LUIZ AYRÃO
DA AURORA AO PÔR DO SOL SONHOS, LUTAS, SINAIS, TRANSFORMAÇÕES, BUSCAS
, 2016
Da aurora ao pôr do sol
Copyright © 2016 by Luiz Ayrão Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.
produção editorial
SSegovia Editorial preparação
Lotus Traduções diagramação
revisão
Paulo Franco Andrea Bassoto capa
Rafael Nobre | Babilonia Cultura Editorial
Vanúcia Santos (AS Edições)
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Ayrão, Luiz Da aurora ao pôr do sol / Luiz Ayrão. -- Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. (Coleção Talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. 16-0662
cdd 869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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e eu fosse agradecer a todos e a tudo pelas benesses que tenho recebido pela vida afora, as páginas deste livro não seriam suficientes. Reconhecimento aos mais próximos e amados; às pessoas que cruzaram meu caminho, uma ou duas vezes apenas, e com uma palavra mudaram meu destino para melhor; aos simples acontecimentos ou estranhas coincidências que me mostraram o rumo certo a seguir. Portanto, expresso toda minha gratidão àquele que criou a todos e tudo; presenteou-me com todos e tudo; que, humildemente, tenho buscado e procurado entender cada vez mais: Deus.
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eu nome é Luiz Gonzaga Kédi Ayrão. Sou mais conhecido por Luiz Ayrão, cantor e compositor. Sempre ansiei escrever um livro, como todo mundo. Mas e o assunto? Tudo bem que poderia contar minhas histórias, ocorridas ao longo de tantos anos, da vida particular, da vida artística, mas, com toda modéstia, a internet já se encarrega disso. As entrevistas que dei estão todas lá. As letras das minhas músicas já contam muito de mim. No entanto, de atraente mesmo, que possa prender você a dezenas de páginas, não vejo nada de interessante. Há algum tempo, meu produtor me perguntou se aceitaria me apresentar em uma festa, uma comemoração de bodas de prata. Coisa nova, pelo menos para mim. Sempre são teatros, exposições, clubes, praças públicas. Mas aniversário de casamento? O homem era muito meu fã, sua mulher também, e pagaria o que fosse, mas me queria lá. Tudo correu bem, como de costume: som, iluminação, plateia, sucesso. Porém, das centenas e centenas de shows que fiz por este mundo afora, esse teve um significado especialíssimo. Que pessoas notáveis! Que casal elegante, cortês e de atitudes inigualáveis. Não costumo me demorar no local das apresentações mais do que o necessário, para fotos, cumprimentos e coisas do gênero. Nesse dia, ocorreu o contrário. Nem sei exatamente o porquê, mas não só eu, como também minha equipe, fomos nos prendendo em um longo bate-papo, tão
informal quanto agradável, ouvindo a conversa e as histórias do anfitrião. Para encurtar o texto, ali começamos uma amizade verdadeira, resultante de sentimento espontâneo, de simpatias instantâneas e recíprocas. Com o tempo fui concluindo que havia encontrado o personagem do meu livro. Que vida cheia de vida! Quantas experiências curtidas em um mundo repleto de ângulos diferentes. Um poliedro irregular, cheio de faces e facetas. Combinamos, então, que iria narrando tudo, pessoalmente, por e-mails, por gravações, da maneira que fosse possível. Fizemos mútuas promessas. Ele, para mim: se eu achasse ruim tudo que escrevi, rasgaríamos juntos, página por página. Se, por acaso, essa constatação acontecesse em seu apartamento de Nova Iorque, queimaríamos tudo na elegante lareira da sala de visitas. E ele me fez prometer: se eu achasse bom tudo que fiz, teria apenas de manter o anonimato do meu protagonista. Quanta generosidade! Fechados! Lançamos mãos à obra.
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PARA COMEÇO DE CONVERSA aquele rostinho bonito, que me olhava atento e apreensivo lá embaixo, nunca tinha visto por ali.
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ós morávamos bem na curva. Nossa casa ficava no fim da ladeira, na parte alta do bairro. Volta e meia, ouvia-se dizer que éramos todos privilegiados por desfrutarmos do mais puro ar de toda a cidade do Rio de Janeiro. Isso devido à altura da região e, principalmente, pelos inúmeros quintais plantados de eucaliptos. Até a Marinha, em virtude da qualidade do ar, construíra ali seu hospital, afirmavam os orgulhosos moradores daquele modesto subúrbio da Zona Norte. As casas eram todas parecidas e as pessoas, de certa forma, também. Cumprimentavam-se sempre gentis, conversadoras e respeitosas. Todo mundo era bom. Da nossa varanda, viase com bastante nitidez o encontro dos morros com as nuvens brancas. Durante tempos acalentei o sonho de brincar com um pedaço delas. Só podiam ser de algodão ou de borracha bem macia. Como devia ser gostoso manusear uma fatia de nuvem! Tudo era sonho. Nossa casa era assim: beirando a calçada, um pequeno portão de ferro, que unia dois muros de meia altura com grades também de ferro. Vinha a varanda frontal e, no meio dela, surgia outra bem menor, coberta e amparada por quatro colunas de lascas de pedras superpostas. Nessa varandinha, a porta da casa. Entrando, um corredor comprido. Certo dia, uma amiga de minha mãe sentiu-se mal, desmaiou e ficou estendida ali, no chão. Como ela também era comprida! Tudo era grande! O corredor separava dois quartos: o meu e outro usado como sala de visitas. No fim, a 9
sala de jantar e, contíguo a ela, o quarto de meus pais. Da sala, à esquerda, saía-se para a área de serviço. À direita, por outro corredorzinho menor, chegava-se ao banheiro e, por fim, à cozinha. Em frente a ela, separado pela área de serviço, havia outro cômodo. Era bem amplo e nós o chamávamos de sala dos fundos. Dava vistas para a rua e para o imenso quintal. Ali fazíamos nossas refeições, meu pai lia, minha mãe bordava e, em dias de chuva, eu brincava... e até estudava. E os eucaliptos? Imensos. Eram tão altos que eu julgava poder avistar a cidade inteira se conseguisse chegar ao topo de qualquer deles. Rodeavam quase todo o nosso quintal, e nas noites de tempestade, aqueles gigantes metiam medo, balançando seus galhos enormes. No outro dia, porém, lá estavam, firmes, espalhando cheiro bom, gravetos e centenas de piõezinhos, que eu fazia girar no chão da varanda. Tudo era brinquedo! Ladeando a cerca que separava o nosso terreno do terreno da dona Ester enfileiravam-se as bananeiras. Havia pés de manga, cajá, fruta-de-conde, goiaba, carambola, jambo, jabuticaba, pitanga, amora... Uma árvore, porém, era a minha preferida: o abieiro. Ficava bem no meio do terreno, escondida entre as outras árvores. Era o centro do mundo. Do meu mundo, onde tudo era possível. Eu nasci ali e dali só saía para ir às aulas, para alguns passeios dominicais à Tijuca, onde morava a família de minha mãe, ou a Bangu, para visitar a família de meu pai. Caminhávamos até a estação do Méier e pegávamos o trem elétrico. Toda vez minha mãe comentava a mesma coisa: tinha vindo de sua terra natal em um trem de ferro e este, elétrico, era muito rápido, corria muito, “demais da conta”. Era o seu jeito mineiro. O jambeiro ficava bem vermelhinho e florido nos meses de março e julho. Parecia uma árvore de Natal, de tão lindo. Na primavera, carregado de frutas, nem se fala. Até alcançar os galhos nos quais pontificavam os jambos era uma boa escalada. Eu me abraçava ao tronco e impulsionava com os pés. Fazia da camisa uma sacola e, pouco depois, à sombra, deliciava-me com o sabor adocicado daquela frutinha macia. Era o único filho de um casal que não podia ter mais crianças. Quando nasci, minha mãe e eu passamos por maus bocados. Se tentassem outra vez, ela e o bebê talvez não sobrevivessem. Com a mãe dela fora assim e eles tinham medo. Estava eu, então, com oito anos. Era muito magro e crescido para a idade. Um menino só, mas que não se sentia assim. 10
Estava próximo o tão esperado dia 12 de agosto. O estádio do Vasco iria superlotar. Era o “velhinho” de volta para lançar sua candidatura à presidência da República. Iria “governar com o povo no Catete”. O “pai dos pobres”: Getúlio Dornelles Vargas. Que veneração! Meu pai relembrava esses slogans com bastante entusiasmo e até pendurou na parede da sala o retrato daquele bom velho, sorrindo simpaticamente. Nessa altura, passei a torcer para que ele viesse logo de sua fazenda, no Sul, reencontrar-se com seus fervorosos adeptos naquele grande comício. Finalmente! Lá estávamos nós, metidos no meio da multidão, que gritava sem parar o nome do homem do retrato na parede. Seu Valdemar e mais outro senhor entraram na pista de atletismo que circundava o campo de futebol, e estenderam uma faixa preta com letras douradas. Lia-se um nome, para mim, muito do esquisito: Salgado Filho. Isso lá era nome? De repente, seu Valdemar me largou uma das extremidades da faixa na mão e me mandou marchar. Isso eu tinha de saber. Havia assistido ao meu pai no quartel. Aquele sujeito alto e compenetrado carregava o fuzil no ombro e marchava à frente dos outros soldados. Que orgulho eu sentia! Tinha de fazer o mesmo. Na outra extremidade da faixa, ia um camaradinha, já adulto, que eu não conhecia. Foi a glória. As arquibancadas, a pista, enfim, toda a multidão, ao ver a cena, desabou em aplausos e ovações. É que o dono do nome dourado, falecido havia pouco, brilhara também em vida. Fora nomeado ministro da Aeronáutica, embora fosse um civil, para os últimos anos de governo ditatorial daquele gaúcho, seu amigo e conterrâneo, recebido agora com tanta idolatria. Que rebuliço! Que alvoroço! Que passeio! O único senão foi meu joelho dolorido. Também, marchando daquele jeito, com aquelas pernas finas e compridas, o que eu poderia esperar? As pessoas que não tiveram acesso à pista ou às arquibancadas pareciam querer passar por entre as grades dos portões de ferro. Ali se comprimiam e esticavam os braços, como a pretender tocar a figura que acabara de chegar à pista no Rolls-Royce preto de capota arriada. Correndo atrás do carro, ia outra pequena multidão de fotógrafos e repórteres. Ao mesmo tempo em que corriam, escreviam em um caderninho, e eu me perguntava como eram capazes de tamanha proeza. Iam também policiais e uns homens grandalhões, de terno escuro e gravata, com umas caras não muito agradáveis. Pareciam com os desenhos dos bandidos que 11
eu via no Gibi, minha revista em quadrinhos favorita. O carrão passou por nós bem devagar e pude ver o velho de perto. Era claro, baixinho, gordinho e com uma expressão afável, ao contrário dos pesos-pesados de terno. Havia outras pessoas no carro, mas parecia que só eu as notara. Aquele homenzinho, que sorria desde sua entrada no estádio, passava grandioso, imponente, acenando com gestos calmos e repetidos, enquanto aquele mundo de gente gritava seu nome sem parar: “Ge-tú-lio! Ge-tú-lio!”. Era uma verdadeira loucura. De repente, ao perceber um menino segurando aquela apelativa faixa, virou-se para o lado, encarou-me, aumentou o sorriso e fez como que um gesto de reverência. Aí eu não tive dúvidas: “Getúlio!!! Getúlio!!! Getúlio!!!”. Foi por essa época que comecei a conhecer de fato um grande amigo. Ia aos poucos tomando consciência daquela figura que era o meu pai. Reformara-se moço ainda e, por isso, estávamos convivendo bem mais. Aquele dia estava sendo um marco importante nessa amizade. Quando Vargas conseguiu chegar à tribuna de honra para iniciar sua fala, o barulho era ensurdecedor. Depois de algum tempo, pôde começar, clamando em voz alta e estridente: “Trabalhadores do Brasil!...”. Foi o bastante para recomeçar a gritaria, obrigando-o a aguardar por mais alguns instantes. Estávamos bem próximos do palanque e eu, montado no pescoço do meu pai, engrossava, ou melhor, afinava o inflamado coral do “Já ganhou!”. Não sei quanto tempo ficamos ali, a gritar e a aplaudir. Só sei que, ao final, seu Valdemar, membro do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, arranjou um jeito de, no empurra-empurra, chegarmos mais perto do recém-lançado candidato. O dono da festa já ia se retirando. À medida que caminhava, saudava as pessoas. Quando podia, apertava algumas das centenas de mãos, quase suplicantes, que lhe eram estendidas. Ao passar por nós, ficamos imóveis, hipnotizados. Aí, afagou minha cabeça e estendeu a mão a seu Valdemar e a meu pai. “Caramba! Como somos importantes!”, concluí. O dia seguinte era um domingo. Parece que o sol sempre teve certa simpatia pelos domingos e sua moradia era lá no meu bairro. Meu pai ligava o rádio e cantava junto. Minha mãe parecia mais contente. As janelas da frente da casa eram abertas, mas a felicidade não ia embora, como acontecia em uma valsa daquelas que apresentavam no Para você recordar. Eu aguardava irrequieto todas as coisas boas daquele dia especial, e o doceiro era uma delas. E lá vinha ele gritando qualquer coisa que ninguém entendia, mas sabia 12
bem o que era. Eu corria logo para o portão. Ele parava, armava o cavalete e arriava o mágico cesto de vime que trazia na cabeça. Era o paraíso. “Antes do almoço, não!”, dizia minha mãe, sem o menor efeito. “Guarde o doce de leite para os seus primos, que vão chegar daqui a pouco!”, aí, com efeito. Eu tinha de ter alguma surpresa para Aninha, minha prima. Era pouco mais velha que eu, muito esperta e cheia de iniciativa. Tanto que, em uma das idas lá em casa, perguntou-me assim, sem mais nem menos: “Você quer ser meu namorado?”, o que aceitei de imediato. Trocar retratinhos com dedicatória e usá-los na carteira de estudante, brincar juntos e guardar segredos, sonhar com a sua próxima visita, suportar a tentação de não comer as balas de caramelo, só para guardar para ela, foi um verdadeiro tratado sobre amor em versão dente de leite.
a — Olha aí a sua nota, menino! — Minha mãe estava furiosa comigo. — Cinquenta em Aritmética! Deixa seu pai chegar! Quando não estuda com você, é isso! Também... chega da escola, mete-se nesse quintal, desaparece, volta imundo e não come nada. Como é que quer aprender? Lá ia ela resmungando e andando para lá e para cá, sempre envolvida com seus afazeres. E agora? Não tinha explicação. Isto é, tinha sim! Minha mãe estava certíssima. Mal chegava das aulas, corria para o meu mundo. As árvores, os passarinhos, os formigueiros, as trilhas estavam a minha espera. Que Aritmética, nada! Mas, logo mais, como ia ser? E meu pai chegou. A casa toda tremia com seus passos. Apesar do seu tamanho e de seu jeito sério, era uma pessoa afável conosco. Gostava de cantar e lia muito. Lecionava Gramática Portuguesa e Aritmética, e vinha dando aulas nos cursos internos da Polícia Militar. O motivo de ter se reformado tão cedo nunca ficou bem esclarecido. Teria “comprado” o laudo que lhe indicava um sopro no coração. Hoje, tenho certeza de que foi apenas uma evasiva para não deixar ninguém da família preocupado. Apesar de ter sido atleta e de ainda conservar o porte, algo de fato devia existir. Nada tão grave, supúnhamos. Mesmo assim, não seria aconselhável participar de puxados exercícios físicos. Às vezes, eu ouvia alguém da família dizendo que, quanto ao seu gênio explosivo, estava mudando. Já não seria mais um “cabeça quente”, 13
andava calmo, controlado. Em casa, conosco, era sempre muito bom, amigo e atencioso. Toda vez que ia ao centro da cidade, trazia-nos alguma lembrança. Hoje, por exemplo, foi uma caixa de carrinhos de galalite e um pacote de balas de hortelã. Recebi meio ressabiado meus presentes e comecei a sofrer a expectativa. Veio o jantar. Passou o jantar. E até aí, tudo tranquilo. Nada de sobrancelhas cerradas, nem de conversa séria. Veio a hora de dormir. Nada, afinal! O perigo havia passado. Minha mãe se esquecera de contar. A punição, quando acontecia, era escrever frases disciplinares ou copiar lições do livro. As mesmas, e várias vezes. Vinte, trinta, conforme a gravidade da falta. Dessa vez, seriam duzentas, no mínimo. Mas, se eu pudesse fazer como tinha feito no outro dia, tudo seria fácil. Meu castigo era copiar cinquenta vezes a frase: “Não devo desobedecer às ordens de minha mãe!”. Lembrei-me de um recurso que aprendera: usar aspas embaixo da palavra já escrita na linha superior. Não seria necessário repeti-la. Bastavam umas aspinhas e pronto! Não se perdia tempo. Resolvi não perder e só escrevi mesmo a primeira linha. Depois, até o número 50, coloquei as tais aspas, e em cinco minutos me livrei do compromisso. Meu amigo não teve outra saída, senão aceitar o meu recurso. Mas, na primeira oportunidade em que aprontei das minhas, ordenou-me outra frase sem apelação: “Nem sempre nos é permitido usar aspas!”, cem vezes! Podia ser tudo, qualquer punição, menos não brincar no meu quintal. Isso, nunca! Lá estava o grande parque de diversões, que a natureza e a imaginação haviam colocado ao meu dispor. Eram poucas as crianças da minha idade nas casas vizinhas. Dona Ester tinha uma filha já mocinha, que me olhava de nariz em pé e com os mesmos olhos da diretora da minha escola. Do lado esquerdo, morava uma família grande, cheia de filhos, mas todos já criados. Na casa defronte, havia um menino da minha idade, mas pouco o via. Mais abaixo, outro menino. Não era hábito, porém, os pais permitirem que seus filhos frequentassem as casas dos vizinhos. Só mesmo em um aniversário, e olhe lá! “Criança é debaixo dos olhos!”, costumavam dizer. Cada qual que brincasse com seus irmãos ou sozinho, pois o que não faltava era espaço. De fato, todas as casas possuíam terrenos enormes e, quando muito, sinuosas cercas de feixes de bambu separavam uns dos outros. “Para criança e ladrão não há cerca nem paredão!”. Guardei bem esse verdadeiro habeas corpus concedido por minha avó paterna, ao relembrar sua infância nas chácaras de Botafogo. 14
Segundo suas palavras, ela teria sido uma criança “pau com formiga”. Meu território e minha formigante imaginação não tinham limites. Uma criança, quando brinca só, engendra seus sonhos sem interrupções. Em um fiar contínuo, o raciocínio estimula ainda mais a criatividade e a fantasia. Ela fala sozinha, imita vozes, dá socos no ar, viaja. Nada existe que não possa ser ou ter. Se não dispõe de um brinquedo bonito, uma vara seca de bambu vira uma flauta, uma espada, um trem. Se não há ninguém ao seu redor, inventa as companhias. Eu nunca estaria só, pois era só um menino. Alma pura e mente límpida, em meio a tantas energias. Um pequeno elo latente, iniciando sua caminhada por entre imensos verdes. Nos últimos dias, andava muito ocupado. Bem no centro do nosso terreno, escondida por um declive e pelas árvores, estava construindo uma cidade: a minha cidade. Claro que fiz, primeiro, o quartel da polícia; depois, o do Exército e o do corpo de bombeiros. Fiz o campo de aviação, o palácio do governo, uma escola, um hospital e uma alegre estação de rádio. As construções eram sólidas. Um tijolo comum virava um pequeno prédio. Os duplos viravam edifícios. Para levantá-los era preciso muito trabalho, e isso movimentava operários, caminhões e tratores. Ficava horas raspando os tijolos com uma faquinha. Depois de bem limpinhos, livres do limo e das imperfeições, pintava-os com cal: sobras que sempre existiam nos terrenos. De novo, com a faquinha, cruzava riscos verticais e horizontais, usando como régua algo que já me proporcionara minutos de extrema satisfação: um palito de picolé. Com esse artifício, criava as janelas dos arranha-céus. Eu gesticulava, dava ordens, falava sozinho, espionado, vez por outra, pelos gatos da dona Inez. Eram nove, e ela fazia a mesma coisa com eles: dava ordens, gesticulava e conversava com os bichanos, filhos da sua solidão. Já de idade, pequena e frágil, morava no porão de dona Ester. Quase todas as residências tinham um. Altos e confortáveis, davam para os quintais, enquanto que a parte de cima se nivelava à rua. Compunham as chamadas construções geminadas ou, como se dizia, “de parede-meia”. A nossa era assim, e qualquer menino curioso que colasse o ouvido à parede poderia escutar muito bem o que dizia uma mãe nervosa como dona Ester, ao brigar com uma filha precoce e fogosa, como Leninha, por causa de namoradinhos.
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