FREUD, ME SEGURA NESSA!

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Laura Conrado

Freud, me segura nessa!

S 達 o P a u l o 2014

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Copyright © 2014 by Laura Conrado Coordenação Editorial Capa

Silvia Segóvia Monalisa Morato

Diagramação

Project Nine

Revisão

Gleice Couto Patrícia Murari

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Conrado, Laura Freud, me segura nessa! / Laura Conrado. -- 1. ed. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. 1. Ficção brasileira I. Título. 14-02105 CDD-869.93

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Dedicatória À minha avó Moacira, que partiu enquanto eu escrevia este livro. Sou grata pelo grande exemplo de fé e autonomia. Sua vida me inspira a ir à luta.

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“– E como chego lá? – perguntou Dorothy. – Caminhando. É uma longa viagem, atravessando, às vezes, regiões agradáveis e, às vezes, regiões horríveis e escuras.” L. Frank Baum, em O Mágico de Oz

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Prologo Há um tempo, escrevi um romance com algumas vivências minhas e de alguns amigos sobre os vinte e poucos anos. No livro, a personagem principal, Catarina, passou por um processo de análise que a permitiu se conhecer e enxergar suas relações de uma nova forma. Compartilhar algumas experiências, antes doloridas, valeu a pena. A primeira edição do livro Freud, Me Tira Dessa!, publicado em abril de 2012, se esgotou três meses após o lançamento – feito animador para qualquer escritor ainda não conhecido. Cat, como a personagem é conhecida, me permitiu viver do meu sonho de ser escritora. Recebi o Prêmio Jovem Brasileiro como melhor autora de 2012 e o Prêmio Destaques Literários com o título, considerado o melhor chick-lit nacional de 2012, segundo voto popular. Em virtude da popularidade do título, em 2013, lançamos o primeiro volume da série Freud, Me Tira Dessa! para adolescentes, o Só Gosto De Cara Errado. Mais legal e compensador do que participar de dezenas de reportagens e compor a programação de diversos eventos literários importantes é ter leitores. Atrair pessoas que se identificam com o que você escreve me faz acordar feliz todos os dias. É impossível não agradecer e citar meus queridos leitores na continuação da saga da nossa Cat. Deixo meu muito – muito mesmo – obrigada aos leitores de toda parte do país que me acompanham e vibram comigo a cada conquista.

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Agradeço à Beatriz Ramos, à Giovanna Stanzione e à Letícia Albani pelo carinho e dedicação com que cuidam dos fã-clubes que me deram. Às amigas e leitoras vorazes Gleice Couto, Giulia Ladislau e Juliana Marques, que leram em primeira mão o original de Freud, Me Segura Nessa!, dando-me bons direcionamentos. Reitero que minhas obras são romances narrados do ponto de vista do paciente, sem intenção alguma de suplantar publicações técnicas ou um processo psicoterápico. Nesse sentido, deixo minha gratidão aos profissionais e estudantes de Psicologia e Psicanálise que se tornaram leitores, recomendam meus livros e sempre se dirigem a mim com gentileza. Diante de tantas oportunidades incríveis que a publicação Freud, Me Tira Dessa! me trouxe, cabe a mim, agora, pedir “Não me tire dessa”. Espero que se divirtam com a nova fase da Cat e seus novos questionamentos. Com carinho, Laura Conrado

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1 "A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz." Sigmund Freud

Um sacolejo fez meu corpo se levantar da poltrona do avião. Assim que despertei do cochilo, senti que apertava uma coisa quente: a mão do senhor que estava ao meu lado. Sem graça, sorri. – Turbulências – falei tentando me desculpar. – Muitas. Mas isso é normal, minha menina – o senhor falou. Catarina! Meu nome é Catarina e não gostava que me chamassem de menina, mas estava tão aflita que nem corrigi o senhor. Eu só queria que minha vida recomeçasse em terra firme. Foi assim meu voo até Nova York. Eu, que já estava para lá de apreensiva com minha decisão de me mudar para os Estados Unidos, fiquei ainda mais apavorada com o balanço do avião. Como fui acordar segurando a mão de um estranho? O avião estabilizou um pouco. Entretanto, tudo o que vivi até aquele momento foi turbulento. Fui demitida, engoli o fora do meu antigo analista, o Luiz, terminei a análise, desfiz do apartamento e do carro, e anunciei aos quatro ventos 11

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que iria me mudar para a Califórnia. Havia conseguido uma oportunidade incrível. Só que alegria de Catarina costumava durar pouco. Como o contrato era para serviço temporário, não consegui o visto para trabalho. Não arriscaria entrar com visto de turista, já que gosto de coisas legais – legal no sentido bem amplo da palavra. Assim, perdi a oportunidade de atuar numa produtora de cinema em Los Angeles. O que seria mais incrível do que trabalhar na indústria do entretenimento, aos vinte e três anos, solteira e querendo descobrir a vida? Um forte chacoalho acometeu outra vez o avião. Desta vez, eu estava bem acordada. O frio na barriga chegou à garganta. Atingiu-me em cheio quando senti o avião perder um pouco de altitude. Terra firme, por favor! Mal tinha começado a me aventurar pelo mundo, e minha primeira reação era medo. Perguntava-me o que estava fazendo ali. Eu deveria ser como aquelas pessoas que saem da casa dos pais somente quando se casam... E que se casam. Porque nem namorado de verdade eu tive na vida. E por que não fiquei mais quieta no meu antigo trabalho? Tive que fazer as coisas do meu jeito, bater de frente e acabar sem emprego. Aliás, por que mesmo não procurei por outro em Belo Horizonte? Talvez, se eu tivesse ficado por lá, poderia estar com o Guto, meu último paquera-quase-sério. Embora o rolo não tenha durado, não consigo me lembrar de outro cara que me fez sentir tão bem como ele. Mas não adiantava lamentar. Aquela era eu, indo atrás do meu sonho de conhecer novos lugares, novas pessoas e descobrir o que, de fato, eu queria da vida. Naquela altura, o avião estava tão inclinado para a direita que parecia um show de acrobacia. Nessas horas, como nos 12

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filmes, a nossa vida nos passa pelos olhos. Depois da vergonha de ter ficado no Brasil sem emprego, fiquei escondida na casa dos meus pais, em Divinópolis, interior de Minas, por causa da minha boca grande. Mas as coisas, quando têm que ser, simplesmente são. Foi quando, por acaso, reencontrei uma professora da faculdade no shopping, que me perguntou sobre a vida. Era para ser uma pergunta retórica, mas estava tão entupida, que acabei desabafando como as coisas saíram para mim em pouco tempo de formada. Assim que voltei para casa, depois de ter me aberto com ela, senti uma enorme vergonha por ter me exposto tanto. Mas sair do isolamento traz mesmo benefícios. Recebi um e-mail dessa professora pedindo que, se meu inglês fosse realmente bom, eu fizesse contato com um amigo dela chamado Eric. Ela não deu explicações no e-mail, mas deu a entender que eu deveria fazer isso logo. Mandei uma mensagem na mesma noite com meu currículo. No dia posterior, para minha total surpresa, ele me respondeu avisando que gostaria de me encontrar no dia seguinte às duas da tarde. Eu estava na fase mais desanimada da minha vida. Unhas por fazer, cabelo igual a uma espiga de milho e sobrancelha sem forma. Tive pouco tempo para me arrumar, vesti algo apresentável e organizei minha ida. Peguei o carro da minha irmã emprestado e consegui chegar a tempo. Só Deus sabia como queria uma oportunidade. O avião voltou à posição normal, encerrando a curva. Soltei um suspiro de alívio. Eric me recebeu numa espécie de escritório compartilhado falando em inglês. Ele era meio calvo, louro, um pouco mais alto do que eu e bem acima do peso. Consegui me comunicar sem dificuldade, embora sentisse minhas bochechas corarem. 13

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Era a primeira entrevista de emprego que fazia em outra língua. Às vezes ele parecia nem ouvir ou me entender. Falei muito sobre mim, o que fiz na universidade e minha experiência profissional. – Muito bem, Catarina – Eric, por fim, disse em português, me surpreendendo. – Acredito que deu para conhecer você. – Você é brasileiro? – deduzi pelo sotaque. – Nasci e cresci aqui. – Tive a impressão de que não era daqui. Até mesmo pelo seu nome... – O nome foi uma coincidência – ele abriu a carteira e me entregou um cartão. – Trabalho há muitos anos lá fora. Peguei o cartão, de design limpo, nas cores azul, cinza e branco. Eu quase não cria no que meus olhos liam. O cara era simplesmente o diretor de novos negócios da Hearst Corporation no Brasil. Conhecia o grupo, um dos maiores de mídia do mundo, com dezenas de jornais, emissoras e importantes revistas. – E deve ter trabalhado muito bem para chegar aonde chegou. – Me dediquei muito, sem dúvida – ele me encarou. – Está disposta a se dedicar também? Tremi. Eu poderia estar diante da oportunidade mais promissora da minha vida. E não iria amarelar. Para quem já confessou ao antigo analista que estava apaixonada, dizer sim a um graúdo de uma grande empresa seria mole. – Muito – foi o que dei conta de dizer. Ele me disse que a vaga era para ser assistente dele. Eu podia jurar que meu coração havia parado de repente. Eric era responsável por alguns clientes do Brasil. Meu trabalho incluía ajudá-lo nos compromissos, na supervisão da parte comercial 14

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das publicações brasileiras, ser boa com números, ágil e dominar, no mínimo, o inglês. O salário inicial era bem atrativo e já incluía gastos com moradia. O custo de vida era alto em Nova York, mas eu queria pagar por aquilo. Eric pediu que mandasse algumas informações para a empresa, a fim de que checasse a possibilidade de um visto com mais agilidade. Ele faria contato me dando um retorno definitivo. Pouco tempo depois, eu estava com um visto no passaporte, com um contrato de trabalho em mãos e uma passagem – só de ida – para uma das maiores cidades do mundo. Meu novo chefe já morava em Nova York. Eu começaria a trabalhar dois dias depois que chegasse à cidade. Isso se eu chegasse, pois o avião subia e descia numa frequência que me deixava mesmo assustada. A droga do avião tremeu bruscamente mais uma vez. Levei minha mão à boca, evitando um grito. O comandante deu outro recado, reforçando o pedido de ficarmos sentados e com os cintos afivelados. Quem se levantaria com o avião chacoalhando desse jeito? Eu estava com o coração disparado, a ponto de ter um enfarto. Não que a turbulência mais louca que encarei na vida me apavorasse, mas também me assustava o que eu encontraria na nova etapa. Será que estava fazendo a coisa certa em mudar tanto o rumo da vida? Encostei minha cabeça na janela do avião. Percebi que estava chegando, pois, em meio às nuvens cinzas, eu conseguia ver, lá embaixo, as luzes dos arranha-céus. Como aquela cidade era enorme! Foi, então, que me alegrei de novo. Quanta vida lá fora! Pensei na quantidade de casas, de pessoas, de histórias, de encontros e de lugares. A vida acontecia e eu queria 15

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estar vivendo-a, ainda que, para isso, eu precisasse enfrentar algumas turbulências. Estava absolutamente entregue às nuvens de tempestade. Aprendia na prática que era impossível controlar o voo ou ter previsões acertadas sobre o céu. Um emprego não me garantia estabilidade – nem felicidade. Não ficaria imune às turbulências em outra cidade, em outro voo, com namorado ou sendo outra pessoa. Os ventos simplesmente mudam. Além do mais, continuar em BH me daria certeza de que eu namoraria o Guto? Ou de que ele fosse o cara certo para mim? Eu não me perdoaria se tivesse aberto mão da possibilidade de trabalhar em Nova York e o caso não fosse para frente. Guto estava no tempo de correr atrás dos sonhos dele. E eu precisava descobrir quais eram os meus sonhos para ir até eles. Para isso, sabia que teria que aceitar as reviravoltas e, em alguns momentos, refazer o plano de voo. De uma hora para outra, o avião estabilizou. E eu também. Eu me aventurava, aos vinte e três anos, em terra estrangeira, simplesmente para viver. Meu coração dizia que eu descobriria meu caminho. Os prédios começavam a ficar cada vez mais próximos. A aterrissagem seria no aeroporto John F. Kennedy, um dos maiores do mundo. Um sinal soou em toda aeronave. – Senhoras e senhores – era o comandante, outra vez –, devido ao mau tempo, fomos orientados a aterrissar no aeroporto de Newark, em Nova Jérsei. Pedimos desculpa pelo transtorno. Transtorno? Um carro da empresa me esperava no JFK, eu estava em outro estado, sem telefone e sem a menor ideia de como iria para Nova York. O que eu faria? Estava à beira de outro ataque de nervos, como os que eu sempre dava, com choro, uns gritos e uma ladainha de reclamações. Sem falar do medo de queimar meu filme no emprego novo. Depois 16

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de tudo que vivi no ano anterior, deixar a antiga Catarina, a menina, tomar conta da mulher que enfrentava um contratempo seria demais. Era melhor me acalmar e deixar a adulta – ou quase isso – assumir o controle. Desci do avião e peguei a enorme fila da imigração, onde passei cumprindo o protocolo, sem dificuldade. Meu plano era dar um jeito de chegar ao JFK o mais breve possível. O problema foi sair do aeroporto. Sabia que março fazia frio, mas não daquele jeito. Sempre que a porta do aeroporto abria, um vento gelado entrava no saguão. Eu me arrepiava da cabeça aos pés, me perguntando se não tinha descido no Alasca. Que frio era aquele? Entendi com perfeição a música que diz “moro num país tropical...”. Como o inverno já estava quase no fim no hemisfério norte, imaginei que teria tempo de comprar casacos, luvas e gorros até o próximo inverno. As blusas de frio que levei eram casaquinhos, terninhos e jaquetas. Fui até o terminal de informações carregando duas malas grandes, uma de mão e a bolsa a tiracolo. Descobri um ônibus gratuito que a companhia aérea fornecia aos usuários até o aeroporto JFK. O problema é que teria que esperar por ele do lado de fora. No frio. Então fui ao banheiro, abri minha mala e puxei as blusas mais quentes. Dizendo a mim mesma que ninguém ali me conhecia, coloquei uma blusa de moletom marrom que usaria para dormir por cima da blusa que eu vestia e um casaco cinza. A combinação não ficou boa, mas era o único casaco forrado que tinha. Não consegui movimentar os braços, contudo não via outra solução. Peguei uma calça legging preta e fiz de cachecol. Coloquei outra meia e calcei a bota. Estava o “samba do 17

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crioulo doido” ambulante. Ainda assim, atravessei o estacionamento do aeroporto tremendo de frio. Fiquei no ponto do ônibus invejando as pessoas que estavam bem agasalhadas. Eu parecia mesmo ser inexperiente em viagens internacionais. Como não me preparei? O ônibus não demorou a passar, para minha sorte. Fiquei ligada no novo cenário e encantada com o Holland Tunnel, um túnel que ficava abaixo do rio Hudson ligando Nova Jérsei a Manhattan. Não preguei o olho ao longo trajeto até o aeroporto em que eu deveria estar. Rezava para que o encarregado de me buscar me esperasse. Desci com as minhas malas e segui para o saguão do aeroporto a fim de procurar uma plaquinha com meu nome. Até que fui surpreendida com uma mão no meu ombro. – Oi, Catarina, estávamos preocupados – era Eric e, atrás dele, um homem com uma plaquinha com meu nome. Logo me dei conta de que estava na frente do meu chefe com uma roupa grotesca. E uma calça de ginástica no pescoço. Grande bola fora. Não fazia ideia de que ele iria ao aeroporto. Pensei em tirar a calça dos ombros, mas o frio estava me matando. Talvez ele nem tivesse visto, homem nunca repara nessas coisas. Achei melhor nem me justificar. Levantei meus braços e caminhei na direção dele para cumprimentá-lo. Abracei Eric com certa formalidade, e pedi desculpas pelo transtorno. Expliquei que o voo desceu em Newark. Ele pareceu nem ter se importado com a demora. Eu queria ir para o hotel logo ou para qualquer outro lugar quente.Viajei a noite inteira, enfrentei turbulências, agarrei a mão de um estranho e estava morrendo de frio. Eric me apresentou o Tony, o homem que estava com a plaquinha na mão. Ele era o motorista, que ligou preocu18

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pado, pois o voo simplesmente não aterrissou. Por isso Eric foi, pessoalmente, ao aeroporto. Fiquei feliz de o meu novo chefe ter se importado, mas ele não poderia me ver naquela roupa. Aliás, ninguém! Entretanto, era aquilo ou um picolé de Cat. Agradeci a atenção e cumprimentei Tony, que me perguntou sobre o voo, pediu licença e carregou minhas malas por todo trajeto dentro do estacionamento. Depois de uma hora, estava num hotel perto do Central Park, onde fiz os primeiros contatos com minha família. A diária não era das mais baratas, mas, até aprender a andar na cidade, achei melhor ficar bem localizada. Antes que eu pensasse em passear, tinha que dar um jeito de arrumar algo decente e que aquecesse para vestir. Era quase hora do almoço, e a fome apertava. Saí pelas ruas de Manhattan em busca de um lugar legal para comer e de uma loja. Nos primeiros passos, eu já nem me lembrava da roupa. Só me concentrei naquela cidade totalmente nova e que pedia para ser explorada por mim. Meu primeiro almoço em solo americano foi hambúrguer, claro. Depois de comer, entrei numa loja grande onde os preços pareciam ser bons e comecei a escolher uns casacos e vestidos. Era tudo lindo. Levei algumas peças para o provador e passei meu segundo aperto, literalmente. Peguei um casaco tamanho large, que corresponde ao grande no Brasil. Mas eu não era large; eu era extra large. Como assim o país dos peitos grandes me colocava como extra large? Será que eu fiquei tanto tempo entocada na casa dos meus pais que não percebi que havia engordado? Meus olhos ficaram marejados. Sentei-me no banquinho do provador pensando no que fazer, além de regime, para me arrumar para aquela noite. Body, eu 19

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estava certa, nunca mais usaria na vida. Já bastava ter grampeado um no consultório do Luiz. Abri a cortina do provador e fiz um sinal para a vendedora que estava ali perto. ­– Por favor, me mostre o que tem no tamanho extra large – eu disse em inglês. – E de preferência na cor preta. Mais tarde, apanhei uma lista de apartamentos para alugar de contatos que fiz antes de sair do Brasil. Na manhã seguinte, acordei cedo e me preparei para o frio colocando duas blusas e um casaco novo. O frio era desanimador, mas precisava encarar e ir atrás de um local para morar. Depois do café da manhã, saí com meu mapa da cidade desbravando as ruas. Dos três apartamentos que visitei, um não gostei da vista; o outro do barulho e da localização; e o terceiro, do prédio. Sem falar do preço, que parecia ser proporcional à altura dos prédios de mil andares. Mais tarde, fui a uma corretora de imóveis que ficava perto do hotel. Um rapaz me atendeu e deu dicas sobre a cidade. Ele me mostrou alguns apartamentos na tela do computador. Não pude deixar de reparar no valor. – Você não tem nada menor, não? – perguntei ao rapaz. – É só para mim. – Todos esses apartamentos são para uma pessoa, como me pediu. Os locais me atendiam, mas o valor do aluguel somava quase todo meu salário. Passei óleo de peroba na minha cara de pau. – Tem algum apartamento mais barato? – perguntei em inglês tão claro que parecia que eu falava em português. Ele suspirou. 20

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– O mais em conta é este – ele abriu as fotos de um apartamento simples. – Está reformado e em bom estado. – E preço cabia no meu bolso. – Ótimo, vamos ver esse. Parece perfeito. Ele se levantou e pegou uma pasta de cima da mesa quando eu já estava de pé, caminhando na direção da porta. Na parede à minha frente, me deparei com um cartaz que me murchou por completo. As letras maiúsculas deixavam claro que os imóveis só seriam alugados mediante pagamento antecipado de três meses. Dei meia-volta. –Vocês negociam esse valor? – perguntei. – É norma da empresa. Não posso fazer nada. Sinto muito – ele me respondeu. Ainda dava tempo de voltar para casa? Eu parecia uma menina acuada no meio daquele caos. Senti que tomei a decisão errada ao ir para Nova York. Devia ter analisado mais o preço dos aluguéis. Não queria gastar uma quantia alta de uma vez, ainda mais tendo que comprar roupas novas. Extra large. E se houvesse alguma emergência? Se eu fosse conhecer o apartamento, sabia que seria pior. Gastaria meu tempo e o do corretor. Fiquei com vergonha de avisar ali, na porta da corretora, que não iria mais. Admitir que tinha pouco dinheiro era constrangedor. Parei em frente ao rapaz e suspirei. Pelo olhar que me lançou, soube que ele me compreendeu. Segundos depois, eu explicava que não poderia gastar aquela grana de uma vez. Ele sorriu e disse que estava à disposição para qualquer mudança de planos. Dali, eu iria continuar a minha saga por um lugar para morar. – Acho – ele disse – que em qualquer imobiliária será assim... 21

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Abaixei a cabeça e saí desanimada por talvez necessitar gastar o dinheiro da poupança. Sobraria alguma coisa? Ficar sem dinheiro longe da família não parecia boa ideia. Quando estava quase virando a esquina, escuto alguém gritar “Catherine, Catherine”. Só quando uma estranha mão pesou sobre meu ombro, soube que “Catherine” era meu nome de guerra nos States. O rapaz da corretora recuperava o fôlego, e dizia que uma conhecida dele estava alugando um apartamento que não era da corretora. – Ela até me pediu que eu colocasse na imobiliária – ele disse colocando um pedaço de papel com um número de telefone na minha cara. – Mas talvez você possa negociar diretamente com ela. –Vou ligar agora mesmo. Sabe se dá para ir a pé para lá? – Não vai querer ir a pé. O apartamento fica no Brooklyn – ele disse, sorriu e se afastou tão depressa quanto chegou. Mal sabia andar naquela cidade lotada e não fazia ideia de como andar de metrô. Imagine sair de Manhattan! Morar longe do trabalho, acordar mais cedo e ainda pagar condução não estava nos meus planos. Queria caminhar pela cidade, aproveitando que quase não havia morros, diferente de BH. Mas as coisas na região eram muito caras. Já que havia chegado até ali, não custava dar uma volta em outra parte da cidade. Guardei o papel no bolso do casaco e voltei ao hotel para usar o telefone. Uma mulher com uma voz cansada me atendeu. Dona Nancy parecia morar perto do apartamento que tentava alugar, pois disse que me receberia na hora em que eu quisesse. E 22

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lá estava eu, ou melhor, a “Catherine”, indo para o Brooklyn. Quem sabe não dava certo morar ali? O Google mostrou que não era difícil chegar de metrô. A estação ficava perto do hotel. Marquei as coordenadas num papel e o guardei na bolsa. O vagão não demorou a passar, e em pouco mais de dez minutos eu estava lá. A região era muito agradável e parecia ser um bairro mais familiar, sem arranha-céus. Localizei a rua, que ficava perto do metrô e da Ponte do Brooklyn. Andei prestando atenção aos números. Até que cheguei a um prédio de quatro andares, de tijolos marrons. Era simples, mas simpático, com cara de casa de avó. Aproximei-me do interfone, respirei fundo e apertei o número 42 do interfone. – Sou Catarina, vim para olhar o apartamento – disse respondendo ao hello. – Come on, Catarina – dona Nancy me convidou para subir. A portaria se abriu, e adentrei no prédio. Subi os degraus me libertando do cachecol e das luvas. Os lances de escadas eram enormes, e o quarto andar parecia não chegar nunca. Eu estava mesmo fora de forma. Apresentei-me a ela com a respiração ofegante. Ela me recebeu com um sorriso no rosto, já um pouco enrugado. Dona Nancy era tão acolhedora que parecia estar entre familiares. O apartamento tinha um quarto simples, uma sala, um banheiro e uma cozinha. Para melhorar, já estava com alguns móveis. Simples, mas me atendiam. Perguntei sobre os valores e a forma de pagamento. O preço estava totalmente dentro do previsto e, como ela também morava no prédio, não me pediu pagamento adiantado. – Morei aqui minha vida inteira – disse dona Nancy –, mas, assim que o apartamento do primeiro andar ficou vago, me mudei. Não aguento mais subir escadas. 23

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Escadas. Eu só pensava nelas. Imagine subir com as minhas malas? E com as compras? Interessei-me pelo apartamento, mas queria avaliar outros lugares. Avisei a dona Nancy que iria dar resposta em, no máximo, dois dias. De repente, o interfone tocou. Ela atendeu e abriu a porta. Surgiu um cara de uns vinte e tantos anos, cabelos castanhos partidos de lado e os olhos – me segura! – azuis. Gato. Muito gato. E o melhor foi vê-lo entrar no apartamento depois das escadas sem respirar com dificuldade. Que resistência. Ele abraçou Nancy, e ela nos apresentou. Ele se dirigiu a mim, erguendo a mão quente para me cumprimentar. Nick era o nome do espetáculo. Senti um frio na barriga quando o toquei. Homem bonito sempre fazia isso comigo. Eu só pensava em colocar um boné escrito Brooklyn. Se os demais homens da região fossem daquele jeito, eu não voltaria nunca mais. Parei de agarrá-lo em pensamento para ouvir a conversa dele com Nancy. – Ele disse que pode se mudar ainda nesta semana, Nancy – disse o gato. Homem lindo só trazia problema. Entendi que ele estava articulando o apartamento para um amigo dele, me deixando sem tempo para escolher, com calma, um lugar para morar. Não sabia se eu encontraria um lugar tranquilo como aquele por um preço que dava conta de pagar. Enquanto dona Nancy questionava Nick sobre os hábitos do amigo, eu fiz uma conta rápida entre os gastos com moradia e deslocamento e quanto restaria do meu salário. Ponderei a distância do meu trabalho e o quanto eu teria que acordar mais cedo. Fora o medo de ficar isolada.

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Passei a mão nos cabelos e caminhei até a janela. Subir os lances de escada valia o esforço quando contemplava a vista do apartamento. Conseguia ver as ruas do Brooklyn, crianças andando com os pais no parque e, ao longe, a selva de pedra: Manhattan. – Com licença, senhora Nancy – interrompi a conversa deles. – Quero alugar o apartamento. – Mas acabou de dizer que daria a resposta depois de amanhã – ele disse. – Já me resolvi. Se eu puder me mudar hoje mesmo, pago o aluguel do mês inteiro.

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