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pecado
Lutero 8 ª reIMpreSSÃo
e a igreja
Fernando Jorge
7ª edIÇÃo, reVISta e auMentada
São Paulo / 2015
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pecado
Lutero e a igreja
Fernando Jorge
Copyright © 2007 by Fernando Jorge 7ª edição – outubro de 2007
Direção Geral
Nilda Vasconcelos
Supervisão Editorial
Silvia Segóvia
Capa
Guilherme Xavier / gxavier.com
Projeto Gráfico
Guilherme Xavier
Composição
Cintia de Cerqueira Cesar
Revisão
Fernando Jorge
Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jorge, Fernando, 1959- . Lutero : e a Igreja do pecado / Fernando Jorge. -Osasco, SP : Novo Século Editora, 2007. 1. Diabo 2. Inquisição 3. Lutero, Martinho, 1483-1546 4. Protestantismo 5. Reforma I. Título. 07-8307
CDD-270.6
Índices para catálogo sistemático: 1. Reforma, 1517-1648 : Igreja cristã : História 270.6
Impresso no Brasil Printed in Brazil Direitos cedidos para esta edição à Novo Século Editora Rua Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andar CEP 06023-010 – Osasco – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br
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A gradecimento
Agradeço ao dinâmico editor Luiz Vasconcelos pelo apoio dado à 7ª edição desta obra. E também às competentes Silvia Segóvia e Nilda Campos Vasconcelos, que sabem cuidar com carinho da feitura de livros. Sou grato, da mesma forma, ao meu amigo Guilherme Xavier, mestre na execução dos originais projetos gráficos e das belas capas.
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S umário
1. “Satanás é realmente um homicida!”..................................9 2. “Quem visita Roma, perde a fé” ......................................23 3. Papas e sacerdotes corruptos. ...........................................31 4. Os sete demônios do papa Alexandre VI..........................41 5. “São Satanás, roga por mim”............................................47 6. Nem os mortos escapavam da cobiça do Vaticano............57 7. “Ele é louco! Ele é louco!”................................................65 8. O Vaticano é a capital do Inferno. ...................................75 9. Na dieta de Worms, perante o imperador. .......................85 10. O diabo no castelo de Wartburg. ...................................101 11. Ele, o diabo, galopa na cabeça de Lutero........................117 12. O diabo “mora nos papagaios e nos periquitos”.... .........127 13. As hordas de Satã...........................................................135 14. Lutero é eleito “papa”, durante o saque de Roma. ..........147 15. O diabo aconselha o reformador a suprimir a missa.......159 16. Pisar e esmagar a cabeça da serpente. .............................167 17. Lutero continua a ver o diabo em toda parte..................177 18. O diabo mostra as suas nádegas ao reformador. .............187 19. Considerações finais sobre a tese deste livro. ..................197
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Bibliografia....................................................................213
Índice onomástico.........................................................219
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“S atanás
é realmente um homicida !”
1 Nascido no dia 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na Alemanha, o reformador religioso Martinho Lutero foi educado com extrema brutalidade pelos seus pais. Filho de um camponês que se dedicou à mineração na Turíngia, o menino aprendeu as primeiras letras em Mansfeld, para onde a sua família havia se mudado. Anos depois, já homem maduro, Lutero iria dizer: – Meu pai me chicoteou tanto, certa ocasião, que fugi e zanguei‑me, e ele teve muito trabalho para me reconquistar... Minha mãe, noutra ocasião, bateu em mim até eu sangrar, porMargarida que roubei uma mísera castanha. Ziegler, mãe O garoto, em apenas um dia, é surrado quinze vezes. de Martinho Lutero. Ele iria descrever aos seus amigos, no futuro, como os pais o fizeram passar fome e como o enxotaram do lar para o gelo e as trevas de áspera madrugada de inverno. Frisemos: a mãe do futuro reformador, a crédula Margarida Ziegler, era muito supersticiosa e possuía um acentuado gosto por histórias de demônios. Eis um fato importante, que até agora não mereceu relevo nas biografias de Lutero. Durante a infância do filho, Margarida teria sido ameaçada pela cólera de uma 9
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mulher a serviço do diabo. E outra fulana, também sob as ordens do rabudo, e que havia matado um padre, certa vez obrigou o pequeno Lutero e os seus irmãos a gritar horas e horas seguidas, pois se não fizessem isto, poderiam morrer. São histórias de sua meninice, evocadas pelo Lutero adulto. Aqui vai mais uma, narrada por ele. Perversa feiticeira, quando Lutero era criança, resolveu perturbar o lar de um feliz casal. Em vão o diabo ali tentara estabelecer a discórdia. Mas a bruxa, de modo secreto, colocou uma faca debaixo do travesseiro do marido e outra debaixo do travesseiro da mulher. Depois insinuou, na orelha de ambos, que um queria matar o outro, pois os dois objetos constituíam a prova desta afirmativa. Então o marido ergueu o travesseiro da mulher, agarrou a faca e assassinou a sua esposa. Consumado o crime, Satã apareceu diante da bruxa e entregou-lhe, como recompensa, um par de sapatos na ponta de uma vara. A bruxa quis saber: – Por que não te aproximas de mim? Satã emitiu estas palavras: – Porque és muito perversa, mais perversa do que eu. Venceste onde eu fracassei e tu me dás medo. Talvez Lutero tivesse ouvido este velho provérbio em Hans Lutero, pai de Eisleben, na época de sua infância: Martinho “O homem é fogo, a mulher estopa, o diabo vem e Lutero, retratado por assopra”. Lucas Cranach. Escutando as histórias sobre o demônio, o menino passou a acreditar que era por causa dele que existiam os cegos, os surdos, os mudos, os paralíticos. E o maligno, conforme lhe contaram, morava no fundo das águas lodosas e das florestas espessas, sombrias, onde a luz benigna do céu não se atreve a penetrar. 10
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Após receber a instrução primária em Mansfeld, o jovem foi enviado, no ano de 1497, à escola dos Irmãos da Vida Comum, uma ordem de Magdeburgo. Os membros dessa ordem eram monges pobres, cuja vida austera formava contraste com os costumes dissolutos do clero da época. Ali, por falta de recursos, o rapaz não ficaria mais do que um ano. Continuou os seus estudos em Eisenach, o berço de Johann Sebastian Bach e capital dos landgraves da Turíngia, onde ouviu as lições de dois excelentes mestres, Braun e Trebonius. Para se manter, cantava nas ruas, diante das portas das casas. Encantada com o timbre de sua bela voz, uma senhora o protegeu, Úrsula Cotta, viúva de um rico comerciante. O pai queria que o filho seguisse o curso de Direito, Agostinho, porém Lutero almejava iniciar‑se, preliminarmente, nas Santo Gravura francesa veredas do conhecimento filosófico. Estas não tardariam a em madeira, do século XV. levá‑lo à Teologia, à ciência dos atributos e das perfeições de Deus. Aos dezoito anos, portanto, o jovem se matricula na Universidade de Erfurt, na qual também estudou o Direito, o Latim, a Filosofia, a Música, e até a Astronomia. Diariamente, das quatro horas da manhã até às cinco da tarde, Lutero mergulhava nos textos, analisava o pensamento de Epicuro, Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho. E sobre este, o “Doutor da Graça”, ele iria expender um firme juízo: 11
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“Depois da Bíblia, não há doutor da Igreja que seja superior a Santo Agostinho. Sem dúvida, São Crisóstomo é eloqüente, e São Jerônimo é muito versado nas ciências mundanas, mas não encontramos, em todos os padres reunidos, a metade do que vale o próprio Santo Agostinho”. O rapaz empalidecia à simples menção do nome de Cristo. Isto ele confessou mais tarde, pois o ensinaram a contemplar a figura do Nazareno “como um juiz irado e severo”. Todos tinham de pagar pelos seus próprios pecados: “E visto não podermos fazer tal coisa, éramos encaminhados aos santos para que apelássemos a eles. Se rezássemos à querida mãe Maria, diziam, talvez ela pudesse desviar a ira de Cristo e nos obter a misericórdia”. Com vinte anos, segundo certos biógrafos, Lutero examinou pela primeira vez um exemplar da Bíblia, preso por corrente à prateleira de uma estante. Fato contestado pelo erudito Jean Boisset, professor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Montpellier. Esta informação, no entender desse mestre, adquiriu o aspecto de “imagem muito fácil”, pois a Bíblia era uma obra pia, difundida e conhecida entre a cristandade. Entretanto, no volume 32 da Nouvelle biographie générale, o dr. Hoefer, abordando o assunto, reproduziu a seguinte evocação de Lutero: “Esta Bíblia latina, que eu havia encontrado na biblioteca do convento, tornou‑se a minha leitura favorita. Todas as passagens se gravaram tão bem na minha memória, que eu poderia até citar as páginas onde elas estavam impressas”.
*** Durante certo passeio com um amigo, o jovem Lutero, de súbito, num assomo de desespero, puxou a espada e tentou cortar as artérias do pulso. Como os dois se achavam perto de Erfurt, o amigo conseguiu transportá‑lo à casa de um médico, que lhe salvou a vida. Apren12
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deu então a tocar alaúde, no decorrer da convalescença. Multiplicavam‑se as crises espirituais do rapaz de Eisleben, as lutas de sua alma. Ele conheceu os prazeres oferecidos pelo vinho e pelas mulheres, mas um dos seus companheiros narrou que às vezes, no meio de uma orgia, na ebriez da mocidade, quando as gargalhadas rebentavam, o estranho jovem quedava-se imóvel, com o olhar fixo, “a escutar o eco longínquo da grande serenidade”. Lutero, consoante o seu biógrafo Hoefer, tombou gravemente enfermo, na sua época de aluno da Universidade de Erfurt. Uma “febre nervosa” o acometeu e nele deixou traços profundos, a sombra de pesada tristeza. Assim, nesse estado de espírito, ele sentiu o impulso de ingressar num mosteiro, de vestir o hábito de monge. Mas existe outra história, para explicar o tal impulso. Em julho de 1505, já com o título de magister artium (professor em ciências), o jovem Martinho Lutero, quando percorria o caminho de uma floresta, foi atirado ao solo, em conseqüência do estouro de um raio. Teve a impressão, no instante dramático, de estar avassalado pelo terror da morte súbita. Quis erguer-se e gritou, com a alma cheia de angústia: – Santa Ana, ajudai‑me! Far‑me‑ei monge, se me for poupada a vida! Alguns autores informam: Lutero tomou esta decisão por causa da morte do seu amigo Alexis, que o acompanhava e que caiu ali, fulminado pelo raio. Isto nos parece inverossímil. Todavia, eis como o teólogo H. Baiton interpretou o fato: “Naquele único clarão [o do raio], viu o desfecho do drama da existência. Havia Deus, todo‑terrível, Cristo, o inexorável, e todos os demônios de olhares oblíquos, saltando de seus esconderijos em lagos e florestas... que poderiam agarrar os seus emaranhados cabelos crespos e atirá‑lo no Inferno”. O episódio do raio, no entanto, não é considerado verdadeiro por alguns estudiosos, pois Lutero ficou sem marca nenhu13
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ma no corpo e na roupa. Além disso, como sustenta o aforismo jurídico, testis unus, testis nullus (“uma testemunha, nenhuma testemunha”). Sem o prévio conhecimento dos pais, Lutero ingressou no mosteiro da Ordem dos Eremitas Agostinianos de Erfurt, uma das mais rígidas da Alemanha. Levava consigo apenas dois livros, um de Plauto e o outro de Virgílio, reveladores do seu interesse pela literatura clássica. Amigos o conduziram até o mosteiro e Lutero chorou, quando se despediu deles. Crotus Rubeanus, um desses amigos, mais tarde lhe enviaria estas palavras: “A Providência divina descobriu o que devias ser um dia, quando, no regresso do lar paterno, o fogo do céu te fez cair por terra perto de Erfurt, qual outro Saulo, e separando‑te de nossa sociedade, introdu‑ ziu‑te na ordem de Agostinho”. O raio teria sido um clarão celeste, um aviso de Deus, como a imagem sobrenatural contemplada por São Paulo na estrada de Damasco? Ele, Lutero, iria também exercer a missão de evangelizador e transformar‑se em apóstolo dos gentios? Tal como o judeu de Tarso às portas de Damasco, o filho de Eisleben se mostrou aterrorizado diante daquele impacto decisivo... São Paulo, após se converter ao Cristianismo, experimentou três anos de solidão e de penitência nas regiões ermas da Arábia. Inspirado talvez no maior dos apóstolos, no insigne pregador de Antioquia, cuja eloqüência sagrada converteu o cônsul romano Sérgio Paulo e o centurião Cornélio, de Cesaréia, o jovem e ardente Martinho Lutero se entregará, a partir do dia 17 de julho de 1505, a uma dura vida de estudos, recolhimento e orações. Levantava‑se todos os dias, com os outros frades, às duas horas da manhã. O seu hábito era negro, de lã grosseira, provido de um capuz branco. Sete vezes ao dia, badalando melancolicamente, os sinos chamavam os monges à escura capela. Exagerado nas práticas ascéticas, na ânsia de ser um cristão perfeito, Lutero 14
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chegou a ficar três dias sem comer e sem beber. Várias vezes desmaiava, devido às vigílias, aos estudos exaustivos, aos prolongados jejuns. Mas a sua alma não conhecia a paz. Certa ocasião, depois de ouvi‑lo, o seu confessor lhe disse: – Tu és louco. Deus não está descontente contigo, és tu que estás descontente com ele. Nenhum texto bíblico, porém, conseguiu dar‑lhe, nessa época, a paz de espírito, a certeza da graça e da bondade divinas. A eterna habitação da dor, do tormento incurável, o Inferno trevoso, famélico, aparecia sempre diante dos olhos do jovem monge, com os seus pestíferos vapores sulfúreos e as devoradoras e imperecíveis labaredas: “Eu não sabia mais se estava vivo ou morto. Satanás me havia lançado num tal desespero, que eu perguntava a mim próprio se existia um Deus. A tentação da incredulidade é um sofrimento tão grande, que nenhuma palavra consegue exprimi‑lo”. Depois, numa frase curta, o aflito monge resumiu a sua agonia: “Satanás é realmente um homicida!” Esta certeza de Lutero, quando ele ainda não tinha obtido outras convicções mais fortes no campo da fé, talvez se originou das seguintes palavras de Jesus contra os incrédulos, conforme podemos ler no Evangelho de São João: “Vós sois filhos de um pai que é o diabo e quereis cumprir os desejos do vosso pai. Ele foi assassino desde o princípio e não se manteve na verdade, porque nele não há verdade” (8:44). Cumprindo as regras da Ordem, o inquieto Martinho Lutero ia com uma pesada sacola nas costas, a fim de pedir esmolas às portas das casas. E um dia, de pés descalços no chão coberto de neve, ele bateu numa porta. Quem o atendeu foi um velho amigo, que lhe fez esta pergunta: – Lutero, tu não me reconheces? De rosto fechado, o moço respondeu, num tom seco: 15
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– Estou a serviço do mosteiro e as regras não me permitem nenhuma conversa ou demora. O amigo disse, de modo suave: – Deus e os santos te ajudem, irmão Martinho. À maneira de um místico amante dos gestos e não das palavras, o noviço fez o sinal da cruz. Entretanto, logo depois, quando uma criada lhe deu uns restos de carne, Lutero murmurou, cheio de humildade: – Louvado seja Deus, por todos os dons que nos concede! Anos mais tarde, numa carta remetida ao duque Jorge, da Saxônia, o ex‑asceta enfatizou: “Eu fui verdadeiramente um frade piedoso e segui as regras de mi‑ nha Ordem com mais severidade do que o posso dizer. Se jamais hou‑ ve frade que entrasse no céu por seu espírito fradesco, eu decerto seria um deles. E todos os religiosos que me conheceram podem dar testemu‑ nho disto. Se tais práticas houvessem durado mais tempo, eu teria me consumido até à morte, à força de vigilias, de preces, de leituras e de outros trabalhos”. Leitor insaciável, ele devorou os escritos de Gerson, Duns Scotus, Tauler, Pedro D’Ailly, Nicolau de Lira, São Bernardo e São Tomás de Aquino. Dois autores o atraíram muito: Gabriel Biel, professor em Tübingen, “o último dos escolásticos”, e Guilherme de Occam, o doctor invincibilis, monge franciscano inglês. Ambos eram nominalistas, perfilhavam a doutrina filosófica segundo a qual as idéias não existem. Os nomes com os quais pretendemos designá‑las, para os adeptos do nominalismo, são meros símbolos, aplicados indistintamente a diversos indivíduos. Occam foi um dos teólogos prediletos de Lutero e sabemos que de fato esse inglês não admitia a presença das idéias em nosso cérebro, pois isto, na sua opinião, limitaria a onipotência divina. 16
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