Strange Angels

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Lili St. Crow Autora bestseller do The New York Times


Lili St. Crow

Livro 1

novo século

®

São Paulo 2010


P rólogo

A fronte praecipitium, a tergo lupi1.

Não contei ao meu pai sobre a coruja branca da vovó. Sei que

deveria. Sabe aquele espaço entre o sono e os sonhos, que nem bem é sonho, nem bem uma premonição totalmente madura, mas pequenas e estranhas combinações de ambos e que, às vezes, envolve tudo? Os olhos abrem, vagarosos e sonolentos. Enquanto ainda estamos aquecidos e cansados, enxergando uma névoa esbranquiçada, surge a sensação de que alguém nos observa. Foi quando eu a vi. A coruja agitou-se sobre o parapeito de minha janela, banhada pelo brilho do luar; cada uma de suas penas pálidas mostrava-se nítida e transparente sob a luz gélida. Não havia me preocupado em baixar aquela porcaria de veneziana ou fechar as cortinas. Para que o trabalho, quando nós – meu pai e eu – ficávamos apenas alguns meses em cada povoado? Pisquei para o pássaro de olhos amarelos. Em vez de me sentir confortável por vovó pensar em mim – e não pergunte como sei que os mortos pensam nos vivos; já vi o bastante para saber disso –, senti uma perturbação nítida, como um caco de vidro sob a superfície de meu cérebro. “À frente o precipício, às costas, os lobos”, em latim (N.E.).

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O bico da coruja era negro, e suas penas tinham manchas espectrais, semelhantes a teias de aranha; sombras contrastando com o fundo branco como a neve. Parecia encarar meus olhos sonolentos durante uma eternidade, agitando-se um pouco, da mesma forma que vovó agia quando acreditava que estavam me incomodando. De novo não. Vá embora. Em geral, ela só aparecia quando algo interessante ou muito ruim estava prestes a acontecer. Meu pai jamais a tinha visto, ou pelo menos eu achava que não. Ele, porém, adivinhava quando eu a avistava, e isso o faria pegar uma arma até que eu conseguisse abrir a boca e dizer se estávamos indo ver um velho amigo ou se estávamos ferrados. Na noite em que vovó morreu, a coruja tinha pousado na janela. Mas acho que, em seus momentos finais, enquanto sua respiração ficava cada vez mais curta e fraca, nem as enfermeiras nem o médico viram a ave. Eles teriam dito algo. Naquele momento, eu sabia o bastante para, ao menos, ficar de boca fechada. Sentei-me e segurei a mão da vovó até que sua vida se esvaísse; então fui me sentar no saguão, enquanto a equipe se ocupava do corpo vazio e o levava dali em uma maca. Fechei-me dentro de mim mesma, quando o médico ou o assistente social tentavam falar comigo, limitando-se a repetir que meu pai seria avisado, que estava a caminho, mesmo eu não tendo a menor ideia de onde ele realmente estava. Por pelo menos uns bons três meses, meu pai se envolveu em coisas incomuns, enquanto eu assistia ao declínio da minha avó. Claro que, naquela manhã, meu pai apareceu, muito abatido e com a barba por fazer, o ombro enfaixado e um machucado no rosto. Trouxe todos os documentos, assinou a papelada e respondeu a todas as perguntas. Apesar de tudo ter dado certo, às vezes eu sonho com aquela noite, imaginando se novamente serei abandonada em um corredor iluminado com lâmpadas fluorescentes, cheirando a desinfetante e frio pra caramba. Não gosto de pensar nisso. Aconchego-me no travesseiro, observando a coruja se agitando, cada uma das penas recortada pelo frio da lua. Meus olhos permaneceram fechados. Fui tragada pelo calor da escuridão e, quando o alarme do relógio disparou, era de manhã. Os 10


fracos raios de sol de inverno derramavam-se pela janela, desenhando um quadrado no carpete marrom. Finalmente iria sair debaixo dos cobertores, pronta para ficar congelada, já que o meu pai não tinha ligado o aquecedor. Levei uns bons vinte minutos no chuveiro antes de experimentar alguma coisa próxima de um despertar. Ou de me sentir um ser humano. No instante em que vinha batendo os pés escada abaixo, já estava muito brava, e o humor piorando. Meu jeans favorito não estava limpo, e eu tinha uma espinha do tamanho do Monte Pinatubo2 na testa, debaixo de um tufo de cabelos castanhos cor de água suja. Escolhi uma camiseta cinza e um casaco vermelho com capuz, um par de coturnos e nada de maquiagem. Pra que me preocupar, né? Não ia ficar aqui tempo suficiente para que alguém se importasse. Minha sacola bateu no chão. A louça da noite passada ainda continuava na pia. Meu pai estava à mesa da cozinha, com os ombros inclinados para a frente, diante da bandeja; conforme carregava os pentes de sua arma, cada uma das balas estalava baixinho. – Olá, querida. Resmunguei, agarrando o suco de laranja, abrindo a caixinha e tomando um gole longo e gelado. Enxuguei a boca e soltei um arroto musical. Tão distinto... seus olhos azuis injetados de sangue não abandonaram os pentes, e eu sabia o que isso queria dizer. – Vai sair à noite? – foi o que perguntei, querendo dizer “Sem mim?”. Clic. Clic. Colocou o pente carregado de lado e pegou outro. As balas revestidas de prata soltavam faíscas. Talvez tivesse passado a noite inteira acordado com aquilo, preparando-as e carregando-as. – Não venho para o jantar. Pede uma pizza ou algo assim. Isso significava que ele iria a algum lugar “mais perigoso”, não só “meio perigoso”. E que não precisava de mim para resolver a parada. Deve ter conseguido algum tipo de informação. Tinha saído todas as

O Monte Pinatubo é um vulcão instável, localizado na ilha Luzon, nas Filipinas (N.T.).

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noites naquela semana, sempre aparecendo na hora do jantar, com cheiro de fumaça de cigarro e de perigo. Em outros povoados, ele me levava junto na maioria das vezes; as pessoas não se importavam com uma adolescente bebendo Coca-Cola em um bar, ou então íamos a lugares onde meu pai tinha certeza de que poderia resolver qualquer problema com seu olhar gélido de militar ou falando bem lentamente. Naquele povoado, porém, ele não havia me levado a lugar algum. Então, se conseguiu informações, foi por conta própria. Como? Provavelmente à moda antiga. Acho que ele prefere assim. – Posso ir com você. – Dru. – Só uma palavra, um tom de advertência. O pingente prateado da minha mãe brilhava em seu pescoço, piscando na luz da manhã. – Você pode precisar de mim. Eu posso levar a munição e avisar quando algo invisível surgir na esquina, olhando para você. Ouvi o lamento teimoso em minha voz e soltei outro arroto para disfarçar. Esse foi tão sonoro que quase sacudiu a janela que dava para um quintal malcuidado, com balanços destruídos. Havia uma caixa com a louça diante dos armários próximos ao fogão; eu me segurei para não chutar aquilo. O pote da minha mãe que tinha o formato de uma vaca preta e branca dando risada ficava perto da pia. Era a primeira coisa que saía das caixas em todas as casas novas. Sempre o punha na caixa do banheiro, junto ao papel higiênico e ao xampu; era sempre o último a ser guardado e o primeiro a ser pego. Digamos que eu tenha meio que me acostumado com essa história de embalar e desembalar. E tentar achar papel higiênico depois de trinta e seis horas dentro de um carro não tem graça nenhuma. – Desta vez não, Dru. – Ainda assim, ele me examinou. As mechas de seu cabelo aparado traziam um brilho louro sob a luz fluorescente. – Vou chegar tarde em casa. Não me espere. Quase protestei, mas sua boca se transformou em uma linha fina e dura, e a garrafa sobre a mesa me advertia. Jim Beam3. Estava

Jim Beam é uma marca de uísque Bourbon (N.T).

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quase cheia na noite passada, quando fui para a cama, e os resíduos de um líquido cor de âmbar brilhavam nela com mais intensidade que seu cabelo. A cabeça de meu pai trazia um louro pálido, quase platinado, apesar de ser castanho e dourado. Tenho uma versão mais clara dos cabelos cacheados da minha mãe e uma cópia melhorada dos olhos azuis do meu pai. O resto de mim, tanto faz. Tirando o nariz da minha avó, se bem que ela talvez tivesse tentado me fazer sentir melhor. Sou bem normalzinha. A maioria das garotas passam por uma fase “patinho feio”, mas estou começando a achar que a minha vai durar a vida toda. Isso não me incomoda tanto. Melhor ser forte do que bonita e inútil. Estou mais para uma garota simples e com a cabeça no lugar do que para uma bonitona, em qualquer situação. Limitei-me a abaixar e pegar minha sacola, a alça arranhando minhas luvas de lã sem dedos. Apesar de coçarem, elas aquecem, e se você colocá-las um pouquinho abaixo do punho, poxa, elas quase somem. – Tá bom. – É melhor você tomar café. – Clic. Outra bala encaixando no pente. Seus olhos caíram novamente sobre aquilo, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Comer? Quando ele estava para sair sozinho e enfrentar o pior? Tá me tirando? Meu estômago embrulhou. – Vou perder o ônibus. Quer ovos? Não sei por que ofereci. Ele gostava de ovos caprichados, mas nem a minha mãe nem eu conseguíamos fazê-los do jeito certo. A vida toda eu estourei as gemas, mesmo quando ele tentava me ensinar a maneira correta de sacudir os ovos gentilmente com uma escumadeira para tirá-los da frigideira. Nas manhãs de domingo, minha mãe ficava rindo e dizendo que ele teria de se contentar com ovos mexidos ou esturricados; ele chegava por trás, colocava os braços ao redor da cintura dela e acariciava-lhe os cabelos compridos, cacheados e castanhos. Eu sempre berrava: “Aaargh! Sem beijo!”. E ambos davam risada. Aquilo tinha sido antes. Mil anos atrás. Quando eu era pequena. 13


Meu pai balançou a cabeça um pouco: – Não, criança, valeu. Tem dinheiro? Bati os olhos na carteira sobre o balcão e a apanhei. – Vou pegar vinte. – Pegue mais vinte, só para garantir. – Clic. Clic. – E a escola, como vai? Tá ótima, pai. Muito da hora. Duas semanas em um povoado novo bastam para eu fazer todo o tipo de amizades. – Bem. Peguei duas notas de vinte dólares de sua carteira, esfregando o plástico de proteção sobre a foto de minha mãe com meu polegar, como eu sempre fazia. Havia um espaço brilhante nesse plástico, bem abaixo do sorriso largo e iluminado dela. Seu cabelo castanho era tão cacheado quanto o meu, mas puxado para trás em um rabo de cavalo frouxo, cachinhos louros caindo em seu rosto com formato de coração. Ela era bonita. Dava para ver naquela foto por que meu pai se apaixonou por ela. Quase podia sentir o perfume dela. – Só bem? – Clic. – É legal. É idiota. Sempre a mesma coisa – toquei o piso de madeira com a ponta da bota e coloquei a carteira de volta. – Tô indo. Clic. Não ergueu os olhos. – Tá bom. Te amo. Estava vestido com seu moletom dos fuzileiros navais e o par de calças azuis do mesmo tecido, com um furo no joelho. Ele se exercitava com aquelas roupas. Olhei para o alto de sua cabeça enquanto acabava de carregar o pente, colocava-o de lado e apanhava outro. Quase sentia em meus próprios dedos o som de cada bala entrando. Minha garganta tinha virado pedra. – Tá. É isso aí. Tchau. Não morre. Saí da cozinha rumo ao saguão batendo os pés, com uma das caixas empilhadas roçando na minha canela. Ainda não havia desempacotado a sala. De que adiantava? Dali a alguns meses eu teria de colocar tudo nas caixas de novo. Bati a porta da frente, também, e puxei meu capuz, deixando meu cabelo para trás. Não me preocupei em fazer nada nele além 14


de passar um pente. Minha mãe tinha cachos lindos que ela deixava soltos. Os meus eram puro frizz. A umidade da região isolada do Meio-Oeste só piorava isso; era um cobertor frio e molhado que transformava, na mesma hora, minha respiração em uma nuvem branca, além de morder meus cotovelos e joelhos. Tínhamos uma casa alugada em um quarteirão comprido, reto como uma régua, de casas semelhantes, todas dormindo debaixo da luz fraca do sol, que tentava atravessar o tempo nublado com muito custo. O ar tinha gosto de ferro, e eu tremia de frio. Antes daqui estivemos na Flórida, sempre um calor grudento, suado e abafado, melando a pele como se fosse óleo. Fugimos de quatro poltergeists em Pensacola e de uma aparição de uma mulher que nos assombrou, e que até o meu pai pôde ver, em um povoado isolado do mundo ao norte de Miami. Teve aquela mulher assustadora, com serpentes mocassino-boca-de-algodão e cascavéis em gaiolas de vidro, que vendeu ao meu pai a prata necessária para que ele cuidasse de outras coisas. Lá, não precisava ir à escola. Estávamos tão atarefados permanecendo em trânsito, indo de um hotel ao outro, que não importava o porquê de meu pai precisar de prata: isto não era motivo para nos deter. Agora eram os Estados de Dakota do Norte e do Sul, com neve até os joelhos. Ótimo. Nosso quintal era o único com ervas daninhas e grama alta. Também tínhamos uma cerca de madeira, mas a tinta estava desmanchando e descascando e faltava alguns pedaços. Parecia um sorriso “janelinha”. Além disso, a varanda era forte e a casa era ainda mais reforçada. Meu pai não queria saber de alugar bangalôs de baixa qualidade. Dizia que era um modo ruim de criar uma criança. Afastei-me de cabeça baixa e mãos enfiadas nos bolsos. Nunca mais vi meu pai com vida outra vez.

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– enhorita Anderson? A voz da senhora Bletchley zumbia ao pronunciar meu nome. Com o rosto apoiado no punho, eu via, pela janela, um campo de beisebol abandonado e frio, enquanto aguardava tocar o sinal. O Colégio Foley era contra campainhas. Em vez delas, um som semelhante ao toque de um celular ecoava pela classe quando estava na hora de enfrentar uma nova chatice em outra sala. O lápis na minha mão repousava sobre a folha em branco. Corri os olhos à minha volta bem devagar, o silêncio súbito no local me avisando que todos os olhares se voltavam para mim. Odeio isso. Bletchley era uma mulher de cara redonda, cabelos brancos e rechonchuda. Os outros professores talvez achassem que ela era uma alma bondosa e inofensiva. Tinha olhos pequenos, castanho-escuros, atrás de óculos de armação metálica, e um batom vermelho-sangue cobrindo os contornos de seus lábios. Suas mãos, quando não apertavam uma régua de madeira como se fosse uma bengala, estavam constantemente segurando a parte de baixo de seu suéter amarrotado. Tinha três deles: um, lilás; outro, azul com rosas tricotadas; e um, amarelo-bile com colarinho estilo Peter Pan. Hoje, estava com o amarelo. Seu olhar era o de um lobo prestes a atacar as ovelhas. Os meninos a chamavam de “cachorro louco” pelas costas. Ela conseguia farejar fraqueza. 16


Existem dois tipos de professores: o softcore e o hardcore. Os professores softcore têm um desejo sincero de ajudar, ou amoleceram com o tempo. Em geral, são nervosos e têm medo de garotos, principalmente os de colégio. Os hardcore são de uma espécie totalmente diferente. São como tubarões, máquinas produzidas para devorar, com um senso bem apurado para perceber sangue na água. – Estamos prestando atenção, senhorita Anderson? Dava para sentir a tensão no tom de voz de Bletchley. Uma onda de sussurros correu pela sala. Bletch tinha escolhido o alvo de seus próximos trinta minutos, e esse alvo era eu. Adoro ser a aluna nova. Na verdade, eu nem deveria ter aberto a boca. Professores hardcore são como bullies4. Se você não reage, logo acham que é burro e o deixam em paz. O garoto gótico meio oriental na minha frente se mexeu na cadeira. Era alto, magro, e tinha um ninho de cabelos negros e ondulados na cabeça. A parte de trás de seu pescoço ficava visível, conforme se inclinava na cadeira. O casaco preto que ele nunca tirava tinha o colarinho erguido nos cantos, mas atrás era dobrado para baixo. Olhei fixamente para sua nuca debaixo dos cachos escuros. Ah, que se dane, tô nessa! – Fort Sumter – disse. Silêncio. Os olhos de Bletchley encolheram por trás de seus óculos de armação de metal, e eu tinha aberto minha boca. Então, entrei com os dois pés no peito dela. – A senhora perguntou onde começou a Guerra Civil. Foi em Fort Sumter, de 12 a 13 de abril de 1861 – emiti as palavras em um tom uniforme, cansativo, e os cochichos se transformaram naquele tipo especial de gargalhada silenciosa que um professor hardcore odeia mais do que tudo. Quem podia imaginar que história dos Estados Unidos no ensino médio era tão divertida?

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Bully: valentão. Qualquer pessoa que se valha da superioridade física ou de poder para intimidar, ameaçar, extorquir ou maltratar outra (N.T.).

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Bletch me olhou por um instante. Ali ninguém me conhecia ainda, então eu podia sair daquela na boa. O garoto gótico na minha frente se retorceu outra vez na cadeira, fazendo-a ranger. Estava na cara que a professora resolveu escolher outra pessoa, com um olhar que prometia dar problemas para mim mais tarde. – Obrigada, senhorita Anderson. Fez uma pausa prolongada enquanto batia de leve na mesa com a régua, meditando. Os tornozelos transbordavam dos sapatos, apesar das meias de náilon muito escuras que ela usava por baixo de uma saia de brim longa e bamboleante. Pareciam meias elásticas daquelas que os diabéticos usam para ajudar a circulação. Minha avó usava uma dessas quando sentia dores nos tornozelos. Minha pele esfriou assim que afundei na cadeira de plástico duro, sem ousar olhar pela janela outra vez. Bletch poderia voltar para mim com muita facilidade. Não tinha contado ao meu pai sobre a coruja na minha janela. Será que ele ainda estava em casa? A sensação de insegurança e desconforto no meu estômago piorou. Bati os olhos na nuca do garoto à minha frente, mas ele se retorceu de novo, puxando os cantos de seu colarinho com dedos nervosos. Queria sussurrar para ele: “Não se mexe. Ela tá procurando a próxima vítima”. Se minha cabeça estivesse lá mesmo na sala em vez de preocupada com meu pai, talvez eu tivesse feito algo como dar um tapa na cabeça dele para salvá-lo, porque eu não estava nem aí se me mandassem para a diretoria ou para a sala de detenção, ou para sei lá onde. A lâmina caiu. – Senhor Graves. Os olhos de Bletch iluminaram-se. O garoto na minha frente ficou todo rígido, os ombros, tensos. Sangue na água. Tentei não me sentir culpada. – Espero mesmo que o senhor esteja anotando tudo. Como a senhorita Anderson respondeu à pergunta sobre o início, talvez o senhor possa nos contar sobre as causas da Guerra Civil. As sobrancelhas dela ergueram-se, e o brilho de rapina daqueles olhos me lembrou das serpentes bocas-de-algodão nos aquários de 18


vidro, me encarando sem descanso antes de abrirem as bocas e fazerem aquele ruído horroroso de catraca. As pancadas das cobras no vidro ecoavam na minha cabeça, junto do aroma de arroz com feijões vermelhos, cheiro de corpo e incenso. Estávamos bem longe da Flórida. A dona daquela lojinha de artigos de ocultismo tinha me deixado bem desconfortável, por causa dos seus olhos opacos e da sombra rastejando por trás dela – uma névoa de perturbação que as pessoas comuns não viam, mas que parecia uma corrente de ar frio. Ela demorou um tempo me medindo antes que meu pai estalasse os dedos e lhe comunicasse que estava falando com ela, muito obrigado, minha senhora. Eu deveria ter contado para ele sobre a coruja. A certeza repentina era assustadora, e meus dedos tinham adormecido, formigando por causa do frio. – Hum. Causas da Guerra Civil. Aaahn... O garoto na minha frente vacilou, e Bletch o tinha pegado. Ela passou o resto da aula escolhendo-o, mesmo se ele acabasse dando as respostas certas, isso quando ela dava a ele uma chance para falar. Assim que o sinal tocou, avisando o fim do round, até a nuca dele estava vermelha. Eu me senti mal, mas não deixei aquilo me atrapalhar. A multidão nos corredores nunca mudava: os jogadores de futebol atacando como tubarões, as líderes de torcida se achando e o restante de nós tentando sobreviver. Um bando de noias reunidos em volta de um armário, e tenho certeza de que vi um saco de papel pardo trocar de mãos. Olhei de volta – nada nenhum professor à vista. Uma garota da aula de artes passou batido pela minha tentativa de aceno e sumiu rapidinho, sua mochila vergando sem ânimo de um dos ombros. Odeio ser a aluna nova. O refeitório era um mar de ruídos e exalava um cheiro de cera e comida industrial. Tinha umas moedas para usar em um telefone público entre o refeitório e o Corredor da Morte que levava à diretoria. Assim, coloquei algumas e disquei o número escrito na minha agenda do Yoda – o último de uma lista de números semelhantes, rabiscados a lápis ou caneta azul. O telefone tinha sido ligado quando mudamos para lá, estava anotado debaixo do nome do inquilino 19


anterior, e era mais fácil ficar só pagando contas por uns tempos. Que ninguém ache que eu ia decorar cada um dos malditos números de telefone. Ou, pelo menos, foi o que eu disse a meu pai quando ele me encheu por ter anotado. Ele disse para eu tomar cuidado com a língua e parou de me amolar com esse assunto. Harmonia Doméstica: esse é o apelido do meu pai. O aparelho tocou no meu ouvido uma vez. Duas. Cinco. Ou ele não estava em casa, ou estava fazendo exercícios, sem ir atrás de coisa alguma. Pensei em cabular o resto do dia. Só que isso o deixaria muito bravo e eu ia ouvir outro sermão sobre o valor do ensino. Se me atrevesse a comentar que o ensino não era tudo e que a escola não ia me ensinar como exorcizar um quarto ou dominar um zumbi, ganharia outro sermão sobre a necessidade de ser normal. Só porque ele caçava coisas saídas de contos de fadas não queria dizer que eu tinha o direito de matar aula. Não senhora. Mesmo ele sendo bem cego sem mim, já que só o lado materno da família dele tinha aquele dom que a minha avó chamava de “o toque”. Belo toque. Não sei se é para definir como “doideira” ou “assustador”. Podemos dizer que o júri ainda não chegou a um veredicto. Meu pai nunca me pareceu triste ou infeliz por não ter entrado na fila da intuição antes de nascer. Por outro lado, minha avó nunca deu muita trela para o que chamava de “atitude deprê”, e eu não conseguia imaginá-la diferente quando meu pai era garoto. É esquisito pensar nele como um adolescente desengonçado, mas eu vi as fotos. Vovó era grande nas fotos. Desliguei depois de quinze toques e fiquei olhando para o telefone, roendo uma cutícula. Doía pra caramba, e havia um machucado começando a sarar nas juntas da minha mão esquerda, culpa do peso da sacola. As outras garotas não têm pais que gritam com elas “faça seu trabalho, não importa a dor”, “bata com mais força”, “entra lá e mata, mata, mata!”. Outras garotas nunca encheram garrafas térmicas com água benta, nem entregaram munição por uma janela enquanto seus pais enfrentavam coisas que rastejam depressa, como baratas gigantes mutantes. Tinha sido assim em Baton Rouge, e foi 20


bem ruim. Precisei levar meu pai de carro até o hospital e mentir sobre o naco arrancado da sua panturrilha. Às vezes ficava difícil dizer onde acabavam as mentiras para o mundo normal e começava a falsa pose, necessária no Mundo Real. Existem tantos paramilitares se divertindo por baixo dos panos do Mundo Real que a quantidade de caras posando de machão chega a proporções épicas. O telefone continuava tocando. – Dane-se! – disse, por baixo de minha respiração, por baixo das ondas de ruídos que ecoavam pelo refeitório. Nem consegui de volta meu troco; o aparelho engoliu. Durante um segundo, eu fiquei ali, só olhando para o telefone como se ele de repente pudesse me dar uma boa ideia. Aquele lugar tinha cheiro de lã úmida e concreto molhado, de carpete sintético e de dois mil moleques respirando. Sem falar de suor de meias elásticas e de comida arrancada de baixo das bombachas do Ronald McDonald. Cheiro de escola. É bem semelhante em todos os lugares dos Estados Unidos, com diferenças regionais mínimas nos quesitos chulé e churrasquinho de gato. O barulho da multidão, vindo do refeitório, machucava meus ouvidos e fazia minha cabeça doer igual às enxaquecas da minha mãe. Tinha fome, mas só de pensar em enfrentar aquilo, me acotovelar na fila, depois achar um lugar para sentar onde não precisasse olhar para ninguém nem dividir a mesa com alguns babacas me parecia complicado demais para aturar. Se fosse para casa e meu pai estivesse lá, eu escutaria “o sermão”. Se fosse para casa e ele não estivesse lá, eu ficaria esperando, preocupada. Se ficasse para as aulas de geometria e artes de esta tarde, surtaria na hora, ainda que a aula de artes fosse, em geral, a parte mais agradável do dia. Nem me fale da perda de tempo chamada “aula de cidadania”. Há exemplos mais práticos de cidadania no noti­ciário da TV. Ou seja, caso você defina cidadania como “gente metida e de cabelo produzido”. Nenhuma dessas aulas ensina nada real. Prefiro estar com meu pai em uma tocaia ou fazendo o que ele chama de “caçar informações”, ir a lojas de artigos de ocultismo ou bares, onde as pessoas que 21


conheciam o Mundo Real, o mundo das trevas, reuniam-se e conversavam aos sussurros entre um e outro gole de bebida. Como na loja de chá em que August, um velho amigo de meu pai, frequentava em Nova York. Ali, você avançava para entrar na escuridão do bar e avançava novamente para sair. Ou no bar em Seattle, onde o dono tem presas que brotam do maxilar inferior e uma cara larga, cheia de verrugas, parecendo até uma coisa que mora debaixo de uma ponte e se alimenta de bodes. Ou o clube noturno em Pensacola, onde todas as luzes estroboscópicas se assemelham a rostos gritando ao cair no chão. E aquela loja country em uma rodovia secundária perto de Port Arthur, em que a mulher sentada em sua cadeira de balanço na varanda tem o que você precisa em uma sacola de papel bem ao lado dela, enquanto a poeira deixa marcas e brilhos na janela, mesmo à noite. Há locais assim por todo o canto, onde você pode comprar coisas que não deveriam existir ou, a rigor, não existem. Isso se quiser pagar. Às vezes em dinheiro. Na maioria das vezes, em informações. Em outras, com algo menos tangível. Favores. Lembranças. Ou mesmo almas. Quem sabe eu possa investigar por conta própria e achar um bom lugar para o meu pai tomar uns gorós. Os botecos que levam ao Mundo Real ficam escondidos do mundo normal, mas sempre me saltam à vista, como um dedo machucado. Acho que é por causa disso que minha avó sempre me fez brincar de “o que está na mesa”. Nesse jogo, você fecha os olhos e tenta se lembrar de tudo o que foi colocado para o almoço ou para o jantar, enlatados ou toalhas de mesa. Melhor isso do que ficar lidando com a mesma chatice que todo mundo da minha idade tem de tolerar. Assim, dei a volta e segui outro caminho, para as portas que levavam aos campos de futebol e beisebol. Poderia cortar caminho através dos campos e, quem sabe, fugir pelos bosques – o Foley era uma daquelas escolas que tinha um campus aberto, uma raridade hoje em dia. Estava com os vinte dólares extras, o bastante para me sentar em um bar ou em uma cafeteria, onde ninguém iria me amolar antes que eu armasse minha “cara séria” e começasse a seguir aquela coceirinha da intuição. 22


O frio lá fora era um tapa num rosto já ardendo. Ainda continuava aquele cheiro de ferro, aquele gosto de moeda na boca. Andei de cabeça baixa, meus coturnos esmagando ervas daninhas congeladas; meu nariz começou a escorrer na mesma hora. Bela escolha. Cabular aula e gelar o traseiro, ou voltar lá pra dentro, que é quente, e literalmente morrer de tédio. – Ô! Ô, você! Não dei bola para a voz, limpando o nariz com a manga do meu moletom. Passadas esmagavam as folhas atrás de mim. Não curvei os ombros, um sinal óbvio de que você ouviu alguém. Se fosse um professor, eu ia ter de inventar um motivo para estar fora, e passei a pensar em exercitar meu músculo das mentiras criativas. Deviam dar aulas disso. Quem ia ensinar? Imagina só como seriam as provas! – Ô, Anderson! – a voz era de alguém novo demais para ser professor. E era de homem. Droga. Que sorte a minha. Os valentões em geral não mexiam comigo, mas, nunca se sabe. Apoiei os saltos no cascalho e girei em torno de mim mesma, minha cabeça se levantava e meu cabelo estava caindo nos olhos, embora a maior parte dele estivesse socado em meu capuz. Era o garoto gótico meio oriental da aula de história dos Estados Unidos. Ele era bem alto. Seu casaco preto e comprido se agitava conforme ele derrapava para parar. Ajeitou o colarinho para cima de novo. O frio deixava suas bochechas e seu nariz cor de cereja, debaixo de seu ninho de cabelos pintados de preto. Arfou por um instante com seu queixo curto, erguendo-se sob uma camiseta do Black Sabbath, e me examinou através de suas tranças. Seus olhos tinham um tom verde pálido e bizarro, mas o cabelo tentava evitar que eles espionassem de vez em quando. Dali a alguns anos ele provavelmente ficaria bem interessante, com aqueles olhos diferentes e o cabelo escuro, ondulado e espesso. Neste momento, porém, ele estava naquele estágio interme­ diário e engraçado, no qual cada parte do corpo de um cara parece ter sido tirada de um catálogo de peças diversas. Coitado. 23


Esperei. Finalmente, ele recuperou o fôlego. – Quer um cigarro? – Não. Ai meu Deus, não! Ele tinha uma cara de bebê, tipo as que a maioria dos rapazes xinga ao olhar no espelho, que não combinava com o próprio nariz nem com as maçãs do rosto. A espécie de cara indesejável para alguns mestiços, quando eles não puxam a carta da beleza. Dava a ele a cara de uns 12 anos, a não ser pelo fato de ser bem alto. Quem sabe o cabelo fosse uma tentativa de parecer que ele tinha, na verdade, “dezesseis”. Usava coturnos bonitos, de ponta de aço, amarrados até os joelhos. Coroando tudo isso, um crucifixo invertido preso a uma corrente de prata balançava em seu peito ossudo. Dei um passo para trás e olhei para ele outra vez. Não. Esse garoto não tinha nada do Mundo Real. Eu acho que não, mas é melhor verificar. Melhor conferir duas vezes e ficar sussa, do que conferir uma só e se ferrar depois, como diria meu pai. Meu pai. Será que ele já saiu? Ainda é dia, talvez esteja bem. Não gostei desse aperto crescendo no peito. O garoto colocou a mão em um bolso e sacou um maço amarrotado de cigarros Winston. Os cantos de seus olhos enrugaram. Pelo menos ele não ficava botando banca com os olhos puxados, truque usado por um monte de mestiços. Parece até que estão incomodados com a luz do sol. – Quer um? – perguntou de novo. Que droga é essa? Encarei o crucifixo. Será que ele tinha alguma noção do significado daquilo? Ou como aquilo poderia arrumar uma porção de problemas para ele, rapidinho, em certos lugares? Provavelmente não. Por isso que o Mundo Real é o Mundo Real: porque o mundo normal acha que é só ele que rola na parada. – Não. Valeu. Quero uma xícara de café e um club sandwich5. Quero me sentar num canto e desenhar. Quero arrumar um lugar onde não bata sol e eu não me sinta um E.T. Me deixa em paz, cacete! Eu

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Sanduíche feito com peito de peru, presunto, bacon, tomate, alface e três fatias de pão de forma, servido com batatas fritas (N.T.).

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devia ter contado ao meu pai sobre a coruja. Senti dor na cons­ciência. – Que mau o lance com a Bletchley, hein? Ele levantou os ombros. Um movimento ligeiro, típico de um pássaro. Tudo nele era de pássaro, desde o nariz, que parecia um bico brigando com a cara de bebê cor de caramelo, até o jeito de mexer os dedos, sem parar. Com um tapinha, tirou um cigarro do maço e fez surgir um isqueiro Zippo. Acendeu o canudinho do câncer, soltou uma nuvem de fumaça e na mesma hora teve um ataque de tosse. Meu Deus. Aqui estava eu, congelando o traseiro com o gótico descolado. Alguns dias eram tão piores que os outros que até perdiam a graça. – Não tem problema – disse, assim que conseguiu voltar a falar. – Ela é uma vaca. Faz isso direto. Bom saber que não atrapalhei. Fiquei lá, parada, sem a menor ideia do que falar. Me contentei com eu mesma dar de ombros. – Até mais! – Você tá cabulando? – foi andando atrás de mim, sem saber que eu estava indo embora. Tá aí um belo começo. Me deixa em paz. – Não tô a fim de aula hoje. – Tudo bem. Eu conheço um lugar. Você joga sinuca? – tentou não se engasgar em outra baforada de fumaça. – Graves, prazer. Quando foi que eu te chamei para me acompanhar? – Eu sei – voltei o olhar para baixo, para minhas botas, marcando o tempo em que eu ficava parada. – Dru. E nem ouse perguntar se é apelido. – Dru – repetiu. – Você é nova. Tá aqui faz umas semanas, né? Bem-vinda ao Foley. Afirma o óbvio ululante e apresenta o comitê de boas-vindas local. Não via nenhum meio de me livrar dele neste exato instante, então fiz um som de aprovação. Atravessamos o campo de futebol fazendo uma fila esquisita, ele encurtando as passadas em respeito à minha ausência de pernas de girafa. Conforme caminhávamos, eu o estudava. Concluí que, numa briga, eu tinha mais chances de vencê-lo. Não parecia muito durão. 25


Mesmo assim, eu estava entrando a pé em uma floresta com um garoto que não conhecia. Dei algumas olhadelas rápidas em suas mãos e concluí que talvez ele fosse gente boa. Pelo menos eu poderia lhe dar uma surra caso tentasse algo, e o bosque não era tão grande. Fez outra tentativa: – De onde você é? De um planeta muito, muito distante. Onde os pesadelos são reais. – Da Flórida. Mais cedo ou mais tarde essa pergunta sempre aparecia. Na maioria das vezes, quando era mais nova, eu mentia. Na maior parte do tempo, eu fingia que sempre tinha morado no último local de onde estava vindo. Na verdade, as pessoas não querem saber nada sobre você. Só querem que você caiba nos pequenos espaços que elas determinaram. Nos primeiros dois segundos decidem o que você é e só ficam tensas ou incomodadas se você não está de acordo com seus julgamentos instantâneos. É a única coisa que o mundo normal e o mundo Real têm em comum, tudo depende do que as pessoas acham que você seja. Perceba isso, represente o papel que esperam e não vai ter tempo ruim para você. – É, você tem meio que um sotaque sulista. Bela oportunidade, hein? Vai nevar! Afirmou aquilo como se eu tivesse de ser incrivelmente grata a ele pelo aviso. A alça da minha sacola afundou no meu ombro. Tentei não me ofender. Eu não tenho sotaque sulista. Tenho um pouquinho do sotaque da minha avó, e só isso. – Valeu pelo aviso – nem me preocupei em disfarçar o sarcasmo. – Opa, sem problema. O primeiro é grátis. Quando bati os olhos, ele estava sorrindo debaixo daquele cabelo. Cabelo que quase ameaçava comer seu nariz. O nariz orgulhoso e ossudo, no entanto, enfrentava bem aquilo, e o garoto parecia sentir muito frio. Nem ao menos usava luvas. Por um segundo eu me diverti com a ideia de dizer algo. Oi. Meu nome é Dru Anderson. Meu pai surtou legal depois que minha mãe morreu e agora viaja por aí caçando coisas que pulam na noite, matando coisas que só se acham em contos de fadas e histórias de 26


horror. Ajudo-o quando posso, mas na maior parte do tempo eu incomodo, ainda que consiga adivinhar onde algo não humano pode dar as caras. Estou cabulando aula porque daqui a três meses não vou estar mais aqui. Nada dessa droga interessa porra nenhuma. Em vez disso, eu me peguei quase sorrindo de volta para ele: – Você precisava de umas luvas. Ele ficou me encarando, agitando a cabeça para tirar os cabelos do rosto. Percebi que seus olhos eram verdes, com uns fios de castanho e dourado, contornados por cílios escuros e grossos, olhos que mudavam de cor. Os garotos sempre têm os melhores cílios; é tipo alguma lei cósmica. E os mestiços ganham uma ajuda a mais por conta da genética. Quando crescer debaixo daquele nariz e o rosto afilar um pouco, as garotas vão ficar muito interessadas nele. E talvez isso até suba à cabeça. – Luva queima o filme – respondeu. Sua orelha esquerda tinha um brilho prateado. Um brinco que eu não conseguia entender bem. – Você vai congelar até a morte, caramba! Tínhamos chegado ao fim do campo de futebol e ele passou na frente, indo à direita, rumo a uma trilha poeirenta. Galhos sem folhas se entrelaçavam acima de nós, e o cheiro seco da poeira de folhas caídas fazia cócegas no meu nariz. A pilha de tijolos que formavam a escola lá atrás logo sumiria de nossas vistas, e aquele para mim foi o momento mais feliz do dia. Graves fungou o nariz e jogou o cabelo para trás, enquanto dava outra tragada. Por um instante a fumaça ficou parada no ar, no formato de uma pena, enquanto ele a soltava, mas eu pisquei para enxergar melhor. – A gente precisa sofrer em nome da beleza. As garotas não querem saber dos caras que usam luvas. Aposto que as garotas não querem saber de você, aqui em Stepford Podunk. – Como você sabe? – pisei em uma raiz, minha sacola batendo no quadril. 27


– Eu sei – lançou um olhar para mim sobre o ombro, o cabelo quase engolindo também seu sorriso. – Você não disse se gostava de jogar sinuca. Não me senti culpada de novo. Ele estava tentando ser legal. Em toda escola sempre tinha um cara que achava que tinha mais chance com as alunas novas. – Mas aposto que te dou uma surra nesse jogo! Resolvi que podia esperar para procurar pelo point paranormal da cidade. Talvez eu ganhasse uma nova versão do sermão do meu pai, se fosse atrás disso sozinha. Como naquela vez em que ele me achou disputando com um gremlin de orelhas pontudas e olhos de peixe morto para ver quem bebia mais Coca-Cola, e quase teve um treco. – Tudo bem – ele nem parecia incomodado. – Se você conseguir, Dru. Pensei em contar a ele que meu pai tinha me ensinado a jogar sinuca quando a grana estava curta, mas resolvi não fazer isso. Talvez se eu envergonhasse o menino ele me deixasse em paz.

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Lili St. Crow é autora da série Dante Valentine. Ela vive em Vancouver, no estado de Washington, em uma casa cheia de gatos, com seu marido e fihos. Strange Angels é sua primeira série para o público jovem. Visite o site www.lilistcrow.com para saber mais.


O Mundo Real é um lugar apavorante. Basta perguntar para Dru Anderson, uma órfã de 16 anos – garota durona que já acabou com sua parcela de bandidos. Ela está armada, é perigosa e está pronta para atirar primeiro e perguntar depois. Então, vai levar um tempo até que ela possa descobrir em quem confiar... Dru Anderson se acha estranha por mais tempo do que é capaz de se lembrar. Ela viaja de cidade em cidade com seu pai, caçando coisas que nos aterrorizam à noite. Era uma vida bem esquisita, mas boa – até que tudo explode em uma cidade gélida e arruinada de Dakota, quando um zumbi faminto arromba a porta da cozinha. Sozinha, aterrorizada e sem saída, Dru vai precisar de cada pedacinho de sua esperteza e treinamento para continuar viva. Seres sobrenaturais decidiram ser os caçadores – e desta vez, Dru é a presa. Chance de sobrevivência? De pouca a nenhuma. Se ela não durar até amanhecer, acabou a brincadeira... DRU ANDERSON NÃO TEM MEDO DO ESCURO, MAS DEVERIA.

www.strangeangels.com.br ISBN: 978-85-7679-392-2

www.novoseculo.com.br


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