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como identificar e o que fazer com o orgulho, a inveja, a raiva e a culpa
LUIZ ALBERTO HETEM
SÃO PAULO, 2016
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A grande obra – como identificar e o que fazer com o orgulho, a inveja, a raiva e a culpa Copyright © 2016 by Luiz Alberto Hetem Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.
coordenação editorial Vitor Donofrio gerente de aquisições Renata de Mello do Vale assistente de aquisições Acácio Alves preparação Equipe Novo Século revisão Gabriel Patez Silva
editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
projeto gráfico, capa e diagramação João Paulo Putini
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB‑8/7057 Hetem, Luiz Alberto A grande obra : como identificar e o que fazer com o orgulho, a inveja, a raiva e a culpa Luiz Alberto Hetem. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. Bibliografia 1. Emoções 2. Técnicas de autoajuda 3. Autodomínio I. Título 16‑1193
cdd‑152.4
Índice para catálogo sistemático: 1. Emoções 152.4
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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Para os meus pais, Guido e Anna Maria. Ele, genuinamente bom e generoso. Ela, exemplo de superação e desenvolvimento pessoal.
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Apresentação 9 A dádiva: emoções 17 O problema: emoções que se tornam obstáculos 31 Orgulho 37 Inveja 59 Raiva 81 Culpa 97 Combinações 119 A solução: transformar 135 Ferramentas 153 Questões essenciais 187 Metas 199 O resultado: desenvolvimento pessoal 225 Considerações finais 249 Bibliografia 251 Agradecimentos 253
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á se vão trinta anos de prática clínica fundamentada em es‑ tudos, reflexões, debates e conversas sobre os limites entre doença e normalidade; o significado, enfrentamento e su‑ peração de problemas; e os métodos, caminhos e percalços do desenvolvimento pessoal. Foi buscando entender meus pacientes, meus semelhantes, observando‑os (e a mim mesmo na relação com eles) e tentando enxergar neles (e em mim mesmo) o que está descrito nos livros de psicopatologia, psicologia, filosofia e psiquiatria que de‑ senvolvi e aprimorei as ideias que compilo aqui. Cada vez com mais frequência recebo no consultório pessoas em busca de tratamento para transtornos mentais que julgam ter. Em boa parte isso acontece em resposta à veiculação pela imprensa e pela internet de textos muito abrangentes e nem sempre preci‑ sos sobre o assunto. Às vezes eles vêm inclusive acompanhados de testes para autoavaliação da ocorrência de determinado problema, também vagos e inadequados. É certo que na semana seguinte à reportagem sobre algum transtor‑ no mental virão pessoas em busca de atendimento por se acreditarem doentes. Tomara que sejam atendidas logo, pois a dúvida (ou certeza)
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que se instala dá margem a muita confusão e sofrimento. Nesses casos, a verificação do “diagnóstico” é a primeira tarefa. Algumas dessas pes‑ soas até apresentam de fato um transtorno psiquiátrico – geralmente não o que pensam ter, mas muitas não distinguem sentimentos nor‑ mais (luto, tristeza, ansiedade, frustração e desilusão, por exemplo) de manifestações de algum problema mais grave. Os obstáculos a que me refiro neste livro são causados por emo‑ ções absolutamente normais. Evito intencionalmente abordar sinto‑ mas de transtornos psiquiátricos, já que esses são empecilhos bem co‑ nhecidos ao bem‑estar e ao pleno desenvolvimento pessoal, descritos detalhadamente nos compêndios de psiquiatria. Por conta da minha especialidade médica, na prática clínica tenho contato com muitas pessoas que apresentam transtornos mentais e de comportamento, alguns muito graves, outros nem tanto. Ciente deste viés, que pode‑ ria limitar o alcance das minhas opiniões, insisto que, apesar de lidar com o patológico diariamente, as ocorrências que relato aqui são ha‑ bituais e não têm necessariamente a ver com transtorno mental. As emoções que podem se tornar obstáculos estão presentes em todos nós, sempre com potencial para complicar as coisas se não fo‑ rem identificadas e compreendidas. Escrevo sobre orgulho, inveja, raiva e culpa, com o enfoque de que são ocorrências normais e não transgressões nem fraquezas. Fazem parte da natureza humana, do conjunto de características físicas, mentais, psicológicas e afetivas inatas dos seres humanos, mas podem se tornar um estorvo se passa‑ rem despercebidos e influenciarem livremente a vida mental. No mí‑ nimo fazem com que se perca o foco necessário para que metas sejam atingidas, de modo a que se acumulem fracassos e frustrações. Em alguns casos podem até precipitar o desenvolvimento de um trans‑ torno mental, principalmente depressão e transtornos de ansiedade, na medida em que interferem negativamente no desempenho e no ritmo de progresso pessoal. Não é por essa razão, contudo, que trato 10 | luiz alberto hetem
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delas aqui e sim porque, por si só, pela sua simples presença desbalan‑ ceada, podem dificultar a vida e perturbar as relações interpessoais. Atualmente, mais do que em outros tempos, toma‑se remédio para tudo, de forma indiscriminada e, mais do que se imagina, desneces‑ sariamente. Neste momento, em que prevalece a problematização das vivências e reações normais do ser humano e a banalização dos trans‑ tornos mentais, facetas menos evidentes do que Mário Vargas Llosa1 denominou “civilização do espetáculo”, busco um contraponto a essa tendência que tanto empobrece a compreensão do ser humano. Como será repetido à exaustão, trato aqui de emoções normais. O fato de oca‑ sional ou mesmo regularmente algumas pessoas serem dominadas por elas não as faz doentes. Distancio‑me, portanto, da medicalização do normal e mais ainda da propensão para se identificar pessoas “em situa‑ ção de risco” em vez de pessoas saudáveis. Da doutrina de Sócrates2 depreende‑se a ideia de que todo ser humano tem em si a predisposição à busca e ao conhecimento da verdade. Acredito plenamente nisso, mas penso que tal inclinação precisa ser instigada para desabrochar. Baseio minha prática neste princípio. Assim, este livro tem dois objetivos principais. Primei‑ ro, chamar atenção para tema tão fundamental da nossa vida men‑ tal (emoções que podem se transformar em obstáculos). Segundo, contribuir para que as pessoas as identifiquem em si mesmas, ou seja, transformem‑nas em sentimentos, primeiro passo para seu ma‑ nejo e direcionamento. Evidentemente que isso implica em mudan‑ ça mais geral, algo a ser atingido ou consolidado em longo prazo, extrapolando em muito o período de leitura deste livro. Espero que
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Escritor, jornalista e político peruano, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2010. Filósofo grego (469 a.C‑399 a.C.), um dos fundadores da filosofia ocidental, que se tornou conhecido principalmente pelos escritos de Platão, seu aluno.
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ela seja suficientemente estimulante e prazerosa para subsidiar o esforço que esse desafio exige. Mais alguns esclarecimentos são necessários. Para tornar a leitura mais fluida e agradável, optei por sintetizar a frase “emoções que podem se tornar obstáculos”, recorrente por se tratar do foco do livro, na expressão “emoções‑obstáculos”. Tam‑ bém convém lembrar que elas não são excludentes. A presença mais evidente e incômoda de uma emoção‑obstáculo não elimina a das demais. Por outro lado, não estão necessariamente relacionadas. As emoções‑obstáculos são independentes. Não me preocupei em fazer relações causais entre a emoção ‑obstáculo predominante e a história de vida da pessoa. Não que elas não existam, mas precisam ser particularizadas e não é esse o foco do livro. A intenção aqui é auxiliar na identificação da emoção que está atrapalhando, sem explorar a sua origem, algo que seria feito de forma mais adequada e segura durante uma psicoterapia. Orgulho, inveja, raiva, culpa e as demais emoções são concei‑ tos e, como tal, podem ser descritos por palavras, mas não existem como entidade apartada de um agente. Uma coisa é a emoção pura, como formulada racionalmente, e outra é como ela se manifesta em fulano e afeta o comportamento de sicrano. Daí a necessidade de relatos de casos. Sem eles seria difícil ter ideia da variedade de possibilidades com que as emoções‑ obstáculos podem se expressar. Relatos de casos são uma boa maneira, se não a melhor, de auxiliar na compreensão de ideias e conceitos. Lógico que não substituem a experiência vivida, mas ajudam na sua compilação e melhoram seu aproveitamento. Os casos ilustrativos são todos fictícios, mas inspirados em his‑ tórias reais de pessoas que conheci em tantos anos de atendimen‑ to clínico. Por essa razão, como também porque se discute aqui
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emoções universais e obstáculos rotineiros, espero que o leitor se identifique e aprenda com os personagens descritos. Para minha satisfação, as mais diferentes pessoas que leram o manuscrito em al‑ gum momento se enxergaram nos relatos ou viram neles refletidos parentes e conhecidos. Então, caso isso aconteça com você, leitor, fique certo de que não está sozinho. Evidentemente, tive o cuida‑ do de modificar os dados pessoais (nome, sexo, idade, estado civil, constituição familiar e ocupação) e fundir diversas histórias para proteger as identidades dos verdadeiros envolvidos. Naqueles relatos em que a psicopatologia é aparente, ou seja, nos que um transtorno mental não pode ser dissociado da presen‑ ça da emoção‑obstáculo descrita, seja ela fator causal (estrutural), consequencial (estruturante), contribuinte ou apenas coincidente, o transtorno mental será explicitado e explicado brevemente. Não dis‑ simulo minha intenção de combater, com este livro, a medicalização do normal, a psiquiatrização dos sentimentos humanos, mas isso não pode ser feito à custa da negação da doença mental. Em muitas ocasiões, durante a revisão deste texto, tive a impressão de que abordo e relato obviedades. Às vezes até me questionei se não era óbvio demais para ser verdade, mas isso para mim deixou de ser problema. Vale a pena dizer e repetir o óbvio por pelo menos duas ra‑ zões. Primeiramente porque, por ser tão evidente, pode deixar de ser reconhecido e valorizado. Em segundo lugar, porque ele muitas vezes só se torna evidente depois de mostrado e explicado. Este livro é direcionado às pessoas pensantes, questionadoras e que se interessam pelos assuntos da mente, dentre eles as nossas emoções. Vale‑se do pressuposto de que, no momento certo (variá‑ vel para cada indivíduo), um estímulo preciso pode deflagrar uma centelha que, por sua vez, principia o processo de autoanálise, cuja consequência natural é a ampliação do autoconhecimento. Como
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obra de divulgação pode se tornar o referido estímulo, mas não pre‑ tende ser um manual de autoajuda nem visa substituir o trabalho de um psicoterapeuta. Mesmo que a pessoa consiga identificar a emoção‑obstáculo, pode não ser capaz de lidar com ela por conta própria. O psicoterapeuta é o profissional certo para acompanhá‑la nessa jornada, como um guia treinado para reconhecer armadilhas e falsos atalhos no caminho; que não determina a direção a tomar, mas questiona as decisões, obrigando maior ponderação e contribuindo para o aprofundamento da com‑ preensão do que se passa. Por fim, uma explicação sobre a estrutura do livro. Ele divide ‑se em cinco seções: a dádiva, o problema, a solução, o resultado e as considerações finais. Na primeira, abordo as emoções de maneira mais geral, enfatizando a distinção entre emoção e sentimento, suas relações com percepção e razão e noções de suas bases biológicas. Nas outras, o assunto é sempre o mesmo (emoções‑obstáculos ao de‑ senvolvimento pessoal: orgulho, inveja, raiva e culpa), mas visto de perspectivas diferentes e complementares. “O problema” reúne capítulos sobre emoções‑obstáculos específi‑ cas e ainda um sobre algumas de suas possíveis combinações. “A solução” é composta de três capítulos: ferramentas, questões es‑ senciais e metas. Os dois primeiros contêm informações gerais sobre o manejo das emoções‑obstáculos. O terceiro é mais específico para cada uma delas. Na seção “O resultado” descrevo o progresso pessoal que pode ser obtido a partir da transformação de emoções potencialmente noci‑ vas de modo a possibilitar a ação bem direcionada e construtiva, bem como discuto durabilidade da mudança, fundamentação, limites e ris‑ cos da proposta que apresento.
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Nas “Considerações finais” recapitulo os pontos principais da ideia e apresento uma conclusão geral possível com base no enfoque dado e nas suas limitações. Essa organização implica em alguma repetição de conceitos. Como em toda tentativa de transmissão de conhecimento, a “insis‑ tência criativa” em alguns tópicos é necessária. Como nos ensina o imortal Machado de Assis,3 “há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição”. Esforcei‑me para expor as ideias de modo a que a leitura não fosse maçante e a facilitar a assimilação do conteúdo. Espero, caro leitor, que ela lhe seja útil.
3 Escritor brasileiro (1839‑1908), considerado por muitos (eu entre eles) o maior nome da literatura nacional. A frase citada encontra‑se no capítulo xxxi de Dom Casmurro (1899).
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ão seria exagero afirmar que as emoções determinam a qualidade das nossas vidas. São elas que definem quem somos, para nós mesmos e para os outros; que motivam, mesmo sem nosso conhecimento, todas as decisões im‑ portantes que tomamos. Elas podem subsidiar atitudes adequadas, práticas e adaptativas como também nos levar a agir de forma impró‑ pria, nos causando embaraço e arrependimento depois. Na sua diversidade cambiante e matizada, as emoções são, a um só tempo, privilégio e fonte de sofrimento, molas propulsoras e freios, facilitadoras e dificultadoras do desenvolvimento. O que faz com que predomine seu efeito positivo ou negativo é o modo de se lidar com elas e não alguma qualidade intrínseca que possuam. Já que não podemos viver sem elas, a questão é como fazer para que possamos viver melhor com elas. Indiretamente, é também disso de que se trata este livro. O leitor notou como já estamos falando com naturalidade so‑ bre emoções? Mas, afinal, o que é emoção? Na verdade, é algo que todo mundo sabe até que alguém peça para explicar. Da mesma forma que com outros conceitos importantes (tempo e consciên‑ cia, por exemplo), é bastante difícil definir emoção com precisão e de modo conciso sem empobrecer seu real significado. Mesmo ciente disso, uma definição clara que sirva de ponto de partida para o desenvolvimento do tema do livro é necessária. Emoção é uma reação complexa – que engloba ativação neural geral e específica,
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avaliação cognitiva, mudanças afetivas subjetivas e alterações com‑ portamentais – a um estímulo visando resposta adaptativa eficaz, funcional (atendendo a uma função ou com um sentido) e adequa‑ da ao contexto. Em sua versão mais básica, as emoções ocorrem quando perce‑ bemos, com ou sem fundamento, que algo que pode afetar o nosso bem‑estar de modo substantivo, tanto para melhor quanto para pior, está acontecendo ou para acontecer. Em outras palavras, elas moldam nossa reação (automática ou aprendida) aos eventos importantes da vida; preparam‑nos para lidar com eles sem que sequer tenhamos que pensar no que fazer. Sintetizando: na maioria dos casos, as emoções são úteis e de enorme valor adaptativo para os seres humanos. Pena que compliquemos tanto coisas simples e que deveriam ser encaradas com mais naturalidade. Uma das características do mundo ocidental é a divisão das emo‑ ções, todas elas humanas, em boas, que devem ser cultivadas, e más, que devem ser eliminadas. Como se fosse simples assim. Essa visão maniqueísta pouco ou nada auxilia na compreensão da natureza hu‑ mana na medida em que dela amputa parte essencial. Seguramente, por incrível que possa parecer em pleno século 21, é motivo de an‑ gústia e sofrimento improdutivos como o foi em outros tempos na história da humanidade. No ambiente cultural em que estamos inseridos hoje, mais do que há algumas décadas, com a facilidade de acesso e a instantanei‑ dade proporcionadas pela internet, somos bombardeados por volu‑ me enorme de informações de qualidade e procedência duvidosas, mal contextualizadas, distorcidas e incompletas. Não é fácil separar o joio do trigo. As mensagens acerca do que seria certo e errado são muito mais contraditórias, fato que interfere negativamente na construção cultural de cada um na medida em que dificulta o
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aprofundamento em temas complexos e específicos. A assimilação de conceitos que filósofos, por exemplo, estudaram durante toda uma vida é feita de forma rápida, pasteurizada, superficial e, conse‑ quentemente, irrefletida. Além disso, influências seculares, algumas arcaicas e incompatí‑ veis com a realidade atual, continuam sendo perpetuadas, vigorando e causando sofrimento. Um exemplo é a recomendação para que re‑ lações sexuais ocorram somente depois do casamento, fazendo com que incontáveis jovens se sintam culpados quando não conseguem reprimir seus desejos e tenham que fingir que seguem a regra, viven‑ do uma hipocrisia. Relações sexuais com responsabilidade, sim, mas só depois do casamento? Como norma? Nos dias de hoje? Sou fa‑ vorável a que o casal adie relacionamentos íntimos até que adquira maturidade e que ambos estejam certos de que é chegada a hora, mas isso é perfeitamente possível bem antes do casamento. Ainda mais porque cresce o número de jovens, homens e mulheres, que simples‑ mente não pensam em se casar. Outro exemplo, apenas mais um para ilustrar esse ponto, é a insistência de alguns grupos em colocar as mu‑ lheres “no seu devido lugar”, servindo ao marido, cuidando dos filhos e das tarefas domésticas, apegando‑se à visão ultraconservadora da mulher no lar e na sociedade, sem se dar conta da frustração, culpa, vergonha, revolta e inveja que sua pregação desperta. Ou pouco se importando com isso. Sendo inerente à vida mental do ser humano, é mais saudável enca‑ rar as emoções com naturalidade, partindo do princípio de que reagir emocionalmente dessa ou daquela forma diante de certos estímulos é normal, até prova em contrário. Não se julga uma emoção antes de se compreender sua ocorrência.
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Emoção e sentimento Quando a emoção é identificada, ela automaticamente ganha outra conotação. Transforma‑se em sentimento. Por definição, sen‑ timento é a percepção consciente da emoção, ou seja, o orgulho, a inveja, a raiva e a culpa são a parte reconhecida destas respectivas emoções em nós mesmos. Como bem sintetiza James Laird,1 “as pessoas podem agir movidas por uma emoção sem saber que o estão fazendo, mas simplesmente não podem sentir sem saber que estão sentindo, pois os sentimentos são a experiência consciente” (des‑ taque no original). Em outras palavras, desse ponto de vista, todo sentimento é uma emoção, mas nem toda emoção é um sentimento. Somente quando a emoção é tornada consciente transforma‑se em sentimento. Evidentemente, não é preciso que uma emoção seja identificada para que se manifeste. Nossa conduta sofre interferência constante das emoções, mesmo que não reconhecidas. Sendo assim, a resposta para a pergunta “Quando elas se manifestam?” é: praticamente o tempo todo. É somente a partir do momento em que se toma consciência da emoção que se torna efetiva nossa capacidade de real interferência no rumo dos acontecimentos. Sendo assim, o modo como as emoções se apresentam é uma questão central, pois é a partir dessa informação que temos como identificá‑las. Cada emoção gera um padrão único de sensações corporais qua‑ se que instantaneamente à sua deflagração. O dificultador é que esse padrão é bastante individualizado. Cada um terá que reconhecê‑lo em si para que lhe seja de alguma utilidade na identificação precoce de orgulho, inveja, raiva e culpa de modo a que tenha alguma chan‑ ce de escolher entre se deixar levar ou não pelo sentimento. Além 1
Psicólogo norte‑americano estudioso de emoções e comportamento, no livro Feelings: the perception of self (Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 14).
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de alterações fugazes na expressão facial, na entonação vocal, na linguagem corporal e no funcionamento autonômico (frequência cardíaca, transpiração e pressão arterial), a emoção afeta também o comportamento e o modo de se relacionar com as pessoas de modo bastante característico. Sendo assim, em tese é possível valer‑se des‑ ses parâmetros na tentativa de reconhecer em si, o quanto antes, a presença de emoção mais intensa e, consequentemente, estimar que ela esteja interferindo no seu funcionamento. Não é só da conscientização, entretanto, que depende a “apropria‑ ção” de uma emoção, mas também da forma como a compreendemos e interpretamos. Alguns se referem aos sentimentos considerados “er‑ rados”, “feios” ou inadequados que carregam consigo como o seu “lado negro”. É um mau começo condenar antes de entender o que se passa, mas com muita frequência é o que acontece quando lidamos com or‑ gulho, inveja, raiva e culpa. Sentimentos podem ser destrutivos, mas, nem por isso, maus. Não existe isso de sentimento bom ou ruim, certo ou errado, direito ou si‑ nistro. Sentimento não se julga. Pelo menos não antes de tê‑lo identi‑ ficado e compreendido. Se julgado após exame mais minucioso, não o será em termos de justo ou equivocado, nem de adequado ou impró‑ prio, mas sim quanto ao seu sentido e à sua utilidade para o progresso pessoal. Aprender a lidar com eles é mais promissor e menos desgas‑ tante do que tentar negá‑los ou eliminá‑los. A distinção entre emoção/sentimento e humor não será utilizada neste livro. No nosso caso ela não é relevante. Na verdade, o humor nada mais é do que a “somatória” de ocorrências repetidas de uma emoção durante dias, mimetizando um estado emocional contí‑ nuo. O humor irritável, por exemplo, é raiva (leve) experimentada repetidamente em várias ocasiões; a altivez, por sua vez, é o resul‑ tado de orgulho se manifestando sucessivamente; a melancolia é o
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prolongamento do sentimento de culpa, e assim por diante. Não é demais lembrar que os sentimentos não são constantes nem dura‑ douros, a não ser que se perpetuem por recorrências da mesma emo‑ ção desencadeadas pela experiência ou reativadas pela memória. Nos capítulos seguintes daremos muitos exemplos das diversas possibilidades de expressão de orgulho, inveja, raiva e culpa, desde as formas mais sutis até as mais evidentes. Somente ao se tomar consciência destas emoções, de torná‑las sentimentos, será possível manejá‑las e adquirir algum grau de controle sobre elas.
Bases biológicas das emoções Não cabe aqui uma explicação detalhada da neurobiologia das emoções, e eu nem teria competência para fazê‑lo, mas considero útil e necessário o conhecimento de algumas noções do que já se sabe sobre o “cérebro emocional”. Esse, aliás, é o nome de um li‑ vro de referência escrito na década de 1990 por Joseph LeDoux,2 que continua sendo um dos pesquisadores mais renomados na área. Muitos dos dados e teorias que apresento aqui são provenientes dos trabalhos dele. As principais informações relativas às bases orgânicas das emo‑ ções derivam do estudo do substrato neurobiológico do medo, a emoção universal mais facilmente objetivável e mensurável. Quan‑ do um “gatilho” emocional se estabelece, quando aprendemos a temer alguma coisa, por exemplo, formam‑se novas conexões entre grupos de neurônios, constituindo o que LeDoux denomi‑ nou módulos (unidades funcionais) cerebrais. Esses módulos con‑ têm a memória do estímulo aprendido. São registros fisiológicos 2 Neurocientista e professor da Universidade de Nova York cujo foco de pesquisa são as bases biológicas das emoções e da memória, particularmente os mecanismos cerebrais relacionados com medo e ansiedade.
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permanentes do que aprendemos e integram um banco de dados de alerta para emoções acionado diante de situações semelhantes às que originalmente desencadearam aquelas mesmas emoções. A in‑ tensidade e a frequência da experiência emocional facilitam a ativa‑ ção e ampliam os sistemas cerebrais emocionais. Por isso, emoções muito fortes e densas (experimentadas repetidamente) predispõem respostas autonômicas e comportamentais cada vez mais precoces e abrangentes. Apesar da polêmica que ainda existe entre os neurocientistas, por enquanto prevalece a hipótese de que cada emoção teria base biológica única e característica. Se considerarmos que o córtex cere‑ bral humano tem por volta de 16 bilhões de neurônios,3 sem contar as células da glia (de sustentação), cuja participação no funciona‑ mento mental é ainda mal compreendida, vê‑se que há possibilida‑ de de combinações mais do que suficientes para apoiar essa ideia. Não será por falta de espaço para armazenamento que as emoções serão restringidas. No nível neural, as emoções teriam como substrato unidades funcionais distintas. Cada uma dessas unidades é constituída por um conjunto de entradas (de informação), um mecanismo de avaliação e um conjunto de saídas (que redundam em pensamentos, atitudes e comportamentos). O acionamento dos sistemas cerebrais corres‑ pondentes a cada emoção provoca resposta comportamental mais ou menos intensa. É no nível da expressão comportamental da ativação dos grupos de células de determinada emoção que, segundo LeDoux, é mais fácil interferir conscientemente. Sentimos medo, por exemplo, mas não necessariamente temos que demonstrá‑lo e nem agir de acordo com 3
Estimativa bastante precisa graças ao método de contagem de neurônios em cére‑ bros humanos e de outros animais descoberto pela neurocientista brasileira Suzana Herculano‑Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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esse sentimento. Em outras palavras, o gatilho ativa o módulo de cé‑ lulas, mas sua conexão com os sistemas efetores pode ser interrompi‑ da, pelo menos temporariamente. De outro lado, é também possível, mas mais difícil, desfazer a conexão entre o estímulo e a ativação dos sistemas cerebrais de tal forma que a emoção correspondente não seja desencadeada. Isso, no entanto, só com muito treinamento. A comunicação entre os neurônios dos sistemas de cada emoção é feita por intermédio de neurotransmissores. Os mais conhecidos são a serotonina, a dopamina, a noradrenalina e os neuropeptí‑ deos. Mesmo já possuindo algum conhecimento sobre a neurobio‑ logia do desencadeamento e da manutenção das emoções, é bom que se diga que elas não podem ser modificadas por medicamentos de modo consistente e previsível. Por isso, não se medica emoção, nem mesmo as que são claramente tóxicas ou nocivas. Que isso fique bem claro. A não ser, evidentemente, que façam parte do quadro de um transtorno mental. Felizmente, as medicações psi‑ cotrópicas disponíveis no mercado não têm efeito modulador so‑ bre o que é normal. Não posso deixar de fazer esse esclarecimento sobre a inadequação do uso de medicamentos para se lidar com emoções‑obstáculos devido à frequência com que isso tem sido feito atualmente. Dá‑se antidepres‑ sivo para quem está triste ou de luto, ansiolítico para toda e qualquer insegurança, estabilizador de humor para amenizar acessos de raiva e até antipsicótico para “tranquilizar um pouco”. É um absurdo. Não é porque os medicamentos se tornaram mais acessíveis e seguros que po‑ dem ser utilizados sem critério e indiscriminadamente.
Emoção, percepção e razão Emoção e percepção estão ligadas por via de mão dupla. Em um sentido, de forma totalmente inconsciente e automática, acontece o
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processo de avaliação das reações corporais em dada situação e con‑ texto que desencadeia a emoção. No sentido inverso, o estado emocio‑ nal passa a interferir na própria percepção, na apreensão dos dados, na cognição (atenção, concentração, memória e encadeamento de ideias) e, consequentemente, no comportamento. Colocado de outra manei‑ ra, pode‑se dizer que, em um nível, a percepção é fundamental para o desencadeamento da emoção e, noutro, a emoção modula a percepção, fechando um ciclo. As emoções interferem no modo como percebemos o mundo exterior, principalmente as informações das relações interpessoais. Interferem também na nossa capacidade de acessar o que sabemos (nosso banco de dados) e de enxergar nossas próprias reações. Dependendo do quanto são adequadas à situação e bem propor‑ cionadas ao estímulo, aguçam nossa percepção. Caso contrário, turvam‑na. Quando dominados por uma emoção, interpretamos o que está acontecendo de modo a reforçá‑la, justificá‑la e mantê‑la. Em contra‑ partida, ignoramos o que não combina com ela. Nesse estado, refratário aos dados de realidade (externa e interna), temos grandes dificuldades para nos ajustar adequadamente à situação em que nos encontramos. Eis aí parte da explicação de por que é problemático tomar decisões movidos por emoções fortes, no calor de uma discussão ou sem o dis‑ tanciamento mínimo do problema. Além das emoções, o ser humano foi agraciado com a faculdade da razão. É ela que nos permite analisar o mundo externo e a vida in‑ terior, ponderar, fazer planos com base na interpretação da percepção dos fatos e na experiência acumulada, apreciar, criticar a atitude dos outros e se criticar, modular o comportamento e, finalmente, racioci‑ nar. LeDoux sintetiza a relação entre essas duas instâncias mentais da seguinte maneira: “emoção e cognição são mais bem compreendidas
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como funções mentais interativas, mas distintas, mediadas por siste‑ mas cerebrais interativos, mas distintos”.4 Não há como dominar racionalmente as respostas emocionais. Elas nos acometem. Não adianta não querer que elas aconteçam. Não temos o controle direto sobre nossas emoções, realidade que é expli‑ cada inclusive pela “circuitaria” cerebral. A quantidade de vias neurais que ligam os centros emocionais básicos com os sistemas cognitivos (corticais) é muito maior do que no sentido inverso. Atenuar a rea‑ ção aos “gatilhos”, no entanto, e mudar o comportamento provocado por determinados sentimentos é perfeitamente possível. O primeiro passo é dado quando tomamos consciência da emoção, quando ela se torna sentimento. Somente a partir daí podemos submetê‑la ao crivo da razão. Ter alguma noção da neurobiologia das emoções, do que já sabe‑ mos do nosso cérebro emocional, pode auxiliar na tarefa de modular racionalmente parte das reações emocionais. No mínimo serve para nos dar uma ideia dos nossos limites de atuação: algumas coisas são factíveis, outras não. É importante saber, por exemplo, que uma vez a resposta emocional acionada, ela persistirá até se extinguir. Não importa pensar se é certa ou errada. Na prática, nessas horas só é possível acompanhar consciente e criticamente o que está acontecendo. Lutar contra um sentimento é como querer colocar o bebê de volta na barriga da mãe depois de ele ter nascido. Não só é impossível como também totalmente inadequado. Ou seja, ter consciência é necessário, mas não suficiente para interferir no processo. A melhor alternativa é assumir o sentimento, apropriar‑se dele, qualquer que seja, para que ele siga seu caminho.
4 LeDoux, Joseph. O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, p. 63.
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Não é possível acelerar o processo de extinção dos sentimentos, mas sabendo lidar melhor com eles pelo menos não iremos retardá‑lo. É importante manter presente o fato de que não atuar influenciado pelos sentimentos‑obstáculos, simplesmente senti‑los, não implica em questões de moral ou sensatez. É como costumo dizer: sentir e pensar pode, não faz mal desde que isso se dê no nosso mundo privado (a mente) e nele possa ser contido. Estamos autorizados a perceber um sentimento mesmo que não queiramos agir movidos por ele. Aliás, até para que tenhamos esse poder de decisão.
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