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Pedro Costi
cartas a amĂŠlia
talentos da literatura brasileira
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Copyright © 2014 by Pedro Costi
Coordenação Editorial Letícia Teófilo Preparação Thiago Fraga Diagramação Project Nine Capa Monalisa Morato Revisão Giacomo Leone Neto
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Costi, Pedro Cartas a Amélia / Pedro Costi. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. -- (Coleção novos talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 13-13678 CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA - Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar Bloco A - Conjunto 1111 CEP 06455-000 - Alphaville Industrial - SP Tel. (11) 3699-7107 - Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br
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A todas as AmĂŠlias do mundo.
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Agr adecimentos
Primeiramente, agradeço a todos que apoiaram a mim e a Pierre nesta longa, anímica jornada. Enfatizo meus tão caros amigos e colegas escritores Ohana Lopes Ribeiro e Vinícius Dalpiccol, os que tanto conhecem as entrelinhas deste trabalho e fazem, indubitavelmente, grande parte dele. Agradeço, segundamente, à minha família pelo suporte e incentivo tão necessitados por este poeta de cá, sem os quais este livro certamente não conheceria o mundo. À Geraldine Gauer, cujas opiniões e críticas tão gentis asseguraram-me da esperança neste trabalho. Também não posso faltar com a palavra aos vinheiros do Rio Grande do Sul, que, com sua arte, tanto permearam minhas noites de poesia. E, finalmente, agradeço a ti, Amélia, por tudo que me proporcionaste. Tu és o corpo e a alma das entrelinhas aqui expostas. De mim.
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Dia 1
Amélia, querida Amélia, decidi partir. Rebuscava incansavelmente por entre meus papéis e minhas gavetas, ontem, procurando o poema que escrevi para ti, tantos anos atrás. Confesso não saber de onde tirei tal ideia, considerando a dificuldade da tarefa. Uma folha, um verso, perdidos entre milhares de dias inacabados e/ou esquecidos empilhados tão aleatoriamente quanto minhas lembranças. Mas ora, se bem me lembro, havia feito sua cama bem ali, na terceira gaveta de baixo para cima. É indescritível o calafrio desesperador que percorreu meu corpo quando percebi, na verdade, nunca tê-lo escrito. Tomei-me por louco em um copo fundo de vinho, pois as taças ficam na prateleira de lá, e minha loucura feita às pressas nem cogitou cambalear outros três passos. Sentado no chão da cozinha, estudei por longos minutos a dança da última gota tinta restante. Caçoava de mim. Ria, mas um riso triste, um riso de aconchego, quando corria em direção à minha mão e batia sem dó no vidro. Pedia-me desculpas por não ser forte o bastante. Foi sem hesitação que a perdoei. Se nem mais forças tinha eu para levar a doce borda do copo aos meus lábios, como poderia eu culpar nosso desencontro? Recompus-me, um sono depois. Minha mente era inerte, quieta, vazia. Vazia como o giro de uma roda de bicicleta. Sentia uma calmaria trôpega que me era desconhecida. Pus-me a avaliar 9
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o estrago feito, e, para minha surpresa, o apartamento continuava intacto. As lembranças cambaleantes e insistentes eram quase apocalípticas. Talvez sejam elas verdadeiras, Amélia, talvez não. Afinal, é verdadeiro o que se vê ou o que se sente? Esperei salvação. O meu estado era tão patético que fui obrigado – por mim mesmo – à rendição. Esperei por horas, e as únicas respostas que tive foram todas lúgubres. Das paredes, do carpete, do pequeno criado-mudo que não serve ninguém. Até o couro do sofá grunhiu, pedindo à minha pele que não se fosse, argumentando vorazmente contra o mundo e sua impiedade. Não obtive salvação. Quando tomei consciência da miséria que emanava, busquei a poesia. Meu trabalho, anos de trabalho, todos guardados e rejeitados. Como diabos eu pagava o aluguel, ainda não sei. Achava dinheiro em cantos, rodapés, saias rodadas e, quem sabe, pena; mas jamais nas minhas canetas. Por vezes, passantes comovidos pela minha emoção – mas certamente não por minhas palavras – davam-me algo. Poesia não deve ser vendida. Emoção, sim. Então era contente. Era contente na constância da satisfação, mesmo que enxuta. Mas, bela Amélia, nem as moedas consolam uma mente em implosão.
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Dia 3
Este ônibus tem um cheiro penetrantemente acre. Sentei-me pedindo somente a companhia dos riscos feitos por dedos solitários no vidro levemente opaco por desmazelo. Trago comigo uma única mala, não muito maior que minha esperança. Deixei o apartamento sob os cuidados dos meirinhos e do silêncio. Não sei exatamente para onde vou. Pedi à moça do guichê uma passagem para o ônibus mais próximo para o local mais longínquo, obrigado. Ela me deu este e apontou o terminal. Serviu-me bem. Amélia, minhas mãos tremem de excitação. Penso em mudar de nome. Não que faça alguma diferença, já que alma nenhuma conhece meu atual; mas parece-me oportuno. Dar-me-ei um nome bonito, talvez, ou algo icônico. Ou nome nenhum, quem sabe. Parece-me igualmente propício. Também não carrego muitas coisas comigo. Não tinha espaço dentro de mim. Trouxe alguns pares de meia e um lápis, entre outras coisas indispensáveis ao crescimento humano – como meu kit engraxate. Trouxe meu ioiô. Tenho minhas dúvidas quanto a ele, mas não tive escolha. Seus olhos eram demasiadamente grandes e molhados para aceitarem qualquer recusa. No meu bolso direito, guardei uma caneta e um metro de barbante. No esquerdo, minha carteira e uma concha. No bolso do casaco, um caderno e dois botões reserva. Por quê? Ora, não sei quanto tempo terá minha viagem, e não há desastre maior do que perder os próprios botões. 11
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Vê, Amélia. É noite, e passo um pouco de frio. A temperatura está agradável, de acordo com o motorista, mas seu testemunho não é válido na realidade de cá. Tenho certeza de que ele sabe para onde está indo e para onde voltará. Ele não sente meu frio. Agora percebo ter deixado as luvas no apartamento. Droga. Provavelmente as esqueci entre livros nunca costurados e catarses nunca vividas. Se eu tivesse tuas mãos, Amélia…
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Dia 4
Peguei no sono escrevendo, ontem à noite. Acordei com o sentar de uma velha senhora, que, ao meu lado, agora olha para mim com estranho estudo. Desconheço o tempo de viagem. Não me interessa, também. Há um bom tempo que ganhei repulsa por relógios. Relógios são cruéis e vãos. Lembram-nos a todo o momento, com tortuoso e repetitivo som, da insignificância de nossos atos. Atos que, um movimento depois, já não são mais. Atos que, como os meus, serão esquecidos por todos, eventualmente. Inclusive nós mesmos. Creio ser essa a minha tormenta de ser poeta. Ah, se fosse uma escolha… Escrevo para perpetuar alguma coisa, se é que isso é possível. Poesia é a perpetuação de sentimentos que falham em nos ensinar por injustamente acabar no esquecimento. Não há batalha que se ganhe sem ser travada. Que batalha travamos contra nosso esquecimento? Pedimos-lhe por favor, ainda. “Para onde vais?” Levanto meus olhos para encontrar os da velha senhora. “Perdão?” “Para onde vais?” “Não sei ao certo.” “Para onde queres ir?” O silêncio vestido pelos meus lábios rendeu-lhe um sorriso manso. “Eu também estou indo para lá.” 13
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“Desculpa-me, mas não entendi”, comecei. “Para onde vais?” “Não sei ao certo.” “Para onde queres ir?” Silêncio. Amélia, se algo nesta vida minha havia ousado intrigar-me, este algo não chegava aos pés daquela mulher. Seus olhos guardados por um óculos de armação redonda e afável continham uma profundidade quase anímica. As unhas bem-feitas e bem cuidadas contrastavam sua pele levemente enrugada, que por sua vez modelava seu corpo antigo, mas perfeitamente vivaz. A vestimenta caíalhe bem, realçando sua jovialidade, mas respeitando sua sabedoria e alteza. E seu sorriso, Amélia, seu sorriso! Desenhava seus lábios com tanta certeza, tanta empatia, que roubava dos meus olhos todo o foco. Não sei descrever-te o sentimento que ele passava, mas arrisco aconchego. É, talvez seja isso. Aconchego. Já te sentiste abraçada pelo sorriso de alguém, linda Amélia? Pois bem… “Qual é o teu nome?”, perguntei. “Ora, chamo-me Sofia.” Estendeu-me a mão. “E o teu?” “Pierre”, respondi o cumprimento com o aperto mais gentil que soube dar. “Um prazer, Pierre.” “Tu sabes que horas são?” “Hm, são… dez e quinze”, disse após analisar o mundo fora da janela por alguns segundos. *** “E então, vais descer?” Sofia esperava-me, mochila nas costas, maleta na mão, em pé, no corredor do ônibus. 14
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“Não sei. Que lugar é este?” Confirmava se todos os itens ainda viviam em meus bolsos. “Nosso destino.” “Teu destino, talvez. Eu não tenho destino. Na verdade, não tenho a mínima ideia de onde estamos, nem onde termina esta viagem.” Fez que sim com a cabeça, mencionando nossa saída. “Então, Pierre, se não tens destino, o que desfaz daqui o teu?”
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