Uma pequena em Londres

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Pequena Londres Uma em

Maria AngĂŠlica Constantino

talentos da literatura brasileira

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Uma Pequena em Londres

Copyright © 2017 by Maria Angélica Constantino Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial Vitor Donofrio

aquisições Cleber Vasconcelos

editorial João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

revisão Kyanja Lee

capa Vitor Donofrio

diagramação Vitor Donofrio

foto de capa Maria Angélica Constantino

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Constantino, Maria Angélica Uma pequena em Londres Maria Angélica Constantino Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título 17­‑0963

cdd­‑869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Ao meu filho Luís Felipe Constantino, que me fez voltar para a leitura, quando eu mesma já não me lembrava mais do quanto amava ler. Filho, ler para você, fazendo vozes para os personagens, foi tão es‑ timulante para mim quanto você diz que foi para você. Eu te amo até o infinito e além!

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Prólogo

Colocou mais um documento na pasta ‒ aquilo tudo seria usado no mo‑ mento oportuno… Satisfeito, fechou o armário e sentou­‑se. Sobre a mesa, um charu‑ to Cohiba Behike, reservado para dias como aquele, estava à sua espera. Levou­‑o aos lábios e umedeceu a ponta. Segurou a guilhotina, cortou com precisão e, com o cuidado de um apreciador, o acendeu. Degustou o inten‑ so aroma do tabaco, fez bolinhas de fumaça no ar e sorriu. Tinha sabor de vitória… Era uma pena que Jane não estaria presente para vê­‑lo triunfar. Perpassava por seus pensamentos o quanto ele teve de lutar para che‑ gar até ali… Algumas pessoas recebem tudo de mão beijada, mas ele não − ele teve de sacrificar a vida bajulando os seus parentes. Como existe gente que acredita fácil em um elogio… Quem imaginaria que, depois de todos os seus esforços, tudo se resolveria sem sua ajuda, um fim de forma natural. Que maravilha! Um fôlego, porque já estava ficando sem criatividade, mas dessa vez a sorte estava ao seu lado. Seus ombros começaram a chacoalhar, enquanto o som de sua gargalhada atravessava as paredes. Agora faltava pouco, muito pouco… Só ele sabia o quanto merecia, mais do que qualquer um.

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Capítulo 1

Quanto tempo! Quanto vale o tempo? Ah, se pudesse voltar o tempo, usaria melhor o meu tempo… Ainda dá tempo? De me reencontrar com o tempo e dizer: “Faz tempo! Mas estou aqui, quero viver o momen‑ to! Apreciar o instante e não mais só as lembranças distantes … Como acabei te perdendo? Não enten‑ do!” Ah, se pudesse comprar mais tempo!

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Depois de quase dois meses, o cheiro do hospital já não lhe causava náuseas. O bebê mudou de posição, aumentando o desconforto na costela; ela soltou o ar pela boca, apoiou o braço na cama, com cuidado virou­‑se de lado e conse‑ guiu respirar melhor. O inchaço nas pernas aumentava, mas não queria que Tom se preocupasse. Segundo o que os médicos lhe falaram em particular, talvez ele não re‑ sistisse até o nascimento do filho. Isso a consumia por dentro, mas precisava ser forte para que ele tivesse um fim de vida em paz. O sol batia na janela, indicando que seria um dia agradável. Torcia para que este fosse melhor que o anterior – dia tenso por ter visto Tom trans‑ tornado, lutando para suportar os efeitos da quimioterapia. Lembrou­‑se de como, quando chegou a Londres, fora difícil convencer os médicos que per‑ mitissem sua presença ali. Só autorizada depois das ameaças de Annie e após passar por uma higienização completa. A mudança de posição não ajudara em nada, virou­‑se novamente e a cama rangeu. – Bom dia, meu amor! – ele disse com a voz fraca e sorriu; as feridas labiais eram evidentes, um dos efeitos colaterais do tratamento. – Hoje seria um bom dia para te levar para um passeio no Hyde Park. – Bom dia, meu príncipe, desculpa te acordar! – Ju tentou seu melhor sorriso. – Assim que possível nós iremos. – Levantou­‑se com dificuldade, 11

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caminhou até a cama ao lado e pousou um beijo nos lábios de Tom. O pequeno Pedro remexeu em seu ventre. – Olha quem também quer dar bom­‑dia, papai! – Meu filho, papai está aqui ansioso para te ver e pedindo para que o tempo passe bem depressa – disse com emoção, como em todas as vezes que conversava acariciando sua barriga. – Falta pouco, menos de dois me‑ ses, e então… Tossiu, puxou o ar e tossiu de novo. Piorava a cada tossida, dando a im‑ pressão de que poria as tripas para fora. Ju correu para posicionar a vasilha, e Tom vomitou um líquido esverdea‑ do. A enfermeira entrou: – Pode deixar, Srta. Gomes, eu cuido dele. – Está tudo bem – não se moveu –, vai e pede para o doutor vir dar uma olhada nos pulmões dele, essa tosse está cada vez mais frequente. A enfermeira deixou apressada a sala. – Ju! – Recuperou o fôlego e continuou: – Você precisa descansar… ou vou pedir para minha mãe levá­‑la daqui. – Ela não faria isso! Ao menos em uma coisa nós duas… – Bom dia! – A voz masculina invadiu o ambiente. – Bom dia, doutor Patel! Poderia dar uma averiguada nos pulmões dele? – Eu não tenho nada, doutor, está tudo bem, ela é um pouco exagerada. – Respire! – O doutor posicionou o estetoscópio. – Mais uma vez. – Mudou o aparelho de lugar. – Vire­‑se de costas! Apoiou o braço no colchão com dificuldade, endireitou o corpo, en‑ quanto o doutor reposicionava o aparelho. – Respire de novo! – E aí, doutor? – quis saber Ju. – Está limpo, essa tosse pode ser reação a algum medicamento. Eu vou trocar um deles para a próxima químio, pode ser que ajude… – Anotou algo no tablet. – Vou pedir também alguns exames. Assim que possível, alguém da equipe vem colher. Dr. Patel caminhou até a porta e Ju o seguiu.

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– Doutor, como ele realmente está? Tem algo que ainda possamos fazer? – disse baixinho. – Como já te disse, a situação dele é bastante crítica, não posso afirmar que seja impossível, mas as chances são bem remotas. Quando ele chegou aqui, já estava disseminado. O tipo de linfoma não­‑Hodgkin que ele apre‑ senta tem evoluído de forma galopante, muito agressivo. Estamos fazendo uma combinação de tratamentos, mas ele não vem respondendo muito bem. – Coçou a nuca. – Estamos correndo contra o tempo. – Eu sei que este hospital é especialista em câncer e tem uma área de pesquisa avançada no assunto. – A pedido dela, Toshi já havia vasculhado o banco de dados do hospital e descoberto sobre a pesquisa, na qual Dr. Patel era o coordenador. – Sim, mas ainda não temos uma droga eficaz. – Doutor, qualquer ideia diferente que você tenha, por favor! – Infelizmente não posso fazer nada. – Você fez um juramento, vai deixar ele morrer? – Fui bolsista aqui – ofegou –, meu orientador era amigo pessoal do Sr. Peter Gehringer e sentiu muito quando ele se foi. Além de amigos, o Sr. Gehringer era um dos grandes patrocinadores das pesquisas. Entretanto, a verba foi cortada drasticamente assim que ele faleceu. E agora, mesmo com o seu namorado internado aqui, fizeram mais um corte. Não consigo enten‑ der como alguém com tanto dinheiro pode ser capaz disso… Por isso, não simpatizo com o filho, embora deva muito ao pai. Ainda assim, tem todo um protocolo a ser seguido, não é tão fácil. Eu posso perder meu registro! Ju perguntou­‑se por que Tom faria isso? Por que cortar a verba quando poderia se beneficiar das pesquisas? Sentiu uma forte fisgada, levou a mão à barriga e se encolheu. A dor passou, endireitou­‑se e recebeu um olhar de consternação do médico. – Vou pedir para Dra. Fenton vir dar uma olhada em você. – Ajeitou o que sobrava do cabelo nas laterais da cabeça, comprimiu os lábios, franziu a testa e esfregou repetidas vezes o indicador na boca. – Se cuide! – Saiu balan‑ çando o indicador apontado para cima.

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Que cara maluco! Caminhou de volta para o lado da cama de Tom, que, pensativo, manipulava a pequena cruz de madeira com os dedos. – A gente precisa conversar – ele rompeu o silêncio. – Se eu morrer… – Para, eu não quero ouvir! – Minha princesa, por favor, me escute! – Você não vai morrer! – Ju levou novamente a mão à barriga, onde sen‑ tiu o que parecia um nó lhe causando dor. – Tudo bem, eu não vou morrer… Não sem lutar! – Acariciou a mão dela. – Eu não quero morrer, mas não está em nossas mãos. Se acontecer o pior, eu só quero que você saiba que eu fiz o que pude, que eu tentei, lutei com todas as minhas forças, que eu a amo com tudo que sou e mais do que imaginei que um dia eu fosse capaz, que tenho por você um tipo de amor que nem imaginei que existisse. – Ju fechou os olhos com o toque suave de Tom em seu rosto. – Ju, você é a dona dos meus sonhos, do meu coração, da minha alma! – Tom, eu te amo! Não faça isso, não se despeça de mim. – Olhou para ele, implorando. Sua garganta fechava e as lágrimas escorreram. – Diga ao nosso filho que o amei, que senti saudade dele todos os dias, que de onde eu estiver, vou velar por ele. – Pousou a mão na barriga dela. – Por vocês! E você vai me prometer que vai ser feliz por ele – tossiu –, vai lutar por seus sonhos, sua música, e vai encontrar alguém… – Chega! Não faça isso com a gente. – Pousou­‑lhe um beijo nos lábios e se aconchegou ao lado dele na cama. Ele escorou a cabeça sobre seu peito e adormeceu sob seus carinhos. *** Depois de mais de quinze dias de férias no Rio de Janeiro, era esperado o acúmulo de trabalho no escritório. Uma dor de garganta persistente o inco‑ modava; atribuiu ao choque térmico: dos 40 graus do Rio para os 2 negativos em Londres. Sua assistente, Srta. Morgan, bateu de leve na porta e entrou com o café. Tom falava ao telefone com seu tio Robbie se atualizando sobre a última reunião do conselho. 14

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– Obrigado, Daisy! – gesticulou com a boca. A lourinha permaneceu parada. Ele tapou o bocal do telefone com a mão e repetiu: – Pode ir, obrigado! Ela estava, no mínimo, esquisita; devia ser pela sobrecarga de tarefas em sua ausência… Daisy esfregou as mãos, comprimiu os lábios e saiu. – Eles não concordam com as mudanças no contrato – continuou seu tio. – Eu não preciso deles para a aprovação. – Sabemos disso, mas não é bom para a credibilidade da empresa um conselho em total desarmonia com a presidência. Isso, com certeza, vai vazar para a imprensa, cedo ou tarde. – Eu não entendo; era ponto pacífico antes da minha viagem. – Alguém está querendo te prejudicar, e eu vou descobrir quem é. – Annie me ameaçou. Será que ela seria capaz de me prejudicar? – Ela é sua mãe, jamais faria isso. Ela só estava tentando te proteger… Tire isso da cabeça! – Eh, tio, você só vê o lado bom das pessoas! Mas eu sei, ela não che‑ garia a tanto, só não consigo pensar em quem poderia estar por trás disso. – No fim da tarde estarei em Londres, podemos nos reunir hoje à noite ou amanhã de manhã, o que acha? – Amanhã às oito! Encaixou o telefone no gancho, checou mais uma vez o celular e nem sinal de Juliana. Mandou mais uma mensagem. O que teria havido? Será que voltou para a cidade dela e resolveu virar a página? Foi só um romance de férias para ela? Estava ficando paranoico, era isso! Voltou­‑se para a papelada; aquela era a melhor forma de esquecer os problemas. Avaliava a renovação de contrato com uma empresa de trans‑ porte marítimo da China, em contrapartida à proposta recente de um con‑ corrente alemão e ainda uma terceira, da empresa japonesa com a qual já haviam trabalhado no tempo de seu pai. Srta. Morgan bateu novamente à porta:

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– Senhor Gehringer, é quase meio­‑dia… O senhor vai almoçar em casa ou prefere que eu providencie algo? – Vou ficar aqui, peça algo para mim, por favor! – Mas o senhor fez uma longa viagem, devia ir para casa descansar. – Mais tarde, fiquei tempo demais fora e isso aqui está uma bagunça! – Ok – permaneceu parada, olhando como se tivesse visto um fantasma. – Mais alguma coisa, Daisy Morgan? – Senhor, é que… – Fale logo de uma vez! – Não sei se teve tempo de ver o jornal de hoje ou a internet. – Alguma nota sobre nosso grupo? – Não, é sobre o senhor! A última vez que havia parado nos tabloides, por conta da namorada italiana, não foi nada agradável. O que será que estavam inventando dessa vez? – Eu ia falar mais cedo, mas o senhor estava bastante ocupado. Ergueu as sobrancelhas, impaciente para que ela continuasse. – É sobre suas férias no Brasil! Eu tenho um jornal na minha escriva‑ ninha, mas se abrir qualquer site de notícias vai encontrar. Ele abriu uma aba do navegador no MacBook em sua frente. E lá esta‑ vam as fotos… Juliana enganchada em suas costas, com um grande zoom em seu bumbum. Fechou a tela com força e levantou­‑se. Puxou o ar e passou as mãos no cabelo: – Ligue imediatamente para Roux e transfira aqui. Era só isso que faltava para estremecer de vez sua relação com um con‑ selho tão conservador… Mas o que o deixava ainda mais irritado era o fato de compartilhar com o mundo o derrière da namorada. “Roux dará um jeito de desaparecer com as fotos ou, ao menos, minimizar o estrago!”

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Afofou o travesseiro mais uma vez e testou com a cabeça para ver se agora encaixava… Uma ardência subiu em suas panturrilhas, virou de bru‑ ços tentando encontrar uma posição mais confortável, mas sentiu uma fis‑ gada na coluna. “Ooooowww fucking hell! What a shitty mattress!” Xingou e socou o colchão, como se fosse resolver. Já havia se acostumado com ela ao seu lado. Perdeu as contas de quan‑ tas mensagens enviou para Juliana naquele dia. Depois de mais de hora rolando de um lado para o outro, adormeceu. Despertou com a testa suada e um calor descomunal por todo o cor‑ po. Levantou­‑se e foi até o banheiro. Seu reflexo no espelho não era dos melhores: abatido, com olheiras profundas… Lavou o rosto e afundou na toalha, apalpou mais uma vez o caroço que Ju havia notado em seu pescoço quando estavam no resort, e este parecia mais inchado. Precisava ver isso! O celular marcava quatro da manhã e ainda permanecia sem notícias dela. Faria uma última tentativa. Estava chamando… Teve esperança por‑ que, dessa vez, não caiu direto na caixa postal. – Alô! – Era ela. Seu coração acelerou quase o impedindo de falar. – Ju, sou eu… Tom! – Olá, tudo bem? “Ela pergunta se está tudo bem, como se não tivesse ficado incomuni‑ cável o dia todo?” – Eu que pergunto, está tudo bem? Mandei várias mensagens durante o dia e você não me respondeu. Estava preocupado! Depois que ela explicou tudo, desde quando saiu de casa de manhã até a conversa com sua tia, respirou aliviado! Mas continuava o sentimento de impotência por estar tão longe, sem controle de nada. Nas semanas seguintes, mergulhou de cabeça nos negócios para não passar os dias mandando mensagens e bancando o namorado ciumento. Além do mais, precisava reconquistar a confiança do conselho e ajustar o grupo para enfrentar mais um período de crise econômica; não era hora de se comportar como um adolescente apaixonado. Mesmo assim, não

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conseguia passar um só dia sem notícias e sem a ver, ao menos aos sába‑ dos, pelo Skype. Levou um susto no dia em que soube do desabamento do telhado da creche onde Juliana era voluntária. Fez tudo o que pôde para resolver o quanto antes e deixar o lugar seguro… porque Juliana, teimosa até a medu‑ la, com certeza continuaria indo lá de qualquer maneira. *** Fazia quase dois meses que não se viam pessoalmente. Pretendia fazer uma surpresa no próximo sábado, durante a apresentação de piano e canto das crianças. Ainda era segunda­‑feira e, com certeza, aquela semana iria se arrastar. Pedir ela em casamento seria uma ótima saída; do jeito que esta‑ vam, não dava para continuar. Precisaria de um belo anel… O celular tocou. Não era um número cadastrado; vinha recebendo ligações desse mes‑ mo número o fim de semana todo. Desta vez resolveu atender: – Alô! – Senhor Gehringer! – Sim! – Eu sou doutor Reilly, você esteve aqui fazendo alguns exames… – Sim, claro! Pode falar. – Eu preferia ter essa conversa pessoalmente. – Estou bastante ocupado esta semana; devo viajar na sexta­‑feira. Pode ser no fim da próxima semana? – Pode ser hoje à tarde! Te espero no meu consultório às duas horas. “Quem esse doutor pensa que é para me obrigar a ir hoje numa consul‑ ta idiota?” Tapou o fone e bufou. – Minha agenda está realmente ocupada esta semana… – disse Tom. – O senhor não entendeu. É urgente! Te vejo às duas horas.

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– Sr. Gehringer, vou repetir, como eu já suspeitava no exame clínico, o resultado da biópsia confirmou: trata­‑se de um linfoma não­‑Hodgkin. Não sentia as pernas, e o ar parecia rarefeito. Atônico, continuou sem assimilar tudo o que ouvia… As palavras se juntavam devagar, conforme percebia a gravidade. – Precisamos primeiro saber se atingiu a medula óssea e o sistema ner‑ voso central. Quem vai cuidar do seu caso é o Dr. Patel, referência nes‑ sa área. Ele fará o estadiamento, determinando a extensão da doença em seu corpo; então saberemos qual grupo de linfonodos está envolvido. No seu caso o tempo é crucial: quanto antes iniciarmos, maior a probabilida‑ de de êxito. Faremos uma bateria de exames, em seguida começamos o tratamento. – Ok – assentiu. – Com uma condição: farei todos esses exames, mas viajarei na sexta e estarei de volta na segunda de manhã, pronto para o tratamento.

Na segunda­‑feira de manhã, após uma rápida visita ao Brasil, onde passou um fim de semana perfeito ao lado de Ju ‒ salvo pelo incidente com a avó de Liz ‒, internou­‑se no The Royal Marsden Hospital. Infelizmente não viu outra saída a não ser contatar Annie, que, depois do choque inicial, passou a ser útil. – Annie, pode imprimir as fotos deste pen­‑drive para mim, por favor? – Nem num momento desses você pode me chamar de mãe? – Mãe, por favor! – Estendeu o pequeno objeto e juntou as sobrancelhas. – Você sabe me manipular… São daquela garota? Assentiu. – Se isso vai te fazer bem, eu imprimo. – Guardou na bolsa. – Temos outro assunto a tratar: você precisa informar o conselho. Não dá para tra‑ balhar do hospital para sempre; você precisa se concentrar no seu trata‑ mento. Deixe Robbie assumir interinamente; é só até você voltar.

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– Não posso assumir publicamente que estou doente, não sei em que proporções isso pode afetar o grupo, no meio dessa crise. Nos últimos 5 anos eu fechei pessoalmente os grandes contratos; confiam em mim. Farei videoconferência, vou levando até que encontre uma solução. Tio Robbie pode me substituir nas reuniões do conselho, mas não na condição de pre‑ sidente interino; seria um prato cheio para a imprensa. Tem alguém no con‑ selho querendo me prejudicar e ainda não descobrimos quem é. Cheguei a pensar que… – Que fosse eu – suspirou. – Eu sei, joguei pesado quando fui ao Rio, mas eu só queria te proteger, eram só ameaças vazias… Eu sou sua mãe, não sou um monstro! Posso ter falhado com seu pai, reconheço! Não tem como fazer o tempo voltar. – Levou o dedo aos olhos para conter as lágri‑ mas. – Não posso te perder, meu filho! Só me restou você! – Eu não vou morrer! Conto com você para manter o sigilo na empresa e aqui, no hospital. Restrinja os funcionários que irão me atender no quar‑ to; já pedi para Roux mudar meu nome no banco de dados do hospital: está como Tom Marshall. Também não quero que fale ao tio Robbie, não quero preocupá­‑lo. Além do mais, ele tem um coração tão bom, pensa que todo mundo quer nosso bem, e pode acabar soltando a informação sem querer. Não venha me visitar todos os dias, isso levantaria suspeitas. – E vou deixar meu filho aqui? Lutando sozinho contra um câncer? – Não é tão grave. Logo estarei bem! – Como vamos conseguir esconder do Robbie? Ele é meu irmão. – Vamos enrolando ele… Fale que, desde que voltei do Brasil, estou diferente, que deve ser influência da Ju. Deixe o resto comigo. – Em vez de imprimir essas fotos, por que não liga para ela? – Ela já passou por muita coisa, não tenho o direito de fazê­‑la passar por isso… Eu te proíbo, eu nunca vou te perdoar se contar para ela. – Certo! Desconsidere o que acabei de dizer.

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As coisas não estavam saindo como o esperado, e o melhor que po‑ dia fazer era deixá­‑la pensar que não a amava mais… Mas na solidão do quarto, em plena noite de Natal, foi irresistível não responder ao texto tão lindo, em que ela reafirmava tudo o que sentia e o quanto o amava. Quase esmagou o celular entre os dedos. “Feliz Natal”, foi tudo que se permitiu enviar… No Ano­‑Novo, olhando os fogos pela janela, enquanto sua mãe cochi‑ lava na poltrona, não conseguia tirar Ju da mente. Era para ter sido a virada perfeita, ao lado dela… Uma dor dilacerante o corroía por dentro. Onde estaria ela naquele exato momento? Suas esperanças de estar curado em tempo para a formatura escorriam pelo ralo… Provavelmente aquele seria o último ano­‑novo de sua vida. Tentou dormir, rolou de um lado para o outro, mas quando deu meia­‑noite no Brasil, se manifestou por mensagem da forma mais egoísta, como sempre foi: Tom: Feliz Ano Novo! Ju: Feliz Ano Novo! ;­‑) Tom: Eu te amo! Ju: Eu amo mais! <3 Não conteve as lágrimas, encolheu­‑se feito um feto na cama… engas‑ gou com o próprio choro, e as tossidas acordaram sua mãe. – Filho, você está bem? Eu estou aqui, acalme­‑se… – Mãe, eu preciso dela… – A voz embargada e o soluço deixaram as palavras saírem embaralhadas. Tomou fôlego e repetiu: – Mãe, eu preciso dela aqui comigo. – Me dá o endereço, vou mandar buscá­‑la agora mesmo! – Não posso! – Seus ombros chacoalhavam e as lágrimas caíam… – Não posso! Recebeu um abraço da mãe, que permaneceu um bom tempo em sua cama, acarinhando­‑lhe o cabelo. – Mãe, vá descansar! Você está toda torta aqui, eu já estou melhor… Annie se acomodou na cama ao lado. Tom colocou os fones no ouvido, virou para o outro lado e as lágrimas, agora silenciosas, continuaram escor‑ rendo enquanto ouvia “Make you feel my love” (Adele). 21

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Dias depois, enfrentou uma forte reação da químio, justamente no dia da formatura dela. Queria ter escrito uma palavra de incentivo, dizendo o quanto a achava inteligente, o quanto ela merecia aquele diploma e o quanto sentia por quebrar a promessa. Mas fraco demais, mal conseguira se mexer, salvo quando vinham as contrações seguidas de vômitos. Acordou no dia seguinte com mechas de cabelo em seu travesseiro… Transferiram­‑no para o isolamento, sua imunidade estava muito baixa. Agora só via sua mãe através da vidraça. Às vezes ela passava horas lendo um livro na poltrona; sempre que podia, estava por perto. Passavam­‑se dois meses e meio desde sua internação e não suportava mais aquele lugar. Todo o império que sua família construiu não comprara um dia a mais de vida ao seu pai, e o mesmo se repetiria com ele; talvez ainda pior, porque nem os remédios mais caros cortavam as dores cada vez mais frequentes e fortes. Chegou um ponto em que percebeu que morrer seria um presente… Dali em diante, desejava todos os dias que a morte o buscasse. Nos momentos menos dolorosos ao corpo, contemplava as imagens de Ju espalhadas pelo quarto e feria a alma ouvindo música, quase sempre um jazz ou uma clássica, sangrava por dentro com a voz de Maria Callas, em “Mon Coeur S’Ouvre à Ta Voix”, enquanto pensava: “Ali tinha alguém que sabia o que era sofrer de amor…” Acabou “Nessun Dorma” (Pavarotti). Começava “Time To Say Goodbye” (Andrea Bocelli e Sarah Brightman) quando escutou um bipe no fone avisando que tinha recebido uma nova mensagem. Checou o celular, era um e­‑mail de Ju intitulado “fotos”. Abriu no MacBook e descarregou. Várias eram da formatura dela; estava deslum‑ brante de amarelo! Tanto tempo passara desde o baile, por que só agora ela enviaria as fotos? Devia ter mandado por engano, talvez não! Pediu para a enfermeira tocar no vidro. – Mãe! Imprime essas para mim? – Você já tem tantas, por que quer mais? Cristo, pare de se torturar! Entregou o pen­‑drive à enfermeira, que deu a volta para entregar à Annie. Já que a morte estava chegando, queria morrer rodeado de fotos dela…

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Encolheu­‑se na cama e, quando acordou, a enfermeira já as tinha pen‑ durado junto com as outras. Apertou firme o presente que recebera de Ju e que trazia consigo no pulso: uma pequena cruz de madeira que adaptou num cordão. Ouvira dela que aquele era o Deus dos milagres, que o faria se reconciliar com sua mãe. Ela estava certa! Já podia morrer em paz! No dia seguinte, o céu prenunciava um temporal. Passou a maior parte do tempo deitado. A enfermeira o ajudou a se alimentar e, assim que ela saiu, se recolheu novamente.

Era um vento cortante, a poeira quase o cegava. Sentiu o cheiro dela, virou­‑se e a avistou caminhando em sua direção. Não parecia reconhecê­‑lo, mas mesmo assim apertou sua mão estendida. Janelas sendo arrancadas, vários objetos voando pelos ares, e estilhaços. Um furacão vinha em sua direção. Apertou forte a mão dela e correram jun‑ tos. Avistaram uma ponte. Fez com que ela descesse na frente e, quando foi sua vez, ela se agarrou no pilar e lhe estendeu a mão. Ele segurou, mas o vento o levantou no ar. Se mantivesse a mão dela, a levaria junto. – Eu te amo, meu anjo! – Soltou­‑se. Girou em círculos, em meio ao furacão, por alguns minutos e caiu num jardim. Muitas cores permeando o verde… Rolou sobre as flores que farfa‑ lharam, e o cheiro das rosas invadiu suas narinas. Deitado, olhou para o céu e notou a redoma de vidro que envolvia todo o lugar… Tossiu, engasgou, esforçou­‑se, mas não conseguia puxar o ar. Esgotado, entregou­‑se… As folhas secaram e, de repente, tudo ficou acinzentado. Um portal de luz se estendeu à sua frente. Levantou­‑se e deu um passo para dentro, de onde seu pai estendia a mão… – Venha! Aqui estará seguro! – ele disse. O som da batida no vidro desviou sua atenção. Escutou de novo, ainda mais forte… Parecia que alguém queria arrebentar a redoma… – Pode vir! – Peter gesticulou com a mão. 23

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Continuavam batendo no vidro, e a voz, mesmo abafada, o paralisou: – Tom! – ela berrou. – Pode vir! Confie! – seu pai insistiu. – Não posso! – Abraçou­‑o. – Eu te amo, pai! – Eu sempre soube, meu filho! Também te amo, seja feliz!

Despertou com a batida na vidraça. – Tom! – Reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Virou­‑se e lá estava ela. Passou um tempo tentando acreditar que era real. E era! As lágrimas foram inevitáveis: sonhara acordado tantas vezes com o dia em que a veria de novo, e ali estava ela dizendo que o amava. Mas quando ela tirou o ca‑ saco… Não podia ser verdade, mas ela escrevera no papel: Pedro Antônio. “Um filho! Meu Deus, um filho!” Ela pediu: “Lute, meu amor! Viva por nós!” E dali em diante, num dos avessos da vida, agora temia a morte com todas as forças. Precisava ver seu filho nascer, mas queria mais: queria ver ele crescer e ser para ele o pai que ele teve.

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