iluminados.indd 6
28/05/2012 14:52:12
Iasmine Guidogli
Iluminados
COLEÇÃO NOVOS TaLENTOS DA LITERATURA BRASiLEIRA
São Paulo 2012
iluminados.indd 3
28/05/2012 14:52:12
“E disse-lhes: eu via Satanás como raio cair do céu.” ( LUCAS 10:18).
iluminados.indd 8
28/05/2012 14:52:13
1 Quando Miranda Físon passou pelo portão da escola de Gálatas, ela já sabia o que queria. Ela estava procurando Gehon Evilaht. Miranda não precisava pedir informações ou ajuda. Ela sabia onde ele estava; senti-lo era fácil como respirar. Ela passou pela imponente entrada de pedras esculpidas da escola, e logo sentiu que aquilo seria divertido. Todos os alunos aglomerados na entrada da escola olharam para ela. Miranda sabia o quanto era bonita e sexy, ainda mais hoje que ela resolvera usar uma bota de couro preta combinando com sua calça também preta; além disso, estava usando uma blusa vermelha com detalhes em prata; a roupa mostrava o quanto seu corpo magro era curvilíneo. Seus cabelos pretos estavam tão grandes que ela podia sentir as pontas esvoaçando ao redor de sua cintura; sua pele suavemente bronzeada destacava os provocantes olhos azuis e o sorriso sempre malicioso em seus lábios. Miranda passava pelos alunos lançando olhares provocantes para cada um deles. Em seu percurso ela captou as mais diversas sensações, provindas das pessoas diretamente para ela: de devoção a ódio. Gehon Evilath estava sentado na última cadeira da fila da janela, tal como fazia desde o seu primeiro dia naquela escola. Ele se sentia sozinho, “mas tudo bem”, pensou ele, “isso já é normal.” Gehon havia sido abandonado por seus pais em um 9
iluminados.indd 9
28/05/2012 14:52:13
orfanato e, apesar de ele não conhecê-los, todo mês ele recebia uma gorda poupança, o que garantia a ele estudar na Gálata, a mais prestigiada escola da cidade, e usar roupas de marca. Todo o dinheiro, entretanto não o livrava de comentários maliciosos por parte de seus colegas. Miranda estava andando pelos corredores da escola, indo na direção da secretaria, e ela percebeu que aquela escola realmente valia cada centavo. A arquitetura interior era tão majestosa quanto a de um palácio. Os armários de uso pessoal dos alunos eram decorados de acordo com a personalidade de cada um, as paredes eram pintadas de um ouro claro, mas ofuscante. Os armários estavam em um grande corredor e, após percorrê-lo, Miranda entrou em um hall onde uma escada em espiral estava posicionada no canto leste. A escada era branca e seu corrimão tão dourado que “machucava” os olhos. Nas paredes havia tantas pinturas que Miranda ficou impressionada, e dentre todas elas Miranda reconheceu uma: Cristo julgando os pecadores. Na sala de aula, Gehon começava a utilizar-se do seu modo de defesa habitual enquanto os outros alunos se preparavam para a aula. Ele podia sentir que algo iria acontecer hoje e que seu destino dependeria disso: o ar ao seu redor estava mais denso do que o habitual e a excitação era crescente. Todos queriam saber quem era a novata gostosa. Aquele alvoroço que assolava a turma tomava conta dele, e Gehon começou a imaginar como ela seria: loira, morena... Ruiva talvez? Como seria sua boca? Seria fina? Não, com certeza a boca seria carnuda e de um vermelho-vivo, o tipo de boca que ele adoraria beijar... – Sonhando com seu papaizinho, Gehon? – Gehon foi retirado instantaneamente de seus devaneios. 10
iluminados.indd 10
28/05/2012 14:52:13
– O que foi, idiota? Esqueceu como se fala? – Gehon estava olhando para Donald Mcbeer, o típico valentão de escola, sendo alto e ruivo, apesar de seus olhos castanhos. Ele nunca gostou de Gehon, e esforçava-se ao máximo para mostrar isso. – Pergunte à sua namoradinha se eu sei ou não falar. Na verdade ela me pareceu bem interessada no que eu estava falando. – Todos aos seus lugares, agora! – Gehon e Donald estavam tão concentrados um no outro que nem perceberam o professor chegar. O senhor Charlie Inavo ministrava a matéria de História e tinha o poder de transformar algo legal em incrivelmente chato. Hoje estava usando uma calça cáqui grande demais para ele, presa por um cinto preto pouco abaixo do umbigo. Sua camisa vermelha estava para dentro da calça. Os seus ralos cabelos castanho-claros estavam partidos para a direita e seus olhos cor de folha-seca estavam irredutíveis. – Isso ainda não acabou, Evilath – Donald falou, baixo o suficiente para apenas Gehon escutar, e foi se sentar. – Bom, hoje falaremos sobre História Contemporânea. Na verdade, veremos um vídeo de um ex-soldado falando sobre a Segunda Guerra Mundial. – E esse soldado ainda está vivo professor? – Guiseppe Iniciares era um estudante italiano, muito famoso por suas conquistas amorosas, mas com certeza não pela inteligência. – Ele é tão vivo, senhor Iniciares, que seu cadáver talvez ainda tenha cabelo. – A turma toda riu com o comentário, mas o próprio Joseph não parecia muito feliz. – Com licença, posso entrar? – Subitamente todos pararam de rir e olharam para a porta. 11
iluminados.indd 11
28/05/2012 14:52:13
– Entre, senhorita. – O professor parecia incrivelmente calmo e educado, ainda que se tratasse de alguém atrasado. Miranda olhava para a turma se divertindo ainda mais do que esperava. Aquelas crianças olhavam para ela como seguidores admiravam o seu Deus. – Bom dia, meu nome é Miranda Físon. – Ao dizer isso, ela abriu um sorriso tão estonteante que percebeu o professor ficando um pouco tonto. – Bo... Bom dia, senhorita, sou o professor de História, agora vá se sentar. Miranda olhou atentamente para todos, para alguns mandando até mesmo um sorriso comprometedor, entretanto ela continuou andando, pois sabia exatamente com quem precisava se sentar. E esse alguém era Gehon Evilath. Miranda olhou através da janela e desejou poder estar lá fora. Jogou sua mochila ao lado da carteira e se sentou. Sua primeira reação ao ver Gehon foi surpresa. Ele era alto, com aproximadamente 1,90m de altura, ombros largos e um corpo esculpido. Seus cabelos eram pretos e lisos e lhe caiam pelos ombros. E o rosto? Ahhh... O seu rosto... Era um deleite: os olhos, sua cor alva destacando os lábios bem torneados e vermelhos como o sumo da amora, eram de um marrom tão escuro que você poderia mergulhar neles e acordar olhando para um céu de meia-noite. Miranda não esperava que alguém como ele pudesse possuir uma beleza tão divina. – Oi, meu nome é Gehon Evilath. – Gehon olhava para ela com um sorriso brincalhão nos lábios. – Oi, muito prazer, meu nome é... – Na verdade, eu sei qual é o seu nome, Miranda! – Gehon continuava com um sorriso brincalhão nos lábios que ela odiou. 12
iluminados.indd 12
28/05/2012 14:52:13
– Que bom que você sabe, agora guarde bem na sua memória, pois ele vai fazer parte do seu vocabulário. – Miranda lançou-lhe um olhar tão provocante que por alguns segundos os olhos de Gehon ficaram confusos. – Eu adoraria ter o seu nome na minha boca... Mas não só o nome! – Gehon se assustou com o que disse. Nunca em sua vida ele tinha cantado uma garota. Ele estava acostumado a ser cantado. As luzes foram apagadas e o filme começou. Miranda sorria levemente para Gehon. “Com certeza ele tem muito de seu pai”, pensou ela. “O charme é a primeira delas.”
13
iluminados.indd 13
28/05/2012 14:52:13
2 Na hora do intervalo Miranda desfilava pelos corredores da escola como uma rainha em seu castelo. Ao entrar no refeitório, ela logo percebeu a disposição dos lugares; e, como em toda escola, tinha os populares, os não populares, os góticos... Ela achou muita graça naquilo tudo; não eram erradas as comparações entre escola e inferno. Gehon estava na fila do lanche para pegar batatas assadas comuns e o pudim de coco. A cantina era tão suntuosa como toda a escola em si. As paredes eram de um branco puro com detalhes arabescos, as mesas eram de madeira com desenhos intrínsecos que lembravam a coroa de espinhos de Jesus. Gehon sempre se sentia fora de lugar ali; ele sempre queria se afastar o mais rápido possível. Miranda observou enquanto ele sentava em uma mesa sozinho. Ela queria ir se sentar próximo a ele, mas sabia que parte do protocolo era ele se aproximar dela. Miranda entrou na fila da cantina e continuou observando Gehon. Ele comia silenciosamente, quase com pesar; seus olhos estavam negros como a noite e sua pele um pouco mais pálida. – Donald, me escuta, você não precisa tirar nenhuma satisfação com ele por minha causa, está tudo bem. – A vozinha fina e irritante de Melissa Packood enchia todo o salão. 14
iluminados.indd 14
28/05/2012 14:52:13
– Largue-me, Mel, esse desgraçado vai ter o que merece. – Os olhos de Donald faiscavam de ódio. Ele foi até a mesa onde Gehon estava sentado, disposto a causar muita confusão. – Evilath, repete o que você disse na aula! – Donald chegava a cuspir em um esforço irracional de falar, apesar de estar com muita raiva. – Disse sobre o quê, Pato Donald? – Gehon estava incrivelmente calmo e o sorriso brincalhão continuava em seus lábios. – Pato Donald? Que merda é essa? – Donald bateu o punho tão forte na mesa que o prato de Gehon chegou a dar pulinhos. – É porque seu nome é Donald, e tem o Pato Donald... E pensando bem, até que você se parece com um pato. – Donald estava vermelho de tanta raiva, já Gehon parecia estar inabalável... Até aquele momento. – Pelo menos, eu tenho um pai! E então tudo começou. Gehon levantou da cadeira derrubando a, seu cabelo preto esvoaçou e seus olhos faiscavam. “Ele parece um Deus”, pensou Miranda. Com um movimento rápido ele pegou o braço de Donald e o prendeu atrás das costas. Donald urrou de dor e Gehon riu. – Você é capaz de me insultar, mas não consegue aplacar minha raiva? – Gehon apertou mais o braço de Donald e bateu a cabeça dele repetidas vezes na mesa. Gritos ecoaram por todo o refeitório, e quanto mais as pessoas lamentavam, mais Gehon se divertia. – Pare, Gehon, escute a minha voz! – Miranda estava com a mão no rosto de Gehon e falava mansamente com ele. – Vamos, vamos embora daqui. Com muita relutância, Gehon soltou Donald, pegou sua mochila e saiu do refeitório. 15
iluminados.indd 15
28/05/2012 14:52:13
Na pequena cidade de Millis, no estado norte-americano de Massachusetts, condado de Norfolk, era início do mês de novembro, o inverno já havia começado, a chuva e o vento assolavam a cidade. Ao sair pelos portões da escola, Gehon foi atingido por uma chuva torrencial; em poucos segundos, ele já estava completamente ensopado. Seu cabelo preto se grudava ao pescoço. “O que diabos tinha acontecido comigo? Aquilo não foi normal. Foi como... Como... Se alguém se apoderasse de mim, eu poderia ter matado ele e ter rido disto”, pensou ele. – Ei, precisa de uma carona para casa? – Miranda estava parada nos degraus da entrada com a chave do carro acenando para ele. – Tá, tudo bem. Qual é o seu carro? – Gehon não sabia por que confiava nela, mas tudo bem, ele já confiara em pessoas piores. – Vem comigo, é o Land Rover preto ali. Gehon adorou o conforto do carro. Os bancos eram de couro e no painel o som era o modelo mais moderno, lançado recentemente. E o cheiro do carro... Aaahh... O cheiro do carro era uma mistura de couro com rosas, ele estava maravilhado e sabia que esse cheiro provinha dela. – Então, para onde vamos? – Os longos cabelos de Miranda estavam soltos e reluziam com as gotas d'água que pendiam deles, seus olhos brilhavam cada vez mais. – Você decide para onde, não quero ir para casa. – Miranda ligou o carro e dirigiu pela rodovia principal, não tinha nem um carro na rua e as lojas estavam fechadas. Os prédios antigos estavam desbotados e pareciam sombrios. No carro se instalou um silencio sepulcral. Miranda ligou o som e estava tocando a 16
iluminados.indd 16
28/05/2012 14:52:13
música Sympathy for the devil, regravada pelo Guns ‘N Roses. Gehon começou a cantar a música a plenos pulmões e Miranda riu com isso. – Uau, “Guns”, hein... Agora eu posso até te respeitar! – Ela sorria e ele também. Os dois cantavam juntos. Miranda parou o carro em frente a um lago afastado da cidade, mas que nem por isso deixava de valer a pena. O lago era maravilhoso: ele era ladeado de árvores altas e verdes com folhas que sobreviviam mesmo no outono. Os pingos da água da chuva se chocavam contra o lago, provocando pequenas ondulações na água; a chuva que caia no carro provocava uma sinfonia única e perfeita. – Pronto para me contar toda a sua vida? – Gehon percebeu o tom brincalhão, mas reconheceu na voz dela a verdade daquelas palavras. – Na verdade, não tem muito o que contar. – Ah, qual é! Todo mundo tem alguma coisa para contar. – E todos nós temos segredos – disse Gehon. Com certeza, Miranda teria alguma dificuldade com esse garoto. “Ele é esperto demais”, pensou ela. – E então, precisa de uma toalha? – Surpreso, Gehon percebeu que no banco de trás havia várias toalhas amontoadas, e até mesmo a parte de cima de um biquíni. – Eu faço natação toda terça-feira e para adiantar o processo eu já deixo as roupas aqui. – Ela entregou para ele uma toalha branca com renda verde nas pontas. Era bonita e tão cheirosa... O cheiro de couro com rosas já era conhecido. – Normalmente as toalhas não mordem, e essa aí está limpa também. – Ela sorria de um modo doce e misterioso. Ela passava a toalha pelos cabelos e tentava, inutilmente, secar a blusa. 17
iluminados.indd 17
28/05/2012 14:52:13
– Gehon, vira pra lá, eu vou tirar a blusa. – E você espera que eu não olhe? – Os olhos dele estavam de um marrom tão profundo que por um instante Miranda se perdeu neles. – A escolha é sua, se você olhar, irá voltar para casa a pé. – Tudo bem, talvez os seus peitos não valham andar quatro quilômetros debaixo de chuva. – Ele revirou os olhos e fingiu contentamento, Miranda riu. Quando ela virou para pegar uma blusa e um sutiã seco, seu braço encostou-se ao de Gehon, e ela mergulhou nas lembranças dele. Gehon estava sentado no sótão do orfanato em um canto escuro e sozinho. Ele tinha um passarinho em suas mãos. Gehon olhava fascinado para o pequeno animalzinho pardo, mas de repente seus olhos faiscaram e em um único movimento ele quebrou o pescoço da ave. O pobre bicho caiu desfalecido no chão frio e Gehon olhava para o pássaro com a curiosidade desmedida de um garoto de quatro anos. Ao perceber que o bichinho não ia se mover mais, Gehon chorou lágrimas de sangue; suas lágrimas caíam no pequenino corpo do passarinho manchando-lhe as penas. Em uma tentativa de limpar o pássaro, o garotinho o aninhou em seus braços. Poucos segundos depois o passarinho se movia novamente. Mas não era mais o pequeno bichinho. Na verdade, era um corvo com reluzentes penas pretas, um enorme bico e temíveis olhos vermelhos. Aquele pequeno passarinho pardo e doce havia se tornado uma ave que sinaliza morte e mau agouro. “Eu sou o culpado, foram minhas lágrimas que fizeram isso”, pensou Gehon. “Eu nunca mais irei chorar.” E de fato, após aquele dia ele nunca mais chorou. 18
iluminados.indd 18
28/05/2012 14:52:13
– Vai demorar muito? – Miranda foi arrancada da lembrança de Gehon. Ela se sentia estranha... Ela sentiu pena daquele garotinho, e agora queria confortar o homem que estava ao seu lado. – Vamos embora. – Algo no jeito como ela disse aquelas duas palavras fez Gehon não contestá-la. Na volta para a cidade o silêncio sepulcral se instalou novamente sobre os dois. Gehon estava perdido em seus pensamentos e Miranda só conseguia pensar que precisava odiar Gehon, odiar a ponto de matá-lo!
19
iluminados.indd 19
28/05/2012 14:52:13