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cordei em uma cama de hospital. Consegui ouvir os aparelhos que faziam um som agudo. Abri os olhos, no entanto, não conseguia enxergar direito. Os meus olhos estavam embaraçados como se eu tivesse ficado com eles fechados por dias, sem ver a luz do sol. Então as lembranças apareceram como flashes em minha cabeça. Eu não entendia muito bem. Lembrava-me de que estava dentro do e, de repente, vi os faróis de outro carro bem na minha frente; depois, não consegui lembrar-me de mais nada, somente da terrível colisão. Comecei chorar em desespero na cama, e os aparelhos começaram a apitar freneticamente. Duas enfermeiras entraram, e eu não podia ver os rostos, somente os vultos. Ouvi quando uma delas falou: – Por favor, se acalme! Nós vamos ajudá-la. – Onde eu estou e por quê? – Você está em um hospital, acabou de acordar de um coma. – Coma? – Sim! Agora acalme-se. – Onde estão os meus pais? – Já ligamos para eles. Devem chegar em alguns minutos. – Por quanto tempo fiquei em coma? – Quarenta e um dias. – Meu Deus, tudo isso? – Sim. Agora que acordou, acredito que você não tem nenhuma sequela, o que é um grande milagre. Nesse momento meus pais entraram chorando e me abraçaram. Em toda minha vida, eu desejei tanto um abraço deles. Minha mãe agradecia a Deus por eu ter voltado á vida, e meu pai, mais controlado, apenas acariciava meus cabelos. Então falei: 11
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– Mãe, como aconteceu o acidente? – Estávamos voltando de viagem, num final de semana que passamos na casa de campo. Você não se lembra? – Não... E vejo as luzes em meus olhos e, depois, tudo fica escuro. – Um caminhão fechou nosso carro na estrada e, para que não batêssemos de frente com ele, seu pai desviou para o acostamento, mas tinha um barranco e o carro capotou algumas vezes até parar. – Onde estão Anna e Léo? – Alícia, conversaremos sobre isso depois. Descanse um pouco, você está muito agitada! – Eu estou me lembrando! Léo estava comigo. Ele conversava comigo o tempo todo em que fiquei desacordada! Ele me dizia para voltar! Mãe! – Comecei a chorar, pois sabia qual seria a resposta. Léo estava morto e, de alguma forma, ficou ao meu lado, dando-me forças para voltar, dizendo o quanto eu era amada por todos e que precisava ser forte e ir para casa. Lembrava-me de seu sorriso: era lindo. Ele só tinha apenas oito anos. Por que Deus levaria uma criança linda como ele? Não conseguia entender, e fiquei em um diálogo mental comigo mesma. Senti como se meus olhos pesassem toneladas, não conseguia mantê-los abertos, e acabei dormindo. Sonhei com meu querido irmão Léo. Ele estava feliz e correndo com um monte de outras crianças. Era um lugar lindo, todo verde. A grama parecia recém-cortada e o seu cheiro penetrava suave em meu nariz. Havia flores e árvores, além de balanços de cordas. Todos estavam felizes, mas, naquele momento, sabia que deveria ser o paraíso ou algo parecido, pois tinha certeza de que Léo estava morto. Ele tinha morrido no acidente. Comecei 12
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a chorar. Encostei-me em uma árvore que estava atrás de mim, escorreguei no tronco e, sentada, abracei minhas pernas, como proteção. Senti um toque quente em minha mão. Abri rapidamente os olhos e vi meu querido irmão Léo. Ele abriu um lindo sorriso para mim e estendeu-me a mão, ajudando-me a ficar em pé. Ele me levou para dar uma volta pelo jardim, e sem dizer uma palavra, sentou-se em um banco e fez um gesto com a mão, para que eu me sentasse ao seu lado. Obedeci e senti as lágrimas se formando em meus olhos. Ele segurou meu queixo com aquelas mãos tão delicadas e pequeninas, e disse: – Não chore Alícia! Eu estou bem. Veja como somos todos felizes! – Como pode estar feliz aqui, sozinho, sem sua família? – Chegou a minha hora, Alícia. Estou muito feliz e agora posso ficar em paz, pois você já foi para o seu lugar também. – Vou sentir muito a sua falta! – Eu o abracei e senti a paz que seu corpo emanava. Era como raios de sol acalentando-me. – Um dia, vamos ficar juntos de novo. Mas, enquanto a sua hora não chega, terá que viver a sua vida, e cumprir seu destino. – Eu te amo tanto! – Eu também amo todos vocês, mas agora você precisa ir! Tem um mundo inteiro te esperando. Ele abriu um sorriso, deu-me um beijo, acenou com uma das mãos e saiu. Não sabia o que fazer. Fiquei ali, parada, com medo de acordar. Mas eu já estava acordada, pois podia ouvir o som dos aparelhos. Abri os olhos e vi meus pais no quarto, em pé, olhando pela janela. Como eu contaria a eles tudo o que tinha acontecido comigo enquanto estava em coma? Com certeza, achariam que eu tinha ficado louca. Teria de agir normalmente daqui para frente. 13
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Depois de fazer uma bateria de exames, fui para casa. Tudo estava exatamente como eu havia deixado. Meu corpo doía um pouco, e tinha dificuldade para me locomover. Fiz algumas seções de fisioterapia para recuperar os movimentos, que, na verdade, só estavam um pouco enferrujados. Minha irmã Anna estava muito bem, apesar de chorar de vez em quando. Ela ficava o tempo todo ao meu lado, como se tivesse medo de me perder. E, para falar a verdade, eu andava com medo e vendo coisas desde minha saída do hospital. Não via a hora de voltar à escola e tentar levar uma vida normal. Na segunda-feira, encontraria meus amigos novamente. Acordei bem cedo, arrumei minhas coisas e fui para a faculdade. No caminho, vi vários homens de preto. Eles eram todos lindos, altos e com camisetas justas tipo baby-look. Algo estava errado. Eu olhava para eles, porém era como se ninguém mais os visse. Pareciam seguranças, só que eram novos demais, e as pessoas ignoravam a presença deles. Será que só eu podia vê-los? Era tudo muito esquisito. Tentava levar uma vida normal, e quem sabe isso poderia ser algum resquício do coma que não tinha passado. Quando cheguei na faculdade, todos me aguardavam. Abracei meus colegas. Entretanto, havia três pessoas das quais eu realmente senti muita falta. Meus amigos Nicole, Karen e Raul. Nós éramos como unha e carne: onde estava um com certeza estaríamos todos. As coisas pareciam estar entrando nos eixos, apesar da dor que me corroia pela perda do meu querido irmão Léo. Tentava agarrar-me nas palavras que ele tinha me falado na última vez que nos vimos. Os meus dias eram às vezes difíceis e outros um pouco melhores. Um dia, estava com minhas amigas em uma loja de departamentos em um shopping e fomos para a sessão 14
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de lingerie. No caminho, vi um dos homens de preto bem na minha frente e, como por impulso, falei: – Com licença! Esperei que ele saísse da minha frente para que eu pudesse passar. Quando ele se virou e olhou para mim, vi seus lindos olhos azuis. Eram como o céu em um dia de verão: um azul tão azul que até doía de olhar. Ele me olhou com curiosidade e levantou uma das sobrancelhas, surpreso. Senti os pelos do meu corpo arrepiarem. Eu o encarei e repeti: – Você pode me dar licença? Ele se afastou e virou o corpo, abrindo passagem. Então disse: – Obrigado! Olhei em seus olhos e juro que os vi sorrindo. Parece loucura, mas juro que vi! Continuei olhando as peças que estavam nas araras e, de vez em quando, sentia que alguém estava me observando. Entretanto, quando espiava de volta, não via nada além do vazio. Fizemos nossas compras e fomos jantar em um restaurante chinês ali mesmo no shopping. Percebi que havia mais homens de preto espalhados pelo lugar onde estávamos. Não sei explicar o porquê, mas sabia que não deveria falar com mais nenhum deles. Só de pensar naquele olhar, senti o meu corpo tremer. Quando cheguei em casa, fui para o meu quarto com minhas compras e provei um conjunto de lingerie. Ele era lindo, negro de renda com alguns strass na calcinha e no sutiã. Digamos que não era exatamente uma calcinha normal: era um pouco menor, ou melhor, bem menor, porém atraente. E, para falar a verdade, queria muito me sentir viva e desejada. Meus pensamentos saíram pela minha boca em forma de palavras. 15
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– Queria poder sentir prazer em estar viva! Estava um pouco mais magra do que antes, acho que por ficar tanto tempo sem fazer atividades físicas. Não que eu fosse uma esportista nata, mas fazia minhas corridas todas as manhãs. Onde estava aquela Alícia com as curvas bem delineadas? Estava pesando seis quilos a menos. Os meus músculos tinham desaparecido, e o que eu podia ver era, na verdade, um corpo de osso e pele sem nenhuma estrutura muscular. Antes magra do que gorda! Não que eu tivesse alguma coisa contra as gordinhas, mas via o quanto minha melhor amiga, Karen, sofria, fazendo dietas para poder manter o seu peso. Sentei na cama e comecei a me sentir completamente fútil. Como poderia pensar em arrumar um namorado ou em como eu estava magra, enquanto todos sofriam a perda de meu irmão? Mas sabia que ele estava bem e que tinha me pedido para seguir minha vida, pois eu estava viva. Minha mãe chorava todos os dias. Várias vezes a peguei chorando no quarto ou enquanto preparava o jantar. Era impossível não sofrer vendo todo aquele sofrimento. Meu pai não falava nada, porém sabia que, no fundo, ele se sentia culpado pela morte do meu irmão. Comecei a chorar ao pensar em quanto nossas vidas tinham se transformado. Um dia, tudo isso iria acabar. Nós iríamos nos acostumar com a falta dele, mas sabe lá Deus quanto tempo isso demoraria. Eu só queria poder sentir os braços de alguém que gostasse de mim, a quem eu pudesse contar tudo que estava sentindo. Nunca tive muitos namorados, apenas alguns que poderia contar nos dedos. Porém, mantinha um amor platônico pelo jogador de futebol da escola. Ele era lindo. No entanto, ele tinha preferência pelas meninas mais populares, e eu não me 16
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encaixava nem um pouco nesse perfil. Sentia-me como um peixe fora d’água. Eu não era feia, mas não gostava de dar em cima de garotos, e muito menos de me vestir como uma ninfa. Na frente da minha cama tinha um espelho bem grande. Olhei para ele e me vi em um estado deplorável: duas olheiras enormes. Se meus pais me vissem daquele jeito, com certeza ficariam pior do que já estavam. Eu tinha que reagir e ajudá-los a superar esta fase ruim. Levantei e fui para o banheiro tomar um banho. Tirei minha nova lingerie e joguei em cima da cama. Tomei um banho bem demorado, enrolei a toalha no corpo e peguei uma camiseta, um jeans e também joguei na cama. Quando sentei para colocar a calcinha, percebi que ela havia sido dobrada como se fosse uma obra de arte. Olhei para ela e me lembrei de que tinha apenas jogado-a na cama. Talvez minha mãe tenha vindo até aqui, mas eu não percebi. Desci e resolvi dar uma volta. Fui até uma lanchonete que ficava perto de casa. Sempre que quisesse encontrar alguém para conversar, ali era lugar certo. Sentei e pedi um refrigerante. Logo depois de alguns minutos, Raul entrou e veio me fazer companhia. Ele era um gato. Quando o conheci, até pensei em namorar com ele, mas, com o passar do tempo, percebi que era somente amizade. E ele era meio mulherengo. Não é porque é meu amigo que vou dizer que era um cara de ouro: ele ficava com qualquer uma que usasse calcinhas. Raul transpirava testosterona. Tinha um metro e noventa, loiro, olhos verdes e cabelos sempre bem penteados e na moda, sem contar aquele corpo escultural. Não era musculoso como um gorila, porém tinha os músculos definidos, e um abdome de causar inveja a qualquer homem. Tudo isso graças a sua “meio que” profissão: modelo. Ele sentou, me deu um beijo, pediu uma cerveja e ficamos jogando conversa 17
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fora. Seu sorriso era tentador. De repente, pensei: Por que não ele? Bem que tentei dar mole para ele. Deu um sorriso quando eu disse: – Sabe Raul que você está mais bonito? – Acho que você bateu a cabeça muito forte naquele acidente. Deve estar brincando! – Não, estou falando sério. – Sei que você está passando por momentos difíceis... Acho que você está precisando é de um bom amigo! – Tem razão, estou quase explodindo. – Venha, vamos dar uma volta e assim podemos conversar. – Ele estendeu a mão para mim e deixou o dinheiro em cima da mesa para pagar a conta. Segurei sua mão e fui com ele. Nós andamos um pouco pela praça que ficava perto de minha casa e sentamos em um daqueles bancos de cimento, frio pra caramba. – Alícia, você precisa conversar com alguém. – Eu sei, parece tudo tão louco. – Pode falar, sou seu amigo. – Sabe Raul minha vida anda uma loucura. Vejo pessoas que não existem. Olhe em nossa volta agora: você vê mais alguém aqui? – Não, só nós dois. – Não! Estou vendo vários homens vestidos de preto. Eles agem como se ninguém pudessem vê-los, mas eu posso. Depois que acordei do coma, consigo vê-los. Não sei quem são e nem por que estão aqui. – Às vezes, pode ser algum tipo de sensibilidade. Tenho uma prima que é sensitiva; ela sente coisas que ninguém mais sente. – No tempo em que fiquei em coma, conversava com o meu irmão que tinha morrido, e eu nem sabia. 18
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– Calma isso vai passar. – Meus pais estão infelizes, e eu nem sei como falar sobre isso com eles. – Acho melhor nem falar, Alícia. Eles podem achar que você enlouqueceu. Comecei a chorar e me encolhi no banco. Raul se aproximou e me abraçou, e senti o calor de seus braços. Eu o abracei, e ele passava as mãos em meus cabelos, tentando me acalmar. Depois, segurou meu rosto com a mão e falou: – Tudo isso vai passar. Deixe que o tempo cuide de tudo. Venha, vou te levar para casa. Levantei e fui andando ao seu lado. Ele passou a mão em meu ombro, e começamos a nos lembrar de coisas boas, que nos fez dar risadas. De repente, ele me perguntou: – Amanhã é sábado e não tenho nada para fazer. Você tem? – Não! – Então, vamos para minha casa que eu quero te mostrar uma coisa. – O quê? – Quando chegar lá você vai ver. – Tenho que ligar para minha mãe e avisar que vou demorar. – Ok! Ligue. Peguei o celular e avisei ao meu pai que estava na casa de Raul e que iria demorar para voltar. Como nós morávamos praticamente na mesma rua, meu pai não fez um milhão de perguntas e falou que iria deixar a porta da cozinha aberta. Desliguei e seguimos para a casa de Raul. Os pais dele não estavam em casa. – Onde seus pais estão? – Eles foram viajar, voltam no domingo. 19
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Meu pai “adoraria” saber que eu estava sozinha com Raul. Quer saber: que se dane o que os outros vão pensar. Entramos e ele foi até o quarto pegar as fitas de vídeo. Elas estavam velhas e eram da câmera que ele tinha ganhado em seu aniversário de dez anos. Ele colocou no adaptador e começou a passar na TV. O filme era de quando éramos pequenos e brincávamos na rua com nossas bicicletas novas. Aliás, exploramos cada canto do bairro com a filmadora presa do guidão da bicicleta. Tinha lugares que eu nem me lembrava de terem existido. No meio daquele monte de fitas, peguei uma que tinha um coração desenhado na etiqueta de identificação e coloquei no adaptador. Enquanto isso, Raul tinha ido até a cozinha pegar refrigerante e batata frita. Sentei no sofá e fiquei esperando por ele para acionar o play. Quando voltou, sentou-se ao meu lado e perguntou: – Já colocou outra? – Sim, estava esperando você chegar. – Ótimo, então pode dar o play e come bastante batata para ver se engorda um pouquinho. E tem mais: a partir de amanhã eu farei companhia a você em suas corridas. Você precisa voltar a treinar. – Obrigada! Mas você não precisa correr! – Quem falou! Tenho que manter este corpinho em dia! – Ok! Então amanhã às oito! – Fechado, passo na sua casa. Ele pegou uma cerveja, abriu e deu um gole. Depois, tomou o controle da minha mão e apertou o play. As imagens começaram a aparecer na TV: estavam com alguns chuviscos, mas dava para ver. Foi o dia em que fomos a uma casa que estava abandonada, e todos os outros tinham medo de ir até lá. Nós dois apostamos que iríamos entrar na casa. Senti um frio na barriga quando me 20
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lembrei do que tinha acontecido dentro da casa, fiquei parada como uma estátua. Será que ele também se lembrava? Acho que não, pois ele continuou a falar e rir sobre o medo que passamos dentro da casa, e a câmera gravou cada momento em que estivemos lá dentro. Ele estava na frente. Abriu a porta e gravou a sala vazia. Sua voz, trêmula, dizia que eu podia entrar. Acho que foi neste momento que ele se lembrou do que tinha acontecido, ficando tão quieto quanto eu. Filmamos a casa inteira como tínhamos combinado na aposta, mas, quando chegamos ao sótão, ouvimos um barulho. Eu fiquei quieta, e ele me abraçou, falando com a voz fraca: – Não tenha medo! Estou aqui para te proteger. – A fita era muito velha e o som estava horrível. Olhei para Raul, mas ele nem sequer olhou para o lado. Então falei: – Se você quiser, pode tirar. – Por mim tudo bem. Éramos crianças e estávamos apavorados. – Tem razão, nunca senti tanto medo em minha vida. Ele tinha gravado cada movimento nosso. Claro que não gravou nossos rostos, mas era como se eu estivesse revivendo cada instante. O abraço, suas mãos em meu rosto e, por fim, o beijo. Aquele foi o meu primeiro beijo. Eu nunca tinha dito isso a ele. Eu tinha adorado! Os lábios dele eram macios... e senti o toque por anos. Eu não o empurrei, e acho que queria aquele beijo tanto quanto ele. Aliás, ele deveria ter 12 ou 13 anos, e eu tinha 11. Ainda bem que a cena acabou comigo correndo, e ele vindo atrás de mim. A câmera tinha ficado dentro da casa, disso eu lembrava muito bem. Olhei para ele e falei: – Você nunca me disse que tinha voltado lá para pegar a câmera! 21
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– Você nunca perguntou. E ainda por cima passamos como sendo os maiores medrosos do bairro, pois todos achavam que tínhamos saído correndo com medo de alguma coisa. – Tem razão, juramos nunca contar nada a ninguém! – Foi isso mesmo. – Mas você foi lá pegar a câmera? – Fui. Como iria explicar a meu pai que eu a tinha perdido? – Tem razão. Por que não me falou? – Tive medo que você brigasse comigo ou falasse para todos que eu beijava mal, coisa de criança. – Eu nunca faria isso! – Você era menina e sabe como elas são! – Sabe que aquele foi meu primeiro beijo? – Não, você nunca me falou! E depois você contou para a escola inteira que seu primeiro beijo tinha sido com o seu namorado na oitava série. Mesmo sabendo que não podia ter sido, afinal, quando nos beijamos, você estava indo para a sexta e eu para a oitava. Passou um milhão de coisas em minha cabeça, então achei melhor ficar quieto. – Nossa! É mesmo, eu menti! O meu primeiro beijo foi naquele dia. – Tudo bem, já passou. – Você ficou chateado comigo? – Um pouco, achei que tivesse sido tão ruim que você nem quisesse contar para ninguém. – Ah, eu nunca disse que tinha sido ruim! – Foi ou não foi? – Ah, Raul, você está me deixando sem graça! – Então foi ruim e você não quis me magoar; por isso não falou nada e agora está fazendo a mesma coisa. 22
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– Tudo bem, não foi ruim! Senti os seus lábios nos meus durante meses. – Tá brincando! – Chega, já falei demais! Faz tanto tempo que isso aconteceu. Que diferença vai fazer? – Se eu soubesse, teria beijado você mais vezes; afinal, com uma amiga é mais fácil! – Engraçadinho! Então estava me usando para aprender a beijar? – Não! Nunca tinha nem pensado em te beijar. Aconteceu! – Assim é melhor! Acho que vou embora, já está tarde. – Vou te levar em casa. – Tudo bem. – Posso ir ao banheiro primeiro? – Claro. Enquanto isso vou tomar um copo d’água. Ele foi ao banheiro e voltou com o cabelo impecavelmente arrumado. Olhei para ele e ri, balançando a cabeça. – Do que está rindo? – Quem você acha que vai encontrar nesses duzentos metros daqui até a minha casa a essa hora? – Não sei! Tenho que estar preparado para tudo. Ele pegou a carteira que estava em cima da mesinha e colocou no bolso da calça. Procurei o meu celular no bolso e não o encontrei. Então falei: – Acho que meu celular caiu no sofá enquanto assistíamos aos filmes. – Espera aí que vou dar uma olhada. Tem certeza? Não estou achando. – Sim, liguei para o meu pai e depois viemos para sua casa. – Só se caiu embaixo do sofá, vou levantar e você olha! 23
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– Tá bom. Ele levantou aquele sofá enorme como se fosse uma pena. – Achou? – Sim, está aqui. Levanta só mais um pouquinho para que eu possa alcançar. Peguei! – Você consegue perder as coisas nos lugares mais improváveis. – Acho que caiu no chão e chutei para debaixo do sofá. – Pode ser. Na hora em que fui passar do lado do sofá, bati a canela na mesa de centro e falei: – Que merda! Quebrei a perna. – Não seja exagerada! Senta aí e me deixa ver. Levantei um pouco a calça e vi que tinha arranhado e a pele estava começando a sangrar. Raul olhou e falou: – Espera que vou pegar um antisséptico para passar. Ele desceu a escada correndo com o spray na mão e deu duas borrifadas no machucado. Ardeu e dei um grito: – Ai, tá ardendo! – Vou soprar para parar. Ele me fitou, balançou a cabeça e ficou olhando para o arranhão em minha perna. – Está melhor? – Sim, parou de arder. E, de repente, me vi naquela casa antiga, com ele me abraçando e cuidando de mim. Senti uma vontade enorme de tocar aqueles lábios de novo e ver se eram macios, como eu me lembrava. Ele olhou para mim e perguntou: – Alícia, está tudo bem? – Não sei... – O que foi? 24
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– Se eu te pedisse uma coisa, você faria? – Sim, pode falar. – Me beija de novo? – Alícia, não sei se seria como antes, não somos mais crianças. – Tem razão, eu tô ficando louca! Desculpe. Preciso ir para casa. Arrumei a calça e fiquei em pé. Ele ficou abaixado, do jeito que estava, me olhando. Depois, se ergueu, me pegou pela cintura e me apertou contra o seu corpo, dizendo: – Você não imagina o tempo que esperei para que você me pedisse isso! Eu podia sentir os seus olhos e sua respiração em meu rosto. Ele era grande, forte. Segurou o meu rosto e me beijou. Sua boca era exatamente como eu me lembrava: macia e carinhosa. Eu o beijei e passei as mãos em volta de seu pescoço. Encontrei aquele cabelo arrumadinho, os fios deslizando por entre meus dedos... Era exatamente aquilo que eu precisava: calor humano. Ele continuava me beijando, suas mãos percorriam minhas costas e uma delas parou em minha nuca, apertando ainda mais minha cabeça contra o seu rosto. Com certeza, ele tinha melhorado bastante. Eu me entreguei àquele beijo. Quando paramos de nos beijar, ele sorriu ainda com o rosto colado ao meu e perguntou: – E aí, é como você se lembrava? – Sim – respondi meio tonta e sem fôlego. Aquele não foi ruim, mas esse foi bem melhor! – Tenho de admitir: você tem razão! Algo dentro de mim queria agarrá-lo e beijá-lo. E fazer tudo que tivéssemos vontade. Porém, eu não sabia se seria certo. Soltei as suas mãos, as quais ainda estavam em volta de seu pescoço, e fui descendo bem devagar, deixando-as em seu peito. 25
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Encostei a cabeça nelas e respirei fundo. Afastei-me e peguei o celular que estava no sofá. – Alícia! – Sim? – Você está sentindo o mesmo que eu? Por que não deixamos as coisas rolarem? – Não quero perder sua amizade! Eu te amo! Você é meu amigo desde criança. Faz exatamente quatorze anos, e não quero estragar tudo! – Ei! Nós somos adultos! – Eu não sei! – Se você quiser parar é só falar, que eu não farei nada. Ele passou as mãos em meus cabelos e me beijou. Ele era tudo de bom. Suas mãos desceram até a minha cintura. Agarrou-me para perto dele e pude sentir o seu corpo quente. Senti um arrepio, mas retribui o beijo e as carícias. Ele me pegou no colo e fomos para o seu quarto. Estávamos loucos de desejo um pelo outro. Tirei a camiseta dele, ele tirou a minha e deitamos na cama. Eu não sabia onde tudo aquilo nos levaria; no entanto, o que importava era que eu o queria. Eu me sentia amada, desejada. Era exatamente o que eu precisava naquele momento. Ficamos juntos por quase uma hora, e então ele falou: – Acho melhor ligar para o seu pai e avisar que você vai dormir aqui. – Ele me mata se souber que eu dormi aqui com você, com seus pais viajando. – Ele não precisa saber. Raul se virou, me deu um beijo na testa e passou a mão em meus cabelos, dizendo: 26
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– Alícia, essa foi a melhor noite de minha vida. Nunca pensei que isso fosse possível. Sempre achei que nós nunca mais ficaríamos juntos. – Raul, não quero que você confunda as coisas. – Eu não estou dizendo que quero me casar com você. Só falei que essa foi uma noite muito boa. Espero que tenha sido para você também. – Claro que foi muito bom. Eu sempre tive vontade de te beijar muitas vezes, mas nunca tive coragem. – Alícia, nós somos adultos e, além disso, somos amigos. Se você quiser, podemos fingir que isso nunca aconteceu. – Você faria isso? – Sim, se você quiser. – Não é que eu não queira que os outros saibam, apenas não quero te magoar. Hoje, nós transamos porque nós dois estávamos com vontade. Não quero te forçar a fazer nada que você não queira. Eu nem sei se você está ficando com alguém ou não. – Você sabe que eu tenho os meus rolos, não sei ficar sozinho. Adoro uma mulher. – Eu sei você pega qualquer uma, basta ser mulher! – Ah, também não é assim! – Não quero te prender. Acho que isso aconteceu porque eu ando muito carente. Não posso perder sua amizade. – Vou te fazer uma pergunta. E quero que você me responda a verdade: você gostou do que aconteceu? – Sim, adorei. Na verdade, ele era maravilhoso e que eu tinha adorado tudo. – Então continuaremos amigos, independentemente do que aconteceu aqui. Mas com uma condição. – Qual? 27
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– Quero que sempre que você estiver a fim de ficar comigo, venha me procurar e eu farei o mesmo. Vamos deixar rolar, e não temos nenhum compromisso sério um com o outro. – Você é louco! Acha que isso vai dar certo? – Dá com todas outras com quem saio. – Só para saber: com quantas garotas você está saindo no momento? – Acho melhor você não saber. – Ok! Ficamos assim então. Agora tenho que ir embora. – Fica mais um pouquinho? – Não posso! Já são duas da manhã! Ele sentou-se na cama, fingiu que iria colocar a calça e me abraçou. Senti seu corpo quente, sem roupa em minhas costas. Ele era forte, e eu não consegui escapar. Ele questionou: – O que acha de ficarmos juntos mais um pouquinho? Depois eu te levo para casa de carro. – Só mais um pouquinho. – Olhei para ele, e os seus olhos verdes cruzaram com os meus. Sua expressão mudou para uma cara de sem vergonha, que até eu, que o conhecia há tanto tempo, fiquei surpreendida. Era por isso que nenhuma garota resistia a ele. Raul era tão gostoso, ainda mais conhecendo seus outros atributos. Depois de uma hora, levantei-me e falei: – Vamos, tenho que ir. – Ok! Vou te levar. Coloquei minha roupa e desci a escada. Ele pegou a chave do carro e foi me levar em casa. Quando estávamos saindo da garagem, vi um homem de preto, como aqueles que eu sempre via. Ele estava de costas, e não pude ver o seu rosto, mas também não fiz muita questão. Tinha decido que iria ignorá-lo. Ele me deixou na porta de casa, me deu um beijo e acenou com a 28
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mão. Entrei correndo e olhei pela janela. Ele estava fazendo a volta com o carro e saiu em direção à sua rua. Subi a escada sem fazer barulho e fui para o meu quarto. Tirei a roupa e coloquei o meu pijama. Deitei-me e fiquei pensando em como eu tinha sido idiota todo este tempo. Eu podia ter ficado com Raul, mas nunca imaginei que ele lembrasse daquele beijo. Virei-me de lado e adormeci. Naquela noite, tive um sonho muito estranho. Eu saía com um cara, mas não via o seu rosto. Ele me fazia sentir coisas que eu jamais tinha sentido com nenhum outro. Ele me deixava louca de desejo. Tinha uma vontade enorme de que ele tocasse o meu corpo em todos os lugares. Quando acordei, estava com a respiração ofegante e sem a parte de baixo do pijama. Levei um grande susto! Levantei o lençol olhei e não acreditei no que vi, me arrumei e voltei a dormir. A semana passou rápida. Eu continuava a ver todos aqueles homens de sempre. Num desses dias, liguei a TV para ver o que estava passando. Tinha acontecido um acidente muito grave em uma rodovia. Em meio às pessoas e aos carros destruídos, vi o homem que tinha encontrado na loja do shopping. Achei que estivesse louca e mudei de canal, e lá estava ele novamente em todos os canais. Não, eu não estava louca. O que ele estava fazendo? Fiquei vendo a reportagem e não percebi nada de diferente naquele lugar. Desliguei a TV e fui fazer um trabalho que tinha para entregar na faculdade. Raul e eu estávamos correndo todos os dias pela manhã. Eu me sentia ótima. Ele estava ficando com uma menina lá da faculdade. Sei lá se era ficar ou não... Eu nunca tinha visto os dois se beijando, porém ela estava dando um mole danado para ele. Raul fazia engenharia na mesma faculdade que eu, só que num prédio diferente. Muitos alunos faziam parte 29
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do time da escola para ganhar bolsas de estudo. Eu não fazia nada. Meus dias estavam cada vez mais difíceis. Eu começava a me sentir cada vez mais louca e estranha. Um dia, a campainha tocou, e fui atender. Abri a porta e me deparei com Raul. – Olá! – Oi, Raul. – Eu estou indo dar uma volta. O que acha de ir comigo? – Tenho um trabalho para entregar. – Depois você faz. – Está bem, mas não posso demorar. Fomos até um bar que ficava no centro. – Alícia, como você está? – Bem, na medida do possível. – E aquelas coisas, você continua vendo? – Sim, do mesmo jeito. – Quer falar sobre o assunto? – Sabe, agora mesmo tem vários deles lá fora. – Onde? – Tem um bem perto deste poste, outro na esquina e um atravessando a rua. – O que será que eles fazem? – Não, tenho a menor ideia. Hoje, vi um deles na TV, em um acidente que teve em uma rodovia. – Você deveria procurar ajuda. – Não, eu não quero mexer com isso, vou apenas ignorá-los. – Se você preferir assim. – Na verdade, eles não sabem que eu posso vê-los. Então é melhor deixar assim. Ele colocou a mão em cima da minha e senti uma vontade louca de beijá-lo. Apertei a mão dele de leve e pude sentir que ele 30
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tinha entendido o recado. Deu um sorriso irresistível e deslizou a mão em meu braço, chegando ao meu cotovelo. Segurou-me com força, puxou-me para perto dele e falou em meu ouvido: – Estou louco para dar um beijo na sua boca. Dei um sorriso e balbuciei: – Eu também. Ele pediu a conta e saímos. Entramos no carro e ele me beijou. Era engraçada a intensidade da situação. Nós nos beijávamos como se tivessem passados anos sem nos ver. Ele ligou o carro e fomos para sua casa. Seus pais não estavam lá, pois trabalhavam o dia inteiro. Subimos para o quarto e ficamos juntos. Ele me fazia esquecer de todos os problemas. Enquanto estava com ele, me sentia muito feliz. Raul desceu, pegou uma cerveja e um refrigerante para mim. Ficamos na cama o resto da tarde, e eu adorava estar com ele. O celular dele tocou, ele atendeu e ficou todo sem graça (com certeza era alguma garota). Ele desligou tão rápido que a menina deve ter pensado que estava com algum problema. Perguntei: – Quem era? – Uma garota lá da faculdade. – Aquela que ficou dando em cima de você a semana inteira? – Ah, não fale assim! – Ok! Desculpe-me, esqueci que não temos nada um com outro. Somente sexo! Coloquei a perna em cima do ombro dele, desci escorregando pelas suas costas, passei as duas pernas em sua cintura e me prendi a ele, dizendo: – Desejo, pegação e tudo mais que tivermos direito! Com uma das mãos, ele me pegou pela cintura e me virou de frente, colocou as mãos em meus quadris, puxando-me para 31
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perto dele. Senti o seu corpo inteiro arrepiar. Então, ele olhou para mim e falou: – Posso ser tudo o que você quiser: sexo, desejo, pegação e muito mais. Senti suas mãos me apertando com desejo. Meu corpo obedecia aos movimentos que ele fazia com as mãos fortes, presas ao meu corpo. Isso era extremamente prazeroso, e eu adorava. Já era quase noite quando fui embora. Ele queria levar-me para casa, mas achei melhor não chegarmos juntos. Raul me puxou de volta para dentro e me beijou. Dei risada e saí correndo para que ele não conseguisse me pegar na varanda, e todos os vizinhos o vissem com um lençol amarrado na cintura. Saí rindo sozinha na rua parecendo uma idiota, lembrando-me das coisas que ele fazia. Nós nos conhecíamos desde pequenos, já sabíamos o suficiente um do outro, e eu sabia exatamente como ele era e vice-versa. Pelo caminho de volta, encontrei com dois caras de preto. Era assim que eu os chamava, já que eu não fazia a menor ideia de quem eles eram ou de como chamá-los. O mês passou voando. Meus pais estavam um pouco melhores, minha irmã não sentia tanto a falta de Léo e eu me acostumei com a ideia de que ele estava bem em algum lugar. As férias de meio de ano estavam chegando e, com ela, uma viagem, porém desta vez as coisas foram diferentes, ninguém estava a fim de viajar. Só de pensar nesta alternativa me dava um embrulho no estômago. Depois do acidente, nunca mais tínhamos ido a lugar nenhum. Meus amigos estavam combinando passar uma semana em uma praia, bem badalada, mas eu não sabia se os meus pais deixariam eu ir. Eles nunca tinham me proibido de fazer algo, mas, depois do que aconteceu, com certeza, ficariam com medo de que acontecesse alguma coisa. 32
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