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entei na cama, sobressaltada. Uma das mãos agarrava meu pingente e a outra estava enrolada no lençol. Esforcei-me para me lembrar dos pequenos fragmentos do sonho que já desaparecia de minha mente. Algo sobre um porão... uma menininha... eu? Não conseguia me lembrar de ter tido uma casa com porão – sempre moramos em apartamentos. Uma menininha em um porão, algo assustador... mas porões não são sempre assustadores? Arrepiei-me só de pensar neles: escuros, úmidos e vazios. Mas este não estava vazio. Tinha... Eu não conseguia lembrar do quê. Um homem atrás da caldeira... ? Uma batida na porta do quarto me fez pular. – Chloe! – Annette gritou em uma voz estridente. – Por que seu despertador não tocou? Sou sua empregada, não sua babá. Se você se atrasar outra vez, vou ligar para o seu pai. Em termos de ameaças, essa não era a mais assustadora de todas. Mesmo que Annette conseguisse falar com meu pai em Berlim, ele apenas fingiria escutar. Manteria o olhar fixo em seu Blackberry, com a atenção voltada para algo mais importante, como a previsão do tempo. Murmuraria um vago “Vou dar um jeito nisso quando voltar” e esqueceria imediatamente o assunto quando desligasse. Liguei o meu rádio, aumentei o volume e me arrastei para fora da cama. i i i Meia hora depois, estava em meu banheiro, me aprontando para a escola. Peguei dois clipes para cabelo e prendi minhas mechas laterais para trás, me olhei no espelho e senti arrepios. O penteado fazia 8
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com que eu parecesse ter doze anos... E para isso eu nem precisava de ajuda. Acabara de fazer quinze anos e os garçons ainda me entregavam o cardápio infantil nos restaurantes. Não podia culpá-los. Tinha 1, 52 metro de altura e curvas que só apareciam se eu usasse jeans justos e uma camiseta mais justa ainda. Tia Lauren jurava que eu ia espichar e me tornar uma mulher quando finalmente menstruasse. A essa altura estava mais para “se” e não “quando”. A maioria das minhas amigas menstruou aos doze, algumas até aos onze. Tentava não pensar muito nisso, mas era impossível. Preocupava-me se havia algo de errado comigo. Sentia-me uma aberração toda vez que minhas amigas falavam sobre menstruação, e rezava para que elas não descobrissem que ainda não tinha menstruado. Tia Lauren disse que estava tudo bem comigo, e ela é médica, portanto deve saber o que diz. Mas, mesmo assim, isso me incomodava. E muito. – Chloe! – A porta estremeceu com o forte punho de Annette. – Estou no toalete – respondi. – Será que posso ter um pouco de privacidade? Tentei usar só um clipe de cabelo para prender as duas mechas atrás da cabeça. Nada mal. Quando virei minha cabeça para ter uma visão melhor, o clipe deslizou do meu cabelo fino como o de um bebê. Não deveria tê-lo cortado, mas estava cheia do mesmo corte liso e comprido de menininha. Decidi repicar e cortar na altura dos ombros. Na modelo ficou lindo. Em mim? Nem tanto. Bati o olho no tubo de tintura para cabelo ainda fechado. Kari jurou que mechas vermelhas ficariam perfeitas em meu cabelo loiro. Não conseguia deixar de pensar que pareceria uma bengala de açúcar. Ainda assim, poderiam me fazer parecer mais velha... – Estou pegando o telefone – Annette gritou. Agarrei o tubo de tintura para cabelo, enfiei em minha mochila e abri a porta com tudo. i i i Como sempre, usei a escada. O prédio podia até mudar, mas a minha rotina nunca. No meu primeiro dia de jardim de infância, minha mãe 9
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segurou minha mão e minha mochila do Sailor Moon no outro braço, enquanto permanecíamos paradas no topo da escadaria. – Prepare-se, Chloe – ela disse. – Um, dois, três... Começamos a descer correndo, rindo, e competimos para ver quem chegaria lá embaixo primeiro. Enquanto o assoalho escorregava debaixo de meus pés, todos os meus medos sobre meu primeiro dia de aula sumiram. Corremos juntas pelas escadas todas as manhãs durante todos os anos do jardim de infância e a metade da primeira série, e então... Bom, então não havia mais ninguém para correr comigo. Parei lá embaixo, toquei o pingente que estava por baixo da camiseta. Deixei as memórias de lado, ajustei minha mochila e me afastei da escada. Depois que minha mãe morreu, tivemos diversas residências em Buffalo. Meu pai cuidava de projetos para condomínios, o que significava que ele comprava os prédios nos últimos estágios da construção e os vendia quando fossem finalizados. Como ele viajava muito a trabalho, criar laços não era importante. Não para ele, pelo menos. Esta manhã, descer a escada não foi uma boa ideia. Meu estômago já estava se contorcendo em nervosismo graças à prova de Espanhol. Eu estraguei tudo na última prova – fui dormir na casa da Beth durante o fim de semana, quando na verdade deveria ter ficado em casa estudando. Passei raspando. Espanhol nunca foi o meu forte, mas se eu não recuperasse minha nota e tirasse um C, havia uma boa chance de meu pai notar e começar a questionar se uma escola de Artes tinha sido uma boa escolha. Milos estava esperando por mim em seu táxi. Havia dois anos que ele era meu motorista, apesar de desde então eu ter passado por três escolas e duas mudanças. Entrei no carro e ele ajustou o para-sol do meu lado. O sol da manhã continuou atingindo meus olhos, mas eu não disse a ele. Meu estômago relaxou quando esfreguei meus dedos no já familiar tecido rasgado do apoio de braço e senti o cheiro artificial de pinho do aromatizador serpenteando acima da ventilação. – Eu vi um filme ontem à noite – ele disse enquanto cruzava três faixas de uma vez só. – Do tipo que você gosta. – Um suspense? 10
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– Não – franziu o cenho e movimentou os lábios como se procurasse a palavra certa. – Aventura. Sabe como é, com um monte de armas, coisas explodindo. Um filme sanguíneo de verdade. Eu detestava corrigir o português dele, mas ele insistia que eu o fizesse. – Você quis dizer um típico filme sangrento? Ele arqueou uma de suas sobrancelhas escuras. – Sanguíneo, sangrento... O que importa é que tinha bastante sangue. Eu ri e conversamos sobre filmes por um tempo. Era meu assunto favorito. Quando Milos teve que atender um chamado de seu coordenador, olhei de relance pela janela lateral. Um garoto de cabelos compridos saiu em disparada de trás de um grupo de executivos. Carregava uma lancheira antiga com uma estampa de um super-herói. Fiquei tão concentrada tentando descobrir qual era o super-herói que não percebi a direção em que ele ia até que era tarde demais. Pulou da calçada para a rua, aterrissando entre nós e o carro da frente. – Milos! – eu gritei. – Cuidado... A última palavra foi arrancada de meus pulmões. Fui jogada para frente com tudo, detida somente pelo cinto de segurança. Os carros atrás da gente meteram a mão na buzina em protesto. – O que foi? – disse Milos. – Chloe, qual é o problema? Olhei por cima do capô do carro e vi... nada. Havia apenas a pista livre à frente. Carros desviavam de nossa traseira, mostrando o dedo para Milos enquanto passavam. – Eu vv-vv-vv... – Cerrei os punhos, como se pudesse forçar as palavras de dentro de mim. Caso não consiga dizer a palavra, tente outro caminho, era o que minha fonoaudióloga sempre falava. – Pensei ter visto alg-g-g... Fale devagar, primeiro pense nas palavras que vai usar. – Desculpe, pensei ter visto alguém pular na frente do carro. Milos seguiu em frente, devagar. – Isso acontece comigo às vezes, principalmente se estou virando a cabeça para outra direção. Penso ter visto alguém, mas não tem ninguém. Concordei. Meu estômago começou a doer novamente. 11
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