Adeus à Humanidade Marcia Rubim
COLEÇÃO NOVOS TaLENTOS DA LITERATURA BRASLEIRA
São Paulo, 2012
PrĂłlogo
NĂŁo importa a eternidade que leve atĂŠ que se encontre o verdadeiro amor, e sim a intensidade com que o sentimos quando ele se manifesta em nossas vidas...
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Um
A vida é mesmo uma coisa muito estranha... Até bem pouco tempo, acharia graça se alguém me dissesse que eu moraria em São Paulo numa pensão humilde, contando moedinhas para inteirar as contas do mês e juntando as sobras de comida do dia anterior para fazer um sanduíche com um aspecto esdrúxulo. Isso seria uma verdadeira piada, e de mau gosto. Sou carioca e sempre morei bem perto da praia. O mar era uma paisagem constante em minha vida. Gostava de passar por ele todos os dias, nem que fosse somente para contemplar o seu poderio. Era imenso, misterioso, uma verdadeira força da natureza. Aquela brisa salgada sempre trazia uma esperança a mais, um acalanto, um sopro de vida. Não me considerava uma patricinha, embora tivesse uma condição de vida bastante confortável. Também nunca fui rica. Eu tinha uma casa normal num bairro tranquilo, um quarto com suíte, um computador atual e algumas coisas supérfluas. Já cheguei ao cúmulo do luxo de possuir revistas periódicas, cujos lacres de correspondência, frequentemente, nem me lembrava de abrir. Na verdade, não sentia falta de nada material, isso não me completava. Porém existia, sim, um vazio em mim, algum tipo de buraco, uma lacuna que não conseguia preencher. Nessa época, eu beirava os vinte anos. Já tinha prestado vestibular para Nutrição e cheguei a pensar em outras profissões, 11
entretanto, havia sempre uma dúvida. Nunca era aquilo o que eu queria, perdia literalmente o estímulo no instante em que conseguia passar pela primeira etapa. Vivia, então, perdida entre cursinhos, aulas de inglês, espanhol e um curso de fotografia, que era, até o presente momento, o único hobby que me dava algum prazer. Não tinha, dessa forma, necessidade de trabalhar, mas passava praticamente o dia todo fora de casa a ponto de, por vezes, sequer perceber que não falava com a minha mãe ou com o meu irmãozinho mais novo havia dias. À noite, quando chegava, acabava me trancando no quarto, ora para revelar as fotografias num ambiente que preparei exclusivamente para isso, ora para falar com a minha melhor amiga Anne por horas seguidas, pelo MSN. Anne era a única amiga que eu considerava, aquela com quem sabia que podia me abrir e que inegavelmente me conhecia. Quer dizer, talvez jamais conseguisse desnudar a minha alma de uma forma tão explícita ou direta para alguém, mas, ainda assim, ela captava os meus sinais como se estivéssemos sintonizadas numa mesma frequência de ondas. Ondas de longo alcance. Às vezes, eu parecia um peixe fora d’água. Sentia falta de ter um objetivo, de fazer planos para o futuro. Não fazia parte de lugar algum neste mundo. A vida não passava de uma mera rotina, sem graça, aguada. Era como beber uma cerveja choca. Tudo acontecia criteriosamente da mesma maneira, e todo o santo dia. Nada mudava, inclusive eu. No início, a relação com a minha mãe foi um tanto difícil. Não porque ela fizesse algo de concreto para que eu me sen12
tisse assim. Não porque ela tivesse trocado o meu pai por outro homem com uma situação financeira pouco sólida. Na verdade, isso não me afetava muito, pois papai acabava enviando proventos suficientes para arcar com os meus cursos, coisas banais, e ainda sobrava para que eu a ajudasse nas despesas de casa quando havia necessidade. Talvez a culpa estivesse emaranhada em mim mesma. Talvez eu quisesse ter nascido diferente, um pouco mais parecida com ela. Não pelo lado emocional ou sentimental — nisso até que me julgava uma pessoa estável —, mas pelo aspecto físico mesmo. Eu não era feia, apenas... comum. Sabia que podia atrair muitos rapazes. Bem, digamos que não os mais bonitos. Entretanto, também não era isso o que me interessava, embora não soubesse especificamente o que buscava neles, ou se realmente queria buscar algo. Mas cá entre nós... Bem que gostaria de ter herdado aquele cabelo louro-acinzentado e encaracolado que mais parecia vir de um comercial de xampu, ao invés dessa lisura que mal segurava algum grampo... Também poderia ter nascido com aquela pele sedosa. Isso me teria evitado tantos constrangimentos no início da adolescência, bem como todas as idas à dermatologista. E só Deus sabe que, por mais que ingerisse uma tonelada de comida, não conseguiria ter um corpo violão como o dela. Minha mãe era uma diva, parecia que já havia nascido perfeita. Não foi à toa que por um longo tempo trabalhou como modelo fotográfico, dessas em quem ficamos babando quando vemos as novidades no mundo da moda ou em anúncios de maquiagem. Os seus olhos castanho-dourados eram o que mais chamavam atenção no seu rosto. 13
Jamais senti inveja dela, pelo contrário, tinha até muito orgulho. Só que havia horas em que ouvir certas comparações costumava ser bem difícil, principalmente quando a idade ainda não permite deletar aquilo que nos incomoda sem deixar de causar algum dano no subconsciente. Ainda me lembro de um ano em que, quando voltava da escola — eu devia ter por volta de treze anos —, acabei ouvindo um comentário nada discreto entre duas conhecidas da minha mãe: — Olhe só, Vera. Reconhece aquela menina que acabou de atravessar a rua agora? — disse uma delas em tom de reprovação, esquecendo-se de que os adolescentes em geral possuem boa audição. — Não. Quem é? — A outra disfarçou, observando-me pelo canto dos olhos. — Realmente, sem uma dica fica difícil mesmo. Ela não se parece em nada com a mãe. Às vezes, fico me perguntando se não é adotada, só que nunca tive coragem de conversar com a Rachel sobre esse assunto. — Espere aí... Aquela é a Stephanie — mamãe sempre adorou essa coisa tosca de estrangeirismos nos nomes, inclusive o dela e o do meu pai —, a filha mais velha da Rachel? — perguntou, demonstrando evidente incredulidade. — Sabia que você iria se espantar. E não é para menos... — É, analisando bem, acho que você pode ter razão. É até engraçadinha, mas... — Torceu o nariz. — Você conhece o pai? Um pequeno adendo: engraçadinha é o termo que as pessoas usam para tentar definir alguém que não tem muitos atrativos físicos, mas que pode suprir a falta deles com simpatia ou educação. Ou seja, o meu caso. 14
— Conheço. Ele aparecia sempre no início das férias escolares e levava a filha para viajar com a família. Ultimamente, não o tenho visto — emendou, pensativa. Não quis nem esperar para ouvir o restante da conversa. Eu não sou de ferro. Certos comentários serviam de prato cheio para que eu cada vez mais me fechasse. Mamãe, coitada, não tinha culpa disso, só que inevitavelmente me sentia melhor quando passava os dias com o meu pai. E esses pequenos momentos se restringiam a apenas alguns dias das minhas férias, já que morávamos em países opostos e o trabalho dele era bastante importante dentro da medicina. Meu pai é hematologista. Não um nome qualquer dentre milhares por este mundo afora, mas o famoso Dr. Allan Wernyeck, um dos melhores médicos e pesquisadores dentro de sua área, um profissional brilhante. Passava seus dias enfurnado entre laboratórios e hospitais, empenhado em descobrir a cura de diversas doenças de ordem sanguínea; com frequência, era requisitado por especialistas de outros países para dar cursos e palestras sobre a sua especialidade. Era muito comum que eu ficasse semanas ou até meses sem falar com ele, já que as viagens aconteciam constantemente. No entanto, sempre quando estávamos juntos, parecia que todo aquele intervalo havia sido anulado, tamanha a nossa afinidade. De tempos em tempos, pensava em ir morar com ele, embora não residisse logo ali, por assim dizer. Também nunca foi fácil encarar o olhar inquisidor de sua atual companheira. Parecia que ela tinha medo que eu o roubasse ou algo do gênero, uma coisa irracional. Janet tinha tanto ciúme 15
dele que às vezes eu ficava a me perguntar se o problema todo estava no modo carinhoso que ele ostentava ao tratar as pessoas, na sua simpatia irradiante ou simplesmente porque a insegurança ou imaturidade dela não a deixavam raciocinar. A meu ver, isso não tinha razão de ser. Ela aparentava ser bem mais nova, bonita, e, ainda por cima, trabalhava como assistente em um Centro de Hemoterapia onde meu pai também tinha sociedade. Resumindo: tinha a faca e o queijo na mão. Bem, fora isso, julgava intimamente que o meu problema maior em residir no exterior fosse o fato de não conseguir ficar muito tempo longe do meu irmãozinho. Juninho era dessas crianças que nasceram fadadas à felicidade. Embora tivesse um pequeno defeito congênito nos pés que fazia com que constantemente mudasse de botas e necessitasse de tratamento fisioterápico, o guri era muito inteligente, carinhoso e sabia conquistar qualquer pessoa com um simples sorrisinho. Era, na verdade, meu meio-irmão, filho de minha mãe com o fotógrafo por quem se apaixonou há alguns anos, durante uma dessas ridículas sessões de fotos, com chapeuzinho rosa na cabeça e mãozinha debaixo do queixo, pelas quais as mães cismam em nos fazer passar. Também não a culpava por isso. Meu pai, embora atencioso e amável, foi uma pessoa muito ausente, e ela, particularmente carente. A presença de Otávio a revigorou. Não havia como não deixar de comparar a minha mãe de antes — triste, descuidada, desanimada — com aquela que passou a ser depois — radiante, ativa e feliz. Eu a amava muito, não aguentava mais vê-la daquele jeito. Quanto ao Otávio, creio até que deveria agradecê-lo pelo bem que fazia a ela. E não só por isso, mas também por ter me 16
transferido, meio que por osmose, essa pequena aptidão para fotografar. Suponho que realmente seja boa no ramo, ou imagino que não teria vencido três concursos por clicar pessoas em momentos imprevisíveis associados a elementos da natureza, e sem fazer muito esforço. Acho que somente nessas ocasiões conseguia me distrair ou me sentir feliz, se é que isso é o que chamam felicidade. Eu seria capaz de ficar horas e horas analisando o melhor ângulo, a direção da luz, o foco... E sempre voltava para casa com uma novidade, alguma coisa que me ajudasse a sair daquele marasmo que cercava a minha vida.
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