Gilda não morreu

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São Paulo, 2 017

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Caroline Demantova

Copyright © 2017 by Caroline Demantova Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

aquisições

Vitor Donofrio

Cleber Vasconcelos

editorial

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Talita Wakasugui

preparação

revisão

Fernanda Guerriero

Bárbara Cabral Parente

diagramação

capa

Nair Ferraz

Dimitry Uziel

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Demantova, Caroline Gilda não morreu / Caroline Demantova; (coleção talentos da literatura brasileira) Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.

1. Ficção brasileira 2. Ficção policial brasileira I. Título. 17­‑1059

cdd­‑869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Dedico este livro a meu irmão, Rodrigo Demantova Ferreira, e para meus primos, Tatiana Demantova Rodrigues de Lima e Guilherme Demantova Ro‑ drigues de Lima, com os quais eu brincava quando era criança de escrever roteiros e interpretá­‑los. Dessa forma surgiu meu desejo por escrever, que se tornou minha paixão, e desde então não parei mais. Dedico também aos meus belos e amados sobrinhos, Giuliana Sovierzoski Ferreira e Guido Sovierzoski Ferreira.

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Pa r t e I OU TR A V E Z U M MO RTO

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Pa r t e 2 QU E M É G IL D A

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Pa r t e 3 O M O RTO

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Pa r t e 4 G I L DA 2 8 3

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Pa r t e 5 M AR IA G IÁ C O MI

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Pa r t e 6 O ASS A S S IN ATO

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Pa r t e 7 O R E TO R N O

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Pa r t e 8 G E R E MIA S

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P R Ó L O G O

Carina olhava para o bebê apreensiva. Daria certo? Seu plano daria certo? Tinha que dar. Conseguira enganar o velho até então, fazendo­‑o acreditar que aquela criança era sua, que era neto dele. Precisava dar certo… Era sua única chance, já que, apesar de ter vivido com aquele cretino durante anos, nunca tivera filhos. Carina engravidara, mas perdera o bebê. Por um azar do destino, quando estava grávida de três meses, o bebê morrera. E precisara dar um jeito de conseguir outra criança. Para isso, José Mauro fora providencial. Sabia que podia contar com ele… Teria de recompensá­‑lo, é claro, ainda mais porque, depois que abandonara a carreira de ator, deixando a fama para trás, ele andava meio sem dinheiro, mas isso não seria problema. Artur morrera assassinado, antes de o filho (ou melhor, de o suposto filho) dela nascer, e o velho estava quase batendo as botas; tinha entrado em coma e estava hospitalizado. Aque‑ la criança seria a única herdeira. Quando ela herdasse tudo, porém, Carina daria um jeito de fazê­‑la sofrer um acidente. Assim, a única herdeira seria sua suposta mãe, Carina, e aquele bebê voltaria para sua mãe verdadeira, muito bem recompensada, é claro, que desaparecia de Monte Verde, e Carina seria, enfim, uma mulher rica, e não uma viúva relegada à própria sorte, como se‑ ria se não tivesse a brilhante ideia de conseguir um bebê e ocultar que havia perdido seu filho. Olhou para o bebê a sua frente. Fingira a gravidez durante os últimos seis meses. Artur já estava morto. Ela perdera seu filho quando ele morrera. Perde‑ ra o marido e o filho. O bebê gemeu levemente. Carina apavorou­‑se, temendo que ele chorasse mais uma vez. Não suportava mais aquele choro. Aquele bebê estava dando muito trabalho. Apesar de ser muito precioso, estava dando­‑lhe muito traba‑ lho. Precisava chamar a mãe dele. Ela daria um jeito. O filho era dela, afinal Carina só o tinha emprestado dela. Depois, sua verdadeira mãe teria de cuidar daquele bebê, vê­‑lo crescer, criá­‑lo… Carina observou­‑o atentamente. Tenta‑ va imaginar como seria a feição daquela criança no futuro. Realmente, seria bom simular o acidente, enquanto ainda era nenê, pois temia que as pessoas percebessem que não havia semelhança com ela e com Artur. Antes, porém,

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tinha de aguardar a morte do velho. Temia que demorasse muito. No entanto, ele estava desenganado pelos médicos. Só não podiam precisar quanto tempo mais viveria. Afinal, era muito difícil acordar de um coma que durasse mais de um ano, e ela esperava ansiosamente que o coma de Geremias Malvezzi completasse esse período. O bebê se mexeu novamente. Seria preciso aguardar que o velho morresse a fim de que a herança passasse para o nenê; depois, com a morte simulada, a herança passaria para sua mãe. E a morte de Geremias devia estar se aproxi‑ mando, já que ele entrara em coma sete meses após Artur falecer. Até então, Carina não sabia que seus planos poderiam sofrer um revés. Que outros pretendentes à herança chegariam a Monte Verde, que uma mu‑ lher louca chegaria à fazenda atrás de José Mauro dizendo ser a namorada a quem ele abandonara e fazendo perguntas acerca de uma Gilda… e de um homem morto. Não, até então, Carina não sabia de nada, nem poderia imaginar quantos entraves existiriam para que seu plano perfeito se concretizasse e ela se tornas‑ se uma mulher rica! O bebê acordou, abriu os olhos e fitou Carina. Ela não tinha a menor ideia se ele a distinguia ou não. Se a reconhecia ou não. Será que reconhecia sua mãe verdadeira como mãe ou reconhecia Carina como mãe? Carina riu da ideia. O bebê não poderia reconhecê­‑la como mãe, pois não se importava com ele e nem sequer cuidava dele, relegando tudo à babá, a qual, na realidade, era sua mãe verdadeira, conforme o plano entabulado e pelo qual estava sendo muito bem paga. Carina apenas fazia seu papel. Às vezes pegava­‑o no colo. Às vezes, passe‑ ava com ele. Tirava fotos dele para fingir… Ela apenas interpretava. O bebê não poderia reconhecê­‑la como mãe e iria esquecer­‑se dela. Ele iria crescer e esquecer que um dia vivera naquela fazenda em Monte Verde. E, se Carina o reencontrasse daqui a dez anos, tampouco o reconheceria ou saberia que seria seu filho perdido, seu suposto filho, seu filho fingido. Ela riu. Filho dela e de Artur… Carina queria o filho de Artur apenas por‑ que ele era imprescindível para que ela tirasse algum proveito daquele casa‑ mento que estava naufragando. Na realidade, os dois viviam em união estável. Artur nunca quisera oficializar o relacionamento, mas, durante cinco anos, os dois ficaram juntos como marido e mulher. Carina nunca pensara em ter filhos. Jamais quisera realmente ter filhos, não fazia planos a esse respeito, tampouco queria ter uma criança com Artur. Entretanto, quando vira que seu casamento não iria durar, tratara de dar um jeito de engravidar. Para isso

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um filho de Artur seria importante. Não pelo lado sentimental, mas financei‑ ramente falando. Só que o filho se fora, junto com Artur, e agora só sobrava aquele bebê para fazer o papel de seu filho. O bebê permaneceu certo tempo olhando para ela até que esboçou um sorriso. Sim, ele sorria para ela. Ela permaneceu ali, fitando­‑o, pensativa. “Ga‑ briel”, assim o chamava. Era este o nome que a mãe verdadeira queria dar e não admitia que fosse chamado por outro nome, ao que Carina tivera de ceder. “Gabriel Malvezzi”… assim fora registrado, filho de Carina dos Santos e Artur Malvezzi. – Gabriel, Gabriel – chamou baixinho. O nenê riu novamente, um sorriso doce e fofo. Sim, era fofo, tinha de admitir. Apesar de todo o trabalho que aquela criança dava, daquele choro infernal, daquelas noites sem dormir e de ter que fingir que cuidava dela e que a amamentava, aquele sorriso era fofo. – Será que um dia vai se lembrar de mim, Gabriel? Ou vai me esquecer completamente? – perguntou baixinho. Carina escutou um barulho e, assustada, voltou­‑se para a porta. Era a mãe da criança. Um alívio percorrera­‑lhe. Não poderia arriscar­‑se dessa forma. A mulher fitou­‑a com desagrado. Carina já percebera que a mulher tinha ciú‑ mes do filho e que não gostava de deixar a criança a sós com ela. No começo, achou que “a babá” tivesse medo de que ela machucasse a criança, já que Carina era completamente inexperiente em matéria de bebês e tampouco procurava se interessar por eles. No entanto, não era somente isso. Carina percebia que, no fundo, ela temia que o bebê a confundisse como mãe. Sim, era tão fixada pelo filho que temia que, sequer por um instante, ele pudesse confundir­‑se e achar que sua mãe fosse Carina, e não ela. Já Carina tinha receio de que, se demorasse muito para o velho morrer, a mulher levasse a criança antes do tempo. Sim, tinha medo disso, pois a mãe de Gabriel não estava muito à vontade com a situação e sentia­‑se extremamente ansiosa para que tudo ocorresse, ou seja, que o plano se concretizasse logo e ela pudesse deixar Monte Verde, levando consigo o filho. Maristela aproximou­‑se e colocou o filho no colo de uma forma agressiva. Carina fitou­‑a surpresa, porém resolveu não retrucar, pois dependia dela e temia que Maristela não aguentasse manter a farsa. Maristela sentou­‑se com a criança no sofá e abriu a blusa para dar de ma‑ mar. Já era hora. Carina levantou­‑se e correu até a porta para trancá­‑la.

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– Está louca?! – exclamou. – Não podemos correr riscos. Já lhe disse que deve trancar as portas e fechar as cortinas sempre que for amamentar a crian‑ ça. Não podemos ser vistas. – Como está o estado de saúde do velho Geremias? – perguntou enquanto amamentava o filho. – De novo esta história? Sabe muito bem que ele se encontra na mesma. – Quanto tempo esse coma vai durar? Ouvi falar de pessoas que vivem anos assim. – Mas não vai ser esse o caso. A queda que ele sofreu foi muito grave. Tenha paciência! Eu não vou roubar seu filho, e você está sendo muito bem paga. Aliás, o que eu estou lhe pagando você não receberia em lugar nenhum. – Dona Virgínia tem esperanças de que ele acorde! – Improvável. – Ela disse que o médico falou que ele tanto pode acordar como pode morrer, sem acordar mais. – Virgínia sempre foi apaixonada por ele. Ela mantém as esperanças. As duas permaneceram em silêncio. Maristela amamentava o filho e man‑ tinha uma expressão de insatisfação no rosto. Carina estremeceu diante da‑ quela expressão. Temia que a mulher fizesse uma bobagem e quisesse voltar atrás e desistir de tudo. Quanto tempo aquele velho levaria para morrer? Essa pergunta não lhe saía da cabeça.

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Parte I

O UT R A VEZ U M M ORTO

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C A P Í T U L O

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Dora de Barros dirigia envolta em pensamentos. Sonhara com os eventos que se sucederam três anos antes em Marumbi, na chácara de sua família, os quais a abalaram profundamente e que causaram o desaparecimento de José Mauro Mendes. Outrora um ator famoso, ele acabara fugindo da mídia e por isso virara notícia. Dora nunca mais tivera notícias de José Mauro nem o vira desde que ele salvara a sua vida. Jamais tivera a oportunidade de agradecer­‑lhe, e não sosse‑ garia enquanto não o encontrasse. Temia por ele. Como devia a ele sua vida, pois a salvara (e não fora apenas uma vez), Dora queria encontrá­‑lo para ajudá­ ‑lo, pois imaginava o que José Mauro devia estar passando em razão de tudo o que ocorrera em Marumbi, mas todas as tentativas fracassaram. Logo após o desaparecimento de José Mauro, a imprensa não a deixara em paz, pois todos achavam que ela sabia o paradeiro do suposto namora‑ do, além de desejarem que a moça se manifestasse acerca do ocorrido com sua família, o que a obrigou a passar meses fugindo dos jornalistas. Teve de, inclusive, viajar durante um ano pela Europa, pelos Estados Unidos e pela Ásia para escapar de tudo aquilo, após ser convencida por Bianca e por Eduardo de que era o melhor a fazer para espairecer. Realmente, a viagem fora muito boa para ela, até mesmo para ser deixada em paz, mas, mesmo assim, Dora não conseguira se esquecer da ideia de encontrar José Mauro. E, quando regressara ao Brasil, a primeira coisa que fizera fora tentar localizar o paradeiro dele. Dora lembrou­‑se da revista que pegara para ler, logo que acordara. Havia apenas uma reportagem intitulada “Por onde anda José Mauro Mendes?”. Já não perguntavam ou falavam tanto dele como quando passara a recusar papéis em filmes e novelas e se tornara recluso, logo após desaparecer de Marumbi. Inicialmente, gerara certa celeuma, no entanto isso passara. Outros nomes surgiram, outras celebridades instantâneas apareceram e desapareceram, e José Mauro começou a ser lembrado como o ator em ascensão, um homem badalado que sabia muito bem como chamar a atenção para estar em todas as

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páginas dos jornais – o que acabou por lhe manter abertas as portas da fama não tanto pelo seu talento para interpretar, mas por seu talento por badalar e por aparecer –, até estampar as páginas policiais após os assassinatos ocorri‑ dos em Marumbi, em que passara de suspeito a herói, para de repente sumir. Aquele que tanto procurara ser visto ansiava por permanecer anônimo. Curio‑ sidade gerou, e muita. No início, muitos achavam que o sumiço de José Mauro seria para cha‑ mar mais a atenção, uma nova estratégia para continuar em evidência. Que era uma jogada de marketing para manter­‑se em evidência, num mundo em que as celebridades surgiam e desapareciam do dia para a noite. José Mauro mantinha­‑se, como já dito, em evidência não por seu talento – que não pode‑ ria dizer que não tinha, mas que não era tudo –, mas por estar sempre ao lado das mulheres mais badaladas do momento, por marcar presença em todas as festas, por estar em todos os lugares em que se podia ser visto, por brigar com fotógrafos, por tomar porres homéricos, por meter­‑se em confusões… De re‑ pente ele, que, inclusive, pagara muitas vezes para ter seu nome em jornais e revistas, sumira e fazia questão de que não falassem dele. José Mauro sumira realmente. Não reaparecera para os holofotes. Desa‑ parecera por completo. A perplexidade surgiu, mas ele continuou sumido. As cogitações começaram… Falou­‑se até que tinha morrido, que estava doente, que sofria de síndrome do pânico, que estava em depressão, que fora tentar a carreira nos Estados Unidos etc., mas ele continuou desaparecido. Não havia nem assessor de imprensa para dar notícias. Ele despedira todos – seu assessor, seu empresário, sua secretária – e sumira. Então, pararam de falar nele. Salvo quando, às vezes, surgia alguma notícia ou outra sua. Uma nota sobre artistas que haviam deixado a TV, e lá estava seu nome incluído. Passaram­‑se três anos desde que tudo ocorrera. Dora e aqueles que resta‑ ram dos Barros também não mais tiveram notícias de José Mauro. Ninguém sabia onde estava, como estava ou se estava bem. Dora também se tornara reclusa. Ficara muito abalada com tudo o que acontecera, mas teria que con‑ tinuar a viver. Não poderia continuar a ser a morta­‑viva que havia se tornado. Tinha que recuperar sua vida. Tentaram destruí­‑la, mas não conseguiram; por isso, ela mesma não poderia se entregar à dor. Não poderia se destruir. Quan‑ do José Mauro salvara sua vida, era para ela viver, e não morrer. Assim, teria de viver, e não se comportar como a morta que estava. Dora ansiava encontrar José Mauro, mas tinha medo da reação dele, que a acusasse… Sabia o motivo de ele ter desaparecido da mídia e sabia que o fizera por estar muito traumatizado pelo que ocorrera, e isso a angustiava. José

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Mauro sumira da vida de todos sem deixar rastro. Às vezes, Dora desconfiava que Bianca sabia alguma coisa sobre ele ou que o rapaz a havia procurado, pelo menos alguma vez. Afinal, Bianca fora a única mulher que ele amara em toda a sua vida, além da própria mãe. Se a procurara, porém, Bianca se calara. No entanto, Dora tinha certeza de que a única pessoa que poderia saber algo sobre o paradeiro de José Mauro era ela. Bianca dividia o mesmo apartamento com Dora. A mulher tivera um filho com Henrique, que se chamava Augusto, e Dora fizera questão de que viessem morar com ela no apartamento enorme que comprara. Afinal, Bianca não tinha para onde ir e Dora não podia deixar que ela voltasse para a casa do pai, em Marumbi, com tantas lembranças desagradáveis. Ainda havia o filho de Henrique… Dora precisava ajudar em sua criação, pois tinha de se redimir de qualquer forma… Moravam os três juntos, o que fora um alívio para Dora. Bianca começara a trabalhar como secretária no escritório em que Dora trabalhara antigamente como advogada. Ou melhor, quando Isabela, sua avó, obrigara o advogado da família, Renato Alexandre de Albuquerque e Vaz, a lhe dar um emprego. Dora não poderia dizer que realmente trabalhara ali. Na verdade, só causara problemas a Renato e aos demais advogados. Eles a odiaram. Sempre fora a menina mimada a ter chiliques e caprichos, e a causar confusão ao seu redor. E Dora só causara confusão quando ali começara a trabalhar, principalmente quando terminara o noivado com Antonio Soares um mês após ter começado no escritório de advocacia. Sua vida virara de pernas para o ar e, consequente‑ mente, ela fizera o mesmo com aquele escritório. Dora fora, então, despedida humilhantemente por Renato, que chamara sua avó para uma conversa séria e dissera­‑lhe que não havia a menor condição de a neta dela continuar ali. Que a viabilidade do escritório e a saúde mental dos que ali trabalhavam estavam seriamente abaladas com a presença de Dora. Envergonhada, Isabela aceitou a demissão, e Dora sentiu­‑se orgulhosa por, mais uma vez, ter causado incô‑ modo à avó. Agora, muito tempo após a ocorrência desses fatos, Dora via como fora idiota boa parte de sua vida. Percebia que de alguma maneira havia amadu‑ recido, embora de uma forma muito cruel, se é que podia tirar alguma coisa daquilo tudo. Pois bem, logo após a neta de Isabela voltar de viagem, Bianca começara a trabalhar no escritório, porque, por mais dinheiro que Dora tivesse herdado da avó, nunca aceitaria ser sustentada pela moça, nem que o seu filho o fosse. Inicialmente, Renato ficara receoso, mas sabia da situação de Bianca e, como

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sempre fora muito grato a Isabela, resolveu ajudar a jovem. Augusto começou a passar muito tempo com Dora quando esta regressara da Europa. E foi assim que Dora vivera esses três anos, convivendo a maior parte do dia com Augus‑ to – assistindo a desenhos com ele, brincando com ele, levando­‑o ao parque, comprando­‑lhe presentes e tentando não contagiar aquela pequena criança com sua tristeza constante diante do que ocorrera à sua família – e procurando encontrar José Mauro. Até Renato insistir para que Bianca levasse Dora a um jantar de confrater‑ nização do escritório. Ela recusara, afinal estava envergonhada por tudo que aprontara ao pessoal de lá. Bianca, porém, convencera­‑a a aceitar o convite, e ela acabou participando do jantar. No início fora meio constrangedor. Fazia tanto tempo que não frequentava reuniões desse tipo. Foi então que Dora constatou que fazia exatamente três anos que estava se deixando morrer. Havia exatamente três anos ela não vivia, apenas acordava todos os dias para cuidar de Augusto, brincar com ele e, nas horas vagas, procurar José Mauro. Dora percebeu que deveria mudar. Foi aí que ela se deu conta de que José Mauro salvara a sua vida, mas não para vivê­‑la da forma que estava vivendo. Ela precisava acordar e esquecer o passado. Foi então que resolveu, num rom‑ pante, chamar Renato a um canto e pedir­‑lhe o emprego de volta. Ele hesitou, afinal havia convidado Dora apenas para participar do jantar, pois sabia como ela estava em virtude das informações de Bianca. Não poderia permitir que novamente uma pessoa instável arruinasse seu escritório com seu desleixo, seus caprichos, sua presunção e suas bebedeiras em pleno expediente, o que acabou por afastar boa parte dos clientes. No entanto, Dora insistiu, pratica‑ mente implorou, dizendo­‑lhe que precisava apenas de uma chance e que era vital para ela, pois, caso contrário, não saberia o que seria de sua vida. Renato acabou cedendo, sob a promessa de Dora de que, no primeiro deslize, ela mesma iria embora, poupando­‑lhe de demiti­‑la. Foi assim que Dora voltara a trabalhar no escritório de Renato, iniciando uma nova etapa em sua vida. Dora foi despertada de seus devaneios pelo telefone celular. Ela encos‑ tou o carro, pois pensava ser um cliente que havia dito que iria telefonar­‑lhe dali a uns vinte minutos, e precisava conversar calmamente, sem estar com a atenção desviada para o trânsito. Combinara de pegá­‑lo em casa a fim de seguirem juntos para a audiência no fórum. Ele morava na região metropoli‑ tana de Curitiba e a audiência seria realizada no fórum de Campo Largo. O local onde residia era ermo, e Dora levava um bom tempo para chegar até lá de carro.

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Dora atendeu à ligação enquanto olhava para os lados, um tanto apre‑ ensiva, pois a região estava deserta e ela temia ser assaltada. E uma mulher sozinha dentro de um carro, em uma rua deserta, em um lugar distante da cidade, é sempre uma boa presa. Dora surpreendeu­‑se ao constatar que quem falava com ela do outro lado da linha era o último detetive que contratara para tentar localizar José Mauro. Surpreendeu­‑se ainda mais quando ele lhe disse que descobrira o paradeiro do rapaz. Dora sentiu seu coração pular. O detetive pediu para ela passar em seu escritório a fim de que conversassem, pois ele tinha certeza de onde José Mauro se encontrava. Dora pensou que iria passar mal, pois seu coração batia freneticamente no peito, e avisou ao homem que depois da audiência passaria em seu escritório. Desligou o telefone. Essa foi a razão do meu sonho, pensou. Ela sonhara com os acontecimen‑ tos sucedidos em Marumbi que abalaram sua vida e a de José Mauro, e no mesmo dia seu detetive o encontrara para ela. Dora ligou o carro sorrindo de satisfação. Foi então que percebeu que a gasolina havia acabado. Tinha notado que o carro estava na reserva, mas, como havia um posto logo na esquina da casa do cliente, achou que daria para chegar até lá. – Droga! – xingou. Pegou o celular para ligar para seu cliente, mas, ao procurar o número dele na agenda, o aparelho ficou sem bateria. Mas que azar. Teria de andar uns quinze minutos até chegar à casa do cliente, eis que já estava próxima e pegou gasolina no posto da esquina para abastecer. E se foi, pois, até fazer isso tudo, chegaria atrasada. A única salvação seria de que todas as audiências do dia estivessem atrasadas, aí talvez tivesse tempo de participar de todas elas, como comumente acontecia. Renato iria matá­‑la. Dora desceu do carro e o trancou. Teria de se apressar para tentar chegar a tempo à audiência, pois esta poderia atrasar. Talvez dê tempo. Ela começou a andar rapidamente, apreensiva por estar sozinha naquele local e pela reação de Renato, caso perdesse o compromisso. A satisfação de ter encontrado o endereço de José Mauro foi perturbada em razão do medo de pedir demissão, pois Renato não iria tolerar aquela falha. Dora pensou até em sair correndo, mas não tinha fôlego para isso e nem conseguiria, pois estava de salto alto. Foi então que ela avistou algo caído no acostamento a uns dez metros de distância. Ao aproximar­‑se mais, seu coração acelerou. Seria impressão sua ou havia alguém caído ali no chão? Talvez seja algum mendigo, ela pensou. Dora foi chegando cada vez mais perto e pôde constatar que a pessoa ali caída nada tinha a ver com um mendigo. Era um homem relativamente bem­‑vestido.

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Instantaneamente, uma sensação de déjà­‑vu assaltou­‑a. Ela já tinha passado por isso exatamente três anos antes quando, no meio da sala de sua chácara, encontrara um homem morto, o qual nunca vira antes. Agora, havia um ho‑ mem aparentemente morto caído na estrada. Dora estremeceu. Quantas vezes uma pessoa pode cruzar com um morto na vida? Não era possível que mais uma vez ela estivesse passando por uma situação semelhante. O homem só podia estar morto tendo em vista a forma como estava caído ao chão, sem se mexer. Dora lembrou­‑se do que aquela ci‑ gana de Marumbi lhe dissera quando deixara a cidade: “Estranhamente, você se verá envolvida em outras mortes…”. No entanto, o homem se mexeu. Sim, ele se mexeu, e foi um alívio para Dora. Ela saiu correndo em sua direção para acudi­‑lo, entretanto estacou. Ouvira falar que pessoas simulavam estar caídas ao chão para que carros pa‑ rassem e elas pudessem sequestrar o motorista para assaltá­‑lo. Entretanto, o homem não parecia ser um bandido, pois estava bem­‑vestido, tinha cabelos loiros e levemente compridos e um belo par de olhos verdes, o que Dora pôde comprovar quando ele se virou para ela, fitando­‑a. O olhar era suplicante. Ela aproximou­‑se, agachou­‑se ao seu lado e foi então que viu uma marca vermelha na blusa dele. O homem estava sangrando. Devia ter sido atingido por um tiro. – Eu vou buscar ajuda – ela avisou. E repetiu: – Eu vou buscar ajuda. Fi‑ que bem aqui. Deve passar um carro logo, e eu tentarei pará­‑lo. Eu vou buscar ajuda. Deve ter alguma casa logo à frente. Foi então que, com a voz fraca, o homem falou: – G­‑Gilda… Gilda não morreu… Gilda está viva e ainda pode estar cor‑ rendo perigo… O homem estendeu um papel para Dora. Nele estavam escritas as seguin‑ tes palavras à mão: “Fazenda Malvezzi, Geremias Malvezzi, km 16, zona ru‑ ral, Monte Verde”. Quando Dora foi lhe perguntar o que aquilo significava, a cabeça do ho‑ mem tombou e ele permaneceu imóvel.

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