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sobre reis e dragões | vol. 3
TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
São Paulo, 2017
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O imortal Kalymor vol. 3: Sobre reis e dragões Copyright © 2017 by Ígor Martins de Menezes Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.
aquisições
Cleber Vasconcelos
editorial
coordenação editorial
João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Talita Wakasugui
preparação de texto
revisão
Vitor Donofrio
Fernanda Guerriero Antunes
Tássia Carvalho
capa, p. gráfico e diagramação
Vitor Donofrio
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Menezes, Ígor Martins de O imortal Kalymor: vol. 3: sobre reis e dragões Ígor Martins de Menezes. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. (Talentos da Literatura Brasileira) 1. Ficção brasileira 2. Literatura fantástica I. Título 17‑1769
cdd‑869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3
novo século editora ltda.
Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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E oro, então, por Ti… Força imaginável, real por sentimento. Que ascende em pensamento, por crença declarada. Pura Palavra, resgatada pela fé. E ouço, então, o que ninguém ouve, Pois se gerou de meus sentidos e por vontade se instala. Percebo‑Te e me entrego à Tua luz, Que por forte cega, também, minhas tentações. Mostra‑me simplesmente a bondade. E prontamente me convence, tamanha integridade. E oro, novamente, por acreditar, Num soar silencioso àquele que não ousa ter o que não se dispõe a crer. Pois És bem maior que a simplicidade dos homens… E seja feita, assim, a Vossa verdade! Dr. Vagner La‑Bella Marchi
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1 AS CIDADELAS
– Um pedido terrível! – diz o padre. – Sim! Que me desafiou a consciência. Ainda mais num mo‑ mento em que eu estava tão abalado pela chuva de acontecimen‑ tos. Pensei, e muito. Relembrei tudo o que tinha presenciado da vida de Ismael, desde quando o vira com os olhos brilhando em sonhos, em sua infância, ao visualizar o Cavaleiro Lazar. Até os mesmos olhos enegrecerem‑se ao, finalmente, tornar‑se tam‑ bém um Cavaleiro. Sua total dedicação para com seu pai, su‑ portando até mesmo o fardo de sua morte, e seu conflito com a fé que negou, assumindo outra, e em sua eterna discórdia de certezas tênues novamente assumindo a anterior, carregando, nesse ínterim, a mais complexa das escolhas… O certo e o errado, um em cada mão, sem estar convicto de que ele próprio pode‑ ria não ser o centro dessas decisões, mas talvez até parte delas. Como esmurrar uma montanha e, nesse ato, esmigalhar os ossos do punho, gerando uma incógnita sobre quem realmente foi o agressor. Mas, como disse, pensei e, em minha sanidade, certa‑ mente não faria o que me solicitou o mestre de todos os vam‑ piros. No entanto, o desejo de vingança que eu por tantos anos 7
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nutria sobrepujaria isso, fazendo que eu caísse nos anseios de Malberon. Afinal de contas, Ismael era somente um homem, e eu já havia matado centenas. Tendo isso em mente, parti, mas não caminhei sozinho. Deixei a caverna acompanhado de dois figu‑ rantes: Tathiene e um vampiro, que se chamava Dusth, aquele primeiro que nos conduziu ao encontro dos demais. – E a mulher? – interrompe o padre. – Era mesmo um fantasma? – Não! Apesar de seu poder levar a crer. Ela era um vampiro ‑mestre, como todos os demais, porém tinha a impressionante habilidade de deixar o corpo intangível, tornando‑se virtualmen‑ te indestrutível. Essa não era, contudo, a maior de suas virtudes, detalhe que descobri quando estávamos muito longe da caverna, em direção a Nostrades, Capital do reino…
– O caminho será longo, zumbi! – disse o vampiro, reportando‑se a mim de uma maneira intimidadora. – Talvez minha amiga e eu não consigamos nos conter e o destruamos por seus atos contra nossos semelhantes. – Acho que Malberon não iria gostar muito! – desafiei, certo de minha importância. – Tem muita sorte, criatura! – retrucou Dusth. – Ninguém sobre‑ vive a um encontro com Tathiene, pois ela é a maior e mais letal de todas as assassinas. Se você conseguir encarar os olhos dela, é porque já está morto. Lembrei‑me daquele brilho horripilante que seus olhos exala‑ ram na floresta, e de como foi realmente fácil me sobrepujar. Não fossem os planos que o primeiro dos vampiros tivesse para comigo, eu não passaria, naquele instante, de uma mera lembrança. Olhei 8
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novamente a vampira, envolvida por seu manto negro, caminhando ao meu lado como se nada daquilo tivesse acontecido. Inteiramente calada e silenciosa como um espectro, tendo o capuz e sua máscara como uma proteção, os quais, talvez, servissem para proteger aquele que porventura cruzasse seu caminho, pois impediriam a pobre víti‑ ma de visualizar com clareza, em seu último momento, a verdadeira face da morte. Seguimos pela escuridão como morcegos. Contudo, o bater de nossas asas era estranho. Éramos um trio, mas minha presença era in‑ desejada. Os vampiros ansiavam por me destruir, estava nítido na face de Dusth e, também, estaria na de Tathiene, caso eu pudesse enxergá ‑la. Escondia‑se não por medo ou vergonha, mas porque seu gosto pela morte fora impedido de saciar‑se. Eu era uma afronta ao papel que ela representava, pois havia encarado seu olhar de morte e ainda continuava ali. Por algumas noites de caminhada, aquela situação permaneceu imutável. Tathiene emudecida, e o vampiro, quando se dirigia a mim, nunca vinha em bom tom. Seus dedos coçavam para brandir a espada e fazê‑la beijar meu pescoço. Durante o dia, parávamos em vilas para que se protegessem do Sol. E, quando não encontrávamos uma, eles se enterravam completamente no chão, até o próximo anoitecer. Eu poderia destruí‑los de uma maneira estupidamente fácil, enquanto estavam vulneráveis. Bastaria remover a terra que os cobria. Se o fizes‑ se, porém, jamais saberia para que ponto de Nostrades eu deveria ir. E onde estaria Ismael. Destruindo aqueles dois, não conseguiria des‑ truir o vampiro que eu mais odiava. Ficamos por um bom tempo nessa troca de vulnerabilidades. Durante a noite, eu dependia de suas vontades para continuar; duran‑ te o dia, dependiam da minha. No entanto, nosso estranho compa‑ nheirismo não perdurou. Eu já estava perto de meu destino, e de nada 9
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mais eles me serviriam. E a primeira vez que Tathiene se pronunciou foi também sua última: – Ficaremos por aqui! – falou, com a mesma voz eroticamente envolvente. – Cumpra sua tarefa, e que nunca mais nos encontremos novamente. Havia uma certeza imensamente ameaçadora em suas palavras. Eu caçaria vampiros por toda a minha eternidade e provavelmente, algum dia, nossos caminhos novamente se cruzariam. Enquanto isso não acontecesse, eu passaria com a lembrança de minha derrota em suas mãos. De como facilmente fora sobrepujado. Veria com clareza aquele brilho branco em seus olhos. Teria de evoluir, e muito, para es‑ tar à altura de novamente a desafiar. Assim, partiram. E, quando percebi, já estava à frente de um cam‑ po de batalha… Nostrades era formada por nove cidadelas, que circundavam uma cidade ao centro, onde estava localizado o castelo do rei. Milhares de homens formavam as defesas, dos quais algumas centenas estavam distribuídas entre as cidadelas e o restante, na Cidade Central. Além disso, em diversos pontos do restante do reino havia agrupamentos militares, que concentravam tropas, caso houvesse necessidade de uma intervenção mais rápida, em um local distante da Capital. Era um reino vasto, sendo quase impossível precisar quantos soldados havia ao todo. Como Ismael pretendia vencer, com um número muito menor de soldados, ainda era uma grande incógnita para mim. O Cavaleiro não ousaria confrontar o reino, à custa de tantas vidas, sem alguma certeza. Talvez tivesse um grande plano ou uma poderosa e desco‑ nhecida cartada. Seria quase impossível uma vitória, mesmo se es‑ tivesse em condições e número favoráveis. Tomar uma cidadela era fácil, mas as outras oito mandariam suas tropas. Mesmo que um 10
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grande número de cidadelas caísse, seria um ato fútil, pois ainda res‑ taria a Cidade Central. Ismael, para sitiar a Cidade Central, teria que tomar todas as ci‑ dadelas. Pelo menos esse foi meu pensamento. Ainda assim, porém, a guerra iria durar anos, pois as tropas do Cavaleiro divididas em cada cidadela seriam facilmente sobrepujadas por exércitos vindos da própria Cidade Central e pelas diversas legiões que viriam de fora de Nostrades. Sendo assim, atacando em massa uma única cidadela, seria inútil, e tentar conquistar todas as outras o enfraqueceria. Além disso, havia outros aspectos a serem considerados… O deus‑Dragão repousava no subterrâneo da Cidade Central. E, além do rei, ele também deveria cair. O Cavaleiro teria que desafiá ‑lo, pois, se o Dragão fugisse, tudo seria em vão. O que ele faria?, foi a pergunta que não quis calar em minha mente. O que ele faria contra todas aquelas adversidades? Eu não tinha as respostas naquele mo‑ mento. Mesmo porque, no calor da guerra, não havia espaço para dú‑ vidas. E, como sempre, apenas observei… Fiquei nos arredores de uma das cidadelas, bem próximo às tro‑ pas invasoras. A cidadela ficava a noroeste da Cidade Central e, se não fizesse parte de Nostrades, certamente seria, também, uma grande cidade. Estava amanhecendo. Os primeiros raios do Sol anunciavam um belíssimo dia, não fosse pela posição em que se encontravam os homens, já em formação de batalha. A grande maioria era composta de humanos, mas com umas poucas centenas de elfos e alguns repre‑ sentantes de outras espécies. Estavam voltados para a cidadela e, em pouco tempo, iniciaram uma marcha em sua direção. Procurei, entre todos, por Ismael, mas não o encontrei. Pensei no motivo pelo qual os vampiros haviam me deixado, se o Cavaleiro não estava ali. Eu deveria procurar com mais insistência e adentrar na ci‑ dadela? Ou, talvez, me envolver na batalha? Quem sabe eles tivessem 11
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se equivocado quanto ao lugar onde ele estaria? Talvez tivessem fei‑ to de propósito, para que eu fosse procurar por toda a imensidão de Nostrades! Decidi, então, ficar, mesmo porque havia visto alguém de meu passado naquela procura. Ariane cavalgava entre os elfos. Uma das poucas mulheres a com‑ por as tropas. Não fiquei surpreso por sua presença, mas, sim, pela coincidência de encontrá‑la. Sua magia era tremendamente podero‑ sa, e ela, certamente, seria uma adversária formidável. Apesar de es‑ tarem em campo plano, ainda assim havia muita grama e pequenos arbustos, e imaginei as diversas formas como ela poderia aproveitar aquele terreno. Ao seu lado estava um elfo, de semblante sério e longos cabelos loiros, amarrados em uma única trança, percorrendo toda a extensão de suas costas. Trajava um corselete e carregava uma espada bem trabalhada, de tamanho um pouco menor do que uma espada lon‑ ga. Percebi, de imediato, que aquele deveria ser seu marido, a julgar pela proximidade de ambos e pela constante troca de seus olhares e palavras tenras. O elfo, porém, não era somente aquilo. Quando as tropas cessaram sua marcha, ele rapidamente se pôs à frente delas, revelando‑se como seu líder. – Homens! – gritou. – É chegado o momento de provar nossa bra‑ vura! De finalmente buscar a liberdade que nossos olhos já esquece‑ ram! De sentir, novamente, o gosto do solo que um dia nos pertenceu. Tenho a honra de comandá‑los neste campo de batalha e, se os deu‑ ses de cada um de vocês permitirem, alcançaremos a vitória! As palavras foram sendo repetidas a cada intervalo grande de homens, de modo que todos conseguissem ouvi‑las. No final, um gri‑ to conjunto retumbou pelos campos e estremeceu árvores distantes, como barridos de elefantes em disparada. Muito mais do que um gri‑ to, aquilo parecia o canto ensaiado de uma liberdade sufocada. Como 12
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se a imensidão do Sol daquela manhã, em toda a sua força e todo o seu esplendor, fosse por eles convertida em forma de som. Na frente das tropas do elfo, outro aglomerado de homens se for‑ mava como um imenso rio. As tropas inimigas guarneciam a cidadela e estavam em número quase igual. Logo, as duas massas se beijariam como um encontro de serpentes, entrelaçando‑se e formando uma única nuvem de poeira, gritos e sangue. Antes disso, partiu de cada lado um representante: o elfo e um Cavaleiro. A negociação foi rápida. Muito provavelmente, nenhuma nego‑ ciação real ocorreu. De um lado, as tropas do elfo não poderiam recuar, pois todas as outras tropas que estavam atacando as demais cidadelas dependiam de sua conquista. Nenhuma cidadela poderia deixar de ser tomada. E, do outro lado, jamais entregariam aquele local. À frente dos seus, o elfo brandiu sua espada e a dispôs de modo que ficasse com a lâmina encostando em suas costas. Entendendo o movimento, centenas de homens ergueram para os céus seus arcos, como uma prece conjunta. E, quando o elfo apontou a espada para a frente, as flechas zuniram no vento como abelhas, formando uma letal cortina de espículas que, ao se unirem, pareciam o abocanhar de um imenso dragão. Como uma chuva de granizo no telhado, as flechas atingiram os escudos inimigos e, por vezes, molhavam a própria carne. Diversos homens caíram, sem chance de reclamar. Ao término daqueles ins‑ tantes de enxurrada, porém, rapidamente houve o retorno. Da mesma forma, flechas emergiram do lado da cidadela, agra‑ ciando seus visitantes. O elfo permaneceu onde estava, como forma de passar confiança aos seus homens. Em seguida, novamente os pas‑ sos daquela dança continuaram, no mesmo ritmo. As flechas eram as únicas a se mostrarem, numa troca de presentes. Aquilo, contudo, não
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poderia continuar, pois muitos morriam de cada lado. Sem demora, o segundo ataque surgiu. – Por Ismael! – gritou o elfo, num brado extremamente alto, de modo que até mesmo os que estavam na última fileira das tropas ouviram. Aquela frase ecoou como um empurrão dos deuses, fazendo um turbilhão de passos rápidos sacudir o chão. Os soldados, então, cor‑ reram uns de encontro aos outros, atendendo ao chamado daquela contradança. Iniciava‑se uma formidável batalha. Enquanto gritos competiam entre si e lâminas se acariciavam, observei atentamente o solo ganhar, aos poucos, uma coloração ru‑ bra. A carne rasgava‑se como folhas secas, e o Sol, já impiedoso, aque‑ cia as espadas como uma fornalha. Assim a batalha continuou, por um bom tempo. Eu via a força dos homens em cada golpe e sabia que provinha muito mais do que de seus músculos. Força contida, um de‑ sejo encarcerado. Aqueles guerreiros lutavam pela liberdade e não se importavam de morrer por ela. Por suas crenças, por seus filhos e por aqueles que um dia, também, morreram para que eles estivessem ali. Uma das maiores batalhas que eu havia presenciado brilhava em meus olhos, e, de certa forma, senti‑me frustrado por não participar dela. Pensei em minha insignificância, pois não possuía nada que me fizesse comparecer. Com absoluta certeza, já havia brandido minha espada muito mais vezes do que qualquer um ali, mas em nenhum momento houve tamanha glória como aquela. Eu claramente tinha me tornado um zumbi por completo, pois não sobrara nada em mim, e talvez esse fato me permitisse descer ao nível de minha missão. Eu mataria Ismael, sem remorso algum e sem consideração por aqueles que jaziam naquela cena em prol de sua ousadia. Logo, outra leva de atacantes se apresentou. A cavalaria da ci‑ dadela iniciara seu massacre. Investiu contra os homens do primeiro 14
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ataque, para dizimá‑los por completo. Em resposta, também com sua cavalaria, o elfo entrou em combate. Só que havia uma peculiaridade nela: os homens não estavam montados em cavalos, mas correndo com as próprias pernas, pois eram minotauros. Expondo os enormes chifres para a frente, como mortais aríetes, centenas daqueles homens‑touros correram enfileirados. Como sua força permitia, empunhavam pesados machados e martelos, o que nenhum humano conseguiria fazer. Ao mesmo tempo em que seus cascos sapateavam o chão e por suas narinas expeliam um forte jato de ar, o qual continha todo o seu ódio, giravam suas armas ameaça‑ doramente, como um prenúncio do epílogo que mostrariam adiante. Cavaleiros e minotauros se encontraram num violento estrondo. As lanças e espadas dos primeiros atravessavam o tronco dos segun‑ dos, enquanto os chifres dos segundos sobrepujavam as montarias daqueles. O machado era praticamente indefensável e, quase na tota‑ lidade das vezes, um único golpe se fazia suficiente. Mesmo assim, a cavalaria tinha um pouco de vantagem, pois se digladiava contra “ho‑ mens” no chão. Uma vantagem pouca, em se tratando de minotauros, mas ainda assim uma vantagem. Fora provavelmente a parte mais sangrenta da batalha. Os ma‑ chados cortavam tudo o que encontravam, os chifres e os cascos so‑ brepujavam qualquer armadura. Em contrapartida, as lanças e os golpes rápidos das espadas se aproveitavam da esquiva lenta de seus corpos pesados. Além disso, poucos minotauros possuíam armadura ou até mesmo um corselete. Sua proteção se limitava ao couro de al‑ gum animal e, muitas vezes, aos próprios músculos. No entanto, não temiam um único instante e, completamente convictos de sua força, partiam, impetuosamente, para cima dos Cavaleiros. Como mons‑ tros, arremessavam corpos para cima como se fossem feitos de pano. Escudos eram destruídos em dois ou três golpes. E os minotauros, 15
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mesmo com as lanças mortais dos soldados, foram cruciais naquele momento, pois praticamente inutilizaram a cavalaria, de modo que os demais homens ao seu lado pudessem agir em igualdade de forças. As últimas tropas foram, então, enviadas. Ninguém mais estava fora do combate. Voltei minha atenção ao elfo, que parecia buscar alguma coisa diferente do que o inimigo. Lutava com os Cavaleiros e, assim que os sobrepujava, partia de modo a atravessar por entre as tropas inimigas, e não para destruí‑las. Como se buscasse por alguém em especial. Ao seu lado, Ariane cavalgava, segurando as rédeas com uma das mãos, deixando a outra para realizar magias. Por vezes, apontava para o chão, e raízes emergiam, entrelaçando as pernas dos soldados. Outras, fazia arbustos lançarem gravetos. Já o elfo era um pouco diferente. Ao mesmo tempo em que lutava com sua espada, uma quantidade razoável de leões, lobos, diversos tipos de réptil e até mesmo ursos o acompanhavam. Mantinham os Cavaleiros afastados, abrindo seu caminho para que pudesse seguir. Percebi que o elfo tinha o dom de controlá‑los. Era, certamente, uma magia muito poderosa. Num certo momento, porém, a batalha fi‑ cou “densa” demais. Os homens duelavam muito próximos uns dos outros, e a forma de ataque do elfo exigia grande espaço, tanto para seu cavalo como para todos os animais que ele conduzia. Aproximou‑se, então, de Ariane e dirigiu‑lhe a palavra: – Fique por aqui! Não é seguro continuar! – Ziriel – respondeu –, tenha cuidado! E volte para mim. Deixou para trás Ariane, num local um pouco menos perigoso do que aquele onde estava. Numa troca de olhares amorosos, ele partiu, embrenhando‑se ainda mais na batalha. Com tantos inimigos à sua volta, era quase impossível prever to‑ dos os ataques. Sentiu que não poderia continuar daquela forma, pois 16
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pereceria de uma maneira estúpida. Desceu, então, de seu cavalo e olhou nos olhos do animal, numa inusitada forma de agradecimento. O cavalo correu para longe, como se entendesse que não mais tinha valia naquele momento. Ziriel lutou contra diversos homens ao seu lado e, quando o número de atacantes ficava além de suas capacida‑ des, um leão lançava‑se em sua defesa, rasgando um soldado como uma de suas caças. Dessa forma, o elfo corria e já conseguia atravessar todo o campo de batalha. Muitos tentavam impedi‑lo, mas sempre al‑ gum de seus animais o ajudava. Sua magia, além de poderosa, deveria despender‑lhe uma grande quantidade de mana, pois já fazia tempo que estava mantendo o controle sobre aqueles seres. Certamente, ele era um mago como poucos no reino. Conseguiu invadir a cidadela. Dentro, apenas mulheres e crian‑ ças permaneceram, completamente escondidas e extremamente assustadas com os companheiros do elfo. Logo, outros dos seus ho‑ mens também adentravam a cidadela e confrontavam os soldados que vinham em seus encalços. As ruas da cidadela, em pouco tempo, tornaram‑se também campos de batalha. Sem dar muita importância àquele local, Ziriel partiu em direção a uma grande torre, deixando que alguns de seus lobos cumprimen‑ tassem os soldados que ali estavam. Invadindo o lugar, o elfo seguiu por um grande lance de escadas, onde também encontrou defesas. Os soldados da torre iam, aos poucos, sendo derrotados tanto pelo elfo como pelos homens que o seguiam. Em seu ponto mais alto, uma grossa porta limitava o acesso ao último aposento, mas nada que alguns encontrões de um grande urso não fossem suficientes para sobrepujá ‑la. Dentro, quatro soldados lançaram flechas, em defesa de um quinto homem, trajando roupas em tons brilhantes, carregando um cajado de ouro e sustentando diversas joias em seu pescoço. O urso cairia, não
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fosse a ação de incontáveis corvos vindos das janelas, que tomaram por completo o cômodo, investindo contra os olhos dos soldados. E, por debaixo daquela nuvem negra, surgiu Ziriel, exigindo a rendição do regente…
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