Aaron Fischer e a prova dos elementos

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Carlos Melo

AaronFischer e a prova dos elementos

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo, 2 016

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Aaron Fischer e a prova dos elementos

Copyright © 2016 by Carlos Fernando Sotto Mayor Cavalcanti de Melo Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

editorial

Vitor Donofrio Cleber Vasconcelos

Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

preparação

revisão

Ana Lúcia Neiva

Luiz Alberto Galdini

diagramação

ilustração de capa

Nair Ferraz

Alexandre Santos

aquisições

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Melo, Carlos Aaron Fischer e a prova dos elementos / Carlos Melo; ilustrações de Alexandre Santos. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2015. (coleção Talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira 2. Fantasia I. Título. II. Santos, Alexandre 16­‑0716

cdd­‑869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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A meu avô Fernando, e seu jeito e alegria contagiantes, que com certeza me olha orgulhoso. A meus pais Carlos e Fernanda, e ao meu amado irmão Tiago. E a todos os fãs de fantasia, que espero conquistar.

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Despedidas Era o último dia de aula do ensino básico para Aaron Fischer, garoto alto e de estrutura física formidável para seus recém­‑completados quinze anos. Ele possuía os olhos negros como a noite mais escura, o cabelo castanho longo, sempre despenteado e queimado de sol, combinando com a pele bronzeada devido às longas horas passadas no convés do barco de pesca comandado por seu pai. Até aquele momento, Aaron pensava ser o último dia de aula da sua vida. Finalmente se livraria de todas aquelas classes chatas que ocupavam tanto seu tempo e poderia tentar mu‑ dar seu futuro. Afinal, ele não sabia por que teve de ir à escola durante tanto tempo, já que não teria direito de escolha sobre qual ofício iria seguir. Todos os jovens que ali estavam iriam concluir o ensino básico e trabalhar no que o Exército Imperial ordenasse. Sortudos eram os que poderiam herdar o ofício da família, como ele próprio. Essa era uma das poucas concessões feitas pelo Exército aos chamados comuns. Na escola para comuns, os jovens só aprendiam cinco ma‑ térias – Linguagem, História, Matemática, Religião e Educa‑ ção Física –, apenas o suficiente para que pudessem exercer seus ofícios. Diante dos resultados e aptidões de cada um, o 9

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Exército determinava onde e com o que o jovem iria traba‑ lhar, sendo mandado, geralmente, para longe de casa, no intui‑ to de que não fossem criados laços com a terra nem ideias de comunidade, dificultando assim o início de rebeliões. Obvia‑ mente, o motivo oficial divulgado pelo Exército Imperial não era esse. Segundo eles, esse intercâmbio serviria para a troca de culturas e experiências entre todos os povos do Império. Grande parte daqueles garotos, não só daquela escola, mas de todo o Império, era órfã. A chamada Guerra dos Deuses Caídos havia se encarregado de garantir esse título para mui‑ tos, não só as crianças de sangue comum, mas também as de sangue elemental. Apesar do nome, a Guerra dos Deuses Caídos não havia sido, de fato, uma guerra entre deuses, mas uma guerra civil en‑ tre dois generais do Exército Imperial pelo cargo de marechal. Segundo os professores de História, após a morte do anti‑ go marechal Yunt Kruk, o general Jorg Marok, o Anjo Caído, havia sido eleito pelo conselho militar imperial o novo ma‑ rechal. Porém, sedento de poder e inconformado com essa decisão, outro general, Logan Grun, chamado por todos de o Lobo, juntou­‑se a outros oficiais e deu início a uma rebelião. Os revoltosos começaram atacando Cidades Comuns nas co‑ lônias do norte do Império, incitando rebeliões e juntando seguidores à medida que marchavam em direção à capital. Logo, um punhado de elementais dissidentes se transfor‑ mou em um verdadeiro Exército formado por comuns e ele‑ mentais, autointitulado Exército Negro. Nada ficava de pé por onde passavam, destruindo tudo e todos que não os apoiavam, tendo como resultado um rastro de morte, destruição e sofrimento no seu caminho.

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O que muitos achavam se tratar de uma pequena rebelião, transformou­‑se em uma guerra sangrenta que dividiu o Im‑ pério e matou grande parte da população. Depois de muitos anos de guerra, sob o comando do marechal Jorg Marok, o Exército Imperial matou o Lobo e destruiu o Exército Negro, restaurando a ordem… Ou assim diziam os professores de His‑ tória. Porém, a ordem restabelecida continuou sendo de pouca esperança e muita exploração para as pessoas nascidas comuns. Já para os nascidos elementais, órfãos ou não, um futuro completamente diferente os esperava: quando acabavam o en‑ sino fundamental poderiam escolher o rumo que iriam tomar. A maioria sonhava em entrar para a Escola para Elementais de Lysmor, único local apto a formar os oficiais superiores e generais do Exército Imperial. O Anjo governava o Império com grande apoio da Igreja, impondo um violento separatismo entre comuns e elementais, sendo os primeiros mantidos praticamente como escravos nas suas cidades miseráveis, forçados a trabalhar e proibidos de pi‑ sar nas belas e grandiosas cidades elementais. Mesmo os elementais que não conseguissem entrar em Lysmor, o que ocorria com a grande maioria, não teriam com o que se preocupar: levariam uma vida tranquila como buro‑ cratas, comerciantes ou qualquer outra carreira. Por isso, como todo garoto, Aaron sonhava que um dia seus poderes iriam finalmente despertar e ele entraria para a Escola de Elementais de Lysmor, tornando­‑se um dia mare‑ chal e acabando com o separatismo. Entretanto, seus poderes nunca haviam aparecido e ele já enxergava isso como um so‑ nho bobo de criança. E era nisso que pensava enquanto desenhava em seu ve‑ lho caderno e esperava o diretor chamar um por um dos que 11

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estavam concluindo o ensino básico e se encontravam no pe‑ queno auditório da escola da vila, para lhes dizer qual ofício o Exército Imperial os havia designado. – Aaron Fischer! O diretor Shaw, um homem velho, com poucos cabe‑ los brancos e muita barriga, de temperamento explosivo, mas querido por todos, estava vermelho e parecia com raiva en‑ quanto gritava seu nome. O garoto percebeu que ele devia estar chamando seu nome há algum tempo, então se levantou e andou rápido até a grande mesa montada no palco. Estava nervoso, sempre quisera algo a mais na vida e tinha certeza que conseguiria, mas como não podia fazê­‑lo agora era me‑ lhor que o designassem para ser pescador e seguir os passos do seu pai, assim teria tempo e apoio para pensar em algo. Seu medo era ser mandado para o outro lado do Império por algum oficial estúpido, ou, pior, para uma mina de ouro no gélido norte, o que era uma sentença de morte. Antes que pudesse falar qualquer coisa, o Diretor Shaw tomou sua frente. – Queriam colocar você para trabalhar nas minas de ouro por causa dos seus testes físicos, mas eu consegui convencê­‑los e o designaram para o ofício de pescador! – Debaixo do seu grande bigode branco, estava um sorriso nem tão branco, mas sincero. – Diretor Shaw, eu não sei nem como agradecer, você salvou a minha vida! – Não precisa agradecer, garoto, eu fiz isso pelo seu pai. Afinal, ele parece estar precisando de uma ajuda com aquele barco velho. E, de qualquer maneira, eu devia a ele alguns fa‑ vores.Vai lá, garoto, vai comemorar! As grandes máquinas do Exército Imperial, gigantescas es‑ truturas de metal fundido, movidas por um barulhento motor, 12

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que expelia uma grossa fumaça preta, e criadas recentemente pelas empresas Storegeni, iriam à vila no dia seguinte para levar os jovens recém­‑formados para seus locais designados. Por isso, antes de ir para casa comemorar com seu pai, Aaron havia combinado com seus amigos uma pequena reunião de despedida no velho esconderijo, onde sempre se reuniam. O seu grupo de amigos era formado basicamente por mais três pessoas. Phillip e Josh, que eram primos, mas pare‑ ciam irmãos: eram altos e magros com longos dedos e um jei‑ to desengonçado que enganava. Nunca desgrudavam um do outro, possuíam uma habilidade impressionante com as mãos e, por isso, eram os reis dos pequenos furtos da vila. Haviam sido criados pela avó, a qual havia morrido há alguns anos e, desde então, viviam de pequenas ilicitudes. A outra integrante do grupo era Sarah, uma menina durona, apesar de baixinha, com cabelos pretos e curtos que sempre puxava a responsa‑ bilidade para si. Sarah sobrevivia da horta que existia atrás da casa dos seus falecidos pais e sempre tentava ajudar os outros. Era a única menina da vila por quem Aaron sentia algo, mas ela nunca havia dado bola para suas investidas. O velho esconderijo ficava em uma falha na ponta da Pedra do Arpão, uma enorme estrutura rochosa que dividia as docas do pequeno porto da vila e dava abrigo aos barcos, nas suas reentrâncias, do agitado mar da Costa da Pérola. Era tam‑ bém quem dava nome à vila, conhecida como Vila do Arpão. Em ordem alfabética, todos os seus três amigos foram cha‑ mados pelo diretor Shaw e designados para lugares diferentes. Josh e Phillip iriam trabalhar nas fábricas de arma no nordeste do Império, o que já era de se esperar, pois a maior habilidade dos dois estava em suas mãos. Conseguiam construir instru‑ mentos fantásticos apenas com o que achavam no lixo. Sarah 13

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havia sido designada para trabalhar nas grandes fazendas de alimentos na parte central do país. Quando a garota, a última a ser chamada, voltou, eles par‑ tiram juntos para a pedra perto das docas. Por algum tempo, todos ficaram em silêncio enquanto andavam, como se em respeito àquele momento, no qual relembravam suas estórias. Não podiam reclamar, afinal, tiveram sorte, pois haviam sido designados para trabalhos bons ou, pelo menos, trabalhos que não eram mortais como a pesca de pérolas na costa do Deser‑ to Orken ou a extração de madeira na floresta de Irtak. Mesmo assim, realizaram todo o percurso da escola até as docas em silêncio.Tudo parecia passar em câmera lenta, e Aaron tinha certeza que todos ali viam passar diante de si uma infância, que, apesar de todas as dificuldades, havia sido, por assim dizer, “feliz”. Uma infância em que os quatro haviam vivido juntos, mas que agora estava chegando ao fim. A partir daquele mo‑ mento, uma vida totalmente diferente estava para começar. A falha na Pedra do Arpão formava quase uma caverna, a qual não podia ser vista das docas nem de cima das pedras. O local era perfeito, ninguém sabia de sua existência e quando queriam desaparecer era para lá que iam. Josh e Phillip desco‑ briram aquele lugar enquanto fugiam de um dos seus poucos malsucedidos furtos e, desde então, havia se tornado o que eles chamavam de base. – Pelo menos demos sorte, não temos do que reclamar. – Sarah olhava para a imensidão azul do mar, ainda pensativa. – Tem razão! Todos nós fomos designados para onde que‑ ríamos, a única coisa que vamos deixar são boas lembranças nesta vila. – Phillip brincava com um de seus canivetes en‑ quanto falava e Josh apenas fez um barulho de concordância. Tanto Sarah como Phillip e Josh não possuíam família, sendo 14

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órfãos do Lobo, como eram chamadas as crianças que haviam perdido os pais na guerra. O silêncio voltou a aparecer, mas, antes que ele se tornasse algo pesado e palpável, Aaron o quebrou: – É, e tem mais, quem sabe do futuro? Nós ainda pode‑ mos nos encontrar algum dia e acabar com o apartheid, nos tornar grandes líderes… Tudo é possível! Parecia que ninguém iria lhe responder, afinal esse era o sonho que todos eles haviam alimentado por tantos anos e tantas reuniões, e aquele momento era o mais próximo que se podia chegar de um velório de sonho. Eles haviam acabado de ser separados pelo poder do Exército, cada um viveria uma vida pacata e provavelmente muito sofrida, e morreriam sem nunca nem entrar em uma cidade elemental. Quando ele já estava perdendo a esperança de alguém respondê­‑lo, Josh saiu com um dos seus planos mirabolan‑ tes de como eles, mesmo separados, conseguiriam destruir o Exército Imperial, e logo todos estavam contribuindo e fazen‑ do planos ainda mais impossíveis. A tensão se dissipou e aquela parecia só mais uma de suas reuniões. No caminho de volta para casa, na superpopulosa Vila dos Pescadores, formada por palafitas construídas uma por cima da outra, feitas do resto de madeira de embarcações naufra‑ gadas, o mais novo pescador tinha de passar pela praça central da vila, onde ficava a estátua de cerca de três metros de altura do marechal Jorg Marok com suas enormes asas recolhidas atrás de suas costas, a sua mão direita no pomo da sua famosa espada, Excalibur, forjada pelo primeiro elemental do ferro e maior ferreiro da história, Wayland. Seu rosto olhava dig‑ namente para o mar a sua frente, como se quisesse o bem de todos. Ao seu lado, como a figura de uma bênção, estavam os 15

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quatro grandes deuses: Fir, deusa e criadora da água, Arin, deu‑ sa e criadora do ar,Tur, deus e criador da terra, e Ragur, deus e criador do fogo. Acima de todos, em um pedestal, estava Vlaar, pai de todos os deuses e criador do mundo. Aquelas estátuas praticamente resumiam o sistema que o Exército Imperial usava para governar: o poder do Exército e o controle de massa da Igreja. O Exército Imperial era uma instituição extremamente poderosa e que poucos poderiam ir contra. A Igreja existia para manter a massa alienada e calma, evitando assim uma rebelião que ameaçasse o poder do Exér‑ cito Imperial. Segundo os ensinamentos da Santa Igreja, a qual todos eram obrigados a ir nos dias de descanso, os deuses haviam criado o mundo e tudo nele existente para servir aos ele‑ mentais, seus verdadeiros filhos e herdeiros. Como prova disso, haviam abençoando­‑os com força, agilidade e resistência su‑ periores, além dos seus grandiosos poderes. É claro que essa não seria uma religião que atrairia muitos seguidores comuns, já que os colocava como meros objetos para serem usados pelos elementais, e, por isso, os ensinamen‑ tos afirmavam que todos os que fossem bons e cumprissem suas funções teriam um lugar no paraíso, independentemente de serem comuns ou elementais. A mensagem era clara: aceite seu destino, qualquer que seja, e quando morrer encontrará um eterno paraíso. Revolte­ ‑se e sofra as devidas reprimendas pelo Exército e ainda por cima queime no submundo quando a morte chegar. Não eram muitos os que tinham coragem de ir contra o sistema, a maioria preferia tomar forças na fé e nos ensina‑ mentos da Igreja, acreditando que seriam recompensados na

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hora da morte. Por causa disso, muitos comuns tratavam os elementais como verdadeiros deuses na terra. Aaron odiava aquelas estátuas, pois sabia muito bem o que elas representavam. A sua vontade todas as vezes que passava por elas era destruí­‑las pedacinho por pedacinho. Mas isso era crime punível com a morte.

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