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Diego Martins Ribeiro
O Clã dos Quatro Guerreiros Série Enoua
TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
São Paulo, 2014
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Copyright © 2014 by Diego Martins Ribeiro
Coordenação editorial
Letícia Teófilo
Diagramação Claudio Tito Braghini Junior Capa Renato Klisman
Revisão
Patricia Almeida Patricia Murari
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ribeiro, Diego Martins O Clã dos Quatro Guerreiros - série Enoua / Diego Martins Ribeiro. -Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. -- (Talentos da literatura brasileira)
1. Ficção brasileira I. Título. II. Série.
14-09274
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
2014
Impresso no Brasil Printed in Brazil Direitos cedidos para esta edição à Novo Século Editora CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 - 11o andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br
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Dedico a voc锚, caso tenha um sonho maior do que a si pr贸prio.
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Prólogo Na imensidão negra do espaço, cinco pequenas es-
feras viajavam em alta velocidade por dentre os corpos
celestes, deixando um sutil e efêmero rastro de luz por onde passavam. Cada uma delas possuía uma cor distinta: verde, laranja, cinza, marrom e lilás.
Durante anos, permaneceram lado a lado rumo ao
desconhecido, viajando por novas galáxias, perambulan-
do por planetas sem vida, cruzando órbitas de cometas,
e visitando nebulosas de cores hipnotizantes, as quais fariam com que qualquer um que tivesse a oportunidade
de observá-las de perto quisesse permanecer ali por anos
a fio. Mas aquelas esferas não podiam dar-se ao luxo de parar e ficar admirando as belezas do universo. Por mais
que em diversos momentos diminuíssem sua velocidade, continuavam seguindo em frente, resolutas em sua misteriosa tarefa.
No entanto, quando já haviam percorrido uma lon-
ga distância, a esfera verde se separou do grupo repenti7
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namente, partindo em uma direção diferente daquela que
as outras continuaram a seguir, como se estivesse sendo atraída por algo a muitos anos-luz dali.
Isso se repetiu outras vezes nas décadas seguintes.
Três das quatro esferas remanescentes, uma a uma, e em épocas distintas, seguiram um novo caminho e nunca
mais retornaram. Assim, muito tempo depois, a esfera lilás restou sozinha em sua jornada, ainda sem rumo certo,
pois não havia encontrado sequer sinal do que procurava. Nada parecia ter chamado a sua atenção, diferentemente do que acontecera às suas companheiras.
Todavia, entrando naquele novo sistema planetário,
ela pressentiu que isso poderia mudar. Partiu em direção à estrela imensuravelmente distante e grande que seu
radar captava, cada vez mais veloz. Fez uma parada em
um imenso planeta, onde enfrentou ventos fortíssimos e analisou alguns de seus satélites e anéis, até constatar
que naquele lugar tão extenso talvez não houvesse o que procurava. Viajou uma longa distância até chegar a outro
planeta, onde encontrou vulcões, crateras, abismos, rede-
moinhos de poeira e rios secos. Antes que pudesse passar mais tempo no planeta de dunas castanhas, e conhecer
melhor seus mistérios, algo a milhões de quilômetros dali chamou a atenção de seu radar.
Então, finalmente, ela fez como suas irmãs. Partiu
para o espaço novamente, célere, dessa vez com destino
cravado. Um ponto de luz minúsculo começou a crescer 8
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conforme ela se aproximava. A imagem da vitória. Vislumbrou um planeta predominantemente azul, diferente
de todos os outros que visitara até então, e permaneceu
flutuando imóvel por alguns instantes, como nunca ficara antes, analisando uma quantidade incontável de infor-
mações que emanavam daquele lugar. Tais informações indicavam que sua procura chegaria ao fim em breve. Assim como a história que você irá ler, caro leitor, está prestes a começar.
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Breve visão do futuro O sol havia se posto recentemente, e o ar arenoso
estava começando a esfriar lentamente e a se rebelar.
Às margens de um lago congelado, um rapaz de
olhos e cabelos muito escuros, cujo rosto branco estava
riscado por cortes profundos que sangravam, observava ofegante e atentamente algo que repousava dentro daquelas águas. De sua mão pendia um comprido tridente esbranquiçado, que parecia fumegar.
A alguns passos de distância, uma garota de cabelos
volumosos estava desfalecida, deitada no solo rochoso.
Próxima a ela, uma jovem guerreira de armadura escarlate, os longos cabelos esvoaçando com o vento, segurava uma estranha espada transparente.
– Rápido, preciso da pedra! – pediu ela com urgência
a um segundo rapaz que estava ali perto, usando uma armadura negra cujo elmo não permitia ver a sua expressão. 10
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Enquanto aquele com o rosto ensanguentado tocava
o lago com seu tridente, fazendo a superfície ficar ainda mais congelada, o guerreiro de armadura negra entregava um colar, com as mãos trêmulas, àquela que lhe fizera o pedido. O objeto exibia uma pedra vermelha feito sangue
como pingente. A guerreira voltou rapidamente para a
garota caída, disse algo em tom desesperado, e colocou a bela pedra em seu peito, debaixo de suas vestes sujas. Mas a jovem estava pálida, imóvel, sem respirar. Ao constatar isso, a outra começou a chorar descon-
troladamente, o que não combinava com a imponência austera de sua armadura.
Pouco depois, o rapaz de armadura escura se apro-
ximou, trazendo consigo aquele que estava bastante machucado e andava com certa dificuldade. A moça de ca-
belos longos, que chorava debaixo de seu elmo vermelho e dourado, pediu-lhe desculpas por não poder emprestar sua pedra.
– Tudo bem – respondeu o rapaz de olhos escuros,
sentando-se ao lado do corpo da garota, que nesse momento até parecia estar dormindo serenamente. Ele a fitou com atenção. E carinho.
Deitou-se ao seu lado e pegou sua mão com delica-
deza, fechando os olhos.
O rosto dele estava todo marcado. Semanas antes
não estava, nem um pouco.
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CAPÍTULO 1
O carro vermelho-sangue Gabriel estava com dor de cabeça, quase vesgo de
tanto olhar para a tela do computador. O som de digitação ao redor era incrivelmente irritante. Já fazia um século
que faltavam quinze minutos para terminar o expediente, e ele mal podia esperar para sair daquela sauna que os outros chamavam de escritório.
Estagiava em uma pequena empresa de sua pacata
e pouco desenvolvida cidade, especializada no desenvolvimento de programas de computador. Por ser um es-
tágio, seu horário de trabalho ia somente até às duas da tarde, quando voltava para casa. Normalmente, às cinco ele teria de pegar um ônibus para ir à faculdade, onde fa-
zia um curso que possuía mais cálculos do que os rins de sua pobre tia Adelaide. A palavra “normalmente” é em12
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pregada aqui, pois naquela sexta-feira ele não teria aula, e poderia aproveitar o tempo livre para fazer tudo o que quisesse, o que habitualmente significava não fazer nada de especial.
Quando o relógio finalmente indicou que era hora
de partir, Gabriel salvou seus projetos e desligou o computador. Mas quando estava prestes a sair, já virando a
maçaneta da porta, seu chefe avisou que teriam uma reunião naquele exato momento.
Uma agradável reunião surpresa, pensou Gabriel. Em
plena sexta feira, na hora de ir embora. Perfeito...
O Sr. Ed ficou quase meia hora passando sermão
nele e em seus colegas. O que não servia para nada, na
opinião de Gabriel, pois todos davam a impressão de es-
tar com suas mentes em outro lugar, fora daquelas paredes, sem prestar a mínima atenção ao que ele dizia. Eram
todos muito jovens, cheios de desejos e ambições, mas
ainda pouco acostumados aos percalços comuns a qualquer trabalho.
Enfim livre, Gabriel foi caminhando até sua casa. Ele
podia ir a pé a qualquer lugar da cidade, porém precisava
ir de carro ou ônibus às cidades vizinhas para fazer muitas coisas, pelo fato de ali não haver faculdades, bancos, hospitais... De qualquer forma, Gabriel gostava muito de
dirigir, e o fazia muito bem, então não tinha problemas em pegar a estrada de vez em quando. Na verdade, até gostava. Tinha uma prazerosa sensação de liberdade. 13
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Aproximando-se de casa, passou em frente a um
casarão luxuoso, com cercas elétricas nos muros, piscina
e três carros na garagem. Sentado confortavelmente em
uma cadeira na varanda estava Henrique, lendo um livro que parecia muito grosso. Gabriel o cumprimentou, e ele respondeu com um leve aceno da cabeça.
Henrique tinha dezessete anos, um ano a menos que
Gabriel, seu vizinho. Os dois já haviam sido muito amigos
no passado, mas por algum motivo isso mudara. Talvez os dois fossem simplesmente muito diferentes, o que se aplicava tanto à personalidade, quanto à aparência. Ga-
briel era magro, alto, muito branco, de olhos escuros, sobrancelhas grossas e cabelos negros um pouco compridos.
Já Henrique era forte, não muito alto, de olhos verdes e
cabelos loiros bem curtos. Às vezes Gabriel desejava que as garotas se interessassem por ele do mesmo modo como
se interessavam por Henrique, que, por sua vez, parecia estar escolhendo uma pretendente a dedo. Talvez pensasse que podia namorar praticamente qualquer garota que
quisesse. Por esse e outros motivos, Gabriel o considerava um pouco arrogante.
Logo, o rapaz chegou à sua casa. Não era tão gran-
de e luxuosa como a de seu vizinho, mas também não
era muito simples. Seu pai era dono de alguns pequenos
estabelecimentos na cidade, e, apesar de terem passado
por algumas fases difíceis, estavam desfrutando de muito conforto no momento.
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Quando Gabriel entrou na cozinha, encontrou sua
mãe, Luzia, terminando de lhe preparar um lanche.
– Oi, meu bem... – disse ela ao vê-lo. – Percebi que
você estava demorando, e imaginei que estava morrendo de fome. Fiz um sanduíche pra você...
Gabriel deu um beijo em sua testa, o que era fácil,
pois não fora dela que o rapaz herdara a altura.
Ele se sentia um pouco envergonhado por ser pa-
paricado desse modo, mas superava essa vergonha com
facilidade no fim das contas – sua mãe cozinhava muito bem, e todo esse carinho não podia ser desperdiçado.
Enquanto isso, seu pai e dois irmãos mais velhos es-
tavam trabalhando em algum dos comércios. O estôma-
go de Gabriel despencava toda vez que ele se lembrava disso. Seu pai, Roberto, nunca dissera com todas as letras que não estava orgulhoso dele ou descontente com o
rumo que escolhera para sua vida profissional. Mas o jovem simplesmente podia ver em seus olhos, desde crian-
ça, que o pai não o apoiava em suas decisões – pelo menos era essa a impressão que passava.
Gabriel sempre tivera talento para desenhar, fazia
isso por hobby, e por vezes pensara em trabalhar usando seu dom. Mas seu pai odiava essa ideia. Queria que o fi-
lho mais novo também seguisse seus passos, ou ao menos tivesse uma profissão, digamos, que as pessoas comuns
considerassem “normal”. Por causa de toda essa pressão, 15
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Gabriel decidira seguir a carreira de programador, o que
deixava seu pai menos irritado, mas não satisfeito o suficiente – ainda preferia que o filho trabalhasse nos negócios da família.
Somado à profissão que escolhera para tentar agra-
dar o pai e sua habilidade para desenhar, Gabriel também tinha outro interesse, sobre o qual normalmente não
conversava com ninguém. Ele sempre gostara de jogos, de todos os tipos. Mais do que isso, gostava de criar os
seus próprios, desde quando era um garotinho. Era ele quem inventava as brincadeiras para a criançada na rua.
Sempre fora muito criativo. Apreciava principalmente os jogos eletrônicos, mas não apenas para se divertir. Ele cos-
tumava analisar cada detalhe, cada personagem, e o que
poderia ser mudado aqui e ali, principalmente com rela-
ção à parte visual. Assim, foi desenvolvendo um desejo secreto de criar um jogo. Desejo esse que ficava escondido no recanto mais profundo da sua mente, pois, graças a seu
pai, ele tinha certeza de que aquilo era “uma grande perda de tempo”. Ainda assim, quando não estava trabalhando, estudando ou dando umas voltas por aí, ele ficava em seu
quarto, às vezes desenhando, às vezes entretido com os projetos para seu jogo. Mesmo que nunca se tornasse real,
Gabriel gostava de trabalhar nele de vez em quando, só para se distrair.
E era isso que estava fazendo naquela tarde de sex-
ta-feira. Trancado em seu quarto, Gabriel estava sentado 16
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na cama fazendo alguns rascunhos. Havia desenhos e
gráficos espalhados por toda parte. Ao seu lado, um livro
da faculdade estava aberto em uma página que mostra-
va complicados códigos de programação. O jovem ficava imaginando o colapso nervoso que seu pai teria se descobrisse que ele, no fundo, almejava criar um jogo.
Havia passado das cinco da tarde quando a mãe de
Gabriel bateu à porta de seu quarto. Ele a abriu, e dona Luzia ficou olhando para aqueles papéis espalhados pela cama, um pouco perplexa, enquanto dizia lentamente:
– Você tem visita... E... Não deixe seu pai ver essa
bagunça, por favor.
Gabriel ficou curioso, pois não estava esperando vi-
sitas. Só encontrava os amigos quando combinavam de sair aos finais de semana, e dificilmente recebia alguém
em casa. Não tinha amigos íntimos. Saiu do quarto de-
pressa e acompanhou sua mãe até a cozinha, onde encontrou Beatriz, irmã de Henrique.
– Olá, vizinho! – exclamou a jovem, sorrindo amiga-
velmente.
– Oi! – respondeu Gabriel, um pouco surpreso, mas
também sorrindo.
Beatriz sempre o tratara com simpatia, mas não
eram muito próximos, apesar de morarem perto há anos. Ela nunca sequer havia entrado em sua casa, que ele se 17
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lembrasse. A garota de dezesseis anos tinha olhos peque-
nos como os de seu irmão, mas azuis ao invés de verdes. Era magra e tinha longos cabelos castanhos, com algumas
mechas mais claras, talvez pela constante exposição ao
sol. Gabriel sabia o quanto ela gostava de praticar esportes ao ar livre.
Ela mexia as mãos enquanto falava, agitada. – Eu queria pedir um favor... Mas vou pagar depois, tá? Gabriel apenas assentiu com a cabeça, automatica-
mente. Olhava para ela cheio de curiosidade.
– Desculpa por eu chegar assim na sua casa, de repente,
e já ir pedindo favores – continuou a garota. – Mas é urgente.
– Tudo bem – disse Gabriel. Tentou não parecer im-
paciente, mas estava ansioso para saber o que ela queria. – Sem problemas, pode dizer.
– É o seguinte... Meu irmão está dando aulas de
francês na Joan Languages, aquela escola nova, sabe? Mas
ele acabou perdendo o ônibus hoje, por culpa do legal do nosso pai. Bem, isso não vem ao caso... O problema é que
não tem outro horário de ônibus que dê certo para ele. Será que você poderia levá-lo de carro para dar essas aulas? Eu sei que está meio em cima da hora. Se você não
puder, não tem problema... Mas ele está começando nesse
emprego agora, e seria muito chato se já faltasse. Eu não sei mais pra quem pedir... Eu pago por isso, lógico. Você
só precisa deixá-lo na escola, e depois pode ir embora. Ele 18
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volta de ônibus mais tarde. Sei que é estranho eu estar pedindo isso, mas estou meio desesperada.
Beatriz parou tão subitamente, e estivera falando
tão depressa, que Gabriel levou um tempo para assimilar tudo aquilo. Já fazia uma ideia da guerra particular que
Beatriz e Henrique travavam com os pais diariamente, mas nunca havia se envolvido dessa forma.
Ele ficou olhando para a garota, esboçando aos pou-
cos um sorriso enigmático no rosto, parecendo estar decidindo a melhor maneira de responder àquilo.
– Olha – falou ele, finalmente –, eu posso fazer isso,
mas com uma condição...
– Qual? – perguntou Beatriz com desconfiança. – Que você pare com essa história de querer me pa-
gar. Posso levá-lo sem problemas, mesmo porque hoje
não tenho aula na faculdade. E também posso esperar para trazê-lo de volta quando terminarem as aulas. Estava mesmo a fim de dar umas voltas em outra cidade hoje à noite... E esse é um ótimo pretexto!
Beatriz, radiante, aproximou-se de Gabriel e lhe deu
um abraço um tanto forte, fazendo-o duvidar se aquilo
era um agradecimento ou um golpe de mma. Ele ficou um pouco ruborizado por ter sido pego de surpresa.
– Eu vou avisar meu irmão! – falou Beatriz, se afas-
tando em direção à porta. – Às seis e meia está bom pra você? A primeira aula começa às sete. 19
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– Sim, claro – respondeu o rapaz, pouco antes de vê-
-la sair para o quintal, contente, seus cabelos castanhos esvoaçando.
– Ela é uma boa garota – disse Luzia, que estava
atrás dele, fazendo o rapaz se sobressaltar. Só então Ga-
briel reparou que a mãe estivera por perto. – Acho que ela gosta de você, hein...
– Você acha que todas as meninas da cidade estão a
fim de mim, mãe – retrucou ele, saindo da cozinha. – Bem que podia estar certa.
Enquanto tomava banho, Gabriel começou a refle-
tir sobre o que tinha se proposto a fazer. Seria um tanto desconfortável passar quase meia hora em um carro com
alguém que mal falava com ele. Henrique não era muito sociável, e isso era obviamente acentuado quando Gabriel estava por perto.
Esse sentimento de leve arrependimento se inten-
sificou quando estava comendo antes de sair. Seu pai e Guilherme, o mais velho dos três irmãos, chegaram do trabalho. Gabriel se lembrou de que teria de pedir o carro emprestado ao pai, o que não lhe agradava muito.
– Você fez muito bem, Gui – dizia Roberto ao filho,
quando estavam entrando na cozinha. Sua voz era rouca, baixa e um pouco fria, mas Gabriel percebia um tom que
expressava sutil contentamento. – Aquela mulher nunca paga o que deve!
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– É, eu sei – respondeu Guilherme, sentando-se à
mesa com Gabriel e começando a preparar um lanche. O rapaz tinha uma aliança de noivado no dedo. Seria muito
parecido com Gabriel, se não tivesse o cabelo curto e os olhos esverdeados do pai. Isso sem contar o olhar distraído e um pouco presunçoso que lançava a tudo e a todos ao seu redor, sem se fixar a nada.
Roberto também se sentou, e deu uma olhada rá-
pida para Gabriel. Pegou um copo de suco e começou a questionar, num mero resmungo. – E a escola? Não vai hoje?
– Faculdade, pai... – respondeu Gabriel, meio desani-
mado, como se já tivesse dito aquilo um milhão de vezes. – E hoje meu professor vai faltar, ele tem que...
– Isso que dá fazer faculdade pública – interrompeu
Roberto.
O filho caçula engoliu um pedaço de pão que tinha na
boca com certa dificuldade. Guilherme deu uma risadinha. – Vou precisar do carro – disse Gabriel, agora com a
voz tão fria quanto a do pai. – Preciso dar uma carona ao nosso vizinho, Henrique.
– Carona? – surpreendeu-se Roberto. – Eles não têm
três carros?
– Seria melhor se você desse carona para a mocinha...
– disse Guilherme, cutucando Gabriel com o cotovelo, 21
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quase o fazendo derrubar o copo que estava segurando. – Como se chama mesmo? Ah sim, Beatriz... Às vezes parece um moleque, mas está ficando...
– Ela só tem dezesseis anos. Você tem vinte e cinco, e
vai se casar – Gabriel cortou o irmão bruscamente. E antes que Guilherme ou o pai pudessem falar algo, pois suas expressões eram de desprezo pelo que acabavam de ou-
vir, ele continuou: – A família dele tem vários carros, sim, pai... Mas parece que hoje ninguém pode levar o rapaz pra dar aulas...
– O carro novo está com Gustavo – interrompeu Ro-
berto, fazendo pouco caso.
Gabriel não contava com isso. Havia se comprome-
tido a ajudar Beatriz, mas não poderia fazê-lo sem o carro do pai.
– Mas... As palavras lhe fugiram. Era péssimo não ter o pró-
prio carro, era péssimo ter de depender de alguém que era contra tudo o que fazia. Ninguém ali parecia dar a
mínima para sua questão, até uma vozinha fraca entrar na conversa.
– Mas tem o carro velho... O vermelho... – sugeriu
Luzia, que estava lavando louça.
– Rá! – zombou Guilherme, com a boca cheia. Roberto nada respondeu. 22
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– Bom, vai ter de ser esse mesmo, pai... – disse Ga-
briel, quase implorando. – Eu prometi a Beatriz que levaria o irmão dela...
Roberto, que acabara de comer, se levantou. Gui-
lherme tinha um sorriso enviesado no rosto. Quando o
pai foi até a pia para lavar a mão, Gabriel teve a impressão de que Luzia lhe murmurou algo.
O rapaz parou de comer e se levantou, sentindo-se
extremamente irritado. Roberto dificilmente deixava-o dirigir seu precioso e antigo carro vermelho, e a questão
parecia ter sido encerrada. Já estava imaginando como se-
ria desagradável dizer aos vizinhos que não poderia cumprir sua promessa.
Quando estava quase saindo da cozinha, seu pai lhe
disse, friamente:
– Não quero ver um risco naquele carro. Entendendo isso como o máximo de gentileza que
ele podia lhe prestar, Gabriel sentiu-se melhor, e voltou para pegar a chave do carro que estava sobre a geladeira, sorrindo para o irmão maliciosamente.
– Tudo isso por causa daquele moleque chato que
nem conversa com a gente – resmungou Guilherme.
Por mais que Gabriel repudiasse o modo como seu
irmão falava a respeito das pessoas, não conseguia deixar de concordar um pouco com essa última frase. 23
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Pouco antes do horário combinado, Gabriel tirou o
carro vermelho-sangue de seu pai da garagem. O veículo
era realmente muito antigo, mas conservado ao máximo. O rapaz estacionou-o em frente à casa de Beatriz e Henri-
que, e ficou esperando. Sua mãe apareceu para lhe dar os mesmos conselhos de sempre.
– Não se esqueça do cinto, não corra muito, não vá
beber, não ultrapasse se não tiver certeza... – Tá bom, mãe... Eu já sei, eu já sei...
Minutos depois, Beatriz saiu de casa trazendo outra
garota consigo. Gabriel já a havia encontrado várias vezes na casa dos vizinhos, quando ainda era amigo de Hen-
rique, mas haviam conversado pouquíssimas vezes. Ela devia ter a mesma idade de Beatriz, cabelos negros encaracolados e volumosos, pele morena clara e olhos castanhos. Parecia estar um tanto sem jeito.
– Gabriel – disse Beatriz, se apoiando na janela do
lado do passageiro –, sei que já pedi muito a você... Mas será que haveria problema se eu e minha amiga, Débora,
fôssemos com vocês? O clima aqui em casa... Bom, você deve imaginar...
– Tudo bem, Beatriz – Gabriel a interrompeu, per-
cebendo que ela não estava confortável dando explicações. Sabia que Beatriz e Henrique discutiam com fre-
quência com seus pais, Antônio e Margaret, que faziam
o possível para “proteger” os filhos dos problemas do mundo real (eles os prenderiam em uma gaiola se a 24
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polícia e os defensores dos direitos humanos não criassem caso quanto a isso).
Beatriz mostrou aquele sorriso cheio de dentes, que
era capaz de derreter uma geleira, e puxou a amiga mais para perto.
– Você já conhece a Débora, né? Débora enroscou o pé em um buraco na calçada, e
teria levado um tombo se não tivesse se apoiado em Beatriz. Ficou ainda mais envergonhada depois disso.
– Precisamos avisar a prefeitura sobre esses buracos!
– disse Beatriz, descontraída. – Bom, cadê meu irmão? Ah, aí vem ele...
Beatriz e Débora se sentaram nos bancos de trás do
carro. Pouco depois apareceu Henrique, muito sério, e sentou-se no banco ao lado do motorista.
– Tem certeza de que não tem problema? – pergun-
tou Henrique a Gabriel, parecendo estar fazendo algo con-
tra vontade. Ele mal o olhava nos olhos, e chegava a dar impressão de estar irritado, ao invés de agradecido. – Não quero incomodar. Eu poderia ter cancelado essas aulas...
– Tudo bem, relaxa... Vamos nessa – Gabriel deu par-
tida no carro, sem mais delongas.
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