A linhagem
CAMILA DORNAS
A linhagem
COLEÇÃO NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
São Paulo 2013
Copyright © 2013 by Camila Dornas Produção Editorial
Novo Século
Assistente Editorial
Nair Ferraz
Diagramação Capa Preparação Revisão
Selma Consoli - MTb 28.839 Monalisa Morato Bárbara Cabral Parente Equipe Novo Século
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dornas, Camila A linhagem / Camila Dornas. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira)
1. Romance brasileiro I. Título. II. Série.
12-13417
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura brasileira 869.93
2013 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 2321-5099 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br
Para minha mãe, por compreender quando eu me trancava horas e horas na companhia da minha imaginação. Te amo, baixinha.
Primeiramente, agradeço ao meu querido amigo Fábio... Sem você meu sonho não teria sido possível. E é claro, a minha fã número 1: Sheyla Alves, por me inspirar nos momentos “mulherão” das personagens, por sempre me tirar do estresse quando eu precisava. E por acreditar em mim. A Juliana Bottino, que foi a primeira para quem eu mostrei uma de minhas histórias. Obrigada pelas críticas, pela emoção e pelas horas que passava conversando sobre meus personagens comigo, como se eles tivessem vida própria. E cá entre nós, para nós duas, sempre tiveram. A minha baixinha, por sempre me incentivar nessa maravilhosa jornada que é contar histórias. E ao meu pai, porque não é preciso estar por perto para ser uma parte de mim. E finalmente, a todos aqueles que acreditaram em mim, mesmo quando eu achava impossível. Vocês foram e sempre serão uma fonte de inspiração.
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I
Londres - Inglaterra - 1720 E
– vangeline! – ouvi Morgana gritar no andar de baixo. E ouvi passos cada vez mais urgentes nas escadas. O barulho destoante me fazia imaginá-la correndo escada acima, as pernas curtas, uma maior que a outra. Sentei-me na cama larga, sentindo a maciez do tecido de linho egípcio. Esperei que Morgana entrasse. Segurei uma risada quando ela parou na porta e vi a expressão em seu rosto. Sua testa estava franzida, e os lábios formavam uma linha fina, como sempre acontecia quando ela estava furiosa. – Lina, você nem começou a se aprontar ainda! Sabe o que seu pai fará se você se atrasar para seu próprio noivado! – Acalme-se, Mor, vou chegar elegantemente atrasada – falei, dando de ombros. O rosto dela assumiu um tom vermelho gritante, achei que ela poderia acabar explodindo. Então estalou a língua em desaprovação e colocou as mãos de dedos grossos na cintura. – Dez minutos é, elegantemente, um atraso. Uma hora é um sacrilégio! Morgana foi até meu armário de madeira escura e antiga, incrustado com detalhes de prata e dourado, e o revirou até encontrar o vestido mais pomposo e elegante. Mais uma noite sem respirar, pensei. Ela se virou com o vestido nas mãos, mostrando-o como se dissesse: Não é tão ruim, querida, você ainda tem um vestido incrível. Soltei um gemido abafado quando Morgana apertou os nós do meu espartilho até que eu mal sentisse minhas costelas. Suspirei, como
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se isso mudasse alguma coisa. Eu ainda teria que vê-lo esta noite, ainda teria que sorrir e fingir que estava tudo bem. Levantei-me e fiquei olhando a estante ao lado de minha cama. Havia pequenas estatuetas e pequeninas lembranças de minhas viagens a Paris, Índia e toda variedade de lugares. Peguei uma estatueta de uma deusa indiana que ganhara de um mercador na Índia quando ainda era criança. Eu não lembrava qual era a função da deusa, mas ela tinha feições gentis que me fizeram fechar os olhos e fazer uma prece silenciosa. Notando a minha expressão triste, Morgana se aproximou e sentou-se ao meu lado. Tocou minha bochecha perfeita com os dedos calejados. – Minha querida, você deve se sentir honrada, seu pai escolheu para você o melhor noivo da cidade. Imagine casar-se com alguém da realeza, querida, é uma honra incomparável. Eu estava sendo atormentada por isso nos últimos meses. Todos se achavam no direito de me dizer o quão maravilhoso era me casar com o primo do rei. E depois de passar tantas horas trancada na biblioteca lendo poesia, eu tinha uma ideia de como minha vida deveria ser dali em diante, e casar-me com um desconhecido não fazia parte dela. Encarei o jornal em cima de minha escrivaninha. Uma manchete sobre Hector Callum, meu futuro noivo, piscava diante dos meus olhos, anunciando mais um de seus feitos de incrível diplomacia na última reunião de Whitehall, o Ministério de Relações Exteriores. Na foto, ele tinha um sorriso diplomático no rosto. Ultimamente, em cada lugar em que eu ia, notícias sobre aquele homem me perseguiam. Podia ouvir os burburinhos das criadas no corredor sempre que eu passava; todos pareciam falar dele para mim em qualquer lugar que eu fosse. Sentia-me torturada lentamente. Como meu aniversário de vinte anos tendo sido há semanas, era claro que eu estava a passos
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de me tornar uma solteirona e precisava me casar com urgência, como Eleanor, a mulher de meu pai, me lembrava, mas eu decidiria meu futuro. Não importam quais as consequências. Encarei os olhos castanhos de Morgana, cheia de malícia no olhar, e sorri. – Se tudo der certo, no final da noite, eu não terei noivo nenhum. Não deixarei que nenhum homem decida meu futuro, Mor – eu disse, decidida. Morgana arregalou os olhos, realçando as rugas de expressão por toda a testa. Com os cabelos grisalhos um pouco fora do lugar, arrepiados, e aquela expressão que era uma mistura de preocupação, exasperação e carinho, ela se parecia exatamente como eu me lembrava por todos esses anos. Ela cuidara de mim por toda a vida, uma vez que minha mãe havia morrido de tuberculose quando ainda era uma garotinha. Morgana era a única figura maternal que eu havia conhecido. Ela nunca foi do tipo falante, no entanto, também não julgava. Tinha aqueles olhos gentis que nos faziam confiar a ela todos os segredos que nunca contamos a ninguém. Mesmo sendo apenas uma criada na casa, quando ela vinha à noite e escovava meus cabelos, enquanto me falava sobre seu dia, eu gostava de acreditar que ela era minha mãe. – Lina, você não está pensando em usar seus dons, está? Você sabe o que farão se descobrirem! Você será queimada, como uma bruxa. – Você sabe que sou sempre cuidadosa com meus dons, mas isso não significa que eu tenha que deixar de usá-los, porque todos dizem que tê-los é errado. Morgana abriu a boca como se fosse protestar, mas logo a fechou novamente e suspirou, sabendo que estava em uma batalha perdida. – Oh, filha, você é especial, você tem um dom maravilhoso, mas deve aprender a usá-lo com sabedoria.
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Morgana virou as costas e voltou a me vestir e, sem dar mais nenhuma palavra, seus dedos ágeis trabalhavam por todos os padrões intrincados de meu vestido. Segurei-me para não revirar os olhos, odiando cada segundo de toda a responsabilidade que residia em meus ombros por ser a filha de um dos homens mais importantes da cidade. Encarei a enorme pintura envolta em uma moldura dourada que eu mantinha bem acima de minha cama. Era um retrato de minha mãe. Os olhos da cor de esmeralda, exatamente como os meus, os cabelos louros quase dourados, caindo em ondas delicadas sobre as costas, e a pele tão alva quanto leite. Ela tinha uma expressão engraçada no rosto, um sorriso travesso, como se escondesse um grande segredo, mas os olhos me pareciam tristes na pintura. Sua mão pairava perto de um medalhão de ouro com um “R” bem grande marcado na frente e um pequeno coração de rubi como fecho. Eu me parecia muito com ela. Não tinha nada em comum com meu pai. E, na verdade, não queria ter. Julian Bennett era o tipo de homem que você não consegue imaginar como uma criança risonha. Ao longo dos meus vinte anos, nenhuma vez sequer ouvira uma palavra gentil de sua boca. Ele era o grande marquês de Winchelsea. Ocupava uma cadeira importante na Câmara dos Lordes e um posto de respeito como conselheiro do rei. Não havia nada que importasse a ele, a não ser sua reputação impecável e uma fortuna incalculável. Ele havia se casado novamente depois da morte de minha mãe. Sua nova esposa, Eleanor, não era nada mais que uma desconhecida para mim, apesar de tomar café da manhã com ela todos os dias. Ela não era mais que uma presença pálida na mesa. Sempre se encolhendo a qualquer palavra de Julian. Não queria imaginar minha mãe parecida com aquilo.
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A pintura em minha parede era a única de minha mãe na casa inteira. Tive que salvá-la de uma fogueira, onde Julian queimou todos os seus pertences, e, mesmo assim, meu quarto era o único lugar onde meu pai permitia que eu colocasse seu retrato. Sempre quis saber onde estava o pequeno medalhão, mas desconfiava que ele estivesse perdido para sempre com as lembranças de minha mãe que Julian enterrara. – Minha pequena estrela-guia, você está deslumbrante! – Morgana falou, tirando-me de meus devaneios. Dirigi-me ao enorme espelho em meu quarto, observando meu reflexo. Um longo vestido caía, como um lago negro sob o céu da meia-noite, sobre meu corpo cheio de curvas, o tecido pesado e delicado destacava minhas belas formas; um lindo colar, incrustado com pequenos rubis, pendia entre meus seios fartos, combinando com a cor rubra de meus lábios, destacados como sangue sobre a pele muito pálida. Grandes olhos verdes como esmeraldas me encaravam desgostosos de volta ao espelho, e, por fim, meus cabelos dourados caíam em ondas delicadas e perfeitas até a cintura, entretanto, grandes olheiras chamavam atenção em meu rosto, resultado das noites sem dormir por causa dos pesadelos. Tudo em que eu conseguia pensar era que trocaria aquilo: a riqueza, os criados; tudo para ser normal, nem que eu tivesse que ser uma simples camponesa. Nem que eu tivesse que trocar a perfeição pálida de minha pele por uma castigada pelo raro sol de Londres. Tirei os olhos do espelho. Eu sabia como ninguém que lamentar-se nunca adiantara, então por que fazê-lo? – Vamos. Estou pronta. Morgana sorriu para me encorajar, os olhos castanhos brilhando como os de uma menina. Era até fácil esquecer o quão velha ela era. Apoiei-me nos braços dela e respirei fundo, preparando-me para a noite que seguiria.
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Desci as escadas para o grande salão, onde meu pai sempre fazia seus bailes luxuosos, nos quais eu era obrigada a comparecer. Todos os rostos se voltaram para mim. Desde homens elegantemente vestidos, que me encararam com desejo, a mulheres com seus vestidos de milhões de camadas, que me encararam com inveja. Burburinhos se fizeram ouvir sob o som da orquestra. As mulheres, sempre um passo atrás de seus maridos, sussurravam umas com as outras e exibiam seus modos perfeitos. O salão estava decorado com mil candelabros, uma longa mesa no centro servia um banquete, com sofisticados pratos parisienses. A luz suave conferia ao ambiente um ar de mistério. As sombras se projetavam na parede de pedra e formavam padrões intrincados. Músicos tocavam uma canção suave para que vários casais dançassem com graça. Alguns dos homens admiravam as obras de arte pelo salão, fazendo comentários como: “o artista realmente captou a alma apaixonante da modelo”, que deveriam provar que eles eram inteligentes e cultos, mas não provavam nada além de hipocrisia. Honestamente, eu passara uma semana em uma academia de arte com uma querida amiga, que estudara comigo no período do internato, contra a vontade de meu pai, é claro, e trouxera a pintura comigo como uma lembrança. Gostaria de saber o que os homens, analisando a pintura em questão, achariam dela, caso soubessem o que Genevieve realmente queria dizer quando a fez. Morgana me soltou e lançou uma de suas caretas irritadas, que expressavam mais do que uma pessoa normal conseguiria dizer em uma frase inteira. – Não faça nada do que possa se arrepender depois, Lina. Ela tocou meu rosto de leve e suspirou com um ar de “não sei o que fazer com você, Lina”, e foi para a cozinha antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Nem mesmo Morgana poderia me convencer a ser alguém que eu não era.
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Eu ainda estava presa em meus devaneios quando senti a mão de alguém em meu ombro. Um homem me chamava para dançar. Tentei conter um gemido. Era baixinho e franzino, e me estendia a mão. Sua careca reluzia de um jeito estranho. Tinha um rosto extremamente infantil, considerando a idade avançada. – Srta. Bennet, conceda-me o prazer desta dança – o homenzinho falou, mostrando os dentes pontudos. Aceitei com relutância e coloquei minha mão na sua, arrependi-me no mesmo instante; a palma da mão suada e os dedos grossos me davam uma sensação de mal-estar. E o fato de o homem ter a metade da minha altura era inquietante, principalmente considerando que sua cabeça estava à altura exata do meu busto. Como se isso não fosse o suficiente, ele gabava-se incansavelmente de seus negócios por toda a cidade. Parei de ouvir mais ou menos quando ele chegou à parte onde contava sobre seu vinhedo na França. Tentei me lembrar de quem ele era. Tinha a impressão de já tê-lo visto antes conversando com meu pai. Acho que se chamava Sr. Evans. – Administrar um vinhedo não é uma tarefa fácil, tenho sempre que estar por perto para monitorar a qualidade das uvas e certificar-me de que estão fazendo um bom trabalho com o vinho... Balbuciei alguma coisa brilhante como “Humpf ” e ele pareceu finalmente desistir de puxar assunto. Depois do Sr. Evans, vários outros se aproximaram, alguns eram bons dançarinos, outros educados, e tinha ainda os que esmagavam meus pés a cada passo. Não me dei ao trabalho de lembrar o nome de todos eles. Simplesmente obriguei meus pés a se moverem no ritmo da música. Em seguida, um homem me chamou para dançar, mordi a língua para evitar alguma resposta rude. Deixei uma desculpa na ponta da língua. Virei-me para ver quem era. Os olhos âmbar bri-
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lhavam travessos, os cabelos castanhos perfeitamente alinhados, o nariz meio torto por já ter sido quebrado várias vezes. Ele sorria para mim. Desta vez, tive que me conter para não colocar os braços em volta de seu pescoço em um abraço apertado. – Albert! – exclamei. O rosto familiar que me encarava me trazia inúmeras recordações da infância. A cicatriz embaixo do lábio inferior me fazia lembrar o outono, quando o desafiei a uma corrida nas margens do rio Tâmisa; além de uma derrota, ele ainda sofreu uma queda no porto, onde quase perdeu dois dos seus dentes. Até mesmo sua forma esculpida e o peito largo me faziam lembrar de quando ele era franzino e magrelo, e eu conseguia bater nele sempre que queria; agora, com uma cabeça a mais de altura que eu, ele quase não se parecia com aquele garotinho. Eu quase não conseguia me recordar da minha vida antes de conhecê-lo. Devido aos negócios que nossos pais faziam juntos quando éramos crianças, eu convivia com ele desde então, mas se há algo do qual posso ter certeza é que Julian odiaria saber que somos bons amigos até hoje. Nem mesmo todo o dinheiro que a família de Albert tinha (que ele vivia perdendo em jogatinas em mesas de pôquer por todo o país), nem mesmo isso faria Julian aceitar que eu quebrasse uma regra muito importante: nunca ficar sozinha com homens com os quais não pretendo me casar um dia. Então sempre que podia (ou quando não estava caindo de bêbado em algum lugar), Albert vinha me ver escondido ou acompanhava seu pai, lorde Heron, em suas visitas para que conversássemos por horas a fio. Afinal, quem suporta as conversas intermináveis de nossos pais sobre a monarquia? E ainda dizem que são as mulheres que falam demais. – Dar-me-ia o prazer dessa dança? – ele disse com uma formalidade fingida, que usávamos em público, e sorriu.
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– Mas é claro – estendi minha mão para ele em um floreio desnecessário. Misturamo-nos à multidão de pessoas que dançava. Pela primeira vez na noite não desejei que a música acabasse logo. – Eva, você deveria colocar um sorriso em seu rosto ou logo vão achar que está aprontando alguma coisa. Ele piscou para mim. Eu sorri. Albert sempre sabia o que se passava em minha cabeça. – Eu, tramando alguma coisa? Até parece que não me conhece – ri. Ele levantou uma sobrancelha indagadora, mas mantive meus lábios selados. Se ele tivesse sorte, poderia ver minha pequena performance de “noiva perfeita” em primeira mão esta noite. Ao perceber que eu não diria nada, Albert logo mudou de assunto. – Vi você com aquela linda camponesa ontem, você deveria me apresentá-la. Ele olhava para uma linda garota de cabelos castanhos, que acompanhava um comerciante riquíssimo, e que se mantinha sempre a dois passos de sua senhora, parecendo assustada por estar cercada de tantas pessoas. Eu sorri. – Você pretende se casar com ela, Albert? – disse brincando. Albert fez uma careta, ele achava casamentos um desperdício de tempo e vitalidade. Mas tinha um dom natural para corromper garotas aparentemente inocentes. Revirei os olhos. Decidi que, por via das dúvidas, era melhor tentar mantê-lo longe da pobre dama de companhia. – Logo você é quem estará casada – ele disse, olhando-me piedoso e me girando em mais um rodopio. – Não se esta noite ocorrer como planejado. Eu serei tão odiável que a ideia de passar a vida comigo será repugnante para ele – disse.
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Ele apenas me olhou debochado. – Eva, ele não vai ligar para o quanto você é insuportável enquanto você tiver esses traços angelicais. É o que veremos, pensei. Dançamos por mais algum tempo, falando sobre coisas frívolas. Até que senti aquela sensação incômoda que vinha me perseguindo nos últimos meses. Um frio na espinha que fez os pelos do meu braço se eriçarem. Eu podia jurar que alguém me observava. Percorri o salão com os olhos, procurando. Percebi um homem entre os pilares, observando-me com olhos insondáveis. Ele estava parcialmente escondido nas sombras, mas eu ainda podia ver o quanto ele era bonito. Seu queixo fino e bem definido, os lábios rosados e perfeitos e cabelos negros, contrastando com toda a sua palidez; os olhos eram acinzentados, como o céu logo antes de uma tempestade. Ele vestia uma capa preta, que o fazia se misturar às sombras. Sorriu para mim, causando um arrepio em minha nuca. Meus pés se moveram em sua direção, quase sem que eu notasse, mas em apenas um piscar de olhos, ele desapareceu nas sombras, tão rápido que cheguei a pensar se ele não era apenas um fruto de minha imaginação. – Você está bem? – Albert perguntou. – Sim, estou ótima – respondi distraída, mas minha resposta não convenceu nem a mim mesma. – Tem certeza quanto a isso? A última vez que a vi tão distante foi quando roubou aquele anel de safira de sua irmã? Lembra-se disso? Eu estava distraída, os olhos de tempestade do homem gravados em minha mente, olhos estes que podiam ou não ser uma alucinação. Por isso, não ouvi realmente o que Albert dizia e nem notei a aproximação de minha irmã – leia-se cobra traiçoeira. – Oi, irmãzinha – uma voz fria me cumprimentou.
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Eu me virei e dei de cara com minha irmã mais nova, Margaret. Ela vestia um longo vestido cor-de-rosa, os cabelos tinham o mesmo tom dourado que os meus, mas os olhos não eram esverdeados e grandes, mas sim da cor da terra, como os do pai. A pele era um pouco mais bronzeada. E ela me encarava como se pudesse arrancar minha cabeça a qualquer instante. – Como vai, Sr. Gray? – O olhar de nojo para ele foi dez vezes pior. Albert lhe deu um sorriso amarelo. – Estou ótimo, adorável, Srta. Bennett. É sempre um prazer revê-la. – O olhar no rosto dele dizia que ele também não hesitaria em cortar a cabeça dela. Margaret o ignorou, mesmo quando ele se abaixou e sussurrou em meu ouvido. – A louca chegou, como sempre a tempo de acabar com qualquer diversão. Eu costumava me perguntar por que ela não cedia às investidas de um homem como eu, mas logo notei sua insanidade, então tudo passou a fazer sentido. Albert não se deu ao trabalho de falar isso baixo o suficiente para que Margaret não o ouvisse; ela, no entanto, agiu como se ele não houvesse dito nada. Faria o mesmo efeito provocar uma porta. – Seu noivo está procurando por você – ela informou. Esforcei-me para não fazer uma careta. Estava prestes a perguntar onde estava Willian, o marido dela, mas não me dei ao trabalho. Eu quase nunca via Willian, desde que ele se casou com Margaret. Ele estava sempre no centro, cuidando de algum negócio, não que eu me importasse. Willian era exatamente o tipo de homem que agradava a Margaret, ou seja, não lhe dava valor algum; era rico, pomposo e egocêntrico. A única coisa que me incomodava nisso era que quanto mais ausente Willian ficava, mais as visitas de Margaret se tornavam constantes, e ficar muito tempo ao lado dela podia causar danos a minha sanidade. Albert se inclinou até meu ouvido.
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– Vá conhecer seu noivo, eu vou falar com aquela linda camponesa ali. Observei quando Albert se aproximou da garota com movimentos suaves, aquele sorriso presunçoso que era sua marca. A garota corou violentamente quando ele se aproximou e a convidou para dançar. Revirei os olhos. Coitadinha. Antes que ele terminasse seu jogo, Margaret estava me arrastando baile adentro. – Você não precisava ser tão rude. – E você não deveria passar tanto tempo dançando com um homem que não é seu noivo. Vai acabar envergonhando a família se continuar a se comportar como uma meretriz. Senti a raiva borbulhar em meu âmago e desejei não estar no meio de tantas pessoas, pois gostaria de fazer com minha irmã o que ela merecia. Senti uma onda de ar frio percorrer o salão, e logo depois uma bandeja caiu. Respirei fundo e tentei me acalmar, a última vez em que fiquei furiosa quase destruí a casa. – Minhas companhias não são da sua conta – disse. Margaret me olhou com desprezo, e depois me ignorou completamente. Fiquei feliz em seguir seu exemplo. Ela parou em um canto mais isolado do baile, onde um homem alto virado de costas me esperava. Aproximei-me em passos firmes, tentando mostrar, com minha postura, que eu não seria um objeto de sua diversão. Ele observava uma pintura que demonstrava a última caça às bruxas na cidade há mais de um século. Uma mulher deformada, com chifres e presas, queimava em meio a chamas de um amarelo exagerado, enquanto dúzias de cidadãos erguiam tochas com os olhares famintos fixos na fogueira. A pintura era a ideia que Julian fazia de um aviso silencioso, e eu estaria mentindo se dissesse que não me causava arrepios. Margaret murmurou alguma coisa sobre ir procurar por Willian e foi embora.
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O homem se virou. Os olhos negros como um abismo me encararam com um brilho malicioso e faminto no olhar. De repente, senti frio. – É um prazer finalmente conhecê-la, Srta. Bennett. A voz dele era fria como aço. Os cabelos louros criavam um grande contraste com seus olhos negros, tinha uma pele macilenta e um nariz aristocrático; mesmo sendo levemente franzino, ele emitia uma aura de poder que me dava calafrios. Havia em seu peito várias medalhas expostas com orgulho sobre uma faixa vermelha. Usava um casaco com botões de ouro e um tecido rico, ajustado exatamente para ele. Vendo que eu não respondi nada, ele disse: – Eu sou Hector Callum. – Sei quem você é – disse, com a voz fria e indiferente. Hector não se deixou abalar pelo meu comportamento e fez uma reverência, estendendo a mão para uma dança. Com relutância, misturamo-nos aos casais que dançavam pelo salão. – Estou feliz em tê-la como minha noiva – ele disse devagar, como que esperando que eu absorvesse as palavras e pulasse de alegria. – Eu não posso dizer o mesmo. Ele mais uma vez ignorou. Hector segurava minha cintura de um jeito possessivo, prendendo-me em seu abraço. Sentia-me como um animal que acabava de ser preso em uma armadilha. Estava prestes a empurrá-lo para longe quando notei meu pai com os olhos grudados em nós dois, em alerta. O rosto severo e marcado pelo tempo, a barba longa começando a ficar grisalha e os olhos cor de terra eram cruéis, mesmo quando ele conversava com lady Marshall e fingia-se encantador. Eu quase sentiria pena da esposa de meu pai, Eleanor, se ela não fosse uma cobra. – Você é ainda mais linda do que eu imaginava. Posso dizer que os rumores sobre sua beleza são fiéis à verdade.
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Os olhos de Hector pareciam novamente famintos. – E no final, isso é tudo o que importa, não é mesmo? – eu disse insolente. Hector não deu nenhum sinal de irritação, continuava com um sorriso falsamente estampado no rosto bonito. Soltei-me de seu abraço com esforço. – Tenho que cumprimentar os outros convidados. E me virei para ir embora, mas Hector agarrou meu pulso com firmeza. E quando o olhei novamente, ele não sorria mais. O rosto assumira traços cruéis. E os olhos estavam em chamas. – Não é educado deixar seu futuro marido falando sozinho, Srta. Bennett. – Também não é educado ignorar os convidados, Sr. Callum. Ele ficou ainda mais furioso, deixando-me com um frio incômodo na barriga. – Você não precisa deles. A partir de hoje, você é minha. Essas palavras me encheram com uma fúria sem controle, eu odiava ser tratada como propriedade de quem quer que fosse. A raiva toldou minha visão e deixou minha respiração irregular. As chamas de todos os candelabros se apagaram e logo depois acenderam novamente. Um ruído agudo indicava que mais partes do banquete estavam caindo no chão. Senti o poder pulsando em mim, prestes a me consumir. Eu sabia que se não me controlasse, logo causaria uma tempestade no salão. Ou até mesmo um incêndio. – Não sou um objeto para pertencer a ninguém. Soltei-me de seu aperto, deixando-o perplexo. Observei a reação das pessoas ao meu redor como se tudo estivesse estranhamente lento. Em um momento, as pessoas dançavam, conversavam e riam, e então, vagarosos, perceberam que havia algo terrível acontecendo. Várias pessoas começaram a correr e a gritar, desesperadas; algumas ainda pareciam confusas, mas tudo que eu via era a curiosidade
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fria e furiosa de Hector. Corri para um canto atrás de um pilar, o vento batia forte em meu rosto como se eu estivesse no olho de um furacão. Tentei me acalmar, enquanto meu pai gritava, tentando conter os convidados. Com muito esforço, e depois de quebrar praticamente toda a louça, consegui parar o fluxo de energia que corria pelas minhas veias. Mas o salão ainda mostrava bandejas de prata caídas no chão e um candelabro de vidro quebrado em mil pedacinhos. Os convidados pareciam confusos e perdidos. E isso era apenas o começo de uma tempestade; se eu não me controlasse, não sabia o que restaria da tão preciosa mansão de Julian. Acima de todo o barulho, ouvi meu pai gritar. – As janelas foram fechadas, podemos voltar ao baile! Era possível que só eu tivesse ouvido a falsa calma no tom calculado que Julian escolhera? Somente eu podia notar o nervosismo com que ele olhava de um lado para o outro, buscando no rosto das pessoas se elas acreditaram nele ou não? Mas é claro que eu era a única. Se havia alguma coisa que eu poderia ter em comum com Julian era que ambos éramos muito bons em guardar um segredo. No meio de toda a confusão, avistei um homem charmoso que me encarava novamente com lindos e insondáveis olhos acinzentados.
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