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a redoma felipe benichio
talentos da literatura brasileira
S茫o Paulo. 2014
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Copyright © 2014 by Felipe Benichio
Coordenação Editorial Diagramação Ilustração Composição da Capa Preparação Revisão
Nair Ferraz Dimitry Uziel Alexandre Santos Monalisa Morato Alessandra Miranda de Sá Denise Di Camargo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Teixeira, Felipe A redoma / Felipe Benichio Teixeira.-Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. -(talentos da literatura brasileira)
1. Ficção brasileira I. Título. II. Série.
13-13826
CDD-869.93
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93 2014 impresso no brasil printed in brazil direitos cedidos para esta edição à novo século editora ltda. cea - Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 - 11º Andar Bloco A - Conjunto 1111 CEP 06455-000 - Alphaville - SP Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br
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À minha família.
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Sumário I • A redoma II • Viver não é preciso III • Exílio IV • Invasores do espaço V • O colapso da redoma do Quadrante 5 VI • A guerra dos excluídos VII • Portadores de más notícias VIII • Reconstrução
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7814 nunca foi afeita a desrespeitar regras. Na verdade, nenhum deles era, mas aquele desejo individualista começava a consumi-la. Ele conjeturava se todos os outros possuíam, pelo menos num nível inferior, algo próximo do que poderíamos classificar de crise existencial. Os seres menos evoluídos, que ela sabia ter o dever de respeitar, provavelmente eram mais felizes. Tinham apenas de se preocupar em sobreviver e mais nada. Ele, em vez disso, tinha de pautar suas ações em prol de uma coletividade da qual começava a desacreditar. A iluminação eterna e constante do mundo contínuo chegava a ofuscar as rajadas infravermelhas provenientes da anã vermelha. Acho que estamos competindo, refletiu, mas logo se lembrou de que a competição era praticamente abominada entre eles e reprimiu o pensamento. Enxergar tudo de maneira pessimista era uma novidade na vida de 7814. Até ter completado 267 pontos de energia, nada disso havia passado 9
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por sua mente. Não eram poucas as vezes em que se pegava recordando com nostalgia da época em que emitia ondas telepáticas de quase tudo o que passava por sua cabeça. Agora não tinha coragem de expor sequer um fragmento do próprio pensamento, e isso preocupava a comunidade. Naquele exato momento se esforçava para não deixar transparecer nenhum sintoma, por menor que fosse, de suas reais intenções. Comprometeu-se a elaborar um pensamento que não fosse nem tão fútil nem tão descompromissado com os outros para que pudesse se manter livre de possíveis suspeitas. As ondas que percorreram o ar foram as seguintes: A nova camada da redoma é muito útil. Espero que dure pelos próximos 10 mil pontos. Comentário estúpido, murmurou somente para si, como de costume. Se o comentário havia sido realmente um fracasso, certo é que 7814 não podia culpar sua capacidade intelectual. Capaz de captar até 1.200 ondas de média velocidade simultaneamente sem nenhuma perda de qualidade ou confusão, ele era um dos mais inteligentes do mundo contínuo. Mais precisamente, de acordo com o citado parâmetro, 7814 era o segundo ser mais inteligente, perdendo apenas para 4300, que era capaz de captar até 1.267 ondas simultâneas. Esse desenvolvimento tão superior do dito quarto sentido de 7814 lhe conferia uma posição de destaque no interior de sua comunidade, e se destacar era algo que ela definitivamente não desejava naquela sociedade coletivista. Despontar em função de uma habilidade, seja qual fosse, era um tanto indesejável para qualquer um que vivesse naquele ambiente comunitário e tendente à igualdade quase forçada. 4300, o mais inteligente, brotara fadado a se tornar uma espécie de pária social. Não bastasse a preeminência intelectual, 7814 ainda tinha de lidar com uma espécie de deformidade física que se
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tornara mais um elemento de destaque negativo na comunidade. Quase chegando ao fim de sua simultaneamente longilínea e ovalada cabeça, a jovem possuía uma pequena cavidade, uma espécie de corte horizontal, que lembrava o orifício bucal da maioria dos animais heterótrofos, o que era suficiente para provocar o asco de quem tivesse coragem de encarar 7814 por um período maior que um eventual relance. Aquele singelo defeito de brotagem fazia de 7814 motivo de chacota para todos. Episódios de depreciações, intimidações e bravatas gratuitas eram extremamente raros, já que “atacar um membro da comunidade era atacar a própria comunidade”. Era inegável que as ofensas a uma das células enfraqueciam o organismo, mas os que o faziam defendiam que 7814 era um componente que deveria ser extirpado por sua inadequação. Não era igual aos outros, portanto era justo que não permanecesse entre eles. No entanto, a questão já havia sido anteriormente discutida e não voltaria a debate. A consciência coletiva havia decidido que deformidades físicas só resultariam em extermínio ou descarte pós-brotagem caso comprometessem de alguma maneira o funcionamento da sociedade, o que obviamente não era o caso de 7814, que apenas provocava leve aversão aos que por infortúnio a encontravam nas vias de ligação ou em algum dos prédios do mundo contínuo e, imediatamente, associavam sua imagem à de um ser heterótrofo que não existia, sendo tal associação inevitável para tais desafortunados. Os insultos indiretos, incomuns numa sociedade de consciência relativamente evoluída, variavam de níveis mais inocentes até patamares que beiravam a covardia, contribuindo para tornar sua vida mais deprimente. As ofensas da comunidade contra um de seus membros, neste caso 7814, poderiam ser comparadas às de um ser inteligente capaz de rir de si mesmo e que enfrenta suas fraquezas por meio dessas pequenas autodepreciações. 11
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Aquilo ainda o incomodava um pouco, embora já devesse estar mais do que acostumado. É que o fato de manter sua singularidade tornava as ofensas pessoais. Porém, sabia que não podia culpar os insultos do passado por suas ações presentes. Tampouco sua inteligência. Qual a relevância desses pequenos aspectos individuais quando os princípios basilares da coletividade seriam novamente postos em risco pelo imaturo 7814? Ele havia conseguido uma espécie de madeira oca por meio da qual poderia conectar sua enorme cabeça a outra de sua espécie. No caso, a cabeça de 2001. 7814 desrespeitara outra regra da comunidade quando arrancou um galho de uma das árvores perto da grande redoma, ou seja, nos limites do mundo habitável. Se era uma verdadeira lei moral tratar os animais como iguais, respeitando seus horrendos modos de sobrevivência, o que dizer das plantas, seres superiores? Mas 7814 sequer pestanejou ao se aproximar da antiquíssima árvore portando um objeto cortante. A atitude era inadmissível e consistia em afronta direta aos preceitos de segurança vetterianos. Ele mesmo havia construído o objeto cortante valendo-se apenas de uma pequena ajuda, quase exclusivamente moral, de 20011. Obviamente, tais objetos não podiam ser fabricados nem portados por nenhum dos habitantes sem a aprovação da consciência coletiva. Nas raras vezes em que fora autorizada sua fabricação, o que pelos registros de memória coletiva só ocorreu quatro vezes após a instalação do contador de tempo por pontos de energia, os perigosíssimos apetrechos acabaram sendo utilizados para cumprir o fim específico para o qual haviam sido construídos e, com o devido cuidado, foram imediatamente descartados após o uso para as terras além-redoma. 1
Não se tratava propriamente de uma ajuda, mas de um consentimento habitual que se manifestava por intermédio de gestos com significados peculiares desenvolvidos e ensaiados por ambos durante longo tempo de convivência.
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Mas 7814 parecia ignorar os mandamentos de seu povo e decidira aceitar o risco para que tivesse algo que não entendia bem e que estava a meio caminho entre o que chamamos de liberdade e de privacidade. Enquanto cortava um dos vários braços da árvore que julgara suficientemente grande para encaixar sua cabeça sem deixar grandes arestas, 2001 apenas o observava, contorcendo-se de nojo e ensaiando arrependimento ao ver um dos seus cortando aquele indefeso ser tão velho e imensamente azul, cuja copa agora estava maculada. Se fosse heterótrofo, por certo vomitaria. 7814, no entanto, permanecia calmo e até mais feliz, exercendo a tarefa como se tivesse nascido para aquilo, a despeito de não haver qualquer registro de técnica em seu acervo mental a respeito da execução daquele inglorioso trabalho. Mais tarde, lembrando-se do que fizera, sentiu profundo remorso por ser capaz de desrespeitar um ser vivo daquela forma e ainda assim sentir-se feliz. Após a aventura, encarregou-se de enterrar o objeto cortante ali mesmo, ao pé da cianoárvore. Certamente do lado de fora da enorme cúpula o objeto, e ele próprio, estaria mais seguro, porém não possuía autorização ou meios hábeis de suplantar os limites impostos pela imponente redoma. Assentada a terra que cobria o objeto cortante, 2001 e 7814 apenas trocaram olhares, como sempre faziam, já que não podiam emitir nenhum sinal telepático, pois isso significaria a publicidade de seus planos e as piores retaliações imagináveis. Esperariam um tempo antes de agir novamente para que não corressem o risco de serem pegos, afinal, duas transgressões graves num curto espaço de tempo – mesmo que ninguém tenha tomado ciência dos responsáveis pela primeira delas – deixariam a comunidade em alerta, o que tornaria tudo ainda mais arriscado. 13
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De fato, acabaram ficando vestígios da extração clandestina do material cortante de uma das fábricas e pouco depois o objeto e a árvore danificada foram encontrados. O crime em si foi notado, causando perplexidade em toda a população, porém não era possível identificar os infratores. Seguiu-se uma onda de avisos pedindo que o responsável, ou responsáveis, se entregasse. Eram ondas emanadas por todos, inclusive por 7814 e 2001, que se revezavam em turnos de quinhentos fótons e proferiam sentenças do tipo: Entreguem-se e serão perdoados ou Não fabricarás objetos cortantes. Comoção tão grave não era observada desde a rachadura de 7,86 marzens certa vez imposta ao setor oeste da redoma. O tempo passou, os culpados não foram achados e a vida seguiu seu rumo. Foi então que 7814 julgou, talvez precipitadamente, que era hora de agir. Continuaria seu plano, que até então caminhava com perfeição, já que não haviam descoberto a madeira cortada – isso era o que mais importava. Tanto 7814 quanto 2001 trabalhavam na imensa linha de produção de fios de cobre que tomavam doze grandes prédios que subiam e desciam da superfície para o subsolo num vaivém sincronizado que ajudava a manter a captação de energia estável em todo o mundo contínuo, evitando sombras. Desde o início do plano, 2001 esperava com impaciência o dia em que 7814 lhe lançaria o olhar que ela conhecia bem e que, invariavelmente, significava perigo. E foi o que aconteceu naquele fóton de luz amaldiçoado. 2001 percebera no ato do que se tratava. Aquele olhar ao mesmo tempo de excitação e perigo que só 7814 possuía dentre todos os vetterianos o fez sentir o indescritível sentimento que só aflorava perto daquele ser errante e deformado. Após abandonarem a linha de produção de fios de cobre utilizados na construção civil e percorrerem as enormes galerias do úmido e praticamente inabitado subsolo, dirigiram-se
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a um local bem próximo daquele em que o objeto cortante havia sido enterrado, também localizado nos limites do mundo habitável. Era o lugar onde 2001 e 7814 costumavam se encontrar, que ficava ao pé de uma pequena montanha, oposta à posição permanente da anã vermelha Nhavar. 7814 amava aquele lugar por conta de suas inúmeras peculiaridades. A primeira delas decorria do fato de o lugar ficar ao pé de uma montanha. Esse detalhe por si só constituía uma particularidade porque apenas duas montanhas foram mantidas no interior da colossal redoma. Todas as outras estruturas rochosas haviam sido destruídas, reduzidas a farelo. Como a utilização industrial daquelas rochas era muito pequena ou quase inexistente, conservar apenas duas delas no interior habitável de Vetter parecia uma decisão sábia. Quando os vetterianos, excessivamente utilitaristas e precavidos, precisassem daquele mineral, poderiam proceder à extração dele sem que tivessem de abandonar a segurança do interior iluminado de Vetter. Além disso, tais atividades extrativistas, quando realizadas, eram bem mais comuns na montanha localizada a sudoeste da redoma. A montanha nordeste, exatamente como era chamada (Montanha Nordeste), era objeto de preservação ainda maior, e nisso residia a segunda peculiaridade daquele lugar: a nascente do rio Jhorn, única fonte de água do interior da redoma. Embora fosse o único rio de Vetter, o Jhorn só não era uma divindade, refletia 7814 em uma de suas muitas divagações solitárias, por não ser necessário à vida de sua espécie. Para ele fazia o mesmo sentido (ou seja, nenhum) endeusar aquele rio tanto quanto faziam com a decrépita anã vermelha. Esse era apenas um exemplo de seus pensamentos recorrentes que jamais poderiam ser expostos. Uma vez chegara a rir consigo mesmo ao pensar no absurdo de que a consciência coletiva resolveu autorizar a produção de fogo – isso mesmo, do
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famigerado e nunca antes visto fogo! – só para queimá-la viva caso numa eventualidade dessas resolvesse expor tudo o que pensava em largo e bom comprimento de onda. Devaneios à parte, a terceira peculiaridade do local era que se tratava de um pequeno deserto. Um oásis às avessas, poderia se dizer, já que as exuberantes florestas azuis de copa redonda que chegavam a alturas incríveis cresciam nos arredores daquele local ao pé da montanha, cercando-o. Era perceptível que, quanto mais afastada do pé da montanha desértico, mais exuberante se tornava a vegetação predominantemente azul. A explicação para a mais intrigante das peculiaridades, justamente a que fazia persistir um deserto lado a lado à nascente de um rio, era de uma simplicidade fascinante: fazia sombra permanentemente naquele local. Isso acontecia porque apenas uma das faces de Vetter se voltava para a estrela anã Nhavar, que nessa região do planeta brilhava eternamente. Logo, no local onde a verdadeira cidade-luz fora construída era sempre dia. Mas, mesmo recebendo os ininterruptos raios infravermelhos do astro-rei, os habitantes da plana cidade faziam questão de mantê-la sempre iluminada, despendendo de grande parte da energia nhavariana recebida. A necessidade de construir sua cidade única e contínua com tanta energia se devia à dificuldade dos vetterianos de viver sem a presença abundante de luz, seu único alimento. A síntese de nutrientes a partir da luz é que os mantinha vivos, e eles próprios eram seres luminosos. Daí o medo da escuridão. Bastava uma nuvem cobrir o céu sobre a redoma para a comunidade inteira agradecer por sua iluminação artificial. Além disso, a iluminação recebida de estrelas anãs vermelhas é relativamente parca se comparada aos níveis de emissão de estrelas supergigantes, ou até mesmo de anãs amarelas, o que constitui um verdadeiro problema quando se sabe que a nutrição daquela espécie provém exclusivamente da luz.
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A iluminação constante trazia certa calma aos habitantes, mas havia o lado inverso da moeda: a outra face de Vetter permanecia numa eterna escuridão. O lado obscuro do planeta era frio, inóspito e palco preferido das poucas histórias de terror produzidas pela tímida cultura do medo dos moradores da única cidade planetária. Os vetterianos acreditavam ser uma espécie de dádiva divina o fato de Nhavar permanecer o tempo todo praticamente no mesmo lugar do céu. Talvez por esse motivo evitassem ficar muito tempo na sombra ou até mesmo, para os mais supersticiosos (não eram muitos os indivíduos desse tipo, característica que, é evidente, não se confunde com religiosidade), pisar nessas regiões desprivilegiadas por uma fração de fóton que fosse. Numa alusão à antiga filosofia chinesa terráquea – que por certo não habitava nem a mais vã das especulações vetterianas – pode-se dizer que as regiões literalmente sombrias geradas, por exemplo, pela projeção da massa uniforme e imóvel de uma montanha corresponderiam ao ponto negro yin presente no lado branco yang do taijitu. A diferença é que a dicotomia universal de como os opostos se complementam era interpretada pela consciência coletiva com base em um ponto de vista um tanto fundamentalista, na acepção mais comum e odiosa dessa palavra. Mas, apesar de todas essas peculiaridades, aquele ponto era especial para 7814 por uma última e mais elementar diferença: lá ela podia ficar sozinha com 2001. Estar sozinho com 2001 era bom, mas não significava que 7814 podia confidenciar seus pensamentos com total liberdade. O ao mesmo tempo limitado e superdesenvolvido sistema de comunicação constituía um paradoxo que 7814 esperava transpor por meio de um subterfúgio, e seu plano era justamente desenvolver tal subterfúgio.
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