DELMIRO GOUVEIA

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documentos iconográficos – acervo da fundação joaquim nabuco

A inveja é filha de si mesma

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GOUV Claudio Said

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MIRO

UVEIA Romance­‑reportagem inspirado na vida (e morte) do nordestino que se tornou um dos pioneiros da industrialização do Brasil

São Paulo, 2017

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Delmiro Gouveia: romance­‑reportagem inspirado na vida (e morte) do nordestino que se tornou um dos pioneiros da industrialização do Brasil Copyright © 2017 by Cláudio Fortes Said Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

editorial

Vitor Donofrio

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

aquisições

Cleber Vasconcelos

diagramação

revisão

Vitor Donofrio João Paulo Putini

Daniela Georgeto

preparação

João Paulo Putini

capa

Equipe Novo Século

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Said, Cláudio Delmiro Gouveia : romance­‑reportagem inspirado na vida (e morte) do nordestino que se tornou um dos pioneiros da industrialização do Brasil Cláudio Said Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. 1. Literatura brasileira 2. Gouveia, Delmiro, 1863­‑1917. 17­‑1356

cdd­‑869

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira 869

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Para Carlos Said, meu rio Amazonas; farol de Alexandria. E para Juvenal Oliveira, meu segundo rio.

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I Vindo as águas do rio pelas brechas, projetam­‑se até a cachoeira, alcançam a escarpa derradeira, e caem no abismo como flechas. Energia lançada sobre as rochas, que Delmiro Gouveia em sua ação, captou­‑a, fez a transformação, numa usina de eletricidade, uma semente de prosperidade na pobreza de pedra do sertão. Captando a força da vertente, o impulso da água em energia fez a noite na Pedra virar dia, com a luz da lâmpada incandescente. Importando do Velho Continente maquinário de nova geração, fez indústria de linhas de algodão, competindo em pé de igualdade com o inglês que tinha a exclusividade pra fazer o comércio e a produção. Com casas de telhas e alvenaria, ergueu na Pedra uma vila fabril, colada à linha do ferrocarril, com duzentos e cinquenta moradias.

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Fez posto de correio, padaria, cinema e pista de patinação; escola para capacitação, farmácia e também posto de saúde – novos costumes, novas atitudes, tendo o trabalho como inspiração. O algodão foi plantado nas aradas, de Alagoas ao Rio Grande do Norte; uma variedade muito forte, resistente à seca prolongada. Novas raças de gado importadas – Nelore e Guzerá, alto padrão – para melhor plantel e criação, aumentando a produtividade, com o boi de outra nacionalidade cruzando com o nativo da região. Automóveis chegaram pras viagens – um da Itália e outro da Alemanha; um da França e dois da Grã­‑Bretanha – no agreste sem vias de passagem. Delmiro fez estradas de rodagem, abertas a picareta e facão, quinhentos quilômetros de viação, aproximando as principais cidades, atalhos para a modernidade, na ausência de caminhos do sertão.

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II A inveja fez a sua própria estrada, com as mãos de coronéis enciumados, na disputa de poder contrariados, que armaram pra Delmiro uma emboscada. No alpendre do chalé à luz da lâmpada, ele não viu das armas o clarão dos três disparos – um no coração, outro no braço e outro na parede. Delmiro desceu para a eternidade e a inveja apresentou seu aguilhão. Quem deu a ordem pra matar Delmiro, com os dedos que acionaram os gatilhos, por detrás de uma elevação dos trilhos, encerrando seu ciclo pioneiro? A resposta escondeu­‑se num bueiro que a justiça fechou com dura mão. A polícia forjou uma acusação, abusando da sua autoridade, torturando com desumanidade inocentes, até a confissão. Os coronéis mandantes, entrementes, nos autos de um processo em separado, livraram­‑se de serem acusados inocentando os executantes. Um telegrama foi o comprovante

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de que na noite daquela ocisão os acusados da execução estavam em outra localidade, por isso a impossibilidade de estarem na Pedra na ocasião. Assim, dos mandatários a inocência livrou do julgamento os mandantes, mas não livrou os próprios inocentes, num ato de flagrante incoerência. A Justiça, com rara ambivalência, puniu os dedos e isentou as mãos, guardou em seu armário a decisão revista sete décadas mais tarde, quando foi restaurada a verdade e revertida a condenação.

III A inveja é filha de si mesma e os tiros ouvidos na noite sem lua ainda sibilam no largo das ruas, onde o progresso virou um fantasma. A verdade arrastou­‑se como lesma, espalhando seu muco pelo chão. Só Delmiro trazia em sua mão a certeza das possibilidades. E ao descer a ladeira da igualdade carregava o futuro em seu caixão.

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Sem Delmiro a força das turbinas perdeu seu braço impulsionador; o couro foi perdendo seu valor e a vila voltando à velha rotina. A fábrica, o curtume e a usina viraram rastos de assombração. Só Delmiro trazia em sua mão a certeza das possibilidades. E ao descer a ladeira da igualdade carregava o futuro em seu caixão. A maquinaria da fábrica morta, jogada do alto no fundo do rio, repousa em silêncio em seu leito sombrio, calando a esperança na água encoberta. As veias da terra ainda abertas, lamentam a luz que apagou no sertão. Só Delmiro trazia em sua mão a certeza das possibilidades. E ao descer a ladeira da igualdade carregava o futuro em seu caixão.

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G Maceiรณ,

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Um aviso: mexo com números, não com palavras. Uso frases em se‑ quência, por adição. Uma operação aritmética, como faço com os cifrões. Fui pagador na Companhia Agro Fabril Mercantil, nome comer‑ cial da fábrica de linhas do coronel Delmiro Gouveia. Em 1914 meu pai pediu ao coronel Delmiro para me colocar na fábrica. Fui na casa dele num sábado e ele perguntou se eu queria trabalhar. – Quero. – Então venha na segunda­‑feira. Se não vier nessa data, não precisa mais. Quando cheguei no escritório, ele disse: – Aqui o empregado tem que fazer o que eu mandar, seja qual for o serviço. Serve? Comecei no mesmo dia, com 17 anos incompletos. Quando ele morreu, eu me desliguei da firma. Aquilo não fazia sentido sem ele. Aí fui embora pra Maceió, onde estou até hoje. Em 1933 fui con‑ tratado pra fazer um inventário dos bens do coronel Otacílio Mota. Só de boi, oito mil cabeças. Sete fazendas de gado e uma porção de sítios e glebas e roças. E um pacote de folhas metidas num envelope, que ele me entregou na estação da Pedra na hora de entrar no trem. Pediu que eu só abrisse depois da morte dele, e, por conta dessa espera, recolhi o pacote ao fundo de um armário no meu escritório. Só quando li a reportagem da revista é que me decidi a resgatá­‑lo. O coronel Otacílio não viveu para ver reformada a decisão da Justiça. Por causa dessa tardança, precisei completar o que ele escreveu com algumas inserções a meu critério, destacadas do bloco do texto. No mais fui fiel ao que ele escreveu.

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reprodução

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1. 10 de outubro – Seu Firmino nem deixou esfriar o corpo, mandou vir correndo avisar o senhor – disse o negrinho agoniado, arreme‑ do de saci. Vinha branco da corrida, como se ele a correr, não o cavalo. Demorei a reagir, modelando a cara para impressionar. Pus as mãos sobre os olhos e fui descendo em etapas, esfregan‑ do a pele da maçã do rosto até alcançar o bigode com a ponta dos dedos mais longos: seu vizinho, pai de todos e fura­‑bolo. Um gesto teatral, mambembe de todo. Inspirei prolongado e expirei audível, arrastando as duas mãos para o gogó, onde a notícia só desceu ajudada. Não pelo inesperado, mas pelo inapelável – eu já não podia intervir. Era desengasgar e engolir, massageando o gorgomilo, ainda que fosse pra embolar no bu‑ cho. Lá dentro digere de qualquer jeito. Busquei conforto numa singularidade: o rosto branco do moleque preto. Saci quando branqueia o rosto é pra anunciar coisa ruim. – Tá assustado por quê? – Fiz um corte pelo mato, pra encurtar a carreira. Isso explicava outra coisa, não a brancura da face. Estava vestido à paisana, vão daí seus arranhões e os rasgos na calça puída do uso, até o algodão virar farelo. No mato há espinhos e galhos, por isso a roupa que o vaqueiro enverga, o couro cru e curtido, da cor de ferrugem, de carneiro, de bode ou de veado catingueiro. Perneiras cobrindo do pé à virilha e luvas para as costas das mãos o protegem no mato fechado, quando envere‑ da atrás de uma rês.

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O cavalo também tinha arranhões que a pele grossa igno‑ rava. Os estribos e freios ferrugentos incomodavam mais que as esfolas. Riiinch!, relinchou, contraindo os maxilares e as nari‑ nas, por ter corrido muito e bebido pouco. – Calisbento, dê água ao cavalo. Lá se foi meu vaqueiro cuidar do que nem era meu. Fiquei vendo da varanda, querendo driblar a noite. Cada cavalo é úni‑ co, a começar no pelo. Mas àquela hora, nem de perto se veria o matiz. O escuro é a gaiola das cores. – Qual o nome dele? – Redemoinho, coronel. – Pudera! – Redemoinho é cavalo de saci – disse Calisbento, voltando de dar água ao bicho. Eu havia pensado a mesma coisa e ficara na interjeição. O outro nem protestou, o que me fez duvidar de sua na‑ tureza. Onde quer que eu tenha posto o solado destas botinas, nunca vi Pererê sem palpite. Ao contrário, ressalta nele o atre‑ vimento, a malícia e a agudeza do tino. Todo saci é gerado dentro de um taquaraçu. De cada gomo vêm sete negrinhos, de pitinho aceso e barrete na cabeça, já com o instinto de tudo, já sendo adivinho, sabendo o que for. Vivem 77 anos e quando morrem viram cogumelos. Por conta dessa dúvida, fui esquadrinhando o sujeito, no‑ ves fora zero. Que saci é esse, que não tem capuz? Veio monta‑ do a cavalo, usando espora e chapéu. Fui medindo a criatura, de formato incerto, a sombra mudando ao sabor do vento na chama da lamparina ou pelo desaprumo das pernas cambotas. Duas pernas!

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– Que saci é esse que não é perneta? Vaqueiro dedicado que herdei do meu pai, Calisbento foi sempre assim, de falar sem rodeios. Deixo ser, não me incomo‑ da. Muitas vezes, ele fala por mim. *** Tais coisas eu aprendi sem esforço de raciocínio, dispensan‑ do a tutela da lógica. Não é feitiço, é vivência. A vida vem pri‑ meiro, a explicação vem depois. Estudei Direito no Recife, mas quando adentrei a Academia, no casarão da rua do Hospício, já era vivente sabedor. Não é por ter me tornado bacharel que vou desmerecer o que aprendi nos currais. Na fazenda, saber lidar com saci é mais útil que os bancos da faculdade, embora o anel de formatura me ponha degraus acima, reforçando a minha autoridade, atributo indispensável à função de coman‑ do, essa que sustenta a hierarquia, com bacharelato ou sem ele. Pra ficar rico não precisei de escola. Herdei terra e gado, foi só não fazer besteira. Herança demanda prudência, que é misto de austeridade e sensatez. Justo o que faltou ao meu vizinho de porteira, Alberico de Almeida Ferro. Sua herança sumiu na mesa de jogo ou nas rinhas de galo. Pra não falar de rabo de saia, que é quem mais consome os legumes de quem não se acautela. De vez em quando, ele vinha aqui buscar di‑ nheiro. Eu emprestava a juros, sabendo que ele voltaria pra bus‑ car mais e pagar a dívida antiga com o gado que ainda tinha. Gado pra cá, dinheiro pra lá, eu acabava levando vantagem, comprando gado barato. Calisbento achava isso arriscado: – O Major Alberico é o cão do Segundo Livro.

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Não conhecia o Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho, que os professores usavam nas fazendas para ensinar as crianças, nem precisava conhecer. Todo mundo falava aqui‑ lo, mesmo sem ter escutado as lições. Sai pra lá, cafute, que eu não mamei em carreira de peitos. Não corro riscos e cuido bem do que é meu. Fazendas são sete: Cupinzeiro, Brejinho, Chão das Rolas, Redonda, Icó­‑Preto e Preá – as duas menores – e essa onde moro, a maior, chamada Jataíba. Esse nome vem do tupi “yetaiwa” e quer dizer jatobá. Tem muito jatobá por aqui, mas o fruto é de gosto duvidoso. No interior da baga, a polpa amarelada tem cheiro forte, sabor adocicado e três vezes mais cálcio que o leite da vaca. Seria bom alimento, se não fosse uma massa seca, com jeito de mer‑ da esturricada, que esfarela fácil e entala na garganta. Vou nas fazendas regularmente, menos no Icó­‑Preto, por causa da viú‑ va. Sempre que vai homem lá, o falecido aparece. Menos para Calisbento, que vai lá toda semana. Na sala principal da Jataíba, os olhos do meu pai me vigiam da parede, o cenho franzido pesando mais que a moldura do retrato. Quando ele morreu eu ainda estudava na cidade grande, escasso de pelos na face e de roxo nos culhões. Mas o couro cale‑ ja com a necessidade e eu tive de voltar pra tomar conta dos bois. Dos modelos de criação, o que interessava era o boi, que rende dinheiro nas feiras e prestígio nos palácios. Cabrito era pra servir ao visitante ilustre uma carne tenra e macia, de pouca gordura e proteína boa, principalmente se criado aqui, no cercado atrás da fazenda, e levado ao sacrifício ainda precoce. Foi assim até Delmiro chegar, depois dele o bode ganhou mercado.

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A bem da verdade, quando voltei pra fazenda não tive que‑ rer. Se pudesse, teria ficado nas ruas da capital de Pernambuco, onde a minha mocidade conheceu seu arrebol, sem precisar recorrer às coxas calejadas das filhas de Jerusalém – era como nos referíamos às putas antigamente, porque, como as judias, não comungavam; estas, pra cumprir a doutrina; aquelas, im‑ pedidas pelo preconceito. Eram as putas que movimentavam as praças do Recife, tornando­‑as divertidas e povoando os jornais com anúncios das casas de tolerância, onde raparigas envelhecidas agencia‑ vam as meninas trazidas do interior: Totonia Abelha Mestra, Catita Italiana, Izabel da Rua Larga, Aninha do Tenente, Nenen Mulata e Júnia Peixe Boi.1 Um desses anúncios des‑ pertaria minha atenção: “Rosa Italiana ex­‑moradora da Rua Bella está agora na Rua das Agoas Verdes servindo aos fregue‑ ses pelo antigo e moderno”.2 Pelo antigo e moderno, o que isso vinha a ser? Desci a Rua das Agoas Verdes rumo à Vidal de Negreiros, olhando o velho canal de águas esverdeadas, devido ao lodo que se acumulava na estiagem. Mas a curiosidade per‑ deu fôlego na esquina da rua Tobias Barreto, antes chamada

1 As Casas de Conventículos. O Papagaio, Recife, 10 nov. 1910, p. 8 apud NASCIMENTO, Alcileide Cabral; LUZ, Noêmia Maria Queiroz Pereira. Liberdade, transgressão e trabalho: o cotidiano das mulheres na cidade do Recife (1870­‑1914). Caderno Espaço Feminino, Núcleo de Estudos de Gênero, Uberlândia, v. 25, n. 1, 2012. Dis‑ ponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/ view/8097/11081>. Acesso em: 16 jul. 2017. 2

O Besouro, Recife, 21 maio 1904. p. 3; O Coró, Recife, 25 abr. 1913. p. 3 apud NASCIMENTO, Alcileide Cabral; LUZ, Noêmia Maria Queiroz Pereira. Liberdade, transgressão e trabalho… op. cit.

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de Beco dos Sete Pecados Mortais, por causa das sete casinhas encarreiradas e ocupadas por mulheres de má fama. – Otacílio Mota. Fui reconhecido por um colega da faculdade que vinha em sentido contrário. – De onde vens? – perguntei­‑lhe, fingindo inocência. Não sou de exagerar na libidinagem. – De uma viagem ao moderno. – E mais não me disse, só disse: – Vai lá! Não fui. Meu ímpeto quedou vencido pelo flagrante e eu girei nos calcanhares, meia­‑volta, volver. Até hoje não sei o que havia de moderno na boceta da italiana. Suspeito que antigo e moderno eram, por alegoria, os dois lados do mesmo quadril. Reservei­‑me desses lupanares por ser abastado, não por retidão. Abastecido pelos caraminguás que meu pai remetia mensalmente, frequentei outros aposentos, variando no ta‑ manho e modelagem, na empolgação dos cabelos louros, as francesas e polacas que inundariam a capital de Pernambuco no final do século. E as dançarinas de cancã, arremessando as pernas como pontapés e sacudindo as saias pra mostrar o que não se mostrava senão no escuro das tocas. Algumas daqui mesmo, com nomes europeus e sotaques treinados. Uma pena deixar aquele palco de prazeres para embrenhar­‑me sem direi‑ to a sursis nos emaranhados da caatinga, onde a modernidade é um chocalho que se prende ao pescoço do boi. No começo foi difícil, até eu perceber que, mais importante que entender de roça e de rebanho, era usar com autoridade a patente de coronel. O resto, Calisbento e os outros fariam. Então, para

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inspirar respeito, deixei crescer pelos na face. Coronel bom é coronel barbado. Desde então, uma vez por semana, mando buscar Laudelino Barbeiro à distância de légua e meia da sede da fazenda. – A barba do coronel cresce ligeiro… Eu ficava orgulhoso, como se barba fosse macheza, e a pressa dela em alongar seus fios, um sinal de voracidade. – Só não cresce mais ligeiro que o gado da fazenda. Nem que a língua do barbeiro, eu pensava sem proferir, reparando na candonga: – Tá certo não, coronel, mulher casada meter gaia no ma‑ rido – dizia ele, amolando a navalha na velha cinta de couro, trazendo conversa de corno que ouvia na barbearia, como se houvesse sempre uma mulher de marido rasgando a compos‑ tura pela fervura da vulva. – Boi lerdo bebe água suja – acres‑ centava, sem dispor da certeza que deveria anteceder ao co‑ mentário. Certeza que se dá só com flagra ou confissão, apesar de, na prática, não vogar a presunção de inocência; qualquer traço de deslize, um olhar, um gesto, põe a mulher em severa complicação. – Às vezes, nem sempre – eu rebatia, vendo o marido em sossego, sem cogitar providência. Mas o barbeiro tinha a res‑ posta pronta: – Coronel, chifre é igual dentadura: demora, mas acostuma. De outra feita, ele me dá conta de um viado novo, denun‑ ciado pelo ui, ui, ui que transborda da meia­‑parede, antes de descobrir que no mato teria sido mais seguro, embora menos confortável.

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– Sodomia é crime – ameaçava Padre Angelim, e todo mundo sabia que aquele nome esquisito queria dizer dar o cu. Mania de padre, regular a maneira como as pessoas se en‑ roscam. Vá enfiar o focinho noutras paroxítonas! Cada um que bote ordenança no seu fiofó. *** Pagando em sobejo a Laudelino Barbeiro, fico sabendo quem anda trepando escondido, sem precisar maltratar o mucumbu no lombo da Monarquia, a égua Campolina que sustenta meu peso há seis anos, sem reclamação. Uma ho‑ menagem que faço ao Império, que acabou antes da hora pra dar lugar ao repasto dos impostores. A República não é coi‑ sa para o Brasil. Nas eleições, as conveniências políticas se sobrepõem aos interesses administrativos, e o preenchimento dos cargos vira moeda de troca. Igual no cabaré da Genuvina – mais sal, mais pimenta, conforme o pagante requer. Pagou mais, leva mais. Leva até o miolo do oiti, se a rapariga for dessas de múltiplo uso. Deixo de lado os intercursos – os da política e os carnais – e retorno à égua, que veio de Entre Rios de Minas, perto de São João Del Rey, onde a raça Campolina foi formada. Um animal de porte nobre e estrutura muscular que favorece o an‑ damento marchado, apropriado para distâncias longas, alter‑ nando os apoios duplos nos sentidos diagonal e lateral, inter‑ calados por um momento intermediário, quando três membros tocam o solo ao mesmo tempo. Essa combinação suaviza os impactos, dispensando o senta­‑levanta do trote. O pelo é baio, de um amarelo esmaecido na cabeça, pescoço e tronco, da cor

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da palha do milho, com crina, cauda e patas pretas. A garupa é ampla, levemente inclinada. Cauda e crina longas, de alisar macio, sem desassossego de afobação. – Ca­‑va­‑lo de co­‑ro­‑nel – exclamou Calisbento, uma sílaba de cada vez, quando a égua desceu do vagão na estação da Pedra. Meu sorriso alargou­‑se de um canto a outro e veio a ideia do nome, que Calisbento aprovou quando expliquei o motivo. Monarquia é bisneta do garanhão Monarca, cruzamento de uma égua marchadora com um puro­‑sangue Andaluz que per‑ tenceu ao criatório de Dom Pedro II. Cassiano Campolina, o criador da linhagem, recebeu de presente de um amigo de Juiz de Fora uma égua que estava prenhe do andaluz do Imperador e pariu, no mesmo ano, um potro tordilho que recebeu o nome de Monarca, pai da raça campolina. Raça boa, montaria con‑ fortável. Nunca me deu desgosto de qualquer feitio. Ao con‑ trário da outra, que custou mais caro e me valeu bem menos. Essa outra chegou quatro anos depois, da fazenda que per‑ tenceu ao barão de Alfenas, no sul de Minas Gerais. Manga­ ‑larga marchador, raça cuja origem remonta à Coudelaria Alter­ ‑Real Portuguesa, de 1750. Uma coincidência que só revelarei adiante me impediu de vê­‑la descer a rampa do vagão de cargas, mas Calisbento a recebeu na descida e alisava a crina rala com cara de contra­‑anúncio quando eu, já desvencilhado da coinci‑ dência, cheguei perto deles: “Ca­‑va­‑lo de co­‑ro­‑nel”. Eu espera‑ va ouvir isso, mas a frase que veio foi outra, bem diferente: – Patrão, essa cavalinha… Tive a mesma impressão que Calisbento, olhando pra égua de pelo alazão, entre o marrom e o vermelho. Uma belezura de poldra, mas de temperamento arredio e andamento irregular.

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Não à toa lhe dei este nome: República. Quem não for bom cavaleiro se engalhará nos arreios. E dependendo do que falta pra completar a corrida, é melhor apear e entregar as rédeas. Deodoro, com sua fisionomia toda militar, nada republica‑ na, assustou­‑se com a falta de dinheiro pra pagar os imigran‑ tes assalariados, cujos braços sustentavam a economia com o fim da escravidão. Os bancos passaram a liberar crédito sem olhar a quem e a emitir moeda com a autorização do governo. Derramando as patacas sem fiscalizar, Sr. Ministro? Dinheiro é que nem passarinho: se não trancar, ele voa. Rui Barbosa res‑ pondeu que estava encilhando o cavalo, preparando o país pra crescer. Como nas corridas, quando os jóqueis preparam seus animais, fazendo acertos ocultos na agitação dos quadrúpedes. Deu­‑se a mesma coisa no país: negociatas de última hora, no aproveitado das facilidades. Nunca vi tanta empresa­‑fantasma abrir e fechar as portas de uma hora pra outra e ainda conti‑ nuar negociando ações na bolsa. A especulação tomou con‑ ta de tudo e, após 14 meses, o ministro da Fazenda caiu. Rui Barbosa voltou para o Plenário, de onde não devia ter saído. E a República, essa cavalinha ordinária, foi rinchar no colo do Marechal Floriano. *** Calisbento não gostou do nome, por outro motivo: – Nome de bicho, patrão, não pode ser grande assim. Só aprendi com o uso, estirando a pronúncia duas sílabas além da tônica. Palavra de quatro sílabas, acento na antepenúl‑ tima, é um desperdício. O animal nem ouve as duas últimas. Nome de bicho deve ser curto como os pelos da minha barba,

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que o barbeiro apara com a tesoura, presente de um imigrante argentino que lhe ensinara o ofício antes de o marechal Deodoro entrar no Quartel do Exército e acabar com o último Gabinete da Monarquia, no mesmo Campo de Santana onde Pedro I tinha sido aclamado imperador, 67 anos antes. Poderiam ter esperado a morte de Pedro II, mas a ideia de ter uma mulher no trono dava arrepios até nos monarquistas. Ainda mais com a Princesa adornada pelo Conde D’Eu, o sujeito mais enjoado da corte. Lá se foi Deodoro, montando um cavalo de tropa; no estado em que ele estava – com gota e reumatismo –, lhe era mais adequado que montada de oficial. No dia seguinte à partida do imperador, uma quadrinha insolente entoou pelas ruas do Rio: “Partiu dom Pedro Segundo Para o reino de Lisboa. Acabou a monarquia E o Brasil ficou à toa.”3 A República é um puteiro: todo mundo se vende pra agra‑ dar quem der mais. *** Volto ao saci desbotado, esbaforido e talvez faminto. – Já jantou? – Cuscuz com leite – respondeu sem cerimônia. – Didita – chamei a negra, sem ligar que àquela hora já devia estar dormindo. 3 OLIVIERI, Antônio Carlos. Dom Pedro II, Imperador do Brasil. São Paulo: Callis Editora, 2003, p. 53.

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Era a negra de confiança da minha mãe e só tinha um rumo na vida: cuidar de mim. Levantou­‑se e veio, o vestido de chita cobrindo o chambre sem cor. Recebeu a ordem e desceu à cozinha, dois batentes mais baixa que o resto da casa. Lá encontrou Calisbento mexendo em panelas, procurando a pe‑ neira de agarrar Pererê, que tem duas taquaras largas, cruzadas no meio, pra reforço da malha. – Mexendo em quê, Calisbento? Ele não vira a negra aproximar­‑se, nem a peneira escon‑ dida entre os panos de prato, bordados um para cada dia da semana. Trabalho de agulha e linha ela aprendera com minha mãe, nas tardes vagas entre almoço e janta; mas lidar com saci era aprendizado de quintal. Jogando a peneira do jeito certo dentro de um redemoinho, o negrinho fica preso ali. Depois é botar numa garrafa, tampar com rolha maciça e riscar nela uma cruz. O que prende o saci é a cruz, não é a rolha. – Sai daqui, fidumaégua! Ela gritou assim, como fosse um nome só. Não era ofensa, era deboche – o deboche suspende o juízo moral. Não suspen‑ de a tapona na tampa da orelha de Calisbento, uma lapada só, a mão preta espalmada estralando feito palmatória. – Aguenta, fidumaégua – eu repeti, dando razão à negra. A cozinha era território dela. Calisbento saiu riscando a chibata no assoalho (gibão, pei‑ toral, perneira e luva só na labuta do campo, mas a chibata de couro era colada no corpo). Ele atravessou a casa, passou pelo alpendre e pulou da calçada sem olhar degrau. Foi ver Redemoinho, não quatro, mas cinco sílabas, nome comprido

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