberdade da pessoa humana; o pensamento de Platão, que baseava todas as coisas na matemática. Mas era tão forte naquele tempo a aversão ao aristotelismo também por parte de alguns dominicanos, que Alberto teve de responder com palavras muitas vezes fortes: “Existem alguns que, por ignorarem as coisas, querem de todos os modos combater o emprego da filosofia e, sobretudo, entre os dominicanos, onde não existe ninguém que se oponha a eles. São como animais brutos que se atiram contra coisas que não conhecem”. Um discípulo, porém, o entendia perfeitamente, Tomás de Aquino. Este, segundo expressão de Guilherme de Tocco, “tendo ouvido Alberto ensinar toda ciência de maneira profunda e admirável, alegrou-se por ter encontrado logo aquilo que procurava... E começou a ficar mais do que nunca silencioso, assíduo no estudo e devoto na oração”.


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Se tivemos uma Suma teológica do pensamento cristão na Idade Média, devemo-la não só ao gênio de Tomás, mas também à mente iluminada de Alberto que abriu a estrada para Tomás de Aquino. Foi devido ao seu interesse que Tomás ocupou a cátedra universitária dominicana em Paris.

Homem de governo e construtor da paz Do ano 1253 a 1256 Alberto foi provincial da sua ordem na Alemanha. O homem dos livros revelou-se também experiente na arte de governar. Viajando freqüentemente e a pé, visitou os quarenta mosteiros dos frades da Holanda até a Áustria e os numerosos conventos das dominicanas, instruindo, corrigindo e sobretudo fomentando a vida de oração e de concórdia nas comunidades. Em 1256 encontramo-lo em Anagni junto com Boaventura na cúria papal para defender com sucesso os direitos dos mendicantes ao ensino universitário. O papa Alexandre IV, apreciando a santidade e a ciência do expositor, quis que houvesse uma disputa pública contra as teses averroístas da unicidade do intelecto humano. Deixado o cargo de provincial e voltando para Colônia, preparou junto com Tomás de Aquino, Pedro de Tarantasia, que depois passou a ser o papa Inocêncio V, e outros mestres, o regulamento dos estudos para os dominicanos. Pensava já em poder entregar-se em tempo integral à sua tarefa de escritor, quando o Papa o elegeu bispo de Ratisbona. A diocese, por causa das lutas internas, encontrava-se em um estado de causar dó quanto ao acerto econômico e moral. Alberto precisava cuidar amorosamente de tudo. O Papa de fato conhecia sua capacidade de apaziguar as partes contendoras, como havia feito mais vezes entre a cidade de Colônia e o seu bispo. Não obstante sua relutância e a do seu geral, Alberto precisou dobrar-se à vontade do pontífice. Quando chegou a Ratisbona no humilde hábito dominicano com um par de sapatões, seus amigos inseparáveis nas longas viagens a pé, os nobres da cidade sentiram-se quase ofendidos e demonstraram seu desagrado. O que vinha fazer este homem “do calçado rústico” em uma cidade que por tradição sempre tinha tido bispos de alta linhagem? Logo, porém, precisaram mudar de opinião porque em dois anos Alberto conseguiu trazer a paz e reorganizar paróquias e conventos, e fazer funcionar as obras de caridade.


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Cumprida sua tarefa, pediu e obteve ser exonerado do governo da diocese para levar adiante os seus estudos, mas no ano de 1261 Urbano IV o encarregava de pregar a cruzada nos países de língua alemã. Recomeçou sua peregrinação caminhando até a Boêmia, mas sem muito sucesso. Em 1263 estava de novo em Colônia e desde esse momento desenvolveu por encargo papal e a pedido dos interessados sua obra de pacificador em várias outras cidades alemãs.

Os últimos anos Em 1274 tomou parte no Concílio de Lyon onde, depois de ter aguardado inutilmente a chegada de Tomás, o seu discípulo mais amado, falou com a sua usual sabedoria e doutrina a todos os padres. Em 1277, enquanto vivia tranqüilo no convento de Würzburg, tomou conhecimento de que o bispo de Paris, Estêvão Tempier, tinha condenado dezenove teses, algumas das quais sustentadas por Tomás de Aquino. Alberto, embora já de idade avançada e com achaques, se fez conduzir a Paris e com um discurso na universidade defendeu o pensamento do seu discípulo, a fim de que a ignorância e a inveja não fizessem retroceder perigosamente o pensamento cristão. Dois anos depois redigia o seu testamento, deixando aos pobres suas coisas e aos dominicanos de Colônia seus livros. Nos últimos anos a saúde foi se desestabilizando e chorava freqüentemente, pensando em Tomás que o havia precedido no céu. Sua caminhada, por tantos anos repleta de uma intensa atividade intelectual, agora escorria na oração silenciosa e profunda. Narra-se que um dia se apresentou um visitante à porta do convento e lhe perguntou: “Mora aqui o mestre Alberto?” O santo, por humildade ou por falta de memória, respondeu: “Não, não está mais aqui. Uma vez estava, mas não recordo quando”. Morreu a 15 de dezembro de 1280 e foi sepultado em Colônia. Para a canonização precisou aguardar o ano de 1931, quando Pio XI o proclamou doutor da Igreja e Pio XII, em 1941, o nomeou padroeiro dos cultores das ciências naturais.

Doutor universal “A formidável atividade literária de Santo Alberto é entendida como a mais gigantesca da Idade Média. Efetivamente ela se estende a quase todas as ciências sacras e profanas, e a tudo o que de melhor foi produzido pelas civilizações grega, latina e árabe. Dotado de uma atividade e de uma


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faculdade de assimilação surpreendentes, engenho universal, Santo Alberto foi considerado pelos contemporâneos como um milagre do saber... “O seu mérito principal consiste em ter, a princípio, intuído o valor da filosofia aristotélica e em tê-la introduzido na cultura contemporânea, purificada das falsas e artificiais interpretações orientais, e integrada com o pensamento de Platão. Mais que um construtor de novos sistemas, Santo Alberto foi um diligente recolhedor de materiais, que tornaram possível ao seu grande discípulo a síntese filosófico-teológica. Alberto é superior a Tomás pela riqueza de erudição e pela ousadia criadora nas concepções, todavia Tomás vence-o por sua vez pela clareza e elevação do pensamento, exaustiva profundidade da especulação teológica e vigor sistemático. Na exegese bíblica Santo Alberto deu realce ao sentido literal e histórico, contrariamente ao uso do tempo; em moral moderou o aristotelismo com o platonismo agostiniano; na mística, com os comentários ao Pseudo-Dionísio, deixou assim grandes traços para contribuir para aquele reflorescimento da vida espiritual que na Alemanha e nos Países Baixos tomará o nome de Devoção moderna”.7 Mas acima de tudo precisamos acrescentar que ele não separou nunca a atividade literária de uma profunda união com Deus. É sua a famosa frase: “Vai tu mesmo para Deus; ser-te-á mais útil do que mandar todos os santos que estão no céu!”

16 de novembro Santa Margarida da Escócia rainha da Escócia (1046-1093) “Margarida possuía o espírito de compunsão em grau eminente. Quando me falava das inefáveis doçuras da vida eterna, suas palavras eram acompanhadas de uma graça maravilhosa. O seu fervor era tão grande em tais ocasiões, a ponto de não poder deter as abundantes lágrimas. Possuía uma terna devoção e ao vê-la me sentia penetrado de vivo arrependimento. Ninguém observava mais exatamente que ela o silêncio na igreja, ninguém mostrava um espírito mais atento à oração.” 8 7. Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / XI. Udine, Edizione Segno, 1991, pp. 165-166. 8. Da Vida de Margarida, escrita por seu confessor, o monge Teodorico Turgot. Citado in: Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / XI. Udine, Edizione Segno, 1991, p. 188.


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Quando se lêem histórias de rainhas ou princesas elevadas às honras dos altares pela piedade popular, sempre se fica um pouco cético, temendo-se que a fantasia do povo simples tenha criado a santidade de quem normalmente tinha só a ventura de ter nascido em uma corte e a honra de um suntuoso mausoléu em uma igreja artística. De Margarida da Escócia, porém, podemos estar certos de que alcançou a autêntica santidade: chegou até nós a vida escrita por um contemporâneo com particularidades historicamente certas e existe a beatificação pelo papa Inocêncio IV em 1251, em Assis, na basílica de São Francisco, beatificação que já então exigia um processo canônico regular.

Os primeiros passos Margarida nasceu na Hungria aproximadamente no ano 1046, filha de Eduardo Aetheling e de Ágata, irmã da rainha daquele país. Eduardo tinha chegado à Hungria através da Suécia. Quando, efetivamente, o dinamarquês Canuto II se apoderou do reino britânico, mandou os possíveis pretendentes ao trono para o rei Olaf para que os fizesse morrer. Olaf os recebeu com todas as honras e não quis matá-los, mas quando Canuto ocupou poucos anos depois a Suécia, Olaf e os dois príncipes fugiram para a Hungria. Ali Eduardo casouse com a irmã da rainha e teve três filhos: Margarida, Cristina e Edgard. A família vivia tranqüila em uma terra que não considerava verda­dei­ ramente estrangeira. Eduardo não pensava de maneira alguma em arranjar intrigas políticas para conquistar um reino, quando por ocasião da morte de Canuto em 1054 foi chamado para a pátria por Eduardo III conhecido como “o confessor” pela sua vida santa, para preparar-se para sucedê-lo no reino. Não subiu, porém, ao trono, porque morreu três anos depois. Nem mesmo seu filho Edgard conseguiu subir ao trono, porque ainda era muito pequenino por ocasião da morte de Eduardo III em 1066. O reino foi dado pelos nobres e pelos bispos a Haroldo II. Este encontrou a oposição do normando Guilherme I, o Conquistador, e foi posto em fuga na batalha de Hastings no ano 1066. Diante de tantas sanguinolentas confusões, Edgard com suas irmãs fugiu para a Escócia, para junto de Malcom III. Este não era absolutamente um santo, mas era cognominado o sanguinário por ter destruído toda a família de Macbeth, conde de Moray, que havia tentado lhe usurpar o trono. Apesar deste passado pouco recomendável, o rei escocês acolheu bem a família real dos britânicos e, enamorado da figura feminina de Margarida, pediu-a em casamento.


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Rainha da Escócia Margarida tinha recebido uma fina educação na Hungria durante a sua infância, sabia ler e escrever, estava a par da vida da Igreja e simpatizava com a reforma gregoriana apoiada e promovida por Cluny. Não era uma menina ignorante, mas uma mulher de 24 anos, já conhecedora da vida. Era o caso de aceitar a mão de um rei que tinha o cognome não simpático de sanguinário? E recusá-la o que significaria para seu irmão e para sua irmã? Pensou dizer não e aceitou. Mais tarde o seu biógrafo podia anotar: “Malcom escolheu uma esposa da estirpe mais nobre, uma esposa mais nobre ainda pela sabedoria e religiosidade... Ela influiu favoravelmente sobre o rei que abandonou seus hábitos selvagens... E transformou tudo aquilo que lhe estava ao redor... Diante dela não eram permitidos discursos maus”. Malcom, que não era tão sanguinário quanto se pensava, deixou moldar seu ânimo pela sua esposa, ouvindo-lhe os conselhos. Embora falasse três línguas, não sabia ler e beijava com devoção os livros que sua mulher usava para orar ou para instruí-lo.

Mulher de governo e mestra de vida cristã Margarida organizou a corte com a maestria de uma diligente castelã e cercou seu marido de conselheiros sábios. Admiradora de Cluny, construiu um mosteiro e fez vir uma comunidade de monges. Querendo depois introduzir no reino, a reforma gregoriana promoveu vários sínodos, tomando parte neles também pessoalmente. Em um deles foi perguntado o seu parecer a respeito da comunhão para os pecadores arrependidos. Na severa mentalidade celta, educada pela prática penitencial dos monges irlandeses, parecia impossível dar a eucaristia a uma pessoa que tivesse caído em um gravíssimo pecado. A rainha, que recebia freqüentemente a eucaristia e que tinha uma boa formação teológica, respondeu sabiamente que todos, no fundo, somos pecadores, mas se uma pessoa se arrepende, confessa os seus pecados e muda de vida, tem direito de receber o Senhor das misericórdias. Sob sua influência foram escolhidos bispos dignos e ordenados sacerdotes celibatários, fazendo reflorescer em toda parte a vida cristã dos escoceses tanto no aspecto religioso quanto no aspecto cultural, porque onde havia um bispo surgia também uma escola e obras de assistência para os pobres.


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Mãe dos pobres Margarida dava o exemplo, cuidando dos pobres pessoalmente. Cada dia, antes de sentar-se à mesa, servia nove órfãos e vinte e quatro pobres. Na Quaresma e no Advento fazia-se ajudar pelo rei neste serviço, porque o número dos pobres chegava até trezentos. Interessava-se também pelos estrangeiros que, tendo fugido da sua terra, muitas vezes devido a perseguições políticas, morriam na miséria no país que os hospedava. Não tinha experimentado também ela este incômodo? Para eles fez construir hospedarias. Quando os seus recursos econômicos se tornavam escassos, vendia os objetos preciosos pessoais ou da corte, mas não deixava sem socorro os necessitados.

Educadora de príncipes Embora fosse muito superior ao marido em instrução e em educação nobiliárquica, tratava-o sempre com respeito devido ao seu grau e tomava a si o cuidado de que se vestisse bem e se apresentasse bem em público, inculcando tal respeito aos seus oito filhos, seis meninos e duas meninas. A fama desta família real chegou até a corte da Inglaterra, e Henrique II o Vermelho, pediu como esposa a princesa Edith, filha de Malcom e Margarida. A jovem havia exprimido o desejo de se tornar monja, mas, depois do conselho de Santo Anselmo d’Aosta bispo de Canterbury, tornou-se rainha com o nome de Matilde. Também o seu irmão, Davi I, que sucedeu o pai no reino, seguiu os exemplos maternos e mereceu o título de beato. Margarida morreu em Edimburgo a 16 de novembro de 1093, quatro dias depois da queda, em batalha, do marido e do primeiro filho, que tinham corrido a defender o castelo de Alnwich na Nortúmbria contra os invasores ingleses. Tendo tomado conhecimento da notícia, Margarida fez esta oração: “Deus onipotente, agradeço-te de me teres enviado uma tão grande aflição nos últimos instantes da minha vida. Espero que, com a tua misericórdia, servirá para purificar-me dos meus pecados”. Recebida pela última vez a eucaristia, expirou enquanto orava com as palavras da liturgia: “Senhor Jesus, que com a tua morte deste a vida ao mundo, livra-me de todo mal”. Foi sepultada na igreja da Abadia da Santíssima Trindade de Dunfermline. Com justiça, os católicos da Escócia a veneram como protetora do seu país.


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16 de novembro Santa Gertrudes virgem (1256-1302) “Ó Senhor Deus, que me marcaste com a luz santa do teu rosto... faz que eu creia fielmente com fé reta e fervorosa, coroada de obras de vida, que eu me apegue a ti e em tal união persevere imutavelmente até o fim. Ó Senhor Jesus Cristo, afasta de mim com a eficácia da tua presença, na virtude do Espírito Santo, todas as insídias do inimigo, despedaça em mim todos os laços do pecado e pela tua misericórdia mantém distante de mim toda cegueira do coração... Pela tua graça a minha conduta seja tal que mereça ser templo de Deus, habitação do Espírito Santo.” 9

É inconcebível hoje que uma menina de 5 anos entre para o convento e aí permaneça por toda a sua vida, como aconteceu com Gertrudes no mosteiro de Helfta, na Saxônia. Naqueles tempos, todavia, era uma honra, sendo os mosteiros femininos os únicos lugares em que as moças podiam receber uma educação cultural de alto grau, porque as escolas surgidas à sombra das catedrais e dos mosteiros masculinos recebiam só candidatos homens. Que depois uma moça em um certo momento abraçasse a vida monástica ou retornasse para a sua família, isso era uma escolha sua, pessoal, ao menos em teoria. Da infância e da juventude de Gertrudes sabemos somente aquilo que ela mesma nos deixou escrito. Nasceu a 6 de janeiro de 1256, talvez em Eisleben, na Turíngia. Não sabemos o nome dos pais. Provavelmente não pertenciam à nobreza do país.

Uma inteligência incomum No mosteiro de Helfta encontrou-se desde menina sob a direção de Mechtilde, diretora das escolas e depois mestra das noviças; desenvolveu-se muito bem tanto nos estudos clássicos quanto no canto e na arte da miniatura. Tinha uma engenhosidade multiforme e versátil que ela desfrutava com incrível 9. Santa Gertrudes. Exercícios 1.


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paixão. Por sua própria vontade decidiu tornar-se monja: havia entendido que Deus a queria inteiramente para si no mosteiro e sem nenhuma hesitação deu o seu sim, mas mesmo como monja continuou nos amores da sua juventude: o estudo e a arte. Assim terminou o vigésimo quinto ano de idade, quando – como nos narra ela mesma nos seus escritos – todo o saber adquirido no campo sagrado e profano, que durante anos lhe havia agradado tanto, não lhe dizia mais nada à mente e, o que mais a espantava, a própria vida religiosa com os seus ritmos de trabalho e as suas práticas litúrgicas, que até aquele momento eram para ela como o desenvolver-se harmonioso de uma melodia, agora tinham se tornado de uma monotonia exasperante. Gertrudes assistia impotente à derrocada inexorável de todos os seus ideais e entrava na escuridão mais negra até a desesperar da própria salvação. Tudo isso no ano de 1280, mas no dia 27 de janeiro de 1281 Jesus lhe disse: “Quero te salvar e te libertar. Até agora comeste com os meus inimigos o pó da terra e absorveste dos espinhos terrenos algumas gotas de mel. Vem para mim, quero inebriar-te com o rio da minha delícia divina”. A resposta de Gertrudes foi imediata: “Eu louvo, adoro, bendigo como posso a vossa sábia misericórdia... porque vós, meu Criador e meu Redentor, vos esforçastes por reduzir uma cabeça indomável ao vosso suave jugo, preparando-me um medicamento tão bem adaptado à minha fraqueza”. E continuava orando: “Ó meu irmão e esposo Jesus... coloca sobre mim o teu selo de modo que nada eu procure neste mundo, nada eu deseje e nada ame fora de ti. E tu, ó Senhor, digna-te unir-me a ti com uma união espiritual, tanto que me torne tua verdadeira esposa por um amor indissolúvel que a morte mesma não consiga despedaçar”.10

À procura da sabedoria A “cabeça indomável”, que antes se deliciava unicamente no estudo profano e na arte, agora está à procura contínua do esposo. Para encontrá-lo, estuda e medita com paixão a Sagrada Escritura e os grandes padres da Igreja. Seus autores preferidos são Agostinho, Gregório Magno, Bernardo de Claraval e Hugo de São Vítor. 10. Ibid., 3.


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Mas sobretudo se entrega com mais empenho à oração: “Ó Deus amor, como estás próximo daqueles que te procuram; como és doce e amável para aqueles que te encontram! Ensina-me tu mesmo os rudimentos da tua ciência a fim de que o meu coração se aplique contigo em um único estudo... Que eu não seja deixada sempre assim sozinha na escola da tua caridade como um pintinho ainda fechado na casca do ovo; faz ao invés que em ti, por ti e junto de ti, avance e progrida dia após dia, de virtude em virtude produzindo cada dia por ti, ó meu amado, um fruto novo no teu amor”.11

Vivendo a caridade operosa Apercebe-se, porém, de que também o estudo das ciências sagradas e a própria oração, sem a prática cotidiana da caridade, podiam só alimentar sua vaidade e seu orgulho. Prodigalizou-se então no servir o próximo com todos os meios. Estava pronta para abandonar também os momentos de êxtase para atender às necessidades de uma irmã ou para ir ao parlatório para receber as pessoas do mundo que vinham sempre mais numerosas a pedir conselhos e a se fazer dirigir espiritualmente. Não quis ter para si nem mesmo os frutos do seu estudo e escreveu para as suas co-irmãs pequenos tratados espirituais e sínteses dos escritos que lia. E o fez na língua do povo, para que pudessem ser úteis também a quem não conhecia o latim. Todavia todo este material se perdeu. Restam-nos só duas obras: O mensageiro do divino amor e Os exercícios espirituais. Escreveu-os, quando se apercebeu de que a doença já havia minado o seu físico, para atender a uma divina inspiração na qual o Redentor lhe ordenava: “Quero ter nos teus escritos um testemunho certo do meu divino amor”.

A experiência mística Em O mensageiro do divino amor Gertrudes narra sua experiência mística. As iluminações divinas, penetrando no coração desta mulher, o transformaram intimamente e harmonizaram nela de maneira maravilhosa os dons naturais e sobrenaturais, fazendo-a uma autêntica “mensageira” do amor de Deus para os homens. 11. Ibid., 5.


Santa Gertrudes

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Os exercícios espirituais, ao invés, são um canto de gratidão a Deus pelos acontecimentos salientes da vida cristã e monástica, como o batismo, a vestição, a profissão religiosa e a preparação para o encontro definitivo com o esposo. Gertrudes, na sua espiritualidade, alcança amplamente a espiritua­li­ da­de beneditina – Sagrada Escritura, patrística e liturgia –, mas introduz uma nota caracteristicamente sua, porque a reveste de um afeto humano extraordinário que nunca degenera em sentimentalismo. Ela percorre as correntes espirituais que mais tarde darão origem à devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Dirigindo-se a Jesus escrevia: “Quiseste conceder-me a inestimável familiaridade da tua amizade abrindo-me de diversos modos aquele nobilíssimo escrínio da tua divindade que é o teu Coração divino e oferecer-me nele, em grande abundância, todo tesouro de alegria”. Não sem razão Gertrudes é chamada a “teóloga do Sagrado Coração”, que precedeu São João Eudes e Santa Margarida Maria Alacoque. Pela segurança e pela profundidade dos seus escritos teológicos, pelo conhecimento íntimo das almas e pela firmeza de caráter, foi também comparada com a grande reformadora do Carmelo e é chamada, por isso, de Teresa da Alemanha. Escrevia nos Exercícios: “Amor, Amor, abre para mim tão pequena as entranhas da tua bondade; derrama sobre mim todas as fontes da tua benigníssima paternidade; rompe os diques dos abismos da tua infinita misericórdia. Absorva-me o profundo da tua caridade, submerja-me o abismo da tua indulgentíssima piedade. Que eu me perca no dilúvio do teu amor vivo, como se perde uma gota do mar na sua imensidade..., como se apaga uma centelha do fogo no ímpeto de um rio transbordando suas águas”.12 Gertrudes, perdida no coração de Deus, pareceu perder-se também nos meandros da história. Não sabemos, de fato, com exatidão, a data precisa da sua morte acontecida em 1301 ou 1302. Até mesmo seu túmulo desapareceu quando, em 1346, o seu convento foi destruído. Seus escritos, porém, redescobertos em 1536, tiveram uma grande difusão, alimentando a vida cristã de muitas pessoas. 12. Ibid., 4.


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17 de novembro Santa Isabel da Hungria esposa e religiosa (1207-1231) “Cumpria todas as obras de caridade com a maior alegria da alma e sem nunca mudar de aspecto.” 13

Um matrimônio combinado... É chamada Isabel da Hungria só porque nasceu nesse país em 1207, filha do rei André II, no castelo de Saros Patak, próximo da atual Budapeste, mas a sua vida se desenvolveu toda na Turíngia. Tinha de fato quatro anos quando foi prometida em casamento a um rapaz de 11 anos, Luís, filho do landgrave da Turíngia – assim era chamado um grão-conde naquelas regiões – e logo levada para o castelo do noivo para ser educada segundo a língua e os costumes da nova pátria. Parece que esta transferência para o castelo de Wartburg não tenha incidido negativamente sobre a psicologia da menina, mesmo porque lhe puseram ao redor quatro servas que lhe serviram de mãe e de irmãs e com as quais estabeleceu um profundo entendimento também espiritual. Por outro lado, naqueles tempos era normal combinar matrimônios entre as cortes sem se preocupar muito com o prévio consentimento dos interessados diretos no assunto. Tais núpcias não só serviam para organizar as famílias dos nobres segundo o seu escalão, mas vinham ao encontro também do bem dos súditos porque os vínculos matrimoniais, aparentando os poderosos, freqüentemente evitavam para os súditos a infelicidade das guerras.

... e no entanto feliz Quando o príncipe Luís alcançou a maioridade e Isabel chegou aos seus 14 anos, celebraram-se as núpcias. Foi um matrimônio feliz. Isabel, referindose ao seu amor pelo esposo, costumava confidenciar à sua serva Isentrudes: “Se eu amo tanto uma criatura mortal, muito mais deverei amar o Senhor, imortal e Senhor de todos!”. Mas o amor humano nesses dois cônjuges era tão 13. Do testemunho da sua serva Isentrudes.


Santa Isabel da Hungria

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autêntico que não somente não ofuscava o amor divino, mas o potenciava. Sempre a fidelíssima Isentrudes dava este testemunho: “Amavam-se com um amor maravilhoso e se encorajavam docemente, um com a outra, no louvar e no servir a Deus”. Isso explica também porque o marido a seguia nas suas obras de misericórdia que ela empreendia em favor dos pobres, empregando nisso os seus bens. A princesa vestia-se com tal simplicidade que não se distinguia das suas servas e fazia junto com elas todos os trabalhos domésticos. Não é que tivesse muito tempo para dedicar às vaidades, porque aos 15 anos já tinha o primeiro filho, Germano, o herdeiro, e aos 17 anos nasceu Sofia. Por outro lado, o confessor de Isabel, o franciscano Rüdiger, guiava-a nas pegadas de Francisco de Assis. A figura desse santo, ainda vivo, esculpiu-se profundamente no coração dela, não só estimulando o amor aos pobres, mas enamorando-a da senhora Pobreza.

Viúva e pobre aos 20 anos Se no interior do castelo Wartburg reinava a harmonia, não acontecia o mesmo lá fora. Os pais de Luís já tinham tido divergências com o arcebispado de Mogúncia que não se contentava em exercer a jurisdição eclesiástica sobre Wartburg, mas reivindicava também o direito à cobrança de taxas sobre as terras do landgrave. Por causa dessas controvérsias, o pai de Luís morrera excomungado. Para resolver pela raiz esse velho problema, Luís aceitou o convite do papa Honório III de participar da cruzada dirigida pelo imperador Frederico II, o Barba-roxa. O jovem príncipe – assegurava-lhe o papa – teria recebido em troca um subsídio de 4 mil marcos de prata do imperador e, por ordem da Santa Sé, a isenção da jurisdição do arcebispo de Mogúncia. Antes de partir para a cruzada, convidou para o castelo Wartburg Conrado de Marburgo, famoso pregador da cruzada e enviado pontifício, confiando-lhe o cuidado espiritual da esposa e a garantia dos acordos durante sua ausência. Depois partiu com os cruzados, enquanto Isabel estava esperando o nascimento de Gertrudes, seu terceiro filho. Chegado a Otranto, enquanto se preparava para partir para o Oriente, Luís foi surpreendido por morte imprevista. Quando um enviado levou a notícia ao castelo, Isabel exclamou: “Morto! E com ele morreu também todo o meu prazer de viver no mundo”.


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Nas pegadas do Poverello Começava para a viúva um período muito doloroso. Deixado o castelo de Wartburg, transferiu-se para Eisenach, depois para Pottenstein e por fim para Marburgo. Isabel tinha 20 anos e era de belo aspecto. Seu irmão, o bispo de Bamberga, para pôr um fim na sua tribulação, aconselhou-a a casar-se novamente, mas ela tinha outros projetos. Agora que lhe haviam tomado todas as coisas, até mesmo os três filhos, embora muito pequeninos, restava-lhe, porém, a possibilidade, tantas vezes desejada, de renunciar a tudo para se entregar a Deus, segundo o espírito de são Francisco. Se até aquele momento tinha se dedicado aos pobres, agora podia viver a pobreza na sua pele e praticar o hostiatim mendicare, o pedir esmolas de porta em porta como faziam os franciscanos, expressão perfeita da senhora Pobreza. Em uma sexta-feira santa, colocando as mãos sobre o altar nu, renunciou à própria vontade e a tudo o que mundo lhe pudesse ainda oferecer. Conrado, o tutor pontifício, teve de intervir para obrigá-la a fazer valer os seus direitos de viúva. Com o dote que lhe foi destinado construiu um hospital em Marburgo, dedicando-o a são Francisco e passou o resto da sua vida a servir os doentes. Morreu aos 24 anos, a 17 de novembro de 1231, apenas cinco anos depois da morte de são Francisco. A seu respeito, logo depois da morte, Conrado de Marburgo escrevia ao Papa: “Além destas obras ativas (a favor dos pobres), digo diante de Deus que raramente vi uma mulher mais contemplativa; retornando do lugar afastado aonde ia para orar, foi vista várias vezes com o rosto admiravelmente resplandecente, enquanto que dos seus olhos saíam como que dois raios de sol”. Mesmo que Isabel não tenha vestido o hábito franciscano, tinha, porém, assimilado muito bem o espírito do Poverello de Assis. O imperador Frederico II, depois de ter tomado parte no seu sepultamento, fez comunicar a frei Elias: “A venerável Isabel, tão cara a Deus, de ilustre estirpe, como estrela matutina iluminou a névoa deste mundo”. Não obstante a fama de santidade, o processo de canonização encontrou muitos obstáculos da parte do arcebispo de Mogúncia, que não perdoava o castelo de Wartburg de se ter subtraído da sua jurisdição civil. Foi preciso a intervenção de são Raimundo de Peñafort, que deu parecer favorável para que o papa Gregório IX a proclamasse santa no dia 1º de junho de 1235, apenas quatro anos depois da sua morte. Isabel tornou-se então a inspiradora e o modelo – sobretudo na Alemanha – de todas aquelas mulheres que, mesmo continuando como leigas sua vida


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normal, queriam dedicar-se à contemplação e ao serviço dos pobres e dela tomaram o nome de isabelinas.

22 de novembro Santa Cecília virgem e mártir (século III) “A virgem Cecília levava sempre no coração o Evangelho de Cristo e dia e noite falava com Deus.” 14

Uma das características das virgens na comunidade cristã era e é o apego ao evangelho, o anúncio da Boa-Nova feito não com a palavra pregada, mas com a Palavra vivida. “A pessoa virgem testemunha Deus com a sua simples virgindade, porque na terra não existe razão para continuar virgem. O motivo é plenamente celestial”.15 As virgens são um testemunho evidente da presença de Deus entre os homens. É este talvez o aspecto mais saliente da figura de Santa Cecília, mesmo que de histórico sobre ela não saibamos quase nada. Deve ter sido martirizada no século III em Roma, lugar em que surgiu em sua homenagem, mais tarde, uma basílica. A sua passio efetivamente remonta ao século V ou VI e não dá garantias históricas.

Dela nos contaram... Devia pertencer à nobre família dos Caecilii que com seu prestígio e as suas riquezas foi de grande ajuda aos cristãos durante as perseguições. Talvez por este motivo a jovem Cecília, depois do martírio, foi deposta em um túmulo próximo ao dos bispos nas catacumbas de são Calisto ao longo da via Ápia. A passio, rica de particularidades miraculosas, embora não conte a história real de uma pessoa, descreve bem o ambiente em que se movimentava a comunidade

14. Da liturgia da festa. 15. Lubich, Ch. Scritti spirituali / 1. Roma, Città Nuova Editrice, 1978, p. 133.


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cristã de Roma sob as perseguições e revela também a estima que os cristãos tinham pela mulher, sobretudo pela virgem, em contraste com a mentalidade atual. Naquele tempo uma menina recém-nascida, para ter direito a sobreviver, precisava receber o consentimento paterno. Depois permanecia sob o poder do pai até o matrimônio, quando recebia no marido, que lhe fora destinado pela família, o seu proprietário definitivo. Na comunidade cristã, ao invés, uma mulher, mesmo que nascida de uma escrava, tinha o direito de viver e, assim que chegava à idade adulta, tinha o direito de casar-se ou de permanecer virgem, sem ser constrangida nem pelos genitores nem pelos pretendentes. Isso favorecia o matrimônio entre cristãos e incentivava também a escolha da virgindade pela elevada estima que esse estado de vida gozava entre os convertidos ao evangelho. Agir assim era relativamente fácil para as pessoas comuns, mas quando se tratava de filhas de nobres, ricas e graciosas, sempre se apresentavam pretendentes até mais ricos e não raramente também prepotentes, e aí os interesses familiares e as paixões humanas conspiravam juntos contra as exigências de liberdade da fé cristã, que além de tudo era uma religião proibida. Então era preciso entrar em ação a força extraordinária da fé que não raramente conduzia ao martírio, uma derrota aparente que com o tempo se transformou no triunfo do cristianismo. Com esta chave de leitura podemos admirar a passio de Cecília, escrita dentro dos cânones do seu gênero literário.

A aventura de um matrimônio Cecília tinha escolhido para si a virgindade, mas a sua beleza e a sua riqueza tinham atraído a atenção do jovem Valeriano, que a havia obtido como sua noiva. Tratando-se de duas pessoas nobres, ela não podia simplesmente transferir-se para a casa do esposo, mas as duas famílias teriam primeiro de fazer uma grande festa para fazer uma demonstração de sua riqueza e para estreitar os vínculos de amizade e parentesco. Nesse meio tempo Cecília teve a possibilidade de revelar ao seu noivo que ela era cristã e, além do mais, havia consagrado a Deus sua virgindade. Se diante do mundo era preciso exatamente celebrar a festa do matrimônio, que isso fosse feito então, mas ele tinha de respeitar para sempre sua virgindade. Valeriano, nobre de sangue, mas ainda mais de coração, ficou admirado e perplexo, e fez notar que uma tal coisa lhe parecia absurda. Ao que Cecília


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o advertiu de que se também tivesse querido um dia constrangê-la não o teria conseguido, porque ao seu lado estava sempre de vigia um anjo para sua defesa. Aproximando-se o dia das núpcias, multiplicavam-se os longos encontros entre os dois e Valeriano foi primeiramente instruído na fé cristã e depois enviado de maneira muito secreta ao papa Urbano, que vivia escondido próximo das catacumbas de São Calixto, e aí foi batizado. Cecília lhe havia prometido que depois do batismo teria podido contemplar o anjo que a protegia. Valeriano, saindo das catacumbas e voltando para ela, via todas as coisas com novos olhos e não sabia o que levar como presente naquele dia para Cecília. Por fim decidiu levar-lhe a felicidade imensa que tinha no coração. Assim que foi introduzido em uma grande sala, lugar dos seus encontros, ali estava Cecília belíssima, absorvida inteiramente em oração, cantando a Deus com as cordas mais íntimas do seu coração, enquanto que um anjo, que a vigiava, o convidava a aproximar-se, lhe colocava na cabeça uma coroa de rosas e colocava sobre a cabeça de Cecília uma coroa de lírios. Recordou-se então do que Cecília lhe havia dito: “Tenho um segredo, Valeriano, que te quero revelar: tenho um anjo de Deus que me ama e ele guarda com grande cuidado o meu corpo”. Convenceu-se então de que a sua esposa pertencia a um Outro e que ele estava próximo do martírio. E foi invadido por uma paz do céu. A visão havia apenas desaparecido, quando chegou Tibúrcío, irmão de Valeriano, talvez para participar dos preparativos da festa que pensava já iminente, e fez notar que na sala havia um perfume fortíssimo de rosas e de lírios, inexistentes naquela estação de outono. O irmão lhe revelou o mistério e exortou-o a preparar-se também para o batismo. E depois de o ter catequizado, mandou-o para Urbano. Permaneceu com o Papa sete dias para completar sua preparação e depois foi imerso na água. Os três jovens eram já uma única alma e seus encontros tornaram-se mais freqüentes tendo tanta coisa para comunicar entre si. Fora, ao invés, enfurecia-se a perseguição. O prefeito da cidade, de fato, Turcio Almacchio, havia ordenado a destruição dos cristãos, que depois da sua morte eram abandonados insepultos nos campos romanos para serem devorados pelas feras selvagens. Cecília havia induzido os dois jovens nobres, que podiam se mover com uma certa liberdade, à piedosa tarefa de recolher de noite os mortos,


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dando-lhes uma digna sepultura. Para eles era uma honra tocar os corpos dos santos, mas quando foram descobertos foram levados diante de Almacchio, asperamente censurados e açoitados. Por respeito à sua família, o prefeito não quis aplicar a pena capital, mas houve quem lançou os olhos sobre a fortuna e os seus bens, e conseguiu fazêlos condenar à morte porque eram cristãos, depois da prévia expropriação dos bens. Máximo, o corniculário, a máxima autoridade depois do prefeito, foi encarregado de conduzi-los acorrentados para o campo aberto para sacrificar a uma estátua de Júpiter e, no caso de recusa, passá-los a fio de espada. Enquanto os conduzia para o suplício, o oficial ficou comovido pela idade juvenil de ambos e foi atingindo pela inexplicável serenidade dos rostos deles e pela sua decisão irrevogável. Perguntou o motivo e foi preciso pouco para entender que os dois possuíam um tesouro que superava todas as riquezas deste mundo: a verdade que tudo liberta. E também ele passou, por sua vez, para o lado deles pedindo o batismo. O prefeito ficou estupefato e junto com os dois jovens fez perecer também o corniculário. Cecília, através de suas amizades bem situadas, obteve os corpos deles e os sepultou em um mesmo túmulo, tendo sobre eles um baixo-relevo de uma fênix, símbolo da ressurreição.

Um processo famoso até se tornar lendário Os bens dos três mártires foram confiscados e a própria Cecília desta vez foi intimada a apresentar-se ao tribunal. Dois litores foram buscá-la em sua casa e, encantados pela casta beleza dessa jovem e pela sua extraordinária sabedoria, limitaram-se a escoltá-la e foram conquistados para a fé cristã. Desta vez o papa Urbano foi chamado às pressas à casa de Cecília, onde os litores tinham reunido também suas famílias para receber o batismo. Só depois Cecília se fez acompanhar ao tribunal e ao ritual convite a sacrificar aos ídolos respondeu que teria sido melhor transformar aqueles simulacros em cal. Almacchio, vendo que nada teria conseguido daquela mulher jovem na idade, mas bastante decidida na sua vontade e, temendo que uma execução em público pudesse causar uma revolta da plebe cristã, ordenou que fosse reconduzida à sua casa e fechada em uma caldeira levando-o, nessa ocasião, a altíssima temperatura.


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Depois de um dia e uma noite os guardas receberam a ordem de abrir a caldeira para constatar a morte da jovem e eventualmente para abreviarlhe com as armas a agonia, mas com surpresa encontraram-na bem e alegre completamente adornada para festa. Um dos soldados feriu-a mortalmente no pescoço, abandonando-a nas mãos dos familiares. Acorreram os cristãos e também o Papa com os seus diáconos e de noite transportaram-na para as catacumbas de São Calixto, dando-lhe sepultura próximo das tumbas dos bispos de Roma. Assim narra a piedosa tradição, mas talvez foram muitas as cecílias anônimas que testemunharam com a virgindade e o martírio sua dignidade de mulheres e sua fecundidade de mães da Igreja. Depois, interpretando em sentido literal uma antífona litúrgica que diz “ao canto do órgão Cecília, voltada para o Senhor orava: torne-se o meu coração imaculado para que não fique confundida”, foi escolhida como padroeira da música e protetora dos músicos.

23 de novembro São Clemente papa e mártir (92-101) “Os mais pequeninos membros do nosso corpo são necessários e úteis a todo o corpo, e todos operam juntos e por sua vez se submetem, a fim de que todo o corpo seja salvo. Todo o nosso corpo por isso seja conservado em Cristo Jesus e cada um se submeta ao seu próximo, segundo o dom da graça a ele designado.” 16

Com estas palavras simples e precisas, Clemente descreveu admira­vel­ mente as relações que devem alimentar a unidade entre os cristãos. Somos todos membros daquele único corpo de Cristo, que é a Igreja. Ele não usa a palavra corpo místico e certamente não se refere ao corpo físico de Cristo prépascal, mas àquela realidade vital que foi se formando ao seu redor com os apóstolos e os discípulos, e que recebeu sua completitude com a Ressurreição e o Pentecostes para continuar depois ao longo dos séculos. Sobre essa realidade,

16. Da Carta de Clemente aos Coríntios. Cf. Liturgia das Horas.


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Clemente concentra todo o seu discurso para trazer a paz para a comunidade grega de Corinto, na qual alguns não queriam mais obedecer às autoridades legitimamente escolhidas por aquela Igreja.

Mas quem era Clemente? Dele nos falam muitos autores antigos como Orígenes, Eusébio de Cesaréia, Irineu de Lyon e outros. Irineu no seu escrito Adversus haereses, falando da sucessão dos bispos de Roma, escrevia: “Depois de ter fundado e construído a Igreja, os apóstolos Pedro e Paulo transmitiram a Lino o encargo do episcopado. Anacleto sucedeu a Lino. Depois dele, para o terceiro lugar, partindo dos apóstolos foi Clemente a ter o episcopado. Ele havia conhecido os apóstolos e tinha mantido relações com eles. Ele tinha ainda nos ouvidos a ressonância das pregações dos apóstolos e diante dos olhos sua tradição. E não era ele somente, visto que viviam no seu tempo muitos que tinham sido instruídos pelos apóstolos”.17 Não sabemos, porém, muitas coisas sobre a atividade pastoral desse Papa e nem mesmo sabemos com certeza se foi realmente martirizado ou se esse título lhe foi dado devido às grandes dificuldades que precisou superar para levar em frente da herança dos apóstolos naquele primeiro período da vida da Igreja. Ele tornou-se famoso pela sua Carta aos Coríntios, que começa com estas palavras: “A Igreja de Deus que está em Roma à Igreja de Deus que se encontra em Corinto”. É redigida em forma colegial e isso faz pensar que também o governo da Igreja de Roma fosse assim; está redigida em língua grega com um estilo elegante, mas sem atavios, e revela um conhecimento não comum da literatura grega; contém muitas referências bíblicas, uma característica esta que em geral era apanágio dos cristãos vindos do judaísmo; mas sobretudo é a primeira intervenção da Igreja de Roma em uma comunidade de uma outra cidade. Santo Irineu, no mesmo livro acima citado, diz: “Sob Clemente nasce uma grande divergência entre os irmãos de Corinto. A Igreja romana lhes escreveu uma carta eficacíssima para chamá-los à paz e reavivar neles a fé e a tradição que há pouco tempo haviam recebido dos apóstolos”.

17. Irineu. AH [Adversus haereses] III, 3, 3.


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São notícias historicamente certas, que o santo bispo de Lyon havia recolhido por ocasião de sua passagem por Roma nos anos 177-178, e foram fornecidas também por Egesipo que tinha estado em Roma do ano 155 ao ano 166.

A famosa Carta aos Coríntios Quando chegou a Roma a triste notícia de que os coríntios com os seus dissídios haviam rompido a unidade da sua Igreja revoltando-se contra os próprios pastores e causando grave escândalo também entre os próprios pagãos, a comunidade romana sentiu o dever de intervir através do seu bispo. Ele enviou a Corinto, como portadores de um escrito, Cláudio Efebo e Valério Vito. A carta foi acolhida com respeito, foi lida na Igreja durante a assembléia. Ela, depois de uma acurada e longa preparação doutrinal, enfrenta com concretitude tipicamente romana o nó da questão com palavras candentes: “É vergonhoso, ó irmãos, muito vergonhoso e indigno de uma conduta cristã ouvir que a fortíssima e antiga Igreja de Corinto insurgiu-se contra os seus presbíteros por instigação de um ou dois descontentes. A notícia chegou não só até nós, mas até mesmo a pessoas de outra fé que não a nossa, tanto que a vossa demência provoca ultraje ao nome do Senhor e cria um perigo para vós mesmos”. A autorizada chamada de atenção da Igreja-irmã serviu para restabelecer a paz nessa comunidade que, devido às turbulências internas, parecia não poder voltar ao congraçamento dos tempos de São Paulo, seu fundador. Irineu, admirado, exclamava: “Eis uma palavra poderosa que restabeleceu a paz na Igreja”. Só a Igreja de Roma – não temos verdadeiramente outros exemplos – já no primeiro século sentia-se no dever de intervir nas vicissitudes internas de uma outra Igreja, quando essa não conseguia sozinha resolver as próprias controvérsias. Os coríntios, por seu lado, não só conservaram a carta, mas tiraram dela cópias para as outras Igrejas. Dionísio, bispo dessa comunidade, setenta anos depois, testemunha que ainda era lida na assembléia litúrgica e era catalogada logo depois dos escritos do Novo Testamento. “Clemente” – segundo o testemunho de Eusébio de Cesaréia – “aban­ do­nou esta vida no terceiro ano do imperador Trajano, deixando a honra do


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sagrado ministério para Evaristo, depois de ter presidido durante nove anos o ministério da divina Palavra”. A tradição, surgida no século IV, que afirma que Clemente foi condenado por Trajano aos trabalhos forçados no Quersoneso, não tem sólidas bases históricas, confundindo-o com um outro personagem do mesmo nome.

23 de novembro São Columbano abade (543-615) “Precisamos passar pela estrada real para a cidade de Deus através da aflição da carne e a contrição do coração, com a dura fadiga do corpo e a humilhação do espírito...; se te distancias da batalha, também te distancias da coroa.” 18

Columbano ficou famoso pela severidade da sua ascese, embora poucos conheçam o seu ânimo delicado de poeta. Assim ele descreve uma viagem sua de barco descendo o rio Moselle para subir ao longo do Reno: “É belo entre os bosques cortar com a quilha a correnteza do Reno, deslizando docemente sobre as ondas. Povo meu, ouve-se o eco de cada grito. Levanta-se o vento, virá terrível a chuva, mas a força do homem domina a tempestade”.

A palavra da santa reclusa Nasceu na Irlanda, na província de Leinster, filho único de uma família rica que não tinha tido necessidade de mandá-lo para a escola no mosteiro, podendo dar-lhe ótimos mestres na própria casa. É compreensível que o mantivessem em casa e sonhassem para ele uma vida feliz com uma bela descendência. Mas Columbano, assim que chegou à adolescência, gostava de dirigir o olhar para fora das quatro paredes da nobre casa paterna para mais amplos horizontes, e um dia foi aconselhar-se com uma reclusa que tinha a fama de santidade. Perguntou-lhe o que devia fazer da sua vida. A mulher

18. Sancti Columbani Opera, aos cuidados de G. S. M. Walker. Scriptores latini. Hiberniae, 1957, pp. 26-36.


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fixou os seus olhos naquele jovem de coração puro e de físico forte e, com o gesto decidido dos profetas, não hesitou um momento e intimou-o a deixar logo tudo e a dirigir-se para o mais próximo mosteiro. Columbano, sem se comover muito diante das lágrimas de sua mãe, disse adeus aos seus genitores e aos seus mestres, e se colocou sob a orientação firme do abade Sinell do mosteiro Clain-Inis. Se em casa tinha estudado com interesse não só a Bíblia, mas também os sábios e os poetas pagãos como Sêneca, Virgílio, Ovídio, Lucano, Juvenal e também os poetas cristãos dos primeiros séculos, e se havia obtido um certo sucesso em composições poéticas, agora o seu coração estava todo tomado pela observância monástica irlandesa que não deixava espaço algum para o homem velho. No estudo da Sagrada Escritura e na leitura dos padres, alimento cuotidiano do monge, ele descobria dimensões novas e insuspeitáveis. A santa reclusa lhe havia dito que fugisse do mundo e ele o havia feito, mas tendo permanecido dentro dos limites da sua terra e pertencendo à classe dos nobres, parentes e amigos vinham freqüentemente procurá-lo, e a presença deles de certo modo não o ajudava a se desfazer do velho ambiente. Pediu que o transferissem mais para o norte, no mosteiro de Bangor sob a austera direção do abade Comgallo. Foi uma escolha feliz porque a sintonia entre os dois era perfeita. O jovem Columbano compartilhava plenamente as diretrizes do abade e praticava com fervor a severa disciplina de Bangor e, ao mesmo tempo, a sua livre inteligência impressionava o abade que logo o promoveu a mestre dos jovens noviços e pensava mesmo de tê-lo um dia como seu sucessor.

A paixão do missionário O desígnio do abade não chegou a seguro porto, porque Columbano foi tomado pela febre, naquele tempo muito difundida entre os monges irlandeses, de partir como missionário para o continente europeu, onde os novos povos descidos do norte ou vindos do leste haviam feito recair na barbárie e no paganismo regiões inteiras que até um tempo atrás eram cristãs e haviam brilhado pela civilização greco-romana. A Irlanda tinha sido poupada desse flagelo apocalíptico e havia conservado nos seus numerosos mosteiros não só a pureza da fé, mas também aquela civilização que são Patrício havia levado para a sua ilha verde. Não tinha chegado o tempo de devolver os dons recebidos?


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Columbano convenceu o seu abade a deixá-lo partir junto com doze monges, quase como um novo colégio apostólico, para a reevangelização da Europa. A nau que os levava dirigiu-se para uma primeira parada na Cornuália e depois se dirigiu decididamente para a Gália, onde desembarcou aproximadamente em 588-590. Apresentaram-se ao rei da Borgonha, Gontrano, e Columbano expôs com clareza o seu plano com a certeza de realizar uma missão recebida de Deus: levar o Evangelho aos pagãos, construindo no meio deles um mosteiro. Para fazer isso pedia só um pedaço de terra inculta e o direito de não ser perturbado. Terras incultas havia muitas e os pagãos mais perigosos eram os volscos. Na sua região, coberta ainda pela floresta, existia uma antiga fortaleza romana em ruínas e abandonada. O rei deu esse local a esses novos mensageiros da Boa-Nova. Columbano estabeleceu pactos bem claros: os monges não tinham necessidade de outra coisa e não desejavam que o rei ou os seus ministros um dia viessem mandar no mosteiro. O acordo foi feito e se colocaram imediatamente no trabalho. Cortaram as árvores ao redor para não permitir aos animais ferozes aproximar-se sem ser vistos; com a madeira fecharam as frestas das muralhas esburacadas, reconstruíram os tetos, fizeram portas e janelas; antes que chegasse o inverno tinham já uma casa para se abrigar das intempéries, abundante lenha para aquecer-se e uma igreja para orar. O inverno foi muito rigoroso e as provisões mostraram-se apenas su­ ficientes para sobreviver. Com a primavera começaram a preparação do terreno e as primeiras semeaduras. Contaram também com a caridade de um bispo que lhes forneceu víveres para que os monges, à força de comer raízes, deixassem de parecer mais esqueletos ambulantes que seres vivos. Columbano aceitou os presentes providenciais, mas também com o bispo falou abertamente: os monges teriam orado pela salvação da sua alma e pela remissão dos seus pecados, mas ele jamais deveria ter se intrometido na vida interna do mosteiro.

O Éden na floresta Depois do primeiro ano, o povo das imediações e também de longe acorria curioso para contemplar aquele pedaço de floresta transformado em um jardim, quase um novo Éden. Diziam que aqueles monges, silenciosos


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como animais de carga no trabalho e melódicos como os pássaros do bosque na igreja, com os cabelos cortados em cruz e a veste branca, tinham o poder de transformar com um toque mágico das suas mãos tudo o que apalpavam. Tinham, porém, um problema. A fonte da qual obtinham água potável era muito distante e um dia o monge encarregado deste dificultoso trabalho lamentou-se humildemente com o seu abade. Columbano não se preocupou muito, e olhando ao redor notou nas proximidades de uma rocha uma enorme árvore, um carvalho verdejante, e entendeu que as suas raízes estavam tocando a água subterrânea. “Cavem aqui” – disse aos monges – “e teremos água em abundância”. Aquele poço de fato assemelhava-se àquele de são Patrício: era sem fundo e quanto mais água se tirava mais água ele dava, e isso prolongou-se até os nossos dias em que o povo ainda bebe da sua abundância. Naturalmente gritaram que era milagre e agradeceram a Deus. A vida na floresta era assim bem sintonizada com aquela do resto da natureza que o bom Deus podia contemplar suas criaturas – monges, animais e plantas – coabitarem em paz e cada uma dedicada à sua tarefa. Os passarinhos não fugiam dos monges e os cabritos e as corças vinham comer nas mãos desses homens que nunca mostravam sinais de inimizade para com os outros habitantes da floresta. O historiador Jonas de Bobbio, que alguns anos depois da morte de Columbano foi encarregado de lhe escrever a vida, visitou os lugares por onde o seu fundador tinha passado, interrogou as testemunhas ainda vivas e transmitiu notícias. Talvez alguma coisa tenha sabor de lenda, talvez algo escape da compreensão de nós, modernos, que perdemos este contato amigável com a natureza. Jonas de Bobbio narra-nos que Columbano estava à procura de um lugar solitário para onde se retirar em solidão para um período de oração e de reflexão a fim de preparar a regra aos seus filhos. Enxergou a gruta de um urso e aí se acolheu. Ao entardecer voltou o dono, despedaçando com os dentes à sua presa. Os dois se olharam um tanto perplexos, depois o urso agachou-se como para refletir ou para repousar um pouco, depois levantou-se, despedaçou o veadinho, fez sua lauta ceia e, deixando por terra apenas os ossos e a pele, foi-se embora. Aproximava-se já a noite e o monge tinha necessidade de repousar tranqüilo. Columbano agradeceu a Deus e abençoou o amigo generoso; saiu da gruta e recolheu a pele do cervo. Depois de tê-la estendido em paus, pendurou-


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a em uma árvore aguardando o sol da manhã que a teria secado e preparado para curtir. Serviria para fazer calçados para os monges. A comunidade crescia dia a dia, porque eram muitos os jovens que pediam para viver como eles, e havia homens adultos e não raramente também bandidos autênticos que, cansados de derramar sangue alheio, vinham fazer penitência e nascer de novo, mas como monges. Aqui estavam longe da vingança dos seus patrões, recebiam um pão que falava de inocência e podiam nutrir a esperança de salvar a alma em um belo dia. Columbano tinha o dom do discernimento: mandava embora os de coração dissimulado e aceitava outros exigindo deles que iniciassem imedia­ tamente uma nova vida. Por isso foi necessário construir outros dois mosteiros, um em Luxeuil e o outro em Fontaine. Para o governo das três comunidades escreveu dois tratados: a Regra dos monges e a Regra doméstica. Esta última contém as penitências impostas aos transgressores. Por exemplo, quem no coro se distraía e não respondia Amém recebia trinta golpes de vara; quem brigava por algum objeto, seis golpes; quem conversava sozinho com uma mulher, um dia de jejum absoluto ou dois a pão e água ou também duzentos golpes de vara. Era um tanto exagerado este santo irlandês? Era simplesmente o homem do seu tempo que devia tratar com pessoas freqüentemente muito rudes, as quais se convenciam mais facilmente com as lições do bastão do que com as piedosas exortações. Existia ainda um outro fator: para eles a penitência bem cumprida era como ter pago o próprio débito e ter readquirido a inocência. E mais, um chefe que não castigasse os culpados não tinha nenhum direito de mandar e de ser obedecido. O ambiente do qual provinha a grandíssima maioria dos monges não era certamente refinado.

A maldade de Bruneilde A mesma corte do rei Teodorico era um exemplo de imoralidade e de violência. Aí quem mandava era a rainha-mãe, Bruneilde, que, para conservar o poder nas suas mãos, não permitia a seu filho que se casasse dando-lhe, porém, plena liberdade – embora mãe e filho se afirmassem cristãos – de ter à sua disposição um autêntico harém. Em vão o bispo de Viena, Desidério, havia pedido ao rei que colocasse ordem na sua vida. Mas como se opor à mãe? O pobre rei foi pedir conselho a Columbano, que era tão apreciado por todos. Bruneilde aceitou ir fazer uma visita ao homem de Deus e levou consigo os


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dois filhos ilegítimos do rei, pedindo ao abade que os abençoasse. A bênção do homem de Deus teria legitimado diante de todos a situação irregular de Teodorico e teria assegurado aos dois meninos a herança do reino. Nesse meio tempo Bruneilde teria podido reinar sem oposições. Columbano não caiu na armadilha e sentenciou inexorável: “Estes não levarão jamais o cetro”. Os súditos odiavam Bruneilde, mas jamais nenhum se havia oposto às suas ordens. Vão fazê-lo somente quando ela perder importância por obra dos francos. Só então os seus correligionários a prenderão na cauda de um cavalo selvagem, colocando-o em corrida. Nesse tempo ela tinha todo o poder em suas mãos e muitos bandidos, às suas ordens. Decretou o bloqueio total do convento: ninguém podia entrar ou sair sob pena de morte. Os monges deveriam ficar esfomeados até conseguir que se revoltassem contra o abade para conseguir, deste, maior respeito para com a rainha. O estratagema não surtiu o seu efeito e Bruneilde procurou um caminho mais simples, mandando Teodorico carregado de presentes para reconciliar-se com o abade e receber sua bênção sobre os filhos. A tentativa foi inútil. Depois da rejeição, o rei penetrou no refeitório com os seus presentes, mas aconteceu o pior: havia violado a clausura e foi amaldiçoado e expulso para fora do mosteiro pelos monges. Bruneilde fez que o rei decretasse o desterro do seu reino para Columbano e todos os monges de origem irlandesa, que foram aprisionados e levados para Besançon com a proibição de voltar a colocar os pés no reino. Um duro golpe para as três comunidades columbanas, mas os monges do lugar estavam bem preparados para levar em frente a vida que o mestre havia gerado no meio deles. Mas com grande alegria de todos, depois de um certo tempo, Columbano reapareceu para a comunidade de Luxeuil e retomou o seu posto. Bruneilde desta vez tomou nas mãos, ela mesma, o assunto. Matá-lo não se podia, porque era tal a veneração de que gozava junto do povo que além de torná-lo mártir teria podido causar uma revolta. Aquele teimoso irlandês, desobediente aos chefes do reino que tão benevolamente o haviam hospedado, devia ser escoltado até o mar e embarcado em um navio pago pelo Estado que o levasse para sua terra natal. Quando os soldados se encontraram diante do abade não tiveram a coragem de prendê-lo, mas, atirando-se aos seus pés, suplicaram-lhe que tives­ se compaixão da vida deles porque, se ele não obedecesse à rainha, as cabeças dos soldados teriam sido esmagadas.


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Columbano viu nisso um sinal divino: saudou os seus filhos e com o pequeno grupo dos irlandeses colocou-se em viagem para o mar escoltado pelos enviados reais. Antes de embarcar no navio escreveu uma carta aos seus monges, exortando-os à perseverança: “Se afastares os adversários não existe mais luta, e sem luta não existe coroa. Com a luta a coragem, a vigilância, o fervor, a paciência, a fidelidade, a sabedoria, a firmeza. Mas se suprimes a liberdade, suprimes também a dignidade”. Era o seu grito de guerra: nenhum poderoso do mundo devia espezinhar a liberdade dos seus monges. Enquanto se abandonava confiante à vontade divina, certo de ter realizado sua missão no continente, a nave que o levava para a Irlanda encalhou a pouca distância da praia e o capitão, apavorado de ser amaldiçoado por Deus, fez voltar para a terra os monges e renunciou ao empreendimento.

A viagem para Bobbio Não era o caso de voltar para Luxeuil para espicaçar a fúria de Bruneilde. O grupo dos monges preferiu tentar uma nova obra evangelizadora em outras terras. Dirigiu-se para o reino de Clotário, que o acolheu com grande benevolência e lhe ofereceu a possibilidade de fundar mosteiros, mas Colum­ bano, tendo feito que lhe concedessem víveres e uma embarcação, preferiu ir para outro lugar subindo as margens do Reno. Deteve-se em Tuggen, no lago de Zurich, onde a comunidade cristã havia conservado algumas formas de culto pagão, adorando ídolos nas festividades anuais ligadas aos fenômenos da natureza. O companheiro mais autoritário de Columbano, o monge sacerdote de nome Galo, para acabar com o paganismo atirou no lago as imagens dos ídolos e destruiu com as suas mãos seu pequeno templo de madeira, provocando uma revolta popular que obrigou os monges a fugir. A etapa posterior foi no lago de Constança onde foram acolhidos por um bravo sacerdote, que lhes ofereceu uma igrejinha em Bregenz para construir aí um mosteiro. No entanto, a família de Bruneilde tinha sido destruída e o rei dos fran­ cos, que havia ocupado o reino, enviou o abade de Luxeuil com uma carta, convidando Columbano a voltar para a Gália, onde teria gozado de todos os privilégios. Mas o velho lutador já tinha no seu coração o projeto de viajar para Roma, para difundir o seu carisma na cidade eterna, em ajuda à Sé de Pedro. Aproveitou de fato algumas dificuldades surgidas com os notáveis de Bregenz para ordenar aos seus monges que recolhessem as tendas e se


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colocassem a caminho. Galo não era, porém, deste parecer, e pela primeira vez na sua vida se opôs ao grande mestre e decidiu ali permanecer. Coisa inaudita para Columbano que, mesmo consentindo que permanecesse, lhe impôs como penitência não poder celebrar a missa por toda sua vida. Galo permaneceu ali e continuou o seu trabalho com sucesso e a região por ele reevangelizada tomou o seu nome: Saint-Gallen. Columbano, ao invés, atravessou os Alpes e apresentou-se na corte de Agilulfo, rei dos longobardos. O rei, devido ao interesse da rainha Teodolinda, acolheu-o com todas as honras e lhe destinou um terreno e uma igrejinha perto do rio Bobbio. Aí, embora carregado de anos e achaques, ele, no breve espaço de um ano, deu vida à construção de um mosteiro, a última grande obra sua, que superará pela importância todas as anteriores. Morreu no dia 23 de novembro de 615, quando os seus mosteiros já constituíam uma espécie de rede que mantinha unidos na mesma fé cristã povos diversos, amalgamando-lhes as culturas na única língua latina e fazendo reflorescer em toda parte uma civilização cristã enriquecida por novas contribuições.

A espiritualidade columbana A espiritualidade que Columbano apresenta aos monges e ao povo é simples e decidida. Justamente foi definida como o evangelho aplicado ao seu tempo. Procuramos resumi-la seguindo tudo o que ele próprio escreveu nas Instruções aos monges:19 Se o homem usar retamente daquelas faculdades que Deus concedeu à sua alma, então será semelhante a Deus. Recordemo-nos que lhe devemos restituir todos aqueles dons que ele depositou em nós quando estávamos na condição original. Ele nos ensinou o modo com os seus mandamentos. O primeiro deles é o de amar o Senhor nosso com todo o coração, porque ele por primeiro nos amou, desde o início dos tempos, ainda antes que nós viéssemos à luz deste mundo. O amor de Deus é a renovação da sua imagem. Ama verdadeiramente a Deus quem observa os seus mandamentos, visto que ele disse: ‘Se me amardes, observareis os meus mandamentos...’ (João 14,15). O seu mandamento é o amor recíproco. Assim é que foi dito: ‘Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos tenho amado’ (João 15,12).

19. Das Instruções, IV e XI.


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O verdadeiro amor, porém, não se demonstra com as simples palavras, ‘mas com fatos e na verdade’ (Primeira Carta de João 3,18). Devemos, portanto, restituir ao Deus e Pai nosso a sua imagem não deformada, mas conservada íntegra mediante a santidade da vida... Precisamos restituí-la na caridade, porque ele é caridade, segundo o que diz João: ‘Deus é amor’ (Primeira Carta de João 4,8). Precisamos restituí-la na bondade e na verdade, porque ele é bom e verdadeiro. Não sejamos, pois, pintores de uma imagem diversa desta. Pinta em si mesmo a imagem de um tirano quem é violento, fácil no irar-se e soberbo. Para que não aconteça que pintemos no nosso ânimo imagens tirânicas, intervenha o próprio Cristo e trace no nosso espírito os traços específicos de Deus. Faça-o exatamente infundindo em nós a sua paz, ele que disse: ‘Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz’ (João 14,27).

Em um mundo cheio de rivalidade e assinalado por vinganças sangui­ nárias, Columbano gosta de repetir que os discípulos de Cristo devem ser “espirituais e unânimes”, homens que entendem as coisas de Deus e sabem viver na concórdia fraterna, amando a unidade e participando assim da unidade da Igreja, espelho da unidade mesma de Deus. Columbano se augura que “todos os filhos de Deus possuam a verdadeira paz e a plena caridade, graças à concórdia dos seus costumes e da sua vontade”.20 Mas para chegar à unanimidade é necessário seguir Cristo crucificado. Um seguimento que não gera tristeza, mas enche de alegria porque “não existe sofrimento no amor”, “naquele amor de Deus que renova em nós a sua imagem”. É uma síntese da ascese cristã; todas as outras prescrições penitenciais, freqüentemente bastante rígidas para a nossa sensibilidade moderna, serviram para educar povos que traziam sobre seu lombo experiências seculares de violência.

24 de novembro Santo André Dung-Lac sacerdote e companheiros mártires vietnamitas (+ 1839) “A Igreja vietnamita com os seus mártires e mediante o seu testemunho pôde proclamar a sua vontade e o seu empenho de não repelir as tradições culturais

20. Ep. I


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e institucionais legais do país; ao contrário, declarou e demonstrou que quer encarnar-se nelas, contribuindo com fidelidade para a verdadeira edificação da pátria.” 21

O atual Vietnã, uma república subdividida em trinta e cinco províncias, abrange três antigos países: Tonquim no norte, Anam no centro e Cochinchina no sul. O primeiro anúncio do cristianismo chegou à Cochinchina por obra dos missionários portugueses e espanhóis no início do século XVI, mas só no século seguinte começou a tomar consistência por obra dos missionários franceses.

Uma história gloriosa Um deles, Alexandre de Rodhes, é considerado o apóstolo fundador dessa jovem Igreja asiática. Foi ele que codificou o alfabeto da língua vietnamita e fundou as famosas “Casas de Deus”, onde recolhia e educava aqueles jovens que desejavam dedicar toda a sua vida à difusão do Evangelho na sua terra, ligando-se por este motivo ao voto de castidade. O seu trabalho revelou-se preciosíssimo, sobretudo quando sobrevieram as perseguições. De fato, em 1645 o padre de Rodhes foi expulso, mas esses discípulos continuaram a obra evangelizadora. Em 1669, os jesuítas retornaram e permaneceram no país até a sua supressão em 1773. Com eles vieram também os padres dominicanos da província de Manila, nas Filipinas, e os sacerdotes das Missões Estrangeiras de Paris. A comunidade cristã nesse tempo havia crescido e a Santa Sé constituiu dois Vicariatos Apostólicos no Tonquim: um na parte ocidental confiado às Missões Estrangeiras de Paris e o outro na parte oriental confiado aos padres dominicanos. Os sacerdotes das Missões Estrangeiras tomaram a seu cuidado particular as “Casas de Deus”, fundaram uma congregação feminina, “As Amantes da Cruz”, e iniciaram com sucesso a formação do clero local. Tudo isso acontecia no meio das perseguições, porque desde 1625 a 1886 foram emanados cerca de cinqüenta e três editos contra os cristãos com 21. João Paulo II na homilia da canonização. Citado in: Lodi, E. I santi del calendario romano. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, p. 627.


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a morte de cerca de 130 mil fiéis. Destes, cento e dezessete foram canonizados por João Paulo II no dia 19 de maio de 1988. Só durante o reino de Gia-Long (1802-1820), que reuniu em um só Estado o Tonquim e a Cochinchina, os cristãos tiveram um período de paz. Quando o poder passou para as mãos do filho Minh-Manh, a perseguição tornou-se impiedosa, condenando à morte também até quem ousasse esconder os cristãos. Dos cento e dezessete mártires canonizados, cerca de cinqüenta e oito foram condenados por Minh-Manh. Um outro rei particularmente contrário aos cristãos foi Tuc-Duc que reinou de 1847 a 1883. Por causa da política colonial francesa ele nutria uma profunda aversão para com tudo o que fosse europeu. Não conseguindo distinguir a fé cristã da política ocidental, ele se propôs a exterminar no seu reino o estrangeiro e a sua religião.

A feroz perseguição de Tuc-Duc Por esse motivo estabeleceu que quem colaborasse para a captura de um missionário recebia uma recompensa de trezentas onças de prata, ao passo que o missionário devia ser atirado no rio depois de ter-lhe arrebentado o crânio. Os sacerdotes locais e os catequistas estrangeiros eram degolados, ao passo que os catequistas do lugar traziam impressa no rosto a marca “Ta dao”, que significa “Falsa religião”, entregando-os assim ao desprezo público. Os simples cristãos, se quisessem ter salva a vida, deviam renegar a fé pisando na cruz diante dos juízes. No edito desse rei se lê: “A doutrina de Jesus vem dos europeus; ela proíbe o culto dos antepassados e a adoração dos espíritos. Para enganar o coração dos homens e fascinar os adeptos, ela fala do céu e de uma água santa. Aqueles que pregam esta má doutrina, sabendo que a lei do reino não pode tolerar semelhantes erros, representam aos olhos do povo a imagem do suplício de Jesus, seu chefe, para seduzir os ignorantes e fazê-los enfrentar a morte sem arrependimento... Quando os cristãos são denunciados, são punidos sem misericórdia, mas estes imbecis estão tão profundamente cegos que um grande número permanece ainda agarrado a esta má doutrina”.22

22. Cf. Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / XI. Udine, Edizione Segno, 1991, pp. 283-284.


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Diante da firmeza dos cristãos, Tuc-Duc, em 1810, decretou a dispersão de todos os católicos, separando os maridos das mulheres e os filhos dos genitores, mandando-os para regiões distantes no meio dos pagãos e confiscando-lhes todos os seus bens. Além disso, fazia estampar na face direita do rosto as letras “Ta dao” e sobre a face esquerda os nomes da região aonde eram confinados. Calcula-se que naquele período desapareceram cerca de 50 mil cristãos, mesmo que – por sorte – o decreto não tenha sido aplicado ao pé da letra em todas as províncias do reino. Dos cento e dezessete mártires canonizados, oito são bispos, cinqüenta são sacerdotes, cinqüenta e nove são leigos. Quanto à nacionalidade: noventa e seis são vietnamitas, onze espanhóis e dez franceses. Entre os leigos: muitos pais de família, uma mãe, dezesseis catequistas, vários chefes de comunidade, quatro médicos e seis militares. Damos algumas breves notícias de alguns deles: André Dung-Lac nasceu no norte em 1795, tornou-se catequista e depois sacerdote. Foi martirizado em 1839 e é o que encabeça a lista no calendário litúrgico tanto para o culto que goza dentro de seu país, quanto pelo exemplo luminoso que deu durante toda a sua vida. Paulo Lê-Bao-Thin, depois de ter estudado no seminário, foi mandado, mesmo não sendo ainda sacerdote, como missionário no vizinho Laos. Em 1841 foi aprisionado e condenado a estrangulamento, mas a sentença foi revogada devido a uma anistia geral. Seu bispo ordenou-o sacerdote e lhe confiou o seminário de Vinh-Tri. Nesse período escreveu dois livros: as Homilias para uso dos sacerdotes e o Compêndio da doutrina cristã para uso dos catequistas. Aprisionado novamente em 1857, depois de um breve processo foi decapitado. Damos aqui um trecho de uma carta escrita por ele aos seminaristas de Ke-Vinh em 1843, durante o seu primeiro aprisionamento: Eu, Paulo, prisioneiro pelo nome de Cristo, quero fazer-vos conhecer as tribulações nas quais cotidianamente estou imerso, para que, inflamados pelo amor divino, eleveis comigo os vossos louvores a Deus... Este cárcere é verdadeiramente a imagem do inferno: aos cruéis suplícios de todo gênero, como os cepos, as cadeias de ferro, as cordas, acrescentam-se o ódio, as vinganças, as calúnias, as palavras obscenas, as acusações falsas, maldades, juramentos iníquos, maldições e finalmente angústia e tristeza (...). No meio destes tormentos (...), pela graça de Deus, estou cheio de alegria e de júbilo, porque não estou sozinho, mas Cristo está comigo...


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Eu vos escrevo tudo isto para que a vossa e a minha fé formem uma só coisa. Enquanto se enfurece a tempestade atiro a âncora até o trono de Deus: esperança viva, que reside no meu coração.23

Inês Lê-Thi-Than. Mulher de um agricultor e mãe de seis filhos, todos educados na fé cristã, foi encarcerada porque hospedava na sua casa os missionários em visita aos cristãos do vilarejo e, na chegada da polícia, os escondia em uma cisterna vazia. Foi arrancada do marido e dos filhos, e torturada várias vezes, mas não renegou a fé. Morreu no cárcere a 12 de julho de 1841 depois de uma grave doença. Particularmente interessante parece-nos a história de três militares da província de Nam-Dinh no tempo do rei Minh-Manh. São eles: Domingos Dinh-Dat, Agostinho Huy e Nicolau Thê. Acusados de serem cristãos, não o negaram e foram colocados na prisão. Tendo sido submetidos inutilmente durante um ano inteiro a freqüentes torturas para obter deles, sua apostasia, os torturadores recorreram a um engano ministrando-lhes uma bebida com droga. Sob o efeito dos narcóticos por seu intermédio os três, sem se aperceberem, subscreveram a abjuração, receberam cada um uma soma de dinheiro e foram enviados livres para suas casas. Aí tomaram conhecimento do engano. Agostinho e Nicolau foram a Huê, a capital, narraram o engano sofrido, restituíram o dinheiro ao rei e pediram para serem julgados segundo as leis do Estado. Encarcerados receberam duas folhas: uma com uma série de injúrias contra Jesus e a promessa da libertação, a outra uma lista de acusações e a condenação à morte. Os dois soldados não hesitaram e assinaram sua folha de condenação. Conduzidos para o alto-mar foram cortados pela metade e lançados à água para servir de repasto aos peixes. Era o dia 13 de junho de 1839. Domingos, que não tinha podido seguir seus dois companheiros porque foi retido à força em casa pelos seus parentes, assim que lhe foi possível apresentou-se às autoridades locais, restituiu o dinheiro e fez sua profissão de fé. Foi condenado à forca cinco dias depois da morte dos seus colegas. João Paulo II, na homilia da canonização dos mártires vietnamitas, exprimiu muitíssimo bem uma característica particularmente significativa na experiência desta Igreja: Os mártires vietnamitas” – disse o Papa – “semeando entre as lágrimas, na realidade iniciaram um diálogo profundo e libertador com a população e com

23. Da Carta de Paulo Lê-Bao-Thin aos seus seminaristas. Cf. Liturgia das Horas.


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a cultura da sua nação... (Eles) afirmaram com vigor sua vontade de lealdade às autoridades do país, sem contrariar tudo o que era justo e reto; ensinaram a respeitar e a venerar os antepassados, segundo os costumes da sua terra, à luz do mistério da ressurreição.

30 de novembro Santo André apóstolo (século I) “A palavra de André é a palavra de uma pessoa que aguardava com ansiedade a vinda do Messias, que lhe aguardava a descida do céu, que estremeceu de alegria quando o viu chegar, e que se apressou a comunicar aos outros a grande notícia. Dizendo logo ao irmão o que havia sabido, mostrou quanto o estimava, como estava afeiçoado aos seus queridos, quanto sinceramente os amava e como estava pressuroso de pôr ao alcance deles o caminho espiritual.” 24

Maravilha e encanta esta espontaneidade de André, irmão de Simão, nascido em Betsaida. Junto com o pai Jonas e com o irmão dedicava-se à pesca no lago de Tiberíades, na Galiléia, e morava em Cafarnaum. No seu nome percebese que a influência da cultura grega tinha chegado também àquela região. O episódio mais simpático da sua vida nos é narrado no Evangelho de João (Jo 1,35-42). André tinha ido para as margens do Jordão junto com João, o futuro evangelista, para escutar João Batista. Este, lhes indicando Jesus, disse: “Eis o Cordeiro de Deus!”. “E os dois discípulos” – narra o evangelista – “ouvindo-o falar assim, seguiram Jesus. Jesus então se voltou e, vendo que o seguiam, disse: ‘Que procurais?’ Responderam-lhe: ‘Rabi (que significa Mestre), onde moras?’ Disse-lhes: ‘Vinde e vede’. Foram, pois, e viram onde morava e ficaram aquele dia junto dele; eram cerca de quatro horas da tarde.” O encontro deve ter sido particularmente marcante, visto que os dois recordavam até mesmo a hora daquele dia inesquecível: “Eram cerca das quatro horas da tarde” [Diz o texto bíblico: Era cerca da hora décima (Jo 1,39), e a nota confirma a equivalência: pelas 4 horas da tarde].

24. João Crisóstomo. PG 59, 120.


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“Um dos dois” – continua o autor do quarto evangelho – “que tinham ouvido as palavras de João e o haviam seguido era André, irmão de Simão Pedro”. São João Crisóstomo faz este comentário: “André, tendo ficado perto de Jesus e tendo aprendido muitas coisas, não manteve escondido em si este tesouro, mas apressou-se a correr para junto de seu irmão para torná-lo participante disso”. Já o destino dos dois estava marcado para sempre, porque o Mestre havia colocado seus olhos neles. Este, de fato, segundo a narrativa do evangelista Marcos, “passando junto do mar da Galiléia, viu Simão e André, irmão de Simão, enquanto lançavam as redes ao mar; eram de fato pescadores. Jesus disse-lhes: ‘Segui-me, eu vos farei pescadores de homens’. E logo, deixadas as redes, seguiram-no” (Marcos 1,16). André foi com João entre os mais íntimos de Jesus. A ele se dirigiu Filipe para que dissesse a Jesus que os gregos o queriam ver (João 12,20-23). Quando Jesus pediu que dessem de comer à multidão que o havia escutado, André apresentou ao Mestre um menino com cinco pães e dois peixes (João 6,8-9). No Monte das Oliveiras perguntou a Jesus, junto com Pedro, Tiago e João, quando aconteceria a destruição do maravilhoso templo que brilhava diante dos seus olhos (Marcos 13,3). Depois da paixão, André está com os outros apóstolos no cenáculo aguardando a vinda do Espírito Santo (Atos dos Apóstolos 1,13) e depois de Pentecostes, segundo a tradição, André teria encorajado o apóstolo São João a narrar os fatos e as palavras de Jesus no seu evangelho.25 Segundo Orígenes, André teria pregado o evangelho na Citia, no Ponto Euxino, na Capadócia, na Galácia e na Bitínia. Depois, segundo são Jerônimo, teria passado a evangelizar a Acaia, firmando-se em Patrasso, onde teria sofrido o martírio aproximadamente nos anos 60, pregado em uma cruz, cujos braços eram dispostos diagonalmente. Daqui o nome de cruz de Santo André. Mais tarde, no século IV, suas relíquias foram transportadas para Cons­ tantinopla, que o escolheu como seu padroeiro. A nova Roma possuía “o troféu” do irmão de Pedro e deu a André o título de Protocleto, isto é, de primeiro chamado, mesmo que o mesmo título diga respeito igualmente a São João evangelista. Em 1208, os amalfinenses levaram para a sua cidade as relíquias do apóstolo e, em 1462, deram sua cabeça à Igreja de Roma. Em sinal de reconciliação o papa Paulo VI, em 1964, restituiu essa relíquia para a igreja irmã de Constantinopla. Atualmente a relíquia da cabeça de Santo André é conservada em Patrasso. 25. Fragmento Muratoriano 10-15.


DEZEMBRO

3 de dezembro São Francisco Xavier sacerdote (1506-1552) “Muito freqüentemente me vem à mente percorrer as universidades da Europa, especialmente a de Paris, e pôr-me a gritar aqui e acolá como um doido e sacudir aqueles que têm mais ciência que amor. (...) Na verdade, muitíssimos deles, entregando-se à meditação das coisas divinas, dispor-se-iam a escutar tudo o que o Senhor diz ao seu coração e, colocadas de lado suas ambições e os afazeres humanos, colocar-se-iam totalmente à disposição da vontade de Deus. Gritariam certamente do profundo do seu coração: Senhor, eis-me aqui, que queres que eu faça? Manda-me para onde queiras, até mesmo para as Índias.” 1

Com estas abrasadoras palavras, Francisco Xavier, o missionário mais audacioso de todos os tempos, procurava sacudir o torpor da Europa para que fossem enviados ao Oriente não mais cobiçosos comerciantes em busca de riquezas, mas generosos apóstolos da Boa-Nova. Ele tinha os olhos presos, sobretudo, na Sorbonne, onde se iniciara sua extraordinária aventura. Quando Inácio de Loyola entrou no colégio de Santa Bárbara em Paris, foi-lhe destinado um quarto para compartilhar com Pedro Fabro, saboiarno, 1. MHSI [Monumenta Historica Societatis Jesu], vol. 67. Roma, 1944, pp. 167-169.


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e Francisco Xavier, navarrês, dois jovens cheios de vida e ricos de engenho. Inácio, de idade muito mais avançada que a deles e mais acanhado no comportamento, pensou logo em incendiá-los com aquele amor que Deus havia acendido nele em Manresa. Aguardava só o momento oportuno. Com Fabro, de coração simples e aberto, foi muito fácil, não o foi, entretanto, com o nobre navarrês. Este havia nascido em 1506 no castelo dos Xavier, em Navarra, e os seus irmãos tinham combatido no assédio de Pamplona contra Inácio e, mesmo que em um primeiro tempo tenham saboreado a alegria da vitória, tiveram de sofrer depois o castigo do imperador. Aventuras tristes, mas já passadas, que no jovem Francisco não haviam deixado nenhum trauma.

Um navarrês teimoso O seu sonho, por outra parte, não eram as armas, mas os estudos, para conquistar depois as mais elevadas dignidades. Por esse motivo, assim que conseguiu o título de mestre em filosofia, preparou por meio de um notário um documento com as provas dos seus estudos e de todos seus títulos nobiliárquicos e o enviou ao imperador Carlos V para a ratificação. Inácio sabia de todas essas andanças, mas em seu coração tinha a certeza de que cedo ou tarde aquele teimoso navarrês se rendiria: “Um coração tão grande e uma alma tão nobre” – disse-lhe um dia – “não se podem contentar com efêmeros amores terrenos. Sua ambição deve ser a glória que dura para a eternidade”. A presença discreta e constante de Inácio provocava certa estranheza no coração de Francisco, mas ele não queria dá-lo a conhecer, ao invés, nem ele mesmo queria saber disso e, como para esconjurar todo perigo, divertia-se rindo-se daqueles que se colocavam sob a orientação espiritual de Inácio. “Ele resistia” – diz o historiador R. García-Villoslada – “como um peixe que salta na água, mas que tem já na boca o anzol”.2 De fato, a 15 de agosto de 1534 estava também ele juntamente com Inácio e os seus primeiros companheiros em Montmartre para consagrar-se a Deus para sempre, mesmo que não tivesse ainda feito os Exercícios espirituais. Daquele dia em diante deixou-se penetrar até o íntimo pelo carisma do seu pai e mestre. Sob a sua obediência, de Paris dirigiu-se para Veneza, depois para

2. García-Villoslada, R. Sant’Ignazio di Loyola. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, p. 408.


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Roma e finalmente para o Extremo Oriente. Francisco Xavier tinha iniciado a sua divina aventura, que teria sido breve, mas particularmente luminosa.

Missionário de novo estilo Antes de partir para a Índia, Inácio, que o amava ternamente, instruiuo bem sobre o método missionário da nascente Companhia de Jesus. Eis algumas linhas mestras: conhecer e adaptar-se à psicologia e aos costumes dos indígenas, evitando naturalmente os perigos da idolatria e os erros morais; colocar-se a serviço dos nativos com as obras de misericórdia como hospitais e colégios; escolher entre os seus jovens os mais idôneos para promovê-los não só religiosamente, mas também intelectualmente de maneira que se possam ter o mais breve possível sacerdotes e bispos autóctones; finalmente manter sempre vivos os contatos epistolares com ele, Inácio. Esta última recomendação tinha dois objetivos: ter viva e alimentar a chama do seu carisma e sensibilizar o Ocidente a proporcionar meios e pessoal para as missões. Francisco entendeu muito bem e tomou a sério o pensamento do seu fundador como se vê da sua correspondência, recolhida e publicada por Inácio em Roma, em 1545, com o título de Litterae Indicae [Cartas Índicas]. Xavier partiu de Roma com a nomeação papal de núncio apostólico, mas para ter acesso ao imenso mundo oriental tinha a necessidade da permissão e do apoio do rei de Portugal e por isso dirigiu-se logo para a corte de João III. Os portugueses já estavam bem estabelecidos em vários pontos ao longo da rota de circunavegação da África e depois em Goa, na Índia, e nos vários países asiáticos até as portas da China e do Japão. Outros missionários já haviam chegado acompanhando as naus portuguesas e haviam batizado indígenas que, de alguma forma, estavam ligados aos novos recém-chegados. Xavier zarpou de Lisboa a 7 de abril de 1541, dia em que completava 35 anos. A viagem foi longa e tempestuosa e durou cerca de treze meses, enfrentando perigos de todo gênero. Assim que chegou a Goa, apresentouse ao bispo e, mostrando o breve papal de núncio, disse: “Usarei dos meus privilégios quando e como agrade a Vossa Senhoria, não mais que isso”. Goa era a diocese mais extensa do mundo, porque começava em Moçambique, na África, e chegava até o Japão: havia lugar para todos. O bispo por isso respondeu-lhe com muita liberalidade: “Usai sem reservas todos os poderes que Sua Santidade vos concedeu”.


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Viajante incansável Colocou-se logo ao trabalho com as pessoas do lugar. Escreveu, como primeira atividade, um catecismo elementar em português para dar aos catequistas um ponto de referência e contemporaneamente entregou-se à pregação e à assistência aos doentes no hospital da cidade e aos leprosos fora da cidade. Quando se havia aclimatado ao novo ambiente, deixou Goa e dirigiuse para a Índia meridional. Desembarcou em Cabo Comorim e dirigiu-se para junto dos paravi, uma população indígena de cerca de 20 mil pessoas, dedicada à pesca de pérolas, e daí o nome de Pescaria dado a essa região que se estendia por cerca de 200 km de costa. Eram pobres, viviam em cabanas de terra e palha, e também os seus chefes religiosos, os brâmanes, em geral não conheciam a escrita. Vários paravi tinham sido batizados pelos capelães que acompanhavam as naus portuguesas, mas sem nenhuma preparação séria, uma vez que con­ tinuavam a viver como pagãos. Francisco, mesmo tendo levado consigo de Goa três paravi cristãos que conheciam bem o português e lhe serviam de intérpretes, quis aprender a língua do lugar para poder ensinar diretamente o Creio, o Pai-Nosso, a Ave-Maria e os Dez Mandamentos, e fazer um pequeno discurso de preparação para o batismo. Queria também ter a possibilidade de dizer as coisas fundamentais de cada dia. Adaptou-se também ao estilo de vida dos indígenas, vestindo-se pobremente e deslocando-se de aldeia em aldeia descalço. Depois dos paravi foi a vez dos habitantes de Travancor. Também aqui o missionário foi bem acolhido pelo povo, mas encontrou dificuldades com os brâmanes, que viam nele um rival e um destruidor do seu sistema religioso tradicional. Francisco, porém, recolheu conversões também no meio deles. Em uma das suas cartas a Inácio, ele narra que, depois de ter declamado em um pagode diante dos brâmanes e na sua língua os Dez Mandamentos, deixando uma pausa para reflexão entre um e outro mandamento, “os brâmanes levantaram-se todos de pé e me abraçaram, dizendo que verdadeiramente o Deus dos cristãos é o verdadeiro Deus, porque os seus mandamentos são tão conformes com toda a razão natural”.3

3. Ibid., pp. 1029-1030.


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De Travancor, Francisco passou para a populosa cidade de Cochim e também nela recolheu bons frutos. Sentia-se, porém, de coração apertado pensando nas fervorosas, mas muito jovens comunidades cristãs que deixava para trás. É verdade que procurava formar catequistas, mas uma tradição cristã que possa assegurar a comunidade não se improvisa em pouco tempo! Sonhava em ir a Paris e repetir aquilo que Inácio havia feito com ele, mas depois entendia que era inútil perder tempo com sonhos. A ele cumpria semear a Boa-Nova, como haviam feito os apóstolos, e confiar em Deus, sem renunciar aos apelos aflitos dirigidos diretamente a Inácio. Enquanto estava em viagem para voltar a estar entre os paravi em Cabo Comorim, os ventos arrastaram sua nave para a atual Madras, onde a tradição afirma que foi sepultado o apóstolo Tomé. Depois de se ter recuperado fisicamente e espiritualmente à sombra do apóstolo que havia colocado sua mão na chaga de Cristo, Francisco continuou sua aventura de evangelização. Foi para a península de Malaca e nas ilhas Molucas desenvolvendo um apostolado que tem o sabor do miraculoso. Foram anos de grandes sacrifícios e de grandes consolações como ele mesmo escreveu a Inácio: “Não me recordo de nunca ter tido tantas e tão contínuas consolações espirituais como nestas ilhas”.

Até o Japão Em Malaca teve um encontro providencial com um japonês, Anjiro, à procura do cristianismo. Ele sabia um pouco de português e havia ouvido falar de Francisco, e agora que o tinha diante dos seus olhos não se cansava de fazer perguntas. “Se os japoneses” – escrevia em janeiro de 1548 a Inácio – “forem todos assim tão curiosos por saber como Anjiro, parece-me que seja a gente mais curiosa de todas as terras que foram descobertas...”. Anjiro não se contentava em escutar, mas redigia por escrito na própria língua tudo quanto ouvia para aprofundá-lo e para poder contá-lo depois à sua gente. Não era este para Francisco um sinal evidente de que Deus o chamava a evangelizar o Japão? Enquanto preparava esse ambicioso projeto, Inácio de Roma lhe mandava reforços. Depois de ter distribuído os novos missionários nos pontos estratégicos de onde podiam seguir e solidificar as novas comunidades cristãs, Francisco partiu com Anjiro e outros dois japoneses que se tornaram, nesse


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meio tempo, cristãos, de volta para o Japão. Anjiro no batismo havia escolhido para si o nome de Paulo de Santa Fé, como auspício da nova missão que estavam para empreender. Costearam a Indochina e a China, e a 15 de agosto de 1549 desembarcaram em Kangoshima, cidade natal de Paulo. Anjiro narrou aos seus parentes e amigos o seu encontro com o cristianismo e uma centena de japoneses pediu que lhe fosse permitido seguir seu exemplo. No Japão, Francisco, tendo já visto em vários lugares os efeitos negativos de uma fé ligada à potência colonial de Portugal, procurou construir um cristianismo genuíno baseado na conversão e sem apoios externos. “Durante este ano em que estamos na cidade de Paulo” – escreveu a Inácio – “estamos ocupados em instruir os cristãos, em aprender a língua e em introduzir no idioma falado no Japão muitas coisas da lei de Deus, isto é, aquelas que se referem à criação do mundo, expondo brevemente o que é necessário para saber que existe um Criador de todas as coisas... até chegar à Encarnação de Cristo, tratando da sua vida, através de todos os mistérios até a Ascensão...”.4 Os missionários não se detiveram em uma só cidade, mas com a permissão dos respectivos governadores locais foram se deslocando para outras regiões recolhendo numerosas conversões. Depois de pouco mais de dois anos de intenso trabalho, Francisco deixava no Japão três florescentes comunidades cristãs com mil e quinhentos membros, confiando-as ao seu sucessor, o jesuíta Cosme de Torres.

A última viagem Do Japão, Francisco voltou para Goa. Não lhe havia dito Inácio que conservasse sempre vivos os laços com a fonte do carisma? Em Goa, de fato, aguardava-o um maço de cartas e entre elas a nomeação da parte de Inácio para provincial de todas as missões do Oriente, com exceção da Etiópia. Depois de ter respondido que aceitava a nomeação e depois de ter colocado em ordem as coisas da província, encorajando os padres e afastando algum que não se comportava segundo as indicações de Inácio, Francisco empreendeu a viagem que deveria coroar seus sonhos de evangelização da China. Tomou consigo, como tradutor, um chinês que havia estudado durante sete anos no colégio de São Paulo em Goa e que no batismo havia tomado 4. Ibid., pp. 1041-1042.


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o nome de Antônio de Santa Fé, passou por Cabo Comorim, onde visitou os padres que cuidavam de uma comunidade florescente com cerca de 40 mil cristãos, depois para Malaca e daí, depois de uma longa e penosa espera, dirigiu-se para a China. Chegou à ilha de Sancian, diante de Cantão, não encontrou ninguém que quisesse introduzi-lo naquele fabuloso e temível país, até que um rico comerciante desse país se ofereceu para levá-lo às escondidas, mediante pagamento, deixando-o com seu intérprete perto da casa do governador da cidade. Aí Francisco deveria apresentar-se dizendo que desejava falar com o imperador para “expor a lei de Deus”. Em Sancian, Francisco adoeceu gravemente, e Antônio de Santa Fé nada pôde contra a inexorável febre que truncava a vida do missionário. Assim o amigo chinês narra os últimos momentos do seu amado mestre: “Com os olhos voltados para o céu, com o rosto muito alegre e em voz alta, à maneira de oração, fazia alguns discursos de coisas que eu não entendia porque não eram na nossa língua...; e assim... continuou a falar com grandíssimo fervor por cinco ou seis horas e tinha sempre na boca o nome de Jesus”.5 Morreu no alvorecer do sábado, 3 de dezembro de 1552, aos 45 anos de idade.

Um evangelizador carismático Na atualidade houve e há críticos que duvidaram e duvidam a respeito da validade do método evangelizador de Francisco Xavier. É difícil dar um julgamento correto, devido à mentalidade de hoje, sobre fatos daquela época. Parece-nos ter sido bastante objetivo, quando escreveu a esse respeito, um historiador moderno muito apreciado, Lortz, na sua História da Igreja: “A obra verdadeiramente incomensurável e incansável, mas extremamente pura nas intenções e na atuação deste santo genial... é compreensível somente se considerada como genuína expressão daquele espírito religioso-eclesiástico, que reinava, em uma atmosfera de santidade e do mais elevado ativismo, em torno da pessoa e do sistema do fundador (...). É necessário pensar naquele fogo misterioso que o Senhor trouxe do céu. Esse fogo ardia em Francisco Xavier”. Francisco era um pioneiro, mas não foi nunca um aventureiro nem mes­ mo um visionário. Onde ele semeava o Evangelho gerava também verdadeiras 5. Ibid., p. 1057.


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comunidades cristãs, que depois confiava a outros distribuindo com muita sagacidade os missionários nos pontos mais estratégicos, de modo que pudessem consolidar a formação dos neófitos. O fato de que muitos dos cristãos fossem capazes de enfrentar também o martírio para conservar a fé, testemunha de maneira inequívoca a profundidade da evangelização de Francisco Xavier nos poucos anos – apenas dez – em que ele atuou no imenso continente asiático.

4 de dezembro São João Damasceno sacerdote e doutor (650-753) “Apascenta-me, Senhor, e apascenta tu comigo os outros, para que o meu amor não se dobre nem para a direita nem para a esquerda, mas o teu Espírito bom me conduza sobre o caminho reto, para que as minhas ações sejam segundo a tua vontade e o sejam verdadeiramente até o último instante.” 6

Esta oração tão simples na sua formulação e tão profunda no seu significado foi amplamente ouvida. O monge João não só percorreu o caminho reto da ascese até os cumes da santidade, mas tornou-se mestre inconteste da fé no Oriente e no Ocidente e ainda hoje pode ser um elo para o diálogo ecumênico entre as duas Igrejas irmãs.

A vida no mundo João nasceu em Damasco no ano 650, a menos de vinte anos da morte de Maomé, quando o Islã estava em plena expansão e tinha colocado a sede do seu califado exatamente em Damasco. O califa respeitava os cristãos que constituíam a maioria da população e confiava o governo aos seus chefes religiosos, contentando-se com a cobrança das taxas. Naturalmente o domínio islâmico se tornava pesado, porque os cristãos eram sempre da categoria dos vencidos. 6. Declaração de fé do santo: PG 95, 419.


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Já o avô de João, chefe cristão da cidade, tinha precisado fazer vista grossa durante o assédio, estabelecendo com o inimigo a rendição. Com esse gesto, ditado pela necessidade de evitar aos seus concidadãos a mais completa destruição, ele havia ganhado a benevolência do califa, mas também a aversão do imperador cristão de Bizâncio, que lhe mudou o nome de Mansur (em árabe, o Vitorioso) para Manzer (em hebraico, o Bastardo). Também Sérgio Mansur, o pai de João, continuou a tradição familiar: fidelidade absoluta à fé cristã e colaboração com o califa dentro da legalidade. Era convicção comum naquele tempo, também entre os cristãos, que quem obtivesse a vitória com a espada, a conseguia por vontade divina e era preciso, portanto, obedecer-lhe. A tarefa de Sérgio era recolher as taxas dos cristãos para depois prover às necessidades do califa e dos seus súditos: ele era o Grão-vizir, hoje diríamos o ministro das finanças. Tinha dois filhos: João e Cosme. Este último era adotivo, mas nem por isso deixava de ser tão amado como o outro. Ambos foram enviados para estudar com um monge siciliano instruído que os muçulmanos tinham tomado como escravo em uma das suas razias e que Sérgio havia resgatado, levando-o para a sua casa como preceptor dos seus filhos. Se ele conseguiu preparar tão bem os seus alunos, é porque devia ser um monge de valor quanto ao saber e quanto à santidade: Cosme tornou-se bispo e João seguiu a carreira paterna de Grão-vizir do califado.

No eremitério de São Sabas João, depois de muitos anos a serviço do califado, sentiu forte o chamado à solidão monástica e, assim que sua família perdeu o favor do novo califa, não pensou duas vezes. Vendeu sua rica herança dando o dinheiro obtido aos pobres, deixou Damasco com a suntuosa casa e retirou-se para perto de Jerusalém na ermida de São Sabas. O eremitério era um mosteiro formado por muitos pequenos casebres se­parados entre si, em cada um dos quais vivia em solidão um monge, orando e ganhando o alimento com as próprias mãos. Os monges tinham em comum só a igreja na qual se encontravam para a santa liturgia. Quando João entrou aí tinha cerca de 50 anos e sua vocação foi sub­ me­tida a muitas e duras provas antes de ter o direito de chamar-se monge. Tinha uma rica experiência humana e uma cultura incomum. Na corte não


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se havia deixado arrastar pelo estilo libertino dos seus iguais e quanto mais via desprezada a fé cristã, mais a aprofundava e a vivia. Encontrar-se agora no recinto do eremitério era como voar para os espaços límpidos do paraíso e qualquer sacrifício lhe parecia uma futilidade.

Apóstolo da Igreja Sua presença, porém, não passou despercebida em Jerusalém e o patriarca da cidade foi procurá-lo, e com a sua autoridade de bispo mostrou-lhe que a cristandade no Oriente estava atravessando um período muito difícil: fora, judeus e muçulmanos acusavam-na de idolatria por causa do culto às imagens; dentro, acérrimas disputas teológicas criavam divisões e aumentavam a confusão. E como se tudo isso não bastasse, o imperador de Bizâncio, Leão III o Isáurico, cristão também ele, apropriava-se do título de sacerdote e com um edito legislava sobre a Igreja e ordenava a destruição de todas as imagens sagradas, exceto as de Maria e do Salvador. Não que não houvesse abusos nesse campo. Em certos lugares, os sacerdotes raspavam as cores dos ícones para misturá-los com o vinho distribuído aos fiéis depois da celebração eucarística, atribuindo a essa mistura sabe-se lá que poderes mágicos. Mas uma coisa era reprimir os abusos, como tantos bispos já faziam, e outra coisa era querer destruir um patrimônio de fé que para o povo, em grandíssima parte analfabeto, constituía, junto com a pregação, o caminho normal para a catequese. Ora, João não só conhecia bem a fé, mas tinha também o dom da palavra e não podia permanecer tranqüilo no seu casebre, enquanto fora os lobos matavam e dispersavam as ovelhas indefesas. Assim, o bispo conseguiu convencer o monge a se fazer ordenar sacerdote e, mesmo continuando ligado ao eremitério de São Sabas quanto ao seu estilo de vida, dedicava o seu tempo não a cultivar a horta ou a podar a vinha, mas a tomar na mão a pena e a escrever, saindo também dos sagrados muros quando algum bispo lhe pedisse sua presença e sua pregação. Damasceno, que por tantos anos havia servido a Deus no califa, podia agora recusar-se a obedecer ao próprio bispo, mesmo vendo infringido o sonho de uma vida recolhida no silêncio e na oração, na contemplação da natureza e no canto dos hinos litúrgicos? Aceitou e começou logo a escrever e a pregar. Uma tarefa que jamais havia feito e que empreendia com a mesma solenidade e devoção com que outros monges do seu eremitério pintavam os sagrados ícones.


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Mestre da fé Dirigiu-se então a Deus com esta comovente oração: “Agora, ó Senhor, tu me chamaste por meio do teu sacerdote (o patriarca de Jerusalém) a servir os teus discípulos. Não sei com qual desígnio tu tenhas feito isto; só tu o sabes. Todavia, Senhor, alivia o pesado fardo dos meus pecados, com os quais gravemente faltei; limpa a minha mente e o meu coração; guia-me pela reta via como uma lâmpada luminosa; dá-me uma palavra franca quando abro a boca; dá-me uma língua clara e expedita por meio da língua de fogo do teu Espírito e a tua presença sempre me assista”.7 E, dirigindo-se à comunidade cristã, continuava assim sua oração: “Tu, nobre vértice de perfeita pureza, ó nobilíssima assembléia da Igreja, que aguardas ajuda de Deus; tu em que Deus habita, acolhe de nós a doutrina da fé imune de erros”.8 Compôs três Discursos apologéticos contra o decreto do imperador iconoclasta, pronunciados na presença do patriarca na igreja próxima do Santo Sepulcro e que se tornaram famosos em todo o Oriente. Encerrou em uma frase exemplar o correto significado do culto aos ícones: “Não é a matéria que nós honramos, mas o que essa matéria representa; a honra que se presta à imagem transmite-se a quem nela é representado”. O patriarca de Jerusalém conseguiu reunir no ano 730 todos os bispos que não estavam sob o governo imperial e com eles reafirmou a legitimidade do culto às imagens, declarando o imperador fora da comunhão eclesial por se ter arrogado o poder de legislar em matéria de fé. Por ironia da sorte, os bispos, que tinham como chefe político um califa, gozavam de maior liberdade religiosa do que aqueles que tinham um imperador cristão.

Doutor da Igreja A obra de Damasceno não ficou confinada ao problema das imagens. Ele escreveu uma obra poderosa que o tornou famoso: A fonte do conhecimento, dividida em três partes. Na primeira parte faz uma exposição meditada da fé servindo-se da filosofia aristotélica; na segunda parte refuta todas as heresias surgidas até o seu tempo; na terceira parte, A fé ortodoxa – a mais conhecida e apreciada –, narra a verdadeira fé da Igreja como foi professada e transmitida desde os padres. 7. Ibid. 8. Ibid.


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Tal obra constituiu por muitos séculos no Oriente a síntese mais lida de teologia dogmática. De João restaram outros escritos como hinos litúrgicos e homilias. São Teófano, o Confessor, no século IX, chamava João Damasceno de distribuidor de ouro, para dizer que suas palavras eram todas perpassadas pelo sopro do Espírito. O mesmo Tomás de Aquino serviu-se amplamente dos escritos de João Damasceno. Morreu na sua ermida – segundo a tradição – no ano 753. Alguns anos depois no conciliábulo de Hieria, reunido pelo imperador Constantino Coprônimo, os bispos imperiais teriam dito: “A Trindade fez desaparecer os três”, referindo-se eles à morte de três famosos defensores do culto às imagens, entre os quais Damasceno; em 787, o Concílio de Nicéia criava a frase: “A Trindade glorificou os três”. Ainda hoje quem penetra no conhecimento desse santo fica admirado pela sua humildade, pela sua fidelidade aos padres e pelo seu “sentir com a Igreja”. Mesmo sendo colocado em posição eminente na sociedade e dotado de uma rara inteligência, nunca alardeou sua posição social e sua eloqüência; exerceu a pregação com gosto literário comedido e com clareza de comunicação para servir da melhor maneira a Igreja, entendendo-se sempre como “o último e inútil servo”. Ele, seguindo o uso do tempo, não se empenhou para ser um teólogo especulativo, mas recolheu o pensamento dos padres com a veneração de quem sabe ter entre as mãos não o fruto do próprio pensamento, mas o tesouro da verdadeira fé. Em 1890 foi reconhecido doutor pela Igreja de Roma por ação de Leão XIII e a sua memória entrou também na liturgia latina.

6 de dezembro São Nicolau bispo (270ca-350) “Na tua bem-aventurada alma construíste toda espécie de preciosíssimas virtudes, como brilhantíssimas pedras em um precioso tesouro, de modo que a quase todos aqueles que se encontram debaixo do sol te tornaste brilhantíssimo pela fama.” 9

9. Santo André de Creta. Da Liturgia das Horas.


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A figura deste santo bispo, tão amado e celebrado em todo o mundo, está envolvida freqüentemente na lenda. Sua fama — que da cidade de Mira, na Lícia, difundiu-se por todo o Oriente, compreendida a grande Rússia, e em todo o Ocidente até nos países escandinavos e anglo-saxônicos — tem certamente um fundamento histórico e é portador de grandes valores humanos e cristãos. Teria nascido em Patara, na Lícia, na Turquia atual, aproximadamente no ano 270 de uma riquíssima família. Ficou órfão e, sendo filho único, empregou os seus bens para socorrer os pobres, os enfermos e os prisioneiros. Da narrativa do socorro oculto que prestou a três garotas de uma nobre família empobrecida, para libertá-las do perigo da prostituição, surgiu em muitos lugares a tradição de oferecer o dote às meninas pobres por ocasião da festa de São Nicolau. O bispo de Mira, observando a vida evangélica do jovem Nicolau, quis inseri-lo entre os seus presbíteros. Por ocasião da morte desse bispo, o povo elegeu Nicolau para substituí-lo. Nicolau continuou com maior fervor sua obra caritativa, empregando não só os seus bens familiares, mas também os recursos da sua Igreja. Fiel à fé dos pais não se deixou contaminar pela heresia ariana e tomou parte, no ano 325, no Concílio de Nicéia, onde foi proclamada a divindade de Cristo. Teria morrido a 6 de dezembro entre 345 ou 350. Sepultado na catedral de Mira entre o pranto geral dos seus fiéis, foi logo venerado como santo. Quando a região da Ásia Menor caiu sob o poder dos sarracenos, um grupo de marinheiros de Bari no ano 1087 conseguiu transferir os ossos de Nicolau e transportá-los para Bari, onde foi construído para ele aquele maravilhoso templo que se admira ainda hoje. A fama de Nicolau e os numerosos e extraordinários milagres atribuídos à sua intercessão fizeram-no um dos santos mais populares da cristandade. Na fantasia popular foi depois transformado e secularizado tornando-se o Weihnachtsmann no norte da Alemanha, Saint Klaus nos países anglo-saxônicos e Papai Noel nos países latinos. Mas além da instrumentalização consumista, o santo bispo ainda hoje lança um apelo atualíssimo sobre a destinação social dos bens. Além do mais, pela sua proveniência da Igreja oriental, foi construído em Bari um instituto ecumênico que traz o seu nome.


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7 de dezembro Santo Ambrósio bispo e doutor (340ca-397) “Eis um homem que não foi nutrido no seio da Igreja, que não foi chamado quando criança, mas que aí chegou raptado dos tribunais... eis um homem que passou das disputas do fórum para o canto dos salmos; ei-lo sacerdote não por virtude sua, mas por graça de Cristo, assentado entre os convidados para a mesa celeste.” 10

De catecúmeno a bispo, não obstante a proibição do segundo cânon do Concílio de Nicéia. Para Ambrósio abriram uma exceção, aplicando ao seu caso a expressão: Vox populi vox Dei! [A voz do povo é a voz de Deus!]. Ele estava em Milão para governar, além daquela região, também a Ligúria e a Emília, quando morreu o bispo Auxêncio que havia seguido a fé ariana. Ambrósio sabia que os cristãos estavam profundamente divididos entre arianos e católicos, e, na esperança de evitar que surgissem graves tumultos, tinha se dirigido à basílica cristã, onde leigos e presbíteros estavam reunidos junto dos bispos da província para eleger o novo pastor. Não pretendia intrometer-se nesse assunto interno da Igreja, mas recomendou calorosamente que a eleição se desenvolvesse em um clima de paz, como convinha a verdadeiros cristãos. Seu discurso foi acolhido em respeitoso silêncio e agradou a ambas as facções. Em um dado momento alguém gritou: “Ambrósio, bispo!” A aclamação foi repetida unanimemente pelo povo, e Ambrósio encontrou-se em uma situação verdadeiramente e ilimitadamente absurda. Sabia que como catecúmeno não podia ser eleito bispo; isso sem contar que não havia recebido nenhuma preparação para um tal cargo. Tentou, pois, todos os meios para subtrair-se, mas no fim precisou aceitar, também porque a vontade do povo era confirmada pelo beneplácito dos outros bispos e do próprio imperador.

Quem era Ambrósio? A maior parte das notícias sobre Ambrósio devemo-las a seu secretário, o diácono Paulino, que dele escreveu a Vida, mediante sugestão de Santo Agostinho.

10. Santo Ambrósio. De poenitentia, II, 8.


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Seu nome de família pertencia à gens Aurelia e podia orgulhar-se de uma sólida tradição cristã. Já sob Diocleciano uma parenta, Sotere, “jovem filha de magistrados e de cônsules”, havia honrosamente enfrentado o martírio. Nasceu aproximadamente no ano 340 em Treviri onde o pai, que se chamava também Ambrósio, era prefeito das Gálias. Não conhecemos o nome da mãe: tinha uma irmã maior, Marcelina, e um irmão, Sátiro. Ele era o terceiro filho do casal. Com a morte imprevista do pai toda a família retornou para Roma. A viúva não tinha dificuldades econômicas para levar adiante a educação dos filhos, porque possuía bens até na África. Marcelina escolheu o seu caminho e no ano 343 consagrou-se virgem na basílica de São Pedro durante a solene liturgia da noite de Natal celebrada pelo papa Libério. Deste acontecimento Ambrósio conservou uma belíssima recordação e a sua estima pela irmã foi sempre muitíssimo elevada. Entretanto, Sátiro e Ambrósio dedicavam-se aos estudos para entrar para a carreira dos funcionários imperiais, a mais estimada e a mais rendosa. Certamente Ambrósio nesse período precisou estudar não só os clássicos latinos, mas também os clássicos gregos, porque adquiriu um ótimo domínio dessas duas línguas. Terminados os estudos, encontramo-lo em Sírmio na Panônia, na atual parte ocidental da Hungria, como advogado do pretório daquela prefeitura. Pelas suas capacidades, aproximadamente em 370, foi escolhido como governador das províncias da Ligúria e da Emília com sede em Milão. O prefeito de Sírmio, ao comunicar-lhe essa nomeação, lhe teria dito: “Vai, comporta-te não como juiz, mas como bispo”.11

Antes cristão, depois bispo Sendo um homem inteiramente imparcial e a serviço do bem público, logo ganhou não só a estima, mas também o afeto da população. Também por isso, depois de breve tempo, o fiel servidor do império precisou aceitar, malgrado seu, a eleição para pastor da Igreja milanesa. Sob a direção do presbítero Simpliciano preparou-se para o batismo. Tornar-se cristão foi para Ambrósio fazer a escolha decisiva daquele estilo de 11. Paulino. Vita, 8.


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vida muito bem conhecido também em Milão, o estilo próprio dos ascetas. Se não podia se retirar para a vida privada em um mosteiro, podia, porém, encarnar como bispo todos os valores evangélicos da vida monástica. Despojou-se dos seus bens, também das possessões de terras na África recebidas em herança, doando-os à Igreja em benefício dos pobres; empenhou-se não só em viver casto, mas em promover a virgindade, vendo nela o ornamento mais nobre de uma comunidade cristã; restava-lhe a sua vontade, mas também esta quis submeter a Simpliciano, não para se subtrair das suas responsabilidades de bispo, mas para ter um mestre espiritual com quem confrontar-se. Com estas disposições recebeu o batismo a 30 de novembro e a plenitude do sacerdócio no dia 7 de dezembro do ano 374. Escolheu como colaborador o presbítero Simpliciano, abade do pequeno mosteiro de presbíteros que habitavam com o novo bispo, seguindo nisso o exemplo de santo Eusébio de Vercelli. Mais tarde, recordando esse primeiro período do seu episcopado, dirá que em geral uma pessoa primeiro aprende e só depois é que ensina, enquanto para ele aconteceu o contrário: encontrou-se na cátedra sem ter antes aprendido.12 Mas talvez não fosse exatamente assim: ele já tinha o cristianismo no sangue e o Evangelho, ele o vivia desde criança. Habituado a cumprir os seus deveres com competência, entregou-se ao estudo acurado da Sagrada Escritura e dos padres da Igreja. O conhecimento do grego lhe facilitava o acesso aos grandes padres orientais, como Orígenes, Atanásio e Basílio. Estudava e orava, depois escrevia e pregava. Mais tarde, em uma carta ao neo-eleito bispo Vigílio, dava estes conselhos: “Os teus sermões sejam fluentes, puros, cristalinos, e que o teu ensinamento moral soe doce aos ouvidos do povo e a graça das tuas palavras conquiste os ouvintes, para que te sigam docilmente aonde tu os conduzes. O teu falar seja pleno de sabedoria”.13 Era o seu modo de propor a palavra de Deus ao seu povo. Testemunha-o santo Agostinho, que nesta matéria era muito exigente. Enquanto estava em Milão, foi um dia, por curiosidade, à basílica onde Ambrósio pregava, ficou fascinado e o escolheu como seu mestre na fé. Se Ambrósio passava muitas horas no estudo, não podia deixar de atender aos outros deveres de um bispo. Uma atividade, a sua, muito intensa, mas também muito organizada. Depois da sua morte foram necessários cinco bispos auxiliares para levar adiante todas essas tarefas.

12. Santo Ambrósio. De officiis, I, 1,4. 13. Id., Carta 2,5: PL 16, 881.


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Defensor dos pobres Uma das tarefas dos bispos naquele tempo era dar audiência. Eram muitos os que acorriam a Ambrósio com os seus problemas, sobretudo aqueles que eram vítimas de injustiças. Talvez vissem ainda nele o ótimo governador, mas, sobretudo, queriam escutar sua palavra e seu conselho. Ele conhecia bem as leis dos homens e a lei de Deus, e sabia encontrar para cada um a estrada justa para que os direitos dos pobres não fossem espezinhados. Por sua natureza era simples, mas quando se tratava de defender os pobres tornava-se um leão e não voltava atrás nem diante do imperador e dos seus generais. Quando Teodósio ordenou a matança na cidade de Tessalônica, impediu-lhe o ingresso na igreja e, para ser readmitido à eucaristia, o primeiro cidadão do império precisou sujeitar-se à penitência pública como qualquer outro pecador. Aos seus sacerdotes recordava distribuir os bens da Igreja sem esquecer nenhum necessitado: “Lembra-te daqueles que estão no cárcere; devem estar presentes na tua memória também os doentes, que não podem gritar aos teus ouvidos”.14 No ano 378, depois de uma invasão de soldados nórdicos, que tinham levado consigo, como escravos, homens e mulheres, o bispo não hesitou em fundir as peças de ouro e os vasos sagrados para pagar seu resgate. A quem teve a ousadia de criticá-lo respondeu: “Se a Igreja tem ouro, não é para guardá-lo, mas para doálo a quem dele precisa. Se não o tivesse dado, o Senhor me poderia dizer: ‘Como suportaste que tantos pobres morressem de fome? Como permitiste que tantos prisioneiros fossem assassinados? Melhor conservar os cálices vivos das almas do que aqueles de metal’. Teria podido talvez responder que não podia privar o templo do esplendor conveniente? Dir-me-ia o Senhor: ‘Os sacramentos não têm necessidade do ouro, porque não é com o ouro que se obtêm’”.15

A formação dos ministros do altar Ambrósio tomava essa tarefa particularmente muito a sério. Para eles, que estavam reunidos em vida comum ao redor de Simpliciano no conhecido mosteiro dos presbíteros, escreveu Os deveres dos eclesiásticos em três livros.

14. Ibid., II, 102ss. 15. Id., De officiis, 11, 136ss.


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“Queria-os plenamente conformados a Cristo, possuídos totalmente por ele e providos das mais sólidas virtudes humanas: a hospitalidade, a afabilidade, a fidelidade, a lealdade, uma generosidade que espanta a avareza, a reflexão, um pudor impoluto, o equilíbrio, a amizade. Exigente quanto paterno, o seu afeto para com os sacerdotes era verdadeiramente transbordante: ‘Por vós, que gerei no Evangelho, não nutro menor amor do que se vos tivesse gerado pelo matrimônio’.”16

Cantor da virgindade Um capítulo glorioso da ação pastoral de Ambrósio foi o cuidado das pessoas consagradas a Deus. Em Milão eram muitos os ascetas e as virgens disseminados em numerosos mosteiros masculinos e femininos ao redor da cidade. E eram numerosas também as virgens que, mesmo permanecendo nas suas famílias, se dedicavam ao serviço da comunidade. Ambrósio, que na sua família tinha delas um exemplo admirável na irmã Marcelina, tornou-se o cantor da virgindade. “A virgindade” – dizia – “foi procurar no céu o modelo a imitar na terra; e era justo que se procurasse no céu a norma de vida, ela, que no céu havia encontrado o Esposo, foi transportada para além das nuvens, para além dos espaços estelares, acima dos próprios anjos; no seio do Pai encontrou o Verbo de Deus e com o poder do seu amor o atraiu a si... E quem poderá negar que tenha vindo do céu este gênero de vida, se na terra era praticamente desconhecido antes que Deus nela descesse para assumir a natureza humana? Foi exatamente quando a Virgem concebeu no seu seio, e o Verbo se fez carne para que a carne se tornasse Deus... Quando o Filho de Deus se fez homem unindo, sem nenhuma mancha carnal, a natureza divina à humana, então esta vida celeste se difundiu entre os homens e fora em todas as partes do mundo”.17 O ideal que apresentava era tão belo que, mesmo o seguindo, acorriam a ele numerosos jovens da alta sociedade não só de Milão e das cidades italianas, como Bolonha e Piacenza, mas até mesmo da distante África. As famílias, sobretudo aquelas de alto coturno, começaram a alarmar-se e proibiram às suas filhas de ir para a Igreja para escutá-lo.18 Para as virgens escreveu cerca de cinco livros. 16. João Paulo II. Operosam diem, no 10. 17. Santo Ambrósio. De virginibus, 1,3. 18. Ibid., I, 10, 58ss.


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Co-responsável por toda a Igreja Sua ação pastoral não se restringiu à diocese de Milão nem mesmo à Itália do norte, da qual era metropolita e onde fundou novas dioceses, escolheu e consagrou bispos dignos e preparados, mas sua influência estendeu-se até a Panônia, a Dácia, a Macedônia. Foi pessoalmente a Aquiléia, a Sírmio, a Vercelli, a Bolonha, a Florença, a Pavia e a Roma, fazendo sentir em toda parte sua influência de homem de paz. Em Roma defendeu o papa Dâmaso contra o antipapa Ursino. Ele tinha um sentido muito distinto das funções do bispo de Roma como centro de unidade para todos os cristãos. É sua a famosa expressão: “Onde está Pedro, aí está a Igreja”.

Defensor da liberdade da Igreja Tratou com os políticos do tempo com muito tato, mas também com energia. Um momento muito delicado para Ambrósio foi quando, lá pelo fim de 384, a imperatriz Justina acolheu com todas as honras em Milão um bispo ariano, Mercurino, e quis que Ambrósio lhe cedesse uma igreja. Este opôs uma nítida rejeição, ao passo que o povo ocupou a igreja para não cedê-la ao ariano. A corte voltou atrás e pediu-se a Ambrósio que acalmasse a população. A imperatriz aguardou um ano para pôr-se na contra-ofensiva, emanando uma lei que concedia liberdade de culto aos arianos e cominava severas penas para quem a essa lei se opusesse. Entre ela e Ambrósio estabeleceu-se um braço de ferro. À ordem peremptória de entregar a Mercurino a basílica Porcia nas portas de Milão, Ambrósio respondeu que “um sacerdote de Deus não pode entregar a qualquer pessoa o seu templo”. O povo colocou-se do lado de Ambrósio e a corte deu ordem aos soldados de passar à repressão. Ambrósio admoestou os soldados que seriam privados da comunhão com a Igreja, se tivessem usado a violência. Muitos militares abandonaram o seu posto e os outros não moveram um dedo. A corte também desta vez precisou ceder. Na Páscoa de 387 Ambrósio batizava, com outros catecúmenos, Agostinho de Hipona, que havia participado de todos aqueles acontecimentos, admirando a firmeza e a prudência do bispo. Dez anos depois, em fevereiro de 397, voltando de uma viagem a Pavia para a ordenação de um bispo, Ambrósio adoeceu gravemente e a 4 de abril, sábado santo, recebeu a eucaristia e deixou esta terra.


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Doutor da fé A produção literária de Ambrósio é muito vasta e fez dele um grande padre da Igreja, merecendo dela, com pleno direito, o título de doutor. Ele não era um especulativo como Agostinho, mas um pastor inteligente que ensinava a sã doutrina com competência e fidelidade. Na escolha dos argumentos era guiado pelas necessidades concretas da sua Igreja: escrevia o que devia pregar. É considerado também pai da mariologia latina. “De Maria Ambrósio foi o teólogo refinado e o cantor incansável. Ele oferece um retrato atento, afetuoso, particularizado, tratando-lhe das virtudes morais, da vida interior, da assiduidade ao trabalho e à oração. Mesmo na sobriedade do estilo, transparece sua cálida devoção à Virgem Maria, Mãe de Cristo, imagem da Igreja, modelo de vida para os cristãos. Contemplando-a no júbilo do Magnificat, o santo bispo de Milão exclama: “Em cada um esteja a alma de Maria a engrandecer o Senhor, esteja em cada um o espírito de Maria a exultar em Deus”.19 Às virgens escrevia: “Que a vida de Maria seja para vós, ó virgens, o tipo perfeito da virgindade na qual, como em um espelho, resplandecem a imagem da castidade e o ideal da virtude”.20 Sempre por razões pastorais tratou dos sacramentos da iniciação cristã e da penitência. Assim fala da eucaristia: “Tu talvez dirás: este pão é como o outro. Sim! Antes que sejam pronunciadas as palavras da consagração é pão como qualquer outro; mas depois da consagração de simples pão torna-se carne de Cristo... Como acontece isto? Mediante o poder das palavras pronunciadas (por intermédio do sacerdote) pelo próprio Cristo”,21 e convidava à comunhão freqüente. Opôs-se decididamente contra os restos do paganismo, sobretudo quando senadores nostálgicos queriam recolocar em evidência o culto da deusa Vitória, também para tornar amigo um conspícuo grupo de sacerdotes pagãos que desse modo teriam recebido do Estado o seu pagamento. Nesta ocasião ele escreveu: “Não existe nenhuma segurança para quem não adora com sinceridade o verdadeiro Deus, o Deus dos cristãos, pelo qual o universo é governado. Somente ele é o verdadeiro Deus, e a ele apenas devemos adorar.

19. João Paulo II. Operosam diem, no 31. 20. Santo Ambrósio. De virginibus, II, 2,6. 21. Id., De sacr. IV, 4,14.


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Os deuses pagãos não são senão demônios, diz a Escritura. Quem, portanto, milita para o verdadeiro Deus e o adora com profundo respeito não deve fazer uso de ficções, nem de conivências, mas consagrar-lhe todo o seu zelo e a sua devoção”.22 Como mestre de vida Ambrósio tem uma linha propositiva, não se limitando à simples proibição do não fazer, mas indicando sempre o bem a atuar em vista não só da perfeição pessoal, mas também do bem-estar social. Mesmo dotado de tantos dons, estava consciente da própria fraqueza, como revela esta sua oração: “Dá-me ser humilde, ó Deus, e concede-me que toda vez que se tornar conhecido o pecado de uma pessoa caída, eu tenha de compadecêla e não elevar soberbamente a minha voz, mas chorar e gemer ao lado dela e assim, enquanto choro pelos outros, choro também por mim mesmo”.23 Talvez também por isso sua delicadeza para com a humana fragilidade, Deus o escolheu como instrumento para a conversão do grande Agostinho.

10 de dezembro Santa Joana Francisca de Chantal fundadora das visitandinas (1572-1641) “Existe um outro martírio, o martírio de amor, no qual Deus, enquanto mantém em vida os seus servos e as suas servas para que se desgastem por sua glória, tornaos juntamente mártires e confessores... Pronunciai o vosso sim total a Deus e tereis disso a prova... Conheci uma alma, que o amor a separou de tudo o que lhe era mais caro assim como se os perseguidores a golpes de espada lhe tivessem separado o espírito do corpo”. 24

A pessoa da qual Joana Francisca está falando é ela mesma e o martírio de amor é a experiência da sua vida. Nascera em Dijon, na Borgonha, a 23 de janeiro de 1572, de pais nobres e profundamente cristãos. Pelo lado materno podia gloriar-se de descender da linhagem de são Bernardo de Claraval. 22. Id., cf. Epist. 17 e 18. 23. Cit. in: Manns, P. I santi, I. Milano, Jaca Book, 1989, p. 201. 24. Das Memorias de Chaugy, sobrinha e secretária de Madame Chantal. Cf. Liturgia das Horas.


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Tinha apenas dezoito meses quando sua mãe morreu e foi confiada aos cuidados de uma nutriz. Cedo, porém, o pai a quis de volta ao castelo e acompanhou pessoalmente e com muito afeto sua formação humana e cristã. Quando precisou afastar-se da sua região por causa da guerra, confiou-a à irmã mais velha já casada. A seguir consentiu de boa vontade no seu matrimônio com Cristóvão II, barão de Chantal, em Bourbilly.

Uma castelã feliz Um matrimônio bem realizado, alegrado pelo nascimento de seis filhos, mesmo que dois deles tenham morrido pequeninos. Madame de Chantal era enamorada do seu esposo e gastava o tempo dedicando-se a ele e aos filhos, criando um espírito de harmonia entre os numerosos serviçais do castelo e ajudando todos os pobres do condado que vinham lhe pedir ajuda. Encontrava também o tempo de sair para visitar e socorrer os doentes nas suas casas. Uma família grande a sua, aberta à humanidade; e uma família feliz, baseada no amor verdadeiro entre os seus membros. O barão orgulhava-se pela esposa que tinha e deixava-lhe plena liberdade de ação, também quando notava que a dispensa e a cantina se esvaziavam continuamente. A vida que se desenvolvia no castelo de Bourbilly parecia repisar as pegadas daquela que viveu séculos antes em um outro castelo, aquele dos pais de são Bernardo de Claraval. O encanto, porém, não durou longamente, porque em 1601, em um simples incidente de caça, o barão perdeu a vida e a esposa sentiu demasiadamente esse golpe a ponto de se temer pela sua mesma saúde. Foi aconselhada a transferir-se para Dijon junto do pai com os seus quatro filhos e, quando parecia ter readquirido a necessária serenidade, lhe chegou a ordem ameaçadora de ir habitar no castelo do seu sogro, se não quisesse que ele deserdasse a ela e aos filhos. Ela se submeteu, mas a sua vida em Monthelon tornou-se insuportável. Submetida à tirania da governante do sogro, não podia mover um passo sem a sua permissão. Restava-lhe só Deus e o amor aos filhos.

Deus a queria toda para si, mas como? É verdade que era ainda jovem e bela, e muitos nobres pediam sua mão, mas casar novamente era uma coisa em que não pensava, mesmo porque na sua alma tinha-se acendido um forte desejo de uma vida inteiramente consagrada


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a Deus. Tinha a certeza de que Deus a queria toda para si, mesmo que não soubesse como isso poderia se realizar. Confiou-se, portanto, à orientação de um padre capuchinho e se submeteu às sugestões desse sacerdote que a sobrecarregou com uma infinidade de orações e de práticas penitenciais enchendo-lhe a alma de escrúpulos. Chegou até a estampar o nome de Jesus no seu peito do lado do coração com um ferro em brasa. Estava neste estado quando na quaresma de 1604, enquanto passava um período de repouso junto do seu irmão André, bispo em Bruges, encontrou são Francisco de Sales, que estava pregando a quaresma naquela cidade. O entendimento entre os dois foi imediato. A espiritualidade salesiana, inteiramente evangélica e por isso plenamente humana, permitiu à jovem dama deixar de lado uma piedade que tinha gosto de jansenismo. Descobriu com imensa alegria o rosto amoroso de Deus e começou a experimentar com ele uma profunda união mesmo no meio do mundo e na realização dos seus deveres de mãe. Francisco, que estava escrevendo o Tratado do amor de Deus, constatava em Madame Chantal a validade das suas intuições e ao mesmo tempo via abrir-se novos horizontes para uma santidade não reservada somente aos mosteiros. Madame Chantal, serenado o seu ânimo e sempre mais enamorada de um Deus que lhe mostrava amor, conseguiu amansar o seu sogro, experimentando a verdade das palavras do seu mestre, o qual lhe havia dito que “se prendem mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre”. Mesmo que não pudesse mais dispor dos bens como no tempo do seu marido em Bourbilly, ao menos podia sair e dar sua assistência aos doentes. Durante uma epidemia prodigalizou-se além da medida e por fim contraiu também a doença, mas curou-se.

Um desígnio corajoso Enquanto Madame Chantal exprimia o desejo de se retirar para um convento de carmelitas assim que tivesse estabilizado seus filhos, Francisco de Sales pensou que tivesse chegado o tempo de fazê-la conhecedora de um seu desígnio muito vivo para aquela época, o de fundar uma ordem religiosa feminina que unisse a vida contemplativa à vida ativa, que tivesse a profundidade espiritual dos mosteiros, mas sem a obrigação da clausura, para poder sair pelas ruas do mundo e influir sobre a sociedade secular. O santo bispo tinha visto algo semelhante alguns anos antes durante sua visita a Roma, onde se


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tinha encontrado com as oblatas de santa Francisca Romana, também ela viúva, fundadora de um instituto que unia virgens, viúvas e mulheres casadas, e as colocava a serviço dos pobres nas suas casas. Expôs o seu projeto a Madame Chantal e os dois decidiram passar logo aos fatos. De acordo com o irmão bispo, André, e com os outros familiares, Madame Chantal pensou na sistematização dos filhos. Celso Benigno iria para junto do tio bispo, e depois seguiria a carreira militar, como era seu sonho; Maria Amada já se havia casado e vivia muito bem com o marido; Carlota tinha partido para o paraíso fazia tempo; restava Francisca que, posta a par do projeto materno, quis seguir junto com a mãe, mesmo que mais tarde tenha escolhido o matrimônio. Quanto a Maria Amada, casada com o irmão de Francisco de Sales, enviuvando, tornou-se também visitandina. Quando já parecia tudo bem organizado, no dia em que Joana devia deixar a casa, Celso Benigno teve um arrependimento e se opôs tenazmente deitando-se na soleira da porta da casa: se exatamente quisesse ir-se embora, a mãe devia passar sobre seu corpo. E Madame Chantal, com o coração em pedaços, o fez. Houve quem criticou esse gesto, mas talvez ninguém teria tido motivo para criticar se Madame Chantal o tivesse feito para voar para novas núpcias com um homem.

As visitandinas Com esta dor imprevista, Madame Chantal vivia uma outra etapa do seu martírio de amor e juntamente com outras três jovens dava início, em Annecy, à primeira casa das visitandinas. O bispo concordou com elas a respeito deste nome, porque queriam reviver o episódio evangélico da visita de Maria a Isabel, prestando o seu serviço aos pobres e visitando-os nas suas casas. Mais tarde, em uma carta de 14 de outubro de 1614, são Francisco escrevia: “A Visitação coloca-se entre as congregações como as violetas entre as outras flores: sabe ser miúda e pequenina, e de cor menos deslumbrante. Basta-lhe que Deus a tenha criado para o seu serviço e para que forneça um pouco de perfume à sua Igreja”. Para a nova família que nascia, Francisco havia encontrado também o brasão: o coração de Jesus elevado em uma cruz, coroado de espinhos e transpassado por duas lanças, significando o amor para Deus e para o próximo, que têm a sua fonte no coração de Cristo e se alimentam no mistério da cruz. Mais tarde será uma visitandina, Margarida Maria Alacoque, o instrumento escolhido por Deus para difundir no mundo a devoção ao Sagrado Coração.


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Depois de um ano de experimentação, o pequeno manípulo emitia os votos, enquanto chegavam numerosas as vocações, fomentando a abertura de novas casas, primeiramente na França e depois na Itália. Por ocasião da morte do fundador, as casas já eram treze e por ocasião da morte da fundadora eram oitenta e seis. Todavia o desígnio, que Deus tinha inspirado aos dois fundadores, não demorou e foi modificado. Depois de longas e dolorosas negociações com o arcebispo de Lyon, fortalecido com o apoio de outros bispos, as visitandinas precisaram tornar-se uma ordem contemplativa sob a regra de santo Agostinho. Aquilo que Francisco de Sales e Joana Francisca de Chantal pensavam da missão da mulher na Igreja e da sua capacidade de viver os conselhos evangélicos, praticando-os para o bem da humanidade inseridas no mundo, não era ainda compreensível para a mentalidade eclesiástica daquele tempo. Os dois santos fundadores aceitaram essa permissão de Deus e continuaram a formar suas filhas na alegria. Joana Francisca de Chantal precisou viajar continuamente de uma casa para outra para organizar, assistir, encorajar e, sobretudo, enamorar suas filhas de Deus. Francisco, ao invés, as seguia através de cartas endereçadas a Madre Chantal e mediante conferências espirituais, recolhidas depois nos Entretenimentos. Madre Chantal nunca pensou em escrever tratados de espiritualidade, mas a sua secretária teve o cuidado de recolher não somente suas cartas, mas também as respostas informais que ela dava às irmãs nas conversações repletas de sabedoria nas várias casas por onde passava.

A noite escura, prelúdio do céu Quando são Francisco se apercebeu de que estava para partir deste mundo indicou à madre Chantal como conselheiro espiritual são Vicente de Paulo. Este aceitou o encargo e foi um grande apoio para Madre Chantal, sobretudo nos últimos anos, quando foi particularmente provada por Deus. A respeito dela, no tocante a isso, escreveu são Vicente de Paulo: “Se bem que aparentemente gozasse de paz e de tranqüilidade de espírito que gozam as almas chegadas a um elevado grau de virtude, todavia sofreu penas internas tão grandes (...) que o seu contínuo cuidado era desviar o olhar do seu interior, não podendo suportar a si mesma, à vista da sua alma plena de tais misérias a parecer-lhe a imagem do inferno!”.25 Era a sua noite escura. 25. Citado in: Bibliotheca Sanctorum, VI. Roma, Città Nuova Editrice, 1988, p. 584.


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Quando já o martírio do amor estava consumado, Madre Chantal, voltando de Paris, onde havia encontrado pela última vez são Vicente de Paulo, foi surpreendida por uma pulmonite e precisou deter-se no mosteiro de Moulins, onde expirou entre os braços das suas filhas a 13 de dezembro de 1641. São Vicente de Paulo narrou que naquele dia viu um globo luminoso elevar-se para o céu para unir-se a um outro do mesmo esplendor e, tendo-se tornado os dois uma única chama, atirar-se em uma imensa fornalha ardente. Os dois, que na terra tinham tecido uma relação invejável pela profundidade do afeto e pela nobreza de intenções, se encontravam agora juntos no seio do Pai. Se se quer procurar na história um exemplo de relação entre homem e mulher semelhantes ao seu, é preciso retornar a Francisco e Clara de Assis. Em 1751, Joana Francisca Frémyot de Chantal era proclamada beata e em 1767 santa. Seus mosteiros em 1934 chegaram ao número de cento e cinqüenta com aproximadamente 8 mil membros. No 375º aniversário da sua fundação, as visitandinas, com o otimismo próprio dos seus fundadores comentavam: “... e ainda é cedo!”.

11 de dezembro São Dâmaso papa (304/5-384) “Aqui eu, Dâmaso, gostaria de fazer sepultar os meus restos mortais, mas temo perturbar as piedosas cinzas dos santos”.

Dâmaso colocou essa inscrição na cripta dos papas, nas catacumbas de são Calixto, como testemunho da sua veneração para com os mártires em um tempo em que o cristianismo, saído definitivamente da era das perseguições, preparava-se para se tornar religião de Estado com a conseqüência de um geral esfriamento da fé. Mas se as perseguições externas tinham terminado, continuavam e se multiplicavam as devidas tribulações internas ao pulular das heresias e das intromissões dos imperadores em questões de fé. Dâmaso nasceu no ano 304 ou 305 em Roma. Seu pai, notário famoso, de origem hispânica e cristão fervoroso, chamava-se Antônio e tornou-se presbítero e


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talvez também bispo rural nos arredores de Roma. Sua mãe Lourença, também ela cristã muito estimada pelas suas virtudes, permaneceu viúva durante sessenta anos e morreu além dos 90 anos. A irmã Irene consagrou-se a Deus na virgindade. Nesta família um tanto extraordinária, Dâmaso seguiu os exemplos e os ensinamentos paternos, e logo se encontrou diácono ao lado do Papa daquele tempo, Libério. Cultivava os estudos e participava da administração dos bens da sua casa e dos da Igreja.

As tribulações de Dâmaso Quando Libério foi mandado para o exílio em Beréia, na Trácia, pelo imperador Constâncio, porque se havia oposto ao arianismo e à condenação de Santo Atanásio de Alexandria, também Dâmaso parecia que devia seguir os mesmos caminhos do pontífice, mas depois lhe foi concedido que permanecesse em Roma. Aí a comunidade cristã, estando sem o seu bispo, reuniu-se ao redor do arquidiácono Félix e todos, a começar pelos presbíteros e pelos diáconos, deploraram a condenação pelo imperador e prometeram não eleger outro Papa enquanto Libério estivesse vivo. A administração ordinária da comunidade nesse meio tempo teria sido levada em frente por Félix, enquanto aguardava a libertação do Papa. Todavia o arquidiácono, sob a pressão de Constâncio, deixou-se consagrar bispo e proclamar Papa por três bispos arianos enviados pelo imperador. Dâmaso e a maioria dos cristãos de Roma permaneceram fiéis a Libério, mesmo que não pudessem proclamar em alta voz por causa da repressão imperial. Quando em 358 Libério retornou para Roma, o povo o acolheu triunfalmente e expulsou da cidade o antipapa Félix. Dâmaso tornou-se pri­ meiro diácono ao lado do pontífice e, por ocasião de sua morte, em 366 foi eleito seu sucessor. Mas a eleição não foi pacífica. Pouco antes que ela acontecesse legiti­ mamente na basílica de São Lourenço em Lucina, sete presbíteros e três diáconos tinham eleito na basílica de Santa Maria em Trastevere o diácono Ursino. Entre as duas facções declarou-se a guerra até ao derramamento de sangue e o prefeito de Roma, não querendo se intrometer nos negócios internos de natureza religiosa, partira para as férias em uma vila distante de Roma. Só depois do seu retorno, sabendo o que pensavam a respeito as autoridades imperiais, mandou Ursino e os seus sequazes mais truculentos para o exílio, e na comunidade cristã voltou a paz.


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Veio a paz, por assim dizer, porque os exilados foram sempre um espinho na garganta de Dâmaso e conseguiram por fim colocá-lo diante do tribunal, acusando-o de adultério. Dâmaso ainda desta vez saiu vitorioso.

A defesa da fé Sob o seu pontificado terminou o arianismo por ação, sobretudo, dos grandes teólogos e padres da Igreja como Atanásio de Alexandria, Gregório de Nazianzo, Basílio o Grande e Gregório de Nissa. A fé foi reafirmada claramente no Concílio de Constantinopla de 381. As declarações deste concílio foram confirmadas no ano seguinte em Roma pelo Papa que tinha ao seu lado os bispos do Ocidente, uma representação daqueles do Oriente e sobretudo Ambrósio de Milão. Porém, um cânon do concílio constantinopolitano, o terceiro, não foi confirmado, porque nele se queria dar à sede de Constantinopla uma posição de preeminência acima daquelas mais antigas de Alexandria e de Antioquia, sendo cidades imperiais. Dâmaso neste ponto não quis transigir, para evitar – dizia – que no futuro as sortes da Igreja estivessem ligadas àquelas do poder político. Para Dâmaso a primeira sede era a sé romana, porque foi fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo; a segunda a de Alexandria, porque foi constituída por Marcos sob ordem de Pedro; e a terceira a de Antioquia, porque nessa tinham passado temporariamente Pedro e Paulo. A sé romana, pois, tinha o direito de chamar-se “sé apostólica” e estava na direção de todas as Igrejas: “A santa Igreja de Roma” – se lê no concílio romano de 382 – “tem a precedência sobre todas, não graças à deliberação deste ou daquele concílio, mas porque o primado lhe foi conferido pelas palavras de Nosso Senhor e Salvador, que se encontram no evangelho”. O Papa se refere naturalmente à passagem evangélica: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”. Nesse tempo santo Ambrósio formulou a famosa frase: “Onde está Pedro, aí está a Igreja”, à qual seguiu-se aquela de Santo Agostinho: “Roma falou, acabou o assunto”.

O fervor da comunidade romana Se é verdade que na comunidade romana havia cristãos indignos também entre o clero, não se pode negar a existência de muitos outros que queriam viver de maneira séria o evangelho. Jerônimo encontrou e levou


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adiante um belo grupo de mulheres virgens e casadas que se alimentavam das suas lições bíblicas, sem contar a grande massa dos fiéis que nada entendia das diatribes teológicas, mas que viviam como bons cristãos. O papa Dâmaso quis ir ao encontro de suas necessidades e pediu ajuda a Jerônimo, presente no concílio romano de 382, nomeando-o seu secretário. Com a liberdade religiosa, os cristãos já viam surgir monumentais basí­licas pela liberalidade dos imperadores e pelas doações dos nobres romanos, deixando no abandono as famosas catacumbas onde se conservavam também os túmulos dos mártires. Para que a memória dessas testemunhas não fosse esquecida e o seu exemplo continuasse a alimentar a fé dos cristãos, Dâmaso tomou a seu cuidado as catacumbas e nos túmulos dos mártires fez gravar em lajes de mármore epitáfios compostos por ele mesmo com arte poética.

A liturgia latina Sabia o pontífice que os momentos de culto, celebrados já nas basílicas, eram também momentos de catequese. Mas como podia a liturgia tornar-se fonte de catequese para todos se era celebrada em grego? Ele a fez traduzir para o latim, conservando em grego só as invocações litânicas do Kyrie eleison (Senhor, tende piedade de nós). Existiam já traduções ao menos parciais da Bíblia para o latim, mas ele, como bom conhecedor dessa língua, não estava satisfeito e encarregou Jerônimo de fazer uma tradução digna da palavra de Deus. Um trabalho que empenhou longo tempo do monge dálmata, mas a Igreja teve aquela obra-mestra que foi a Vulgata, a Bíblia na língua do povo romano, que se impôs em todo o Ocidente até os tempos modernos. O latim tornou-se a língua litúrgica em igual dignidade com a língua grega usada desde os tempos apostólicos. Por sugestão de Ambrósio, o bispo de Roma obteve que se tirasse da sala do senado o último sinal de paganismo, o altar da Vitória, onde os senadores desde tempos antigos faziam as sagradas libações antes de sentar-se. No fim do seu pontificado, Dâmaso podia dizer ter realizado sua obra: a reta fé tinha sido restabelecida no orbe, a memória dos mártires era honrada e confiada já à história, a palavra de Deus podia ser lida também na língua romana sem perigo de falsificações, a Sé apostólica era respeitada, toda a Igreja vivia em paz.


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Tendo adormecido no Senhor no dia 11 de dezembro de 384, foi sepultado na via Ardeatina no túmulo de sua família. Em seu túmulo foi colocado este epitáfio, que ele mesmo havia preparado e que representa sua profissão de fé na ressurreição: “Aquele que caminhando andava sobre as salgadas águas marinhas, que aos semimortos da terra dava a vida, que soube desatar os letais liames depois da escuridão da morte, que pôde ressuscitar para Marta seu irmão, três dias depois da morte, creio que fará ressurgir Dâmaso uma vez falecido”.

13 de dezembro Santa Luzia virgem e mártir (+ 304) “Dirijo-me a ti, que vens do povo, da gente comum, mas pertences à fileira das virgens. Em ti o esplendor da alma se irradia sobre a graça exterior da pessoa. Por isto és uma imagem fiel da Igreja”. 26

O grande bispo de Milão exprimia com estas palavras o conceito altíssimo que a comunidade cristã tinha, desde os primeiros séculos, a respeito das virgens: elas representavam a beleza e a fecundidade da Igreja. Era, pois, normal voltar a reviver a memória daquelas jovens que, durante as perseguições, tinham dado um duplo testemunho: o da vir­gin­ dade e o do martírio. Algumas delas eram tão famosas a ponto de serem recordadas durante a celebração eucarística juntamente com os apóstolos e os mártires. Naturalmente a comemoração litúrgica dessas jovens heróicas não comportava necessariamente uma reconstrução da sua vida e do seu martírio segundo nossos critérios historiográficos modernos; a comunidade cristã queria antes de tudo admirar aquela virtude heróica com que meninas cristãs tinham sabido desafiar e vencer o ultrapoder corrupto do seu ambiente. A famosa passio, a narrativa do martírio, freqüentemente uma verdadeira obra de arte literária, aproxima-se do nosso romance histórico, em que o

26. Santo Ambrósio. PL 16, 281.


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autor, servindo-se da liberdade permitida por este gênero literário, embeleza a verdade histórica com elementos que a tornam mais atraente e bem inserida no contexto da época.

Falam de Luzia De Luzia sabemos com certeza que viveu em Siracusa e que foi martirizada aproximadamente em 304, durante a famosa perseguição de Diocleciano. Esses dados foram confirmados por recentes escavações que descobriram uma catacumba a ela dedicada e o lóculo onde tinha sido depositado o seu corpo. Quanto ao mais precisamos contentar-nos com a sua passio escrita no século V ou VI.27 Luzia pertencia a uma abastada família de Siracusa, na Sicília. Vivia com a mãe, porque quando tinha 7 anos de idade perdeu o pai. Ambas eram cristãs, e Luzia se havia consagrado a Cristo como virgem, mesmo que quando ainda pequenina seu pai, segundo o costume do tempo, a havia prometido como esposa a um rico concidadão. Não obstante a perseguição, os cristãos da cidade de Catânia celebravam todo ano, com a chegada de muita gente, a festa de Santa Ágata, a virgem cataniense martirizada próximo do ano 250. Luzia foi em peregrinação a Catânia com a mãe e juntas fizeram parte na comemoração durante a qual o diácono leu o evangelho da hemorroíssa. Pura coincidência ou um sinal do céu? A mãe de fato sofria desse mesmo mal fazia anos e já sem esperança de cura. Luzia se dirigiu à mãe: “Mãe, tu deves acreditar em tudo o que foi lido. Ágata padeceu por Cristo e agora reina com ele no céu. Toca com fé o seu túmulo e serás curada”. Esperaram que a multidão se retirasse e juntas dirigiram-se ao túmulo da mártir para implorar a cura. Luzia, vencida pelo cansaço, adormeceu e viu em sonho a virgem Ágata circundada pelos anjos e adornada de pérolas, que lhe disse: “Luzia, minha irmã, por que pedes a mim aquilo que tu mesma obtiveste? Eis que, pela tua fé, a tua mãe está curada”. Depois com grande maravilha de Luzia acrescentou: “Como Cristo glorificou por meio de mim a 27. Para os diálogos aqui transcritos, seguimos livremente a tradução de Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno / XII. Udine, Ed. Segno, 1991, p. 146.


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cidade de Catânia, assim glorificará por meio de ti a cidade de Siracusa, porque com a tua virgindade preparaste uma agradabilíssima morada para Deus”. Ao acordar apercebeu-se de que com a mãe acontecera o milagre e Luzia lhe disse: “Agora que estás curada, eu te suplico em nome daquele que te obteve a saúde que não me constrinjas a casar-me com um homem, mas coloca à minha disposição os bens que preparaste para o meu casamento”. A mãe lhe fez notar: “Desde os 9 anos não só conservei, mas também acrescentei quanto teu pai te deixou. Fecha-me primeiro os olhos e depois poderás fazer dos teus bens o que quiseres”. E Luzia: “É muito pouco dar a Deus aquilo que não se pode levar consigo para o outro mundo”. E a mãe consentiu e assim que voltaram para Siracusa começaram a distribuir os seus bens aos pobres, segundo as indicações da comunidade cristã da sua cidade. Soube disso o noivo que lhe fora prometido, que não era cristão, e fez suas demonstrações na tentativa de não perder nem a futura esposa nem as muitas riquezas dela. Não tendo, porém, conseguido dobrar a vontade das duas mulheres, recorreu ao prefeito da cidade, Pascásio, fazendo-lhe notar que a sua Luzia estava desperdiçando o patrimônio que devia levar-lhe em dote. Também isso foi inútil. Fez então a última tentativa: acusou Luzia de ser cristã e iniciou o processo.

Narrativa e catequese O prefeito ordenou a Luzia que sacrificasse aos deuses segundo a lei imperial. Aqui a passio traz o diálogo entre os dois, que é uma belíssima catequese: Luzia: – O sacrifício verdadeiro e puro diante de Deus é aquele de visitar os órfãos e as viúvas. De três anos para cá não tenho feito outra coisa. Agora sacrificarei ao Deus vivo também a mim mesma como hóstia viva. Pascásio: – Tu desperdiçaste o teu patrimônio com os que te corromperam. Luzia: – Não freqüentei corruptores da minha alma e do meu corpo, mas simplesmente coloquei nas mãos certas o meu patrimônio. Pascásio: – Tapar-te-ei a boca ao som de varas. Luzia: – Não se pode acorrentar a palavra de Deus. Pascásio: – Deus talvez acredita em ti? Luzia: – Quem neste mundo vive na piedade e na pureza é templo do Espírito Santo.


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Pascásio: – Far-te-ei conduzir ao lupanar e, quando o teu corpo tiver se transformado em imundo, o Espírito Santo fugirá de ti. Luzia: – A carne não se suja, se a mente não consente. Assim, se me fizeres violentar contra a minha vontade, a minha castidade ganhará uma coroa dupla. Pascásio: – Se não sacrificares aos deuses, far-te-ei morrer submersa na luxúria. Luzia: – Não poderás constranger a minha vontade a aceitar o pecado. Eis, estou pronta a qualquer suplício. Que esperas tu?

O prefeito ordenou que fosse levada para o lupanar para que quem quisesse pudesse abusar do seu corpo. Ninguém, porém, conseguiu arrastá-la, porque uma força misteriosa a tornou inamovível. Acenderam ao seu redor uma fogueira, mas as chamas não a lamberam. Pascásio atribuiu tudo isso a poderes de feitiçaria e mandou apunhalá-la no pescoço. A sua ordem mal tinha sido cumprida e à comunidade cristã presente ao processo foi permitido apertar-se ao redor da virgem agonizante, quando um grupo de guardas aprisionava Pascásio, réu por ter usado sua autoridade para se apropriar dos bens do povo siracusano. Transferido para Roma foi condenado à decapitação. Para Luzia moribunda o bispo pôde dar os últimos sacramentos, enquanto a comunidade respondia o Amém, e a celebração do processo se concluía assim na celebração litúrgica. Bem cedo o culto à virgem atravessou os confins da Sicília e se difundiu em todo o Ocidente. São Gregório Magno, em uma de suas cartas, fala de dois mosteiros em homenagem a santa Luzia, um em Roma e outro em Siracusa. Pelo seu nome, que recorda a luz, tornou-se protetora da vista e, por ter distribuído os seus bens aos pobres, em vários lugares sua festa é acompanhada pelo uso de dar presentes às crianças.

14 de dezembro São João da Cruz sacerdote e doutor (1542-1591) “Onde não existe amor, coloca amor e encontrarás amor”. 28 28. João da Cruz. Carta 22.


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A infância de João, nascido em 1542 em Fontiveros perto de Ávila, na Espanha, foi marcada pela dor. Sendo o último dos três filhos, perdeu o pai, Gonzalo de Yepes, na idade de 2 anos e meio. A família mudou-se para Arévalo e depois para Medina del Campo à procura de trabalho. Aí João fez os seus primeiros estudos e ao mesmo tempo foi encaminhado para o exercício de várias atividades para ganhar o pão. Foi aprendiz de sapateiro, de carpinteiro, de entalhador e, por fim, de pintor, mas sem sucesso. Conseguia, ao invés, bons resultados nos estudos, distinguia-se pela religiosidade e também no serviço com os doentes, como enfermeiro em um dos hospitais da cidade. Em 1563, realizados os estudos humanísticos no colégio dos jesuítas, escolheu a ordem carmelita e, depois de um ano de noviciado, foi admitido à profissão com permissão de observar a regra primitiva da sua ordem.

O encontro com Teresa Os superiores, apreciando-lhe a inteligência, mandaram-no para a Universidade de Salamanca para estudar filosofia e teologia. Quando estava para terminar os estudos, foi ordenado sacerdote e voltou para Medina del Campo para celebrar sua primeira missa. Aí ocorreu o histórico encontro com santa Teresa. Quem o contou foi ela mesma: “Soube que queria fazer-se frade cartuxo, mas eu lhe expus os meus desígnios e lhe pedi insistentemente de aguardar até que Deus nos tivesse providenciado um convento. Fiz-lhe, além disso, observar o grande bem que dele viria e o serviço que prestaria ao Senhor, desejando ardentemente levar vida mais perfeita, se o tivesse feito na sua mesma ordem. Ele me prometeu aguardar, para que não se perdesse tempo”.29 João, completados os estudos em Salamanca, voltou para Medina del Campo e teve a oportunidade de acompanhar Teresa na fundação do mosteiro das carmelitas descalças de Valladolid, onde a santa aproveitou “para fazê-lo conhecer” – como ela mesma escreveu – “todo o nosso sistema de vida, cuidando que compreendesse bem toda a nossa prática, tanto pela mortificação quanto pela cordialidade das relações, e a maneira com que passamos as recreações, que é tão bem organizada que serve para nos fazer conhecer os nossos defeitos e para dar-nos um pouco de diversão para depois observar a regra em todo o seu rigor”.30 29. Teresa de Ávila. Fondazioni, 3, no 17. 30. Ibid., 13, no 5.


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O início da reforma dos conventos masculinos João hauriu o espírito renovador de Teresa e encontrou-se plenamente de acordo para dar início à reforma da parte masculina da Ordem Carmelita. Teresa, sem perder tempo, foi visitar uma casa que lhe fora oferecida em Duruelo, perto de Ávila, e quando aí chegou, na tarde do dia 30 de junho de 1568, disse: “Eis o nosso convento!” Era uma velha construção e ela logo sugeriu as oportunas acomodações para transformá-la em um pequeno mosteiro. João se transferiu para o lugar e acompanhou os trabalhos de restauração. Em novembro do mesmo ano, a casa hospedava os primeiros car­ melitas descalços e João, que até então era chamado de João de São Matias, mudou o nome para João da Cruz. Os superiores confiaram ao jovem religioso o encargo de mestre de noviços primeiro em Duruelo e depois em outras localidades até quando Teresa, tornada priora do mosteiro da Encarnação em Ávila, obteve o consentimento de que João da Cruz a seguisse como confessor e diretor espiritual das monjas. Lá permaneceu de 1572 a 1577 e, conforme palavras de Teresa, fez um bem imenso.

O cárcere e a fuga A reforma, posta em ação de comum acordo por estes dois santos, suscitou mal-entendidos dentro e fora da Ordem Carmelita a tal ponto que as autoridades pensaram em precisar separá-los. João foi transferido para Toledo, condenado como homem desobediente, rebelde e teimoso, e lançado no cárcere do convento, onde foi mantido escondido por nove meses até agosto de 1578, quando conseguiu fugir. Finalmente em 1580 os carmelitas descalços obtiveram o reconhecimento pontifício de província autônoma e João pôde exercer livremente sua influência reformadora sobre todos aqueles que escolhiam a nova forma de vida. Nesse período exerceu vários cargos, também o de definidor geral, além de superior local, mas nunca foi provincial nem vigário geral. Em 1591, tendo-se oposto a algumas normas extremistas que queriam introduzir na reforma, perdeu prestígio junto dos superiores daquela mesma Ordem que havia reformado. Foi um período muito doloroso, que o santo suportou sem um lamento até a sua morte, a 14 de dezembro de 1591. Tinha apenas 49 anos.


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O doutor O magistério de são João da Cruz foi particularmente importante na história da Igreja. Em um período em que a vida religiosa tinha caído em descrédito e a santidade, não só dos leigos, mas dos próprios religiosos era freqüentemente entendida como uma exceção, ele com a vida e com a palavra reabriu para muitos o caminho da santidade na Igreja, começando exatamente pelos religiosos. Suas obras principais são: Subida ao monte Carmelo, Noite escura, Cântico espiritual, Chama viva do amor. A estes seguem-se, além das Cartas, outros escritos menores. Se o magistério oral do santo, dirigido aos religiosos, às religiosas, ao clero diocesano e aos simples fiéis, começou com sua ordenação sacerdotal e não se interrompeu nunca até sua morte, o magistério escrito ao invés teve início nos anos da sua maturidade espiritual, quando João já havia feito a subida para o monte Carmelo e atravessado a noite escura. Seus escritos, de fato, são fruto da sua experiência pessoal, repensada à luz da teologia, que ele possuía muito bem, e da Sagrada Escritura, que conhecia quase de memória. Contrariamente a tudo quanto pode aparecer, sua espiritualidade funda-se toda sobre o amor: o amor de Deus para a alma e o amor da alma que descobre Deus e é por ele atraída até consumar-se na união com ele. O caminho que João propõe é descrito com a imagem de uma subida ao monte Carmelo, durante a qual a alma passa através de um progressivo despojamento (a noite escura dos sentidos e do espírito) até chegar ao cume da identificação com Cristo, para viver em plenitude a vida da graça, isto é, a vida da Santíssima Trindade. A este ponto “o Espírito Santo com sua inspiração divina eleva a alma de maneira sublime e a informa e lhe dá capacidade, a fim de que ela inspire em Deus a mesma inspiração de amor que o Pai inspira no Filho e o Filho no Pai, que é o mesmo Espírito Santo, que nesta transformação inspira nela no Pai e no Filho para uni-la a si... Parece-me que isso quer dizer o que São Paulo escreve: ‘Porque sois filhos de Deus, ele enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho que clama: Aba, Pai’ (Gálatas 4,6)... Não é de maravilhar-se que a alma seja capaz de uma coisa tão sublime... Não é possível nem saber, nem descrever como isso acontece. Apenas nos basta saber que o Filho de Deus nos obtém um posto tão elevado e nos mereceu o altíssimo grau de poder ser filhos de Deus”.31

31. João da Cruz. Cântico, 39,3-5.


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Essa é a meta a que João da Cruz com sua espiritualidade quer conduzir todos aqueles que desejam se empenhar seriamente na vida cristã. Na sua linguagem ocorrem freqüentemente as palavras nada, subida, noite escura. Elas colocam em evidência o aspecto ascético da renúncia evangélica ao próprio egoísmo para abrir as portas da alma ao gozo mais profundo que o coração humano possa provar nesta terra: a união com Deus. Então o homem, tornado filho no Filho, inspira de certa maneira o Espírito Santo.

As noites Quando João da Cruz fala de noite dos sentidos o que entende por sentidos? Ele se refere ao “setor mais exterior e superficial da pessoa humana e do seu agir. Inclui propriamente os sentidos externos, a imaginação com as correspondentes energias afetivas... Entende por sentido os critérios de julgamento e de escolha do amor, que se regem sobre o interesse, sobre o egoísmo, sobre a comodidade, sobre a espetacularidade, sobre a utilidade imediata, sobre a abundância”.32 E quando fala da noite do espírito o que quer dizer com a palavra espírito? O espírito para ele é o homem visto no seu ser mais profundo e contemporaneamente na sublime capacidade que lhe foi dada por Deus de se abrir e acolher o mistério trinitário. O homem, passando através da noite dos sentidos, é libertado do seu egoísmo e se une sempre mais intimamente à vontade divina. À noite dos sentidos segue aquela do espírito, que é treva, exatamente, para o espírito. De fato, o espírito humano, o homem, incapaz de acolher a luz de Deus, quando é por ele inundado, fica desorientado enquanto o próprio Deus mesmo não o tornar capaz de conviver com a divindade em uma união transformadora, um estado de vida inferior só à visão beatífica. O caminho da santidade percorrido por são João da Cruz e exposto com toque magistral nas suas obras lhe mereceu o título de doutor místico. Esse caminho de santidade formou e continua formando fileiras de santos. Hoje, enquanto se coloca em maior realce a sociabilidade e a unidade da família humana, está se descobrindo que a estrada que Deus faz viver 32. Ver o verbete Giovanni de la Croce [João da Cruz] in: Ruiz, F. Dizionario Enciclopedico di Spiritualità. Roma, Città Nuova Editrice, 1990.


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cada pessoa através da noite escura, a faz percorrer também na comunidade humana. Também ela atravessa suas noites do momento para chegar a uma compreensão sempre mais profunda e a uma encarnação sempre mais autêntica da mensagem evangélica.

21 de dezembro São Pedro Canísio sacerdote e doutor (1521-1597) “Tu finalmente, como se me tivesses aberto o coração do teu santíssimo corpo que me parecia ver diante de mim, me mandaste beber daquela fonte, convidandome, por assim dizer, a atingir as águas da minha salvação das tuas fontes, ó meu Salvador”. 33

Com estas palavras Pedro Canísio narra uma experiência mística vivida na vigília da sua profissão solene de jesuíta nas mãos de santo Inácio, que o havia destinado como novo apóstolo para a Alemanha juntamente com outros dois companheiros. Naquele dia tinha estado no castelo santo Ângelo em audiência com o Papa, depois tinha ido para a basílica vaticana para implorar a proteção dos santos apóstolos e tinha tido a nítida impressão de que também eles o encorajavam. Exatamente na Basílica de São Pedro, enquanto sentia o próprio peso da sua nulidade diante de uma missão tão exigente, Jesus lhe abriu o seu coração e lhe assegurou: bastava beber daquelas fontes para ser purificado e tornar-se capaz de levar em frente aquele fogo divino que tinha recebido através do carisma de Inácio. Pedro Canísio ou Canijs, filho do burgo-mestre da cidade, tinha nascido em Nimega em 1521. Tinha feito os primeiros estudos em sua terra e depois em Colônia, com um intervalo de um ano em Louvain, estudando letras e direito eclesiástico e civil. Tinha-se tornado mestre de artes e, por uma profunda exigência do seu espírito, tinha se dedicado também ao estudo da teologia, 33. Braunsberger, O. Epistolae et Acta B. Petri Canisii. Cf. García-Villoslada, R. Sant’Ignazio di Loyola. Cinisello Balsamo, Ed. Paoline, 1990, p. 936.


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privilegiando a patrística e a Sagrada Escritura. Em Colônia tinha estreitado laços de amizade com homens de espiritualidade intensa e freqüentava a famosa Cartuxa. Estava imerso naqueles estudos à procura da sua vocação, quando soube que em Mogúncia um tal Pedro Fabro estava transformando com a sua pregação o clero e o povo daquela cidade. Acorreu logo para ouvi-lo e lhe abriu a sua alma. Fabro, tendo intuído encontrar-se diante de um jovem predileto de Deus e particularmente dotado, propôs-lhe dedicar-se logo aos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola. Ele aceitou sem levantar objeções.

O carisma de Inácio o transforma O que aconteceu nele naqueles dias? E ele próprio narra em uma carta a um amigo: “No que me diz respeito posso apenas dizer como (Pedro Fabro) transformou o meu espírito e os meus sentimentos com aqueles exercícios espirituais, e como iluminou a minha mente com novos raios de graça celeste; senti que o meu ser se robustecia com a abundância da misericórdia divina que tomava o meu corpo e me transformava em um outro homem”.34 O carisma inaciano o havia inundado de luz, respondendo às mais profundas exigências do seu ser. Tinha apenas 22 anos e quis fazer os votos nas mãos de Fabro. Voltando para casa na Holanda para assistir seu pai que estava doente e já agonizando, aí ficou o tempo estritamente necessário para depois voltar para Colônia de acordo com as indicações de seus novos superiores e ajudar o pequeno grupo de jovens jesuítas que naquele meio tempo foi para lá para estudar. Colônia tinha se tornado a sua segunda pátria. Conhecido e estimado por todos, tornou-se o porta-voz do povo e do clero na controvérsia contra o próprio arcebispo e príncipe eleitor que queria levar a diocese para o protestantismo. Se Colônia permaneceu na esteira do catolicismo, deve-se muito ao trabalho do jovem Canísio e às suas repetidas intervenções junto das autoridades e do próprio imperador.

Teólogo do concílio em Trento e noviço em Roma Nesse meio tempo foi ordenado sacerdote e, passando a ter contato com o cardeal Truchsess, bispo de Augsburg, foi escolhido por ele como seu teólogo no 34. García-Villoslada, R. Sant’Ignazio di Loyola, cit., p. 926.


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Concílio de Trento. Aí se encontrou em companhia de outros três teólogos jesuítas, Jayo, Salmerón e Laínez, e com eles deu a sua contribuição ao concílio primeiramente em Trento e depois em Bolonha. Quando o concílio foi interrompido, Inácio chamou para junto de si Pedro Canísio para conhecê-lo pessoalmente e para fazê-lo cumprir o noviciado prescrito pela regra. Era o ano 1548. O período romano foi para Canísio uma experiência inesquecível. Escrevendo ao seu amigo de Colônia dizia: “Embora pudesse explicar-te com a pena a minha felicidade... Encho-me de alegria estando em companhia de tão escolhidos irmãos e do mais digno de todos, o nosso padre geral, vivendo e convivendo com eles em íntima união dia após dia...”.35 Não era, certamente, uma vida fácil, porque o noviciado, além dos exercícios espirituais repetidos na sua integridade, comportava também um mês de assistência aos doentes no hospital, lavando-os, dando-lhes na boca o alimento e a água, arrumando suas camas, ficando em pé da manhã até a noite e também durante grande parte da noite, sempre prontos para qualquer serviço, mesmo para aquele de sepultar os mortos. Depois deste mês voltava-se para casa para assumir também aí os serviços mais humildes, como a limpeza da casa, os trabalhos da cozinha e da lavanderia, e o cultivo na horta. O que então dava tanta alegria ao nosso holandês que tinha passado a sua vida sempre mergulhado nos livros e tratando com personalidades importantes? Encontramos a resposta na sua carta ao seu amigo de sempre: “Aqui me vejo na academia da sabedoria, na oficina da humildade, na escola tão rica quanto esplêndida da obediência e de todas as virtudes e aqui desejo sempre exercitar-me...”.36 Terminado o noviciado, Canísio foi mandado junto com outros dez companheiros para a Sicília, para abrir um colégio em Messina e aí per­ maneceu quase dois anos, até quando Inácio o chamou a Roma para enviálo para a Alemanha.

Oitavo jesuíta e apóstolo da Alemanha Efetivamente o duque da Baviera, Guilherme IV, tinha pedido ajuda ao papa Paulo III para reerguer os assuntos morais da Igreja na sua terra e desejava ter três teólogos jesuítas na universidade de Ingolstadt. O Papa havia passado o pedido a Inácio e este não teve dúvidas na escolha: Jayo, Salmerón e Canísio. 35. Ibid., p. 929 36. Ibid.


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Pedro Canísio era o mais jovem dos três, mas Inácio havia depositado muitas esperanças, porque via nele três características muito importantes. Acima de tudo Canísio tinha entendido o carisma inaciano até o fundo e nele Inácio podia confiar como se fosse em si mesmo; possuía, depois, uma inteligência aguda e uma cultura incomum; a tudo isso se ajuntava – coisa não indiferente para quem é chamado para grandes empreendimentos – uma simplicidade evangélica e uma humildade a toda prova. Por isso não hesitou em fazer que ele se submetesse à profissão solene naqueles poucos dias que permaneceu em Roma, fazendo dele o oitavo jesuíta da Companhia e vendo nele o apóstolo da Alemanha moderna, como Bonifácio o fora da Alemanha antiga. Canísio, por intermédio da voz de Inácio, percebeu os planos que Deus tinha sobre ele e percebeu a confirmação interior na basílica vaticana aonde havia se dirigido para implorar a ajuda dos apóstolos Pedro e Paulo, e onde o próprio Jesus quis falar ao seu coração. Era o ano 1549 e era preciso partir o mais rápido possível para a Alemanha, mas como se apresentar à universidade de além dos Alpes sem os títulos acadêmicos? Inácio encontrou logo a solução. Não tinham os três jesuítas uma ótima preparação teológica? Bastava, pois, deterem-se alguns dias em Bolonha durante a viagem, fazer-se examinar por aquela prestigiosa universidade e obter os títulos necessários. E assim foi feito, também porque diante da fé e da decisão de Inácio não se apresentavam dúvidas e não se interpunham dilações. No dia 4 de outubro de 1549 os três jesuítas eram reconhecidos doutores em teologia summa cum laude (com sumo louvor) pela prestigiosa universidade bolonhesa. Quando o bispo de Augsburg, o cardeal Truchsess, os viu chegar à Alemanha, chorou de alegria. Ingolstadt devia ser para Canísio apenas uma rampa de arremesso. Aqui teve a oportunidade de se aperfeiçoar na língua alemã, já naquele tempo sempre mais necessária para comunicar com o povo e cuidar da sua formação religiosa e pôde aprofundar o conhecimento da nova situação religiosa criada com a reforma protestante.

Em Viena, doutor da fé Depois de cerca de dois anos Canísio foi mandado para Viena, onde devia nascer um outro colégio jesuíta, para dar nova vida à universidade. Aí escreveu a sua Suma da doutrina cristã, que teve um acolhimento muito favorável, impelindo


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o autor a escrever seus famosos três catecismos que serviam a todas as categorias escolares desde as classes elementares até a universidade. Traduzidos para várias línguas, as edições seguiram-se em ritmo acelerado, sobretudo nos países de língua alemã. O historiador J. Lortz escreveu: “De 1555 em diante o catolicismo alemão não é pensável sem os canísios”, nome com o qual eram conhecidos esses catecismos. O sucesso foi devido certamente à necessidade que se tinha de uma exposição sistemática e correta da doutrina católica, mas também aos dotes do autor, cujas características eram uma grande clareza expositiva, uma forte inspiração bíblica, um estilo popular, mas não decadente e, finalmente – coisa muito rara naqueles tempos –, a ausência de todo espírito polêmico. Canísio já dominava tão bem a língua alemã que aos doutos nas universidades e nas cortes dos príncipes pregava em latim como exigia a etiqueta, ao passo que nas catedrais e nas paróquias ao povo, que não teria entendido outra língua, falava em alemão. Em um certo momento, o núncio apostólico e o imperador pensaram em fazê-lo bispo de Viena. Canísio, consciente de que não era esta a tarefa que Deus lhe confiava – como por outro lado queria a regra da sua ordem –, recusou decididamente a oferta, aceitando apenas por obediência ao papa Júlio III servir como visitador apostólico da diocese por um ano, enquanto se providenciava a nomeação do novo bispo. Da Áustria a fama do bem que os jesuítas operavam para a reforma da Igreja chegou a Praga e também essa quis o seu colégio. Inácio aí mandou Canísio. Tinha apenas colocado sólidos fundamentos nessa terra, quando lhe chegou a nomeação para provincial da Alemanha meridional, da Suíça, da Áustria, da Hungria e da Boêmia.

Provincial da Ordem Começou para Canísio uma atividade intensa com contínuas e desgas­ tantes viagens para atender às necessidades da vasta província e aos pedidos sempre mais numerosos da parte do Papa, dos bispos e dos próprios príncipes, que pediam sua presença e seu conselho para resolver os numerosos e intrincados problemas surgidos com a reforma, nos quais freqüentemente à fé se misturava a política e era necessário usar muita prudência para não violentar as consciências com passos falsos e com imposições autoritárias. Foilhe de grande ajuda um princípio que ele tinha sempre diante dos olhos e que para aquele tempo era revolucionário, a distinção entre apostasia consciente e expressamente querida e a separação acontecida de fato e não procurada conscientemente, e portanto sem culpa.


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Durante o seu provincialato Canísio deu grande desenvolvimento aos colégios, sabendo que eles, junto com os exercícios espirituais que renovavam a consciência de cada pessoa, eram o instrumento mais adaptado para influir na renovação da Igreja e da sociedade. Na sua província funcionavam vinte colégios e todos se tornaram famosos. Ele se deslocava continuamente para ajudar e encorajar a todos. Um de seus contemporâneos descreve-o pitorescamente como um homem que “estava sempre com um pé na terra e o outro no ar...”.

Uma resposta às Centúrias Em 1557 foi quase constrangido a tomar parte no famoso Colóquio de Worms entre protestantes e católicos, promovido por Fernando I da Áustria, que desejava a ajuda dos príncipes protestantes contra o perigo turco. Não existiu diálogo e, mesmo que Canísio falasse sempre com muita serenidade sem nunca pronunciar uma palavra que pudesse ofender a sensibilidade de alguém, não se obteve nenhum fruto, mas dois historiadores protestantes, Flácio Ilírico e João Wigand, escreveram uma poderosa obra em sete volumes em polêmica com Roma e como sustentação do protestantismo. Tratava-se das famosas Centúrias magdeburgenses, que muito impressionaram o mundo intelectual do tempo nos países de língua alemã. Canísio, por vontade do papa Pio V e do seu novo superior geral Francisco Borgia, foi encarregado de escrever uma obra católica em resposta às Centúrias. Ele declarou aos superiores que não tinha uma sólida preparação em história, mas eles insistiram. Então Canísio, livre da responsabilidade da província, organizou o seu novo trabalho de maneira a se servir da sua competência bíblica e teológica, concebendo uma obra em três volumes. No primeiro, A falsificação do Verbo de Deus, ele expõe a doutrina católica sobre são João Batista, que os autores das Centúrias tinham apresentado como precursor da Reforma. No segundo volume, A Virgem Maria, ele apresenta a figura de Maria como foi vista no Novo Testamento e na vida da Igreja, citando também textos de Lutero e de outros reformadores a respeito. Estava para iniciar o terceiro volume, Pedro e o pontificado romano, quando o seu provincial lhe disse que desistisse de escrever e se dedicasse à pregação, que teria sido mais eficaz que muitos livros. Canísio obedeceu com a prontidão que lhe era típica, transferiu-se para a Suíça, na casa que lhe fora destinada e retomou as fadigas do púlpito, viajando e pregando aos sábios das universidades e aos analfabetos do campo.


23 de dezembro

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Morria em Friburgo enquanto atendia ao ministério da palavra, no dia 21 de dezembro de 1597. Sua fama de santidade era universalmente reconhecida e logo se começou a recolher notícias e informações sobre a sua vida, mas só em 1925 subia oficialmente às honras dos altares com o título de santo e doutor da Igreja.

23 de dezembro São João Câncio sacerdote (1390-1473) “Sacerdote integérrimo e operário infatigável, ensinou a ciência alcançada de fonte puríssima”. 37

Comumente é chamado João Câncio devido à latinização de Kenty ou Kety, sua cidade de origem nas proximidades de Cracóvia, na Polônia, onde nasceu em 1390. Nada sabemos do primeiro período da sua vida. Aos 23 anos de idade inscreveu-se na Universidade de Cracóvia, e em breve tempo tornou-se bacharel e depois mestre em artes. Em 1416 tornou-se sacerdote e mais tarde foi designado como diretor da escola do mosteiro do Santo Sepulcro em Miechow.

Homem de ciência e de fé Tendo desempenhado muito bem este ofício, em 1429 foi chamado à universidade de Cracóvia como professor de artes. Aqui, além de ensinar, aproveitou o tempo para estudar a fundo a teologia, tornando-se depois ele mesmo mestre dessa matéria. Não era um especulativo e não escreveu livros, só copiou por seu próprio punho cerca de quinze códices colocando-lhes ao lado interessantes observações. Foi, ao invés, um ótimo professor que sabia transmitir a ciência, comunicando ao mesmo tempo sua fé límpida e profunda. Em um tempo em que na Europa circulava entre os intelectuais a teoria do conciliarismo que sustentava a superioridade do concílio ecumênico acima

37. Da bula de canonização, de Clemente XIII. Cf. Liturgia das Horas.


São João Câncio

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do Papa, ele não aderiu a isso, afirmando em um dos seus manuscritos que a fidelidade à Igreja inclui também o reconhecimento do ministério de Pedro e é a condição indispensável para participar da comunhão dos santos. Não se deixou atrair nem mesmo pelas idéias hussitas difundidas na sua pátria e, a quem nos debates públicos o ofendia gravemente por sua adesão à Igreja, respondia com calma: Deo gratias (Graças a Deus).

Pobre e humilde Viveu sempre pobremente e quando o nomearam prelado de uma rica colegiada, vendo que não podia atender bem ao mesmo tempo ao estudo e ao cuidado pastoral, renunciou a ela. Da sua vida narram-se alguns fatos pitorescos que colocam em evidência sua simplicidade de coração e sua fé genuína. Ainda estudante, enquanto estava à mesa com os companheiros, bateu à porta um pobre. Ele, sem hesitar, doou sua ração diária de alimento e diante do pasmo dos colegas que pediam explicações respondeu simplesmente: “Veio um pobre, é Jesus Cristo que veio”. Daquele dia, de comum acordo, quando preparavam o almoço aprontavam uma porção a mais para Jesus. Em uma outra ocasião, já sacerdote e professor universitário, enquanto estava para chegar a Roma como peregrino, a diligência foi assaltada por ladrões que exigiram que lhes dessem todo o dinheiro. Quando entregou sua contribuição, os bandidos perguntaram: “Isto aqui é tudo?” Ele respondeu que sim, mas enquanto os ladrões se afastavam, lembrou-se que lhe tinha restado uma moeda nas pregas do manto. Desceu da diligência e correu a encontrálos para entregar-lhes a moeda. Os ladrões estupefatos tiveram a sensação de se encontrar diante de um santo, restituíram tudo e prometeram mudar de vida. Assim também aos ladrões, a tradição encontrou em são João Câncio um protetor para ajudá-los a encontrar o caminho correto.

Peregrino em busca do seu Senhor A propósito de peregrinações, foi cerca de quatro vezes a Roma para visitar os túmulos dos príncipes dos apóstolos e uma vez se dirigiu até a Palestina. As peregrinações eram então uma verdadeira e profunda experiência ascética que devia purificar a alma de toda adesão às vaidades do mundo e uni-la mais profundamente a Deus. Realizava-as com essa finalidade e para reforçar e renovar sua fé.


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Na universidade de Cracóvia era estimado pelos professores e pelos alunos que o quiseram na cátedra até a sua morte, ocorrida no dia 24 de dezembro de 1473, na venerável idade de 83 anos. Seu túmulo tornouse logo meta de numerosas peregrinações não só da Polônia, mas também dos países vizinhos. A pedidos dos professores de Cracóvia foi proclamado beato em 1690 e declarado santo em 1767. Pela influência que teve sobre a formação do clero foi tomado como patrono dos seminaristas e dos seus professores. O cardeal Schuster escreveu sobre ele: “Muitos entendem que a posição do professor universitário, inebriado pela volúpia do próprio saber, seja a mais inadaptada à profissão da perfeição cristã. João Câncio desmontou este preconceito e mostrou que não é a fatuidade, mas o ascendente de uma vida santa que torna imensamente eficaz o ensinamento do mestre sobre o ânimo da juventude estudantil”.38

26 de dezembro Santo Estêvão primeiro mártir (+ 31-32ca) “Estêvão por meio da caridade não cedeu aos judeus que se enfureciam contra ele; pela caridade para com o próximo orou por todos que o lapidavam. Com a caridade esclarecia a verdade para os errantes para que se arrependessem; com a caridade orava pelos lapidadores para que não fossem punidos”. 39

Assim são Fulgêncio de Ruspe caracterizava a figura de Estêvão, mas o mérito maior que a tradição cristã atribui a esse mártir é ter contribuído para a conversão de Saulo ou Paulo. Continuando de fato o seu discurso, Fulgêncio acrescentava que Estêvão, “sustentado pela força da caridade, venceu Saulo... e mereceu ter como companheiro no céu aquele que foi perseguidor na terra”.

38. Schuster, I. Liber Sacramentorum, IX, 39. Citado in: Pettinato, G. I santi canonizzati del giorno. Udine, Edizioni Segno, 1991, p. 256. 39. São Fulgêncio de Ruspe. Discorsi, 3, 2: CCL 91A, 906.


Santo Estêvão

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Quem era Estêvão? Não sabemos nada a respeito da sua origem. Era grego, como nos levaria a pensar o seu nome que naquela língua significa coroado? Ou então era um judeu educado na cultura helenista, como freqüentemente acontecia naquele tempo nas famílias hebraicas de condição social mais elevada? O que sabemos com certeza é que era muito estimado na comunidade cristã, tanto que seu nome foi o primeiro da lista dos diáconos. Lendo os capítulos 6 e 7 dos Atos dos Apóstolos, podemos reconstruir a história dos seus últimos anos.

A serviço das mesas e da Palavra Pentecostes não tinha passado há muito tempo e a comunidade cristã tinha crescido em número e precisou prover-se de uma sólida organização econômica, porque os seus membros viviam a comunhão dos bens. Tudo era colocado livremente aos pés dos apóstolos e estes deviam depois distribuir, segundo as necessidades de cada um. Um trabalho não só delicado, mas que exigia muito tempo. Bem cedo, como é óbvio nesse campo, surgiram dificuldades e os cristãos provenientes do mundo helênico se lamentaram, porque suas viúvas eram abandonadas. Os apóstolos reuniram a comunidade e propuseram escolher “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais confiaremos este encargo. Nós, ao invés, nos dedicaremos à oração e ao ministério da Palavra”. Por primeiro foi escolhido Estêvão “homem cheio de fé e do Espírito Santo”. Os escolhidos foram apresentados aos apóstolos e estes, “depois de ter orado, impuseram-lhes as mãos”. Nesse acontecimento a Igreja viu a instituição do ministério diaconal. Estêvão não se limitava ao trabalho administrativo, mas era muito ativo também na pregação, sobretudo entre os hebreus da diáspora, como “os cireneus, os alexandrinos e outros da Cilícia e da Ásia”, que passavam pela Cidade Santa, e dos quais ele ganhava numerosos para a fé em Jesus crucificado e ressuscitado. Os hebreus helenistas, vendo tantos dos seus compatrícios acolher a nova fé, revoltaram o povo e acusaram Estêvão de “pronunciar expressões blasfemas contra Moisés e contra Deus”.


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A caminho do martírio Eram as mesmas acusações dirigidas poucos anos antes contra Jesus de Nazaré. A novidade, que ele trazia, transtornava suas idéias tradicionais sobre a lei mosaica e sobre o valor atribuído ao templo de Jerusalém. Também a pregação apostólica soava como blasfêmia aos seus ouvidos. Estêvão, aprisionado e conduzido diante do Sinédrio, teve de ouvir essas acusações. Depois o sumo sacerdote lhe dirigiu a pergunta ritual: “Estas coisas são exatamente assim?” Estêvão respondeu com um longo discurso, o mais longo encontrado nos Atos dos Apóstolos, voltando a percorrer toda a história da salvação até Jesus “o Justo, do qual vós agora tendes sido traidores e homicidas”. “Ao ouvir tais palavras, esbravejaram de raiva e rangiam os dentes contra ele. Mas, cheio do Espírito Santo, Estêvão fitou o céu e viu a glória de Deus e Jesus de pé à direita de Deus: ‘Eis que vejo, disse ele, os céus abertos e o Filho do Homem que está à direita de Deus!’. Levantaram então um grande clamor, taparam os ouvidos e todos juntos atiraram-se furiosos contra ele. Lançaram-no fora da cidade e começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram o seu manto aos pés de um moço chamado Saulo.” O Sinédrio não tinha o poder de ordenar execuções capitais, mas não teve nem mesmo tempo de concluir o processo para emitir uma sentença regular. Um grupo de fanáticos lhe havia subtraído o acusado, atiçando contra ele o furor do populacho, tão incontrolável quanto anônimo. Sob os golpes da saraivada de pedras Estêvão “orava e dizia: ‘Senhor Jesus, recebe o meu espírito’. Quando não conseguiu mais se manter de pé, dobrou os joelhos e gritou em voz forte: ‘Senhor, não lhes leves em cinta este pecado’. A estas palavras, expirou” (Atos dos Apóstolos 7). Os cristãos recolheram o corpo do mártir e lhe deram digna sepultura. Logo a história das suas relíquias entrou no mundo da lenda e em toda parte surgiram igrejas em sua honra, mas o monumento mais belo continua sendo sem nenhuma dúvida tudo o que Lucas escreveu a seu respeito nos Atos dos Apóstolos.

A Igreja e a sinagoga Até esse momento os apóstolos não queriam uma ruptura com a sinagoga, mas aguardavam que acolhesse a Boa-Nova como uma chegada


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normal à realização de todas as promessas messiânicas. Mas os homens mais representativos da sinagoga, fazendo-se poucas exceções como Nicodemos, não chegavam a ver em Jesus de Nazaré o Messias por tanto tempo aguardado. Muito menos as autoridades políticas: para os romanos, o dissídio entre a comunidade cristã e a sinagoga era considerado um dos muitos litígios religiosos tão freqüentes entre os judeus, aos quais não convinha dar tanta importância; para o rei Herodes Antipas, cordialmente odiado pelo povo, era, ao invés, uma boa ocasião para colocar-se ao lado do Sinédrio e ganhar, dele, um pouco de estima. Os cristãos, perseguidos por todos, depois do martírio de Estêvão, começaram a emigrar para outras cidades da Palestina e dos países cir­cun­ vizinhos, levando sua fé para outros hebreus e sobretudo para os pagãos que sempre mais numerosos a eles aderiam. Entre a Igreja e a sinagoga a diferenciação aumentou até a separação final. A sinagoga se recolhia em si mesma para defender e levar em frente os próprios valores tradicionais; a Igreja, sempre mais inserida no mundo greco-romano, iniciava aquele trabalho extraordinário de inculturação do Evangelho, que está na base da nossa cultura.

27 de dezembro São João apóstolo e evangelista “O Senhor Jesus lhe teve predileção e do alto da cruz, quase como testamento, o confiou como filho à Virgem Mãe. O grande dom do amor, que de pescador o havia feito discípulo, levou-o a intuir e a anunciar com singular clareza, além de toda medida da capacidade humana, a divindade não criada do teu Verbo”. 40

Segundo as notícias que obtivemos do Novo Testamento, João, jun­ to com Tiago, o Maior, era filho de Zebedeu, um pescador do lago de Ge­nesaré, e de Salomé, uma das mulheres que seguiam e serviam Jesus du­rante a vida pública. 40. MA I, 218.


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O discípulo O primeiro encontro com o Mestre atingiu-o tão profundamente a ponto de fazê-lo recordar até mesmo a hora: quatro da tarde. Junto com André, irmão de Pedro, ele tinha ido para as margens do Jordão para escutar o Batista, quando, este indicando Jesus que passava, disse: “Eis o Cordeiro de Deus...”, seguiu o Nazareno e esteve com ele toda a tarde. Daquele momento João, jovem em idade, mas sedento de divino, tinha encontrado sua estrada. Quando algum tempo depois Jesus o chamou expressamente para o seu seguimento junto com seu irmão Tiago, Pedro e André, deixou os pais e o trabalho e o seguiu. O pai e a mãe não se opuseram, fascinados também pela figura do Cristo e confiantes de que o filho ocuparia um lugar importante no reino messiânico já iminente. A mãe um dia pediu-lhe expressamente, suscitando o ressentimento dos outros apóstolos, mas a resposta de Jesus e os acontecimentos da Paixão puseram todas as coisas no lugar justo. O reino messiânico, de fato, era bem diverso de tudo o que sonhavam muitos contemporâneos: bem maior que a sua fantasia e com um percurso que passava através da cruz. João, durante a vida pública do Mestre, participou daquele grupo privilegiado de apóstolos que presenciaram a ressurreição da filha de Jairo, contemplaram Jesus transfigurado sobre o monte e estiveram próximo dele no momento da agonia no Getsêmani. Embora também ele tivesse fugido no momento da captura do Mestre, depois retornou sobre seus passos e junto com Pedro, único dentre os apóstolos, seguiu-o até a cruz. Aqui lhe foi confiada Maria como mãe e foi a ela confiado como filho.

O apóstolo Ao primeiro anúncio da ressurreição, feito pelas mulheres, correu com Pedro ao sepulcro, chegou primeiro, mas não entrou por respeito a Pedro e viu que estava vazio, primeiro sinal da Ressuscitado, que depois contemplaria no Cenáculo junto com os outros apóstolos naquela mesma tarde. As aparições sucederam-se e na do lago da Galiléia foi o primeiro a reconhecer Jesus e a gritar aos outros: “É o Senhor!”. Quando a Igreja moveu os primeiros passos e as autoridades de Jerusalém procuraram impedir a difusão da nova doutrina, os primeiros a serem apri­


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sionados foram Pedro e João, que não se deixaram intimidar, convencidos de ter de obedecer primeiro a Deus do que aos homens. Estava com Pedro, quando este curou o paralítico na porta do templo e junto com ele foi à Samaria para confirmar na fé os primeiros convertidos. Paulo, recordando aos gálatas sua viagem a Jerusalém, chama João “uma das colunas da Igreja”. Quando os apóstolos se dispersaram pelo mundo, João, de acordo com a tradição, se teria transferido para Éfeso junto com Maria, onde teria escrito o quarto evangelho e as três cartas, e onde teria morrido aproximadamente no fim do século I. Santo Irineu escrevia, aproximadamente no ano 175: “João, o discípulo do Senhor, o mesmo que repousou sobre seu peito, publicou também o evangelho, quando morava em Éfeso”.41

Os escritos Hoje a crítica histórica atribui a um discípulo os escritos joaninos. Mesmo que eles não sejam materialmente escritos pela pena de João, ninguém pode negar que o conteúdo desses escritos surgiu do seu coração e contém o ensinamento que ele transmitiu às igrejas que tiveram a ventura de ouvi-lo. Com muita justiça Vögtle observa: “O evangelho a ele atribuído revela informações sobre a vida de Jesus, mas também e sobretudo a respeito da situação topográfica e de outras particularidades da Palestina que não podem deixar de remontar a uma pessoa nativa [da terra santa] e a uma testemunha ocular da vida de Cristo. Porque exatamente este João, filho de Zebedeu, instruído pelo seu Mestre de maneira tão enérgica e inesquecível que o caminho para a glória messiânica passa através da dor, não deveria, orando, discutindo e refletindo, estar penetrado de modo mais profundo pelo mistério do caminho de Cristo? Ele está por trás do evangelho como uma autêntica garantia, por trás daquele evangelho que como nenhum outro ilumina o caminho de Cristo em toda sua dimensão ultraterrena. É o evangelho do Filho eterno de Deus que desceu do céu e retornou para a glória do Pai para além da cruz. 41. AH [Adversus haereses] III, 1,1.


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Levando em consideração a situação efetiva dos autores de numerosos escritos bíblicos, não é certamente de se maravilhar se a ciência moderna tende a não atribuir diretamente ao ex-pescador João este evangelho na forma como a nós se apresenta. Ela pensa em um discípulo de João, crescido na língua e no mundo cultural do sincretismo helenista. Esta obra – “escrito de ruptura e de propaganda”, segundo R. Schnackenburg – defende com penetrante eficácia a verdade do divino Redentor que se fez carne e portador da revelação contra as dúvidas e as doutrinas erradas do seu tempo, sobretudo do gnosticismo em via de afirmação, e emana o espírito, o zelo ardente, tudo tomado do mistério de Cristo, pelo filho de Zebedeu. Reconhecer isso liberta-nos também da ingênua preocupação que o anunciador apostólico de Cristo, que tão profundamente mergulhou na meditação do mistério do Redentor e da nossa redenção, tenha sucumbido nos dias da sua velhice a uma não modesta auto-exaltação. “‘O discípulo que Jesus amava’: assim, com respeito reverencial, o chama com razão o aluno que redigiu o evangelho do apóstolo, seu mestre.”42

O testamento de Jesus Narra-se que João, já velhinho, era carregado em uma cadeira para a assembléia dos cristãos para que os instruísse sobre os ensinamentos do Senhor e ele repetia sempre as palavras do novo mandamento. Os cristãos, pensando que estivesse perdendo a memória, lhe perguntaram por que não falava de outra coisa. O apóstolo respondeu: “Porque é o mandamento do Senhor! Se se praticar isto, é quanto basta!”. A tradição queria exprimir quanto a pregação joanina tinha influído nas comunidades cristãs que gravitavam em torno de Éfeso. Mas o cerne do pensamento joanino está sem dúvida contido no capítulo 17 do seu evangelho, síntese estupenda da vida de Deus que transborda e informa a vida dos discípulos. Por isto a liturgia latina diz de João: “Tu, raptado pela sublimidade, contemplas os arcanos celestes e percebes os mistérios do Cordeiro e da Igreja”. Santo Agostinho comentava que todos os cristãos, mediante a fé, podem participar desta luz, desta “alegria plena na mesma comunhão, na mesma caridade, na mesma unidade”. 42. Citado in: Manns, P. I santi, I. Milano, Jaca Book, 1987, pp. 52-53.


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29 de dezembro São Tomás Becket bispo e mártir (1118ca-1170) “Nós, na consagração, prometemos uma solicitude e uma atenção mais diligente no ensinar e no guiar, e todo dia fazemos disso a profissão com as palavras; mas queira o céu que a fidelidade à promessa seja valorizada pelo testemunho das obras”. 43

Só colocando-a no seu período histórico é possível entender a figura deste mártir, que certamente não nascera santo e precisou lutar duramente não só contra inimigos externos, mas contra si mesmo, para seguir o caminho do evangelho. Tinha vindo ao mundo aproximadamente no ano 1118 de uma família nobre daqueles normandos que, já fazia cinqüenta anos, governavam a Inglaterra. Do seu pai, rico comerciante de Londres, aprendeu a defender os próprios direitos com tenacidade e da sua mãe, profundamente cristã, o amor por Deus e a dedicação ao próximo até o martírio. Bastante jovem foi mandado a estudar em Paris, então centro cultural da Europa, e aí permaneceu até 1138. Tendo retornado para casa, durante três anos fez a contabilidade do magistrado de Londres. Um encargo não desprezível para início de carreira, mas que a ele não agradava absolutamente. Para sua ventura, o arcebispo Teobaldo de Canterbury, também ele da estirpe dos normandos, gostou do incomum engenho do jovem, e fez dele logo um clérigo da sua igreja e o mandou, para completar os estudos, antes para Roma, depois para Bolonha e por fim para Auxerre.

Chanceler do reino Voltando para sua pátria, foi promovido a arquidiácono e chefe da cúria. Teobaldo queria preparar para si um sucessor? Mas nesse momento também o rei colocou os olhos sobre o jovem jurista e em 1154 nomeou-o chanceler do reino. 43. Becket, T. Carta 74: PL 190, 534-535.


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O rei, Henrique II Plantageneta, dominava da Escócia aos Pireneus sem problemas internos, mas queria defender bem os seus direitos para não perder tanto poder. Quem teria podido ajudá-lo nesta tarefa? Tomás parecia talhado exatamente para um tal encargo: sabia tratar com os nobres, conhecia os grandes das cortes européias e da cúria papal, dominava o direito, tinha um bom faro diplomático e a seguir revelou também uma não comum tática militar, vencendo a guerra contra Luís VII da França. Nos sete anos em que ocupou o cargo de chanceler, o rei pôde dormir sonos tranqüilos, porque também nas controvérsias com a Igreja tinha saído vencedor, sem perder a confiança dos papas, contrariamente a tudo quanto havia sucedido ao Barba-roxa no continente europeu.

Arcebispo de Canterbury Quando se tornou vacante a sede de Canterbury, foi normal para o rei propô-lo como sucessor de Teobaldo. Teria tido assim a seu lado também o primaz da sua Igreja e, portanto, todo o episcopado. Nesta escolha contou com o consenso unânime dos bispos do reino, mas descontentou o arcebispo de Londres, Gilbert Foliot, que aspirava à sé primacial. Desde então ele viu em Tomás, mais jovem que ele, o inimigo que impediu sua carreira. Ordenado padre e bispo, renunciou ao cargo de chanceler do reino e começou a sentir a necessidade de uma profunda transformação interior. Ninguém podia acusá-lo de ter vivido no passado uma vida de pecado, nem de não ter vivido dignamente o celibato, mas também não tinha nada de santo: amava a vida alegre e luxuosa e, consciente da sua superioridade intelectual, freqüentemente se tinha mostrado caprichoso e arrogante. Começou a usar o silício, a recolher-se de noite na oração, quando ninguém podia perturbá-lo, e a lavar os pés dos pobres. As más línguas não podiam acreditar que o galante homem da corte de improviso tivesse se transformado em um asceta e diziam que ele praticava essas coisas para distrair a atenção dos outros. Certamente a conversão não foi radical e imediata, e sim lenta e trabalhosa, mas Tomás não voltou atrás. Nesse meio tempo começaram os primeiros desentendimentos com o rei, quando este reivindicou o direito de julgar os clérigos e os monges, independentemente da autoridade eclesiástica, e de impor taxas sobre os bens da Igreja destinados ao sustento do clero, ao culto divino e às obras de assistência para os pobres.


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As coisas pioraram quando o rei quis se impor na escolha dos bispos, pretendendo deles o juramento de vassalagem e negando o direito de apelo ao Papa. As questões não eram fáceis, as tradições passadas não ajudavam e, sobretudo, no mundo cristão daquele tempo não havia clareza entre as competências do Papa e as competências do imperador ou do rei. Tomás a respeito desse assunto foi muito lúcido. Quando o rei codificou todos os usos consuetudinários dos seus predecessores nas Constituições de Clarendon em 1164 e quis que fossem subscritas pelos bispos, não aceitou e também os outros bispos seguiram o seu exemplo. Começou a perseguição aberta. Os bispos, apavorados pelas ameaças do rei, abandonaram Tomás e se submeteram. Por fim até o Papa, mal-informado sobre a situação e às voltas com um antipapa criado por Barba-roxa, aconselhou o arcebispo a se reconciliar com o rei. Tomás permaneceu muito perplexo e firmou com a cláusula salvo honore Dei, colocando a salvo os direitos de Deus.

Rumo ao martírio O rei não ficou satisfeito e no sínodo de Northampton condenou-o a várias penas e o ameaçou de deposição. Tomás fugiu para a França e encontrou-se com o Papa em Sens, e apresentou sua renúncia ao arcebispado de Canterbury, duvidando até mesmo da validade da sua eleição, visto que conhecia as intrigas do rei. O papa Alexandre III confirmou-o no cargo e o convidou a retirarse provisoriamente para a abadia de Pontigny, enquanto ele teria procurado uma solução honrosa com o rei. As negociações duraram sete anos e, quando pareciam chegar a bom resultado, precipitaram-se de novo. Tomás voltou para a pátria, mas não soube mais resistir às pressões do rei, que além de lhe ter confiscado os bens e exilado seus amigos, queria ter no seu reino a última palavra no governo da Igreja. A concepção regalista batia-se frontalmente com aquela do arcebispo, que escrevia aos seus confrades no episcopado: “Quem duvida que a Igreja de Roma seja a cabeça de todas as Igrejas e fonte da doutrina católica? Quem ignora que as chaves do reino dos céus foram dadas a Pedro? A estrutura de toda a Igreja não se eleva talvez na fé e sobre o ensinamento de Pedro, enquanto todos vamos ao encontro de Cristo como homem perfeito, na unidade da fé e no conhecimento do Filho de Deus?”. E decidiu empregar a maneira forte, excomungando dois bispos que abertamente se opunham a essa doutrina: o bispo de York e o bispo de Londres.


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Foi o fim. A 29 de dezembro de 1170 quatro cavaleiros se aproximaram da catedral e os monges, prevendo o perigo, quiseram fechar as portas, mas o arcebispo se opôs. Recebeu os quatro cavaleiros e à ameaça de morte respondeu: “Estou pronto a morrer pelo nome de Jesus e pela defesa da Igreja”. E foi assassinado. A notícia da sua morte esparramou-se em um instante e o povo gritava por toda a parte que tinha morrido um santo. A fama de santidade produziu logo os seus frutos: o rei, atingido por interdito pessoal do Papa, depois de dois anos reconciliou-se com a Igreja, colocando em liberdade os seguidores de Tomás e estabelecendo paz com o rei da França. As notícias da vida e o culto ao mártir difundiam-se rapidamente na Inglaterra, na Irlanda, na Islândia, na França, em Roma e até mesmo na Cilícia. Canterbury tornou-se uma meta de peregrinações como São Tiago de Compostela e outros famosos santuários. Mas sob Henrique VIII seu túmulo foi destruído, suas relíquias queimadas e as cinzas lançadas ao vento, e o seu nome foi cancelado dos livros litúrgicos. Desde então, Tomás Becket, João Fisher e Tomás Morus passaram à história, para alguns, como mártires pela liberdade da Igreja e, para outros, como intransigentes sustentadores de poderes clericais. Hoje, abrandadas as polêmicas, há mais propensão a reconhecer que eles deram com o próprio sangue uma contribuição para o esclarecimento das relações entre a Igreja e o Estado, no esforço de entender como colocar em prática as palavras de Jesus de dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

31 de dezembro São Silvestre papa (+ 335) “Oferecia-se ao nosso olhar um espetáculo auspicioso para todos e ardentemente desejado, e em cada cidade havia solenidades de dedicação e consagração de lugares de culto há pouco eretos; além de reuniões de bispos, acorrer de peregrinos de regiões distantes e estrangeiras, um mútuo amor e benevolência entre povos e povos, união em uma só harmoniosa estrutura dos membros do corpo de Cristo... Única era a força do Espírito divino que circulava por todos os membros, uma


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alma de todos, o mesmo ardor de fé, um só o canto de todos aqueles que entoavam hinos a Deus”. 44

Com estas palavras de toque poético, Eusébio de Cesaréia descreve aquele período que vê o triunfo da liberdade dos cristãos depois de três séculos de perseguições. A atividade pastoral de Silvestre desenvolveu-se exatamente neste ambiente.

À sombra de Constantino Durante a perseguição de Diocleciano, ele teria confessado a fé e por esse motivo no ano 314 teria sido escolhido como bispo de Roma. A presença e o espírito empreendedor do imperador Constantino, porém, conseguiram colocar um pouco na sombra a figura deste papa. O imperador, de fato, tinha os meios e o poder para facilitar a organização da religião cristã, por ele já reconhecida como religião de Estado, e ao próprio Papa não restava senão assistir aos acontecimentos. Para Eusébio de Cesaréia e para a maioria dos bispos, a liberdade dada por Constantino aos cristãos era um sinal dos novos tempos. Bem poucos se apercebiam de que esses favores estavam assinalando também o início de uma perigosa intromissão do poder político na vida interna da Igreja. Por outro lado, a história tem seus tempos e não podemos julgar com a medida de hoje acontecimentos tão remotos. Também se Silvestre era praticamente a primeira autoridade de Roma, onde o imperador aparecia raramente, permanecia sempre sob o manto protetor de Constantino. Em Roma, a comunidade cristã tinha necessidade de edifícios amplos para a própria administração e para o culto? Constantino dava o palácio lateranense e edificava as basílicas de Latrão, de São Pedro e de São Paulo fora dos Muros. Existiam turbulências por causa das heresias donatista e ariana em várias partes do império e os bispos deviam reunir-se em concílio para discutir? O imperador era o primeiro a interessar-se pelo assunto para poder conservar a paz nos seus territórios e tomava a iniciativa não só de convocar

44. Eusébio de Cesaréia. Storia ecclesiastica, X, 1-3: PG 20, 842-847 passim.


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concílios, mas também de fornecer os meios de transporte e de alojamento aos bispos de maneira que pudessem se movimentar com todas as honras, utilizando as estruturas públicas do Estado.

O Concílio de Arles Em 314, Constantino, diante dos tumultos deflagrados na África pela heresia donatista, convocou os bispos para um concílio em Arles. Silvestre não tomou parte nele pessoalmente, mas enviou quatro delegados. Os bispos aí reunidos por sua conta reconheciam a autoridade do Papa não só acolhendo com deferência os delegados, mas escrevendo-lhe no fim uma carta e convidando-o a comunicar a todos os bispos do mundo as decisões conciliares, avalizando-as com a autoridade de Pedro. Eis um trecho dessa carta: “Tivesse o céu querido, ó pai caríssimo, que estivésseis presente neste grande espetáculo! (...) Se tivésseis estado conosco, grande teria sido a alegria de toda a assembléia. Mas visto que não podíeis deixar a cidade, sede preferida dos apóstolos, onde o seu sangue testemunha a glória de Deus, vos referimos que não entendemos como nosso único dever tratar dos argumentos para os quais tínhamos sido convocados. Visto que provínhamos de diversas províncias, acreditamos oportuno consultar-nos sobre vários problemas que se deviam discutir, com a assistência do Espírito Santo e dos anjos. E desejamos que sejais vós, cuja autoridade é mais ouvida, que façais conhecer a todas as Igrejas as nossas decisões”. 45

Silvestre inaugurava a prática, tornada depois muito comum aos pon­tí­ fices romanos, de não participarem pessoalmente de concílios celebrados fora de Roma, seja para não correrem o risco de serem submetidos a pressões, seja para terem a possibilidade de um posterior exame dos decretos conciliares antes de promulgá-los definitivamente. Em Roma, no entanto, Silvestre levava em frente os trabalhos da construção ou da adaptação dos edifícios sacros, aproveitando a munificência imperial e a generosidade das famílias nobres romanas. Intervinha também no calendário, tirando dos dias os nomes pagãos dedicados aos deuses e chamando-os com o nome genérico de feriae [férias]: feria II, III, IV, V, VI, e, depois, sábado e domingo. Neste período o domingo foi reconhecido como dia festivo também pelas autoridades civis e, portanto, dedicado ao repouso e ao culto. 45. Citado in: Rendina, C. I papi – Storia e segreti. Roma, Newton ed., 1993, pp. 63-64.


São Silvestre

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O Concílio de Nicéia Entretanto, no clima de liberdade em que vivia a religião cristã, também as heresias podiam mais facilmente difundir-se como aconteceu com o arianismo por obra de um padre alexandrino empreendedor, chamado exatamente Ario. Ele sustentava que Jesus Cristo era simplesmente um homem extraordinário que Deus havia adotado como filho. A heresia causava profundas cisões entre os cristãos e, freqüentemente, também desordens que provocavam intervenções militares. Constantino, como havia feito em Arles, pensou em dar um jeito nisso mediante um novo concílio e desta vez o convocou para Nicéia para favorecer a participação dos bispos do Oriente, onde o problema estava mais aceso. O papa Silvestre, segundo sua linha prudente, também dessa vez enviou dois dos seus presbíteros como legados, Vito e Vicente. O concílio abriu-se a 14 de junho de 325 com a participação de trezentos bispos, na presença de Constantino, sob a presidência do bispo Ósio e dos dois legados papais. Os arianos foram condenados e foi formulado o famoso símbolo de fé chamado exatamente niceno, no qual se reafirma a divindade de Cristo.

Não mártir, mas igualmente santo Tudo parecia já resolvido, mas o arianismo continuava a sobreviver debaixo das cinzas. Ario conseguiu chegar até Constantino e o convenceu de ter sido injustamente condenado. O imperador, sem avisar o Papa, convo­ cou uma nova assembléia de bispos, todos arianos, em Tiro, em 335. O conciliábulo condenou santo Atanásio e reabilitou Ario. O papa Silvestre, no entanto, deixava este mundo no dia 31 de dezembro daquele mesmo ano e era logo venerado como santo pela cidade de Roma. Era o primeiro Papa que recebia as honras dos altares sem ter sofrido o martírio. Séculos mais tarde inventou-se a “doação de Constantino”. O imperador teria dado ao papa Silvestre a cidade de Roma, a Itália e outras regiões ocidentais. Se o documento é claramente falso, é verdade o fato de que, transferida para Bizâncio a capital do império, o Ocidente foi abandonado à sua própria sorte e os papas e bispos durante muito tempo precisaram se ocupar não só do aspecto religioso, mas também do aspecto temporal da vida dos cidadãos.



ÍNDICE ALFABÉTICO DOS SANTOS

A

Adalberto........................................................................... 23 de abril Afonso Maria de Liguori.................................................... 1 de agosto Águeda............................................................................... 5 de fevereiro Agostinho de Cantuária...................................................... 27 de maio Agostinho de Hipona......................................................... 28 de agosto Alberto Magno................................................................... 15 de novembro Ambrósio........................................................................... 7 de dezembro Ana.................................................................................... 26 de julho André................................................................................. 30 de novembro André Dung-Lac................................................................ 24 de novembro André Kim Taegon............................................................. 20 de setembro Ângela Mérici..................................................................... 27 de janeiro Aquiles............................................................................... 12 de junho Ansgário (ou Oscar)........................................................... 3 de fevereiro Anselmo de Cantuária........................................................ 21 de abril Antão................................................................................. 17 de janeiro Antônio de Pádua............................................................... 13 de junho Antônio de Sant’Ana Galvão.............................................. 25 de outubro Antônio Maria Claret......................................................... 24 de outubro Antônio Maria Zaccaria...................................................... 5 de julho Atanásio............................................................................. 2 de maio

B

Barnabé.............................................................................. 11 de junho Bartolomeu........................................................................ 24 de agosto


834

Basílio................................................................................ 2 de janeiro Beda Venerável................................................................... 25 de maio Bento................................................................................. 11 de julho Bernardino de Sena............................................................ 20 de maio Bernardo de Claraval.......................................................... 20 de agosto Boaventura de Bagnoregio.................................................. 15 de julho Bonifácio............................................................................ 5 de junho Brás.................................................................................... 3 de fevereiro Brígida da Suécia................................................................ 23 de julho Bruno................................................................................. 6 de outubro

C

Caetano de Thiene............................................................. 7 de agosto Calixto............................................................................... 14 de outubro Camilo de Lélis.................................................................. 14 de julho Carlos Borromeu................................................................ 4 de novembro Carlos Lwanga e comp. ..................................................... 3 de junho Casimiro............................................................................ 4 de março Catarina de Sena................................................................ 29 de abril Cecília................................................................................ 22 de novembro Cipriano............................................................................. 16 de setembro Cirilo de Alexandria........................................................... 27 de junho Cirilo de Jerusalém............................................................. 18 de março Cirilo................................................................................. 14 de fevereiro Clara de Assis..................................................................... 11 de agosto Clemente............................................................................ 23 de novembro Columbano........................................................................ 23 de novembro Cornélio............................................................................. 16 de setembro Cosme................................................................................ 26 de setembro

D

Dâmaso.............................................................................. 11 de dezembro Damião.............................................................................. 26 de setembro Dionísio e companheiros.................................................... 9 de outubro Domingos.......................................................................... 8 de agosto

E

Edith Stein......................................................................... 9 de agosto Edviges............................................................................... 16 de outubro


835

Efrém................................................................................. 9 de junho Escolástica.......................................................................... 10 de fevereiro Estanislau........................................................................... 11 de abril Estevão............................................................................... 26 de dezembro Estêvão............................................................................... 16 de agosto Eusébio de Vercelli............................................................. 2 de agosto

F

Fabiano.............................................................................. 20 de janeiro Felicidade........................................................................... 7 de março Fidélis de Sigmaringa.......................................................... 24 de abril Filipe.................................................................................. 3 de maio Filipe Néri.......................................................................... 26 de maio Francisca Romana.............................................................. 9 de março Francisco de Assis............................................................... 4 de outubro Francisco de Paula.............................................................. 2 de abril Francisco de Sales............................................................... 24 de janeiro Francisco Xavier................................................................. 3 de dezembro

G

Gertrudes........................................................................... 16 de novembro Gregório Magno................................................................. 3 de setembro Gregório Nazianzeno.......................................................... 2 de janeiro Gregório VII...................................................................... 25 de maio

H

Henrique............................................................................ 13 de julho Hilário............................................................................... 13 de janeiro Hipólito............................................................................. 13 de agosto

I

Inácio de Antioquia............................................................ 17 de outubro Inácio de Loyola................................................................. 31 de julho Inês.................................................................................... 21 de janeiro Irineu de Lyon.................................................................... 28 de junho Isaac Jogues........................................................................ 19 de outubro Isabel da Hungria............................................................... 17 de novembro Isabel.................................................................................. 4 de julho Isidoro de Sevilha............................................................... 4 de abril


836

J

Januário.............................................................................. 19 de setembro Jerônimo............................................................................ 30 de setembro Jerônimo Emiliani.............................................................. 8 de fevereiro Joana Francisca de Chantal................................................. 10 de dezembro João.................................................................................... 27 de dezembro João Batista........................................................................ 24 de junho João Batista de La Salle....................................................... 7 de abril João Bosco.......................................................................... 31 de janeiro João Crisóstomo................................................................. 13 de setembro João Damasceno................................................................. 4 de dezembro João da Cruz...................................................................... 14 de dezembro João de Brébeuf.................................................................. 19 de outubro João de Capistrano............................................................. 23 de outubro João de Deus...................................................................... 8 de março João Eudes.......................................................................... 19 de agosto João Câncio........................................................................ 23 de dezembro João Fischer........................................................................ 22 de junho João Leonardi..................................................................... 9 de outubro João Maria Vianney............................................................ 4 de agosto João I................................................................................. 18 de maio Joaquim............................................................................. 26 de julho Jorge................................................................................... 23 de abril Josafá.................................................................................. 12 de novembro José.................................................................................... 19 de março José de Calasanz................................................................. 25 de agosto José de Copertino............................................................... 18 de setembro Judas.................................................................................. 28 de outubro Justino................................................................................ 1 de junho

L

Leão Magno....................................................................... 10 de novembro Lourenço............................................................................ 10 de agosto Lourenço de Bríndisi.......................................................... 21 de julho Lourenço Ruiz e comp....................................................... 28 de setembro Lucas.................................................................................. 18 de outubro Luís.................................................................................... 25 de agosto Luís Gonzaga..................................................................... 21 de junho Luís M. Gr. de Montfort ................................................... 28 de abril Luzia.................................................................................. 13 de dezembro


837

M

Marcelino........................................................................... 2 de junho Marcos............................................................................... 25 de abril Margarida da Escócia......................................................... 16 de novembro Margarida Maria Alacoque................................................. 16 de outubro Maria Goretti..................................................................... 6 de julho Maria Madalena................................................................. 22 de julho Maria Madalena de Pazzi.................................................... 25 de maio Marta................................................................................. 29 de julho Martinho de Lima.............................................................. 3 de novembro Martinho de Tours............................................................. 11 de novembro Martinho I......................................................................... 13 de abril Mateus............................................................................... 21 de setembro Matias................................................................................ 14 de maio Maximiliano Maria Kolbe.................................................. 14 de agosto Metódio............................................................................. 14 de fevereiro Mônica............................................................................... 27 de agosto

N

Nereu................................................................................. 12 de maio Nicolau.............................................................................. 6 de dezembro Norberto............................................................................ 6 de junho

P

Pancrácio............................................................................ 12 de maio Patrício............................................................................... 17 de março Paulina do Coração Agonizante de Jesus . .......................... 9 de julho Paulino de Nola.................................................................. 22 de junho Paulo.................................................................................. 29 de junho Paulo, Conversão de........................................................... 25 de janeiro Paulo Chong Hasang.......................................................... 20 de setembro Paulo da Cruz..................................................................... 19 de outubro Paulo Miki......................................................................... 6 de fevereiro Pedro.................................................................................. 29 de junho Pedro Canísio..................................................................... 21 de dezembro Pedro Chanel...................................................................... 28 de abril Pedro Claver....................................................................... 9 de setembro Pedro Crisólogo.................................................................. 30 de julho Pedro Damião.................................................................... 21 de fevereiro


838

Pedro Julião Eymard........................................................... 2 de agosto Pedro.................................................................................. 2 de junho Perpétua............................................................................. 7 de março Pio V.................................................................................. 30 de abril Pio X.................................................................................. 21 de agosto Policarpo............................................................................ 23 de fevereiro Ponciano............................................................................ 13 de agosto Protomártires da Igreja de Roma........................................ 30 de junho

R

Raimundo de Penyafort...................................................... 7 de janeiro Roberto Belarmino............................................................. 17 de setembro Romualdo.......................................................................... 19 de junho Rosa de Lima..................................................................... 23 de agosto

S

Sete santos fundadores da Ordem dos Servos de Maria....... 17 de fevereiro Sebastião............................................................................ 20 de janeiro Silvestre.............................................................................. 31 de dezembro Simão................................................................................. 28 de outubro Sisto II............................................................................... 7 de agosto

T

Teresa de Jesus.................................................................... 15 de outubro Teresa do Menino Jesus...................................................... 1 de outubro Tiago.................................................................................. 25 de julho Tiago.................................................................................. 3 de maio Timóteo............................................................................. 26 de janeiro Tito.................................................................................... 26 de janeiro Tomás Becket..................................................................... 29 de dezembro Tomás de Aquino............................................................... 28 de janeiro Tomás Moro....................................................................... 22 de junho Tomé.................................................................................. 3 de julho Turíbio de Mongrovejo....................................................... 23 de março

V

Venceslau........................................................................... 28 de setembro Vicente de Paulo................................................................ 27 de setembro Vicente de Saragoza............................................................ 22 de janeiro Vicente Ferrer..................................................................... 5 de abril


Esta obra foi composta e impressa na indústria gráfica da EDITORA AVE-MARIA Estrada Comendador Orlando Grande, 88 – 06833-070 Embu, SP – Brasil – Tel.: (11) 4785-0085 • Fax: (11) 4704-2836



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