Má feminista

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Roxane Gay

MÁ FEMINISTA Ensaios provocativos de uma ativista desastrosa

São Paulo, 2 016

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Má feminista Bad Feminist Copyright © 2014 by Roxane Gay All rights reserved. Except for use in a review, the reproduction or utilization of this work in any form or by any electronic, mechanical, or other means, now known or hereafter invented, including xerography, photocopying, and recording, and in any information storage and retrieval system, is forbidden without the written permission of the publisher. Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

gerente de aquisições

editorial

assistente de aquisições

Vitor Donofrio

Renata de Mello do Vale

Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

Acácio Alves

tradução

revisão

Lívia First

Tássia Carvalho preparação

capa

Dimitry Uziel

Alessandra Miranda de Sá diagramação

Nair Ferraz

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Gay, Roxane Má feminista: ensaios provocativos de uma ativista desastrosa / Roxane Gay; [tradução Tássia Carvalho]. Barueri : Novo Século Editora, 2016. Título original: Bad feminist 1. Cultura popular 2. Ensaios 3. Feminismo 4. Gay, Roxane - Anedotas 5. Mulheres - Conduta de vida - Anedotas I. Título. 16­‑02524

cdd­‑814.6

Índice para catálogo sistemático: Feminismo: ensaios: tratamento humorístico 814.6

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Sumário

Introdução: Feminismo (n.): plural

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[EU] Sinta-me. Veja-me. Ouça-me. Alcance-me. Típico professor de primeiro ano Para raspar, rasgar ou tatear desajeitada ou freneticamente

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[GÊNERO E SEXUALIDADE] Como fazer amizade com outra mulher Garotas, garotas, garotas Uma vez eu fui Miss América Extravagantes espetáculos gloriosos Não estou aqui para fazer amizade Como nós todos perdemos Atingindo a catarse: engordar do jeito certo (ou errado) e Skinny, de Diana Spechler As superfícies suaves do idílio A linguagem negligente da violência sexual Pelo que ansiamos A ilusão da segurança / A segurança da ilusão O espetáculo dos homens arruinados Relato de três histórias sobre pessoas que “saíram do armário” Homens que vão além das medidas Algumas piadas são mais engraçadas que outras

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Queridas jovens senhoras que adoram tanto 183 Chris Brown que lhe permitiriam espancá-las De fato, visões distorcidas 187 O problema com o Príncipe Encantado, 192 ou a rebelião dele contra nós [RAÇA E ENTRETENIMENTO] O consolo de preparar alimentos fritos e outras lembranças pitorescas dos anos 1960 no Mississipi: reflexões sobre Histórias cruzadas Django, sobrevivente Além do esforço narrativo A moralidade de Tyler Perry O último dia de um jovem negro Quando menos é mais

207 218 226 231 240 244

[POLÍTICA, GÊNERO E RAÇA] Quando o Twitter faz o que o jornalismo não pode Os alienáveis direitos das mulheres À espera de um herói Um conto de dois perfis O racismo de todos nós Tragédia. Desígnio. Compaixão. Reação

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[DE VOLTA AO MEU EU] Má feminista: tomada um 291 Má feminista: tomada dois 303 Agradecimentos 309

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Introdução

Feminismo (n.): plural

O mundo muda mais rápido do que podemos compreender, e de maneiras complicadas. Não estamos preparados para tais desconcertantes mudanças. O clima cultural está mudando, sobretudo para as mulheres, en‑ quanto lutamos contra o cerceamento da liberdade reprodutiva, a persistên‑ cia da cultura do estupro e as representações distorcidas, se não prejudiciais, de mulheres, as quais consumimos em músicas, filmes e literatura. Há um comediante que pede aos fãs que toquem levemente a barriga das mulheres porque ignorar limites pessoais é, oh, tão engraçado. Temos todos os tipos de música glorificando a degradação das mulheres e, que droga, a canção é tão cativante que muitas vezes me vejo cantando junto, enquanto o meu pró‑ prio ser é desvalorizado. Cantores como Robin Thicke sabem que “nós quere‑ mos isso”. Rappers como Jay-Z usam a palavra “puta” para marcar a cadência do ritmo. Filmes, com mais frequência, contam as histórias de homens, como se fossem as únicas que importassem. Quando há mulheres envolvidas, são coad‑ juvantes, uma participação romântica, apêndices. Raramente chegam a ser o centro das atenções. Raramente nossas histórias chegam a ter importância. Como chamar atenção para essas questões? Como fazer com que sejam verdadeiramente ouvidas? Como vamos encontrar a linguagem adequada para falar das grandes e pequenas desigualdades e injustiças que as mulheres 7

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enfrentam? Conforme envelheço, o feminismo vem respondendo a essas indagações, pelo menos em parte. O feminismo é imperfeito, mas oferece, no que tem de melhor, uma maneira de navegar nesse clima cultural inconstante. O feminismo certa‑ mente me ajudou a encontrar minha voz. E me ajudou a acreditar que mi‑ nha voz tem importância, mesmo neste mundo onde tantas vozes reivindi‑ cam ser ouvidas. Como conciliar as imperfeições do feminismo com todo o bem que ele pode fazer? Na verdade, justifica-se a imperfeição do feminismo por ele ser um movimento alimentado por pessoas, e estas são inerentemente imper‑ feitas. Por alguma razão, mantemos o feminismo em um padrão insensato em que esse movimento deve ser tudo o que queremos, e sempre simboli‑ zar fazer as melhores escolhas. Quando o feminismo fica aquém de nossas expectativas, decidimos que o problema está nele, em vez de nas pessoas imperfeitas que agem em nome dele. O problema com alguns movimentos é que, muitas vezes, eles se as‑ sociam apenas às figuras de maior visibilidade, às pessoas com as maiores plataformas e às mais ruidosas e provocativas vozes. Mas o feminismo não é uma filosofia qualquer que esteja sendo divulgada pela moda da semana da mídia feminista, pelo menos não totalmente. O feminismo, nos últimos tempos, tem sofrido certa culpa em decorrência de associação, em razão de ser confundido com mulheres que o defendem como parte de sua própria identidade pessoal. Quando essas testas de ferro dizem o que queremos ouvir, nós as colocamos sobre o Pedestal Feminista, e, quando fazem algo de que não gostamos, as criticamos e dizemos que há alguma coi‑ sa errada com o feminismo, porque nossas líderes fracassaram conosco. Desse modo, esquecemo-nos da diferença entre feminismo e Feministas Profissionais. Adoto abertamente o rótulo de má feminista. E faço isso porque sou imperfeita e humana. Não sou perita em história do feminismo. Também não sou, como gostaria, perita na leitura de textos feministas fundamentais. Tenho alguns… interesses, peculiaridades de personalidade e opiniões que podem não se alinhar com o feminismo tradicional, mas, mesmo assim, ainda sou uma feminista. Não serei capaz de compartilhar com você como tem sido libertador aceitar essa verdade a respeito de mim mesma. 8

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....... Aceito o rótulo de má feminista porque sou humana. Fico confusa. Não estou tentando ser um exemplo. Nem ser perfeita. Nem dizer que tenho todas as respostas. Nem dizer que estou certa. Apenas tento… tento apoiar aquilo em que acredito, no intuito de fazer algo de bom neste mundo; no intuito de fazer algum barulho com o que escrevo e, ao mesmo tempo, ser eu mesma: uma mulher que ama cor-de-rosa, gosta de ser bizarra e, às vezes, chacoalhar o esqueleto ao som de uma música que ela sabe – ela sabe – ser terrível para a reputação das mulheres; uma mulher que às vezes se finge de tonta com o homem que está consertando algo para ela, porque é tão mais fácil deixá-lo se sentir macho do que ficar em posição de superioridade moral. Sou uma má feminista porque não quero nunca ser colocada em um Pedestal Feminista. Dessas pessoas, espera-se que se comportem com per‑ feição. Mas, quando fazem merda, são criticadas. De modo geral, eu faço merda. Considere-me já como criticada. Quando mais jovem, rejeitava o feminismo com frequência alarmante. Entendo por que as mulheres continuam a repudiá-lo, distanciando-se dele. Eu o rejeitei porque, quando era chamada de feminista, o rótulo parecia um insulto. Na verdade, em geral, a intenção era essa. Quando era chamada de feminista, naquela época, meu primeiro pensamento era: Mas eu faço um boquete de bom grado. Na minha cabeça, não podia ser feminista e sexualmente liberal. Havia muita coisa estranha na minha cabeça durante a adolescência e na faixa dos meus vinte anos. Eu repudiava o feminismo porque não tinha uma compreensão racional do movimento. Era chamada de feminista, e o que ouvia era: “Você é recal‑ cada, nervosa, odeia sexo, odeia homens”. Essa caricatura representa como a imagem das feministas tem sido distor‑ cida pelas pessoas que mais temem o movimento, as mesmas pessoas que têm mais a perder se o feminismo triunfar. Sempre que me lembro de como eu o repudiava, envergonho-me de minha ignorância. Envergonho-me do meu medo, porque a repulsa se fundamentava principalmente no temor de que estaria condenada ao ostracismo, sendo vista como uma causadora de pro‑ blemas, sem ser aceita pela sociedade convencional. Fico com raiva quando 9

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as mulheres repudiam o feminismo e rejeitam o rótulo feminista, mas, em contrapartida, dizem apoiar todos os avanços nascidos do feminismo, porque vejo aí uma discrepância que não precisa existir. Fico com raiva, mas entendo e espero o dia em que viveremos em uma cultura que não nos obrigará a nos afastar do rótulo de feminista, uma cultura que não nos trará medo de ficar‑ mos sozinhas, de sermos muito diferentes, de querermos demais. Tento manter meu feminismo em um nível máximo de simplificação. Sei que ele é complexo, evolutivo e imperfeito. Sei também que não pode e não vai consertar tudo. Acredito na igualdade de oportunidades entre mulheres e homens. Acredito em mulheres que têm liberdade reprodutiva e acesso razoá‑ vel e sem entraves aos cuidados de saúde de que necessitam. Acredito que as mulheres devam ser remuneradas do mesmo modo que os homens quando fazem o mesmo trabalho. O feminismo é uma escolha, e, se a mulher não quer ser feminista, embora esse seja um direito dela, ainda assim é minha responsa‑ bilidade lutar pelos seus direitos. Acredito que o feminismo se fundamente em apoiar as escolhas das mulheres, mesmo que não façamos certas escolhas para nós mesmas. Acredito que as mulheres, em todo o mundo, merecem igual‑ dade e liberdade, mas sei que tenho condição de dizer às mulheres de outras culturas que essa igualdade e liberdade devem ser semelhantes. Resisti ao feminismo no final da minha adolescência e no decorrer dos meus vinte e poucos anos porque temia que ele não me permitisse ser a confu‑ são em forma de mulher que eu sabia ser. Mas, então, comecei a aprender mais sobre o feminismo. Aprendi a separar o feminismo do Feminismo ou Feminis‑ tas, ou da ideia de um Feminismo Essencial – um verdadeiro feminismo que domina todas as mulheres. Foi fácil assumir o feminismo quando percebi que defendia a igualdade de gênero em todos os seus domínios e, ao mesmo tempo, esforçava-me em nome da perspectiva intersetorial, para considerar todos os outros fatores que influenciam quem somos e como nos movemos pelo mundo. O feminismo me deu paz; deu-me os princípios norteadores para a forma como escrevo, como leio, como vivo. Eu me afastei desses princípios, mas também sei que está tudo bem quando não vivo de acordo com meu melhor eu feminista. As mulheres “de cor”, lésbicas e transexuais precisam ser mais bem con‑ templadas no projeto feminista, na medida em que foram constantemen‑ te abandonadas de modo vergonhoso pelo Feminismo com “f ” maiúsculo. 10

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Essa é uma verdade dura e dolorosa. Esse é o ponto onde muita gente se depara com a resistência ao feminismo, tentando promover o afastamento entre o movimento e o lugar onde estão. Acredite em mim, eu entendo. Du‑ rante anos, decidi que o feminismo não era para mim como mulher negra, que se identificou com lésbicas em diferentes momentos da vida, porque ele, historicamente, tem investido no aprimoramento da vida de mulheres heterossexuais brancas, em detrimento de todas as outras. Mas dois erros não fazem um acerto. As imperfeições do feminismo não significam que devemos rejeitá-lo por completo. As pessoas fazem coisas terrí‑ veis o tempo todo, mas não renegamos regularmente nossa natureza humana. Repudiamos apenas as coisas terríveis. Portanto, que repudiemos as imperfei‑ ções do feminismo, sem rejeitar seus muitos sucessos e quão longe chegamos. Não temos todos de acreditar no mesmo feminismo. Ele pode ser pluralis‑ ta, desde que respeitemos os diferentes feminismos que levamos conosco; desde que nos esforcemos o suficiente para tentar minimizar as rupturas entre nós. O feminismo triunfará com esforço coletivo, mas o sucesso feminista também pode surgir da conduta pessoal. Ouço muitas jovens dizerem que não conseguem encontrar feministas famosas com as quais se identifiquem. Isso pode ser desanimador, mas digo sempre: deixem-nos (tentar) virar as feministas que gostaríamos de ver passando pelo mundo. Quando você não consegue encontrar alguém para seguir, tem de achar um jeito de dar o exemplo. Nesta coletânea de ensaios, tento assumir a lide‑ rança, de maneira modesta e imperfeita. Levanto minha voz como uma má feminista. Assumo a posição de má feminista. Abordo nossa cultura e como consumi-la. Os ensaios desta compilação também analisam a questão de raça no cinema contemporâneo, os limites de “diversidade” e como a inovação raramente é satisfatória; raramente é suficiente. Clamo pela criação de novas referências, mais abrangentes, para a excelência literária, e analiso de modo mais aprofundado Girls, da HBO, e o fenômeno Cinquenta tons de cinza. Os ensaios são políticos e pessoais. Tal como o feminismo, são imperfeitos, mas vêm de um posicionamento autêntico. Sou apenas uma mulher tentando dar sentido a este mundo onde vivemos. Levanto minha voz para mostrar de to‑ das as maneiras que temos espaço para querer mais, para fazer melhor.

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[EU]

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Sinta-me. Veja-me. Ouça-me. Alcance-me.

O nicho de sites de namoro é bem interessante. Você pode ir ao JDate1, ou ao Christian Mingle2, ou, ainda, ao Black People Meet3, ou a quaisquer sites de namoro exclusivamente desenvolvidos para pessoas que tenham algo em comum. Se tiver preferências específicas, pode encontrar pessoas afins, ou que compartilhem sua crença, ou que apreciam fazer sexo usando fantasias de animais. No mundo da internet, ninguém está sozinho em seus interesses. Assim, quando você vai a esses sites, sabe que está lidando com um público específico. E também pode esperar que, no amor on-line, a língua mesclada de vários países tornará todo tipo de coisa possível. Penso constantemente em conexão e solidão, em comunidade e senso de pertencimento, e muito, talvez até demais, em como meus textos me au‑ torizam a trabalhar por meio da intersecção dessas coisas. Então, muitos de nós estamos nos aproximando, à espera de que alguém distante agarre nos‑ sas mãos e nos lembre de que não vivemos tão solitários quanto tememos.

1 JDate é uma rede social voltada à população judaica solteira. (N.T.) 2 Christian Mingle é o maior site de namoro on-line criado especificamente para cristãos. (N.T.) 3 Black People Meet é o primeiro serviço de namoro on-line para solteiros negros. (N.T.)

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Conto algumas das mesmas histórias repetidamente porque certas expe‑ riências me afetaram com intensidade. Às vezes, espero que, contando tais histórias de novo e de novo, conquiste uma melhor compreensão de como o mundo funciona. Além de não ter tido muitos namoros on-line, nunca de fato namorei alguém com quem não tivesse alguma afinidade. Culpo meu signo na astro‑ logia. Com o tempo, enfim encontrei um denominador comum em meus relacionamentos, embora as pessoas que eu tenha a tendência de namorar sejam com frequência bem diferentes de mim. Recentemente, uma amiga me contou que namoro apenas rapazes brancos, e acusou-me de ser… sei lá o quê. Ela mora em uma cidade e presume como garantida a diversidade em torno de si. Em retaliação, contei-lhe que namorei um rapaz chinês na faculdade, acrescentando que namoro os garotos que me convidam para sair. Se um cara me convidasse para sair e eu estivesse a fim dele, aceitaria alegremente. Não deixo escapar nenhum, exceto se já bateram os setenta anos, e eu não estou procurando namorar um geriatra. Também pareço ter uma queda por liber‑ tários. Falando sério, não consigo compreendê-los, bem como sua radical ne‑ cessidade de liberdade com base em tirania e imposição. Não posso imaginar como seria ter bastante afinidade com alguém com quem esteja saindo desde o primeiro encontro. Não pretendo sugerir com isso que eu teria muita afini‑ dade com alguém apenas porque somos negros, ou democratas, ou escritores. Não sei se há alguém no mundo com quem eu teria muitas coisas em comum, sobretudo nesses tipos de sites em que você digita algumas características-cha‑ ve e preferências e pode, de algum modo, encontrar seu par. Sequer tentei, e não vejo isso como algo negativo. Adoro estar com alguém infinitamente in‑ teressante porque somos tão diferentes. Querer pertencer a pessoas, ou a uma delas, não significa encontrar no espelho uma imagem de si mesmo. BET4 não é uma rede a que eu assista regularmente, porque estou mais comprometida com a Lifetime Movie Network5 e menos com programas

4 Black Entertainment Television (BET) é uma emissora norte-americana a cabo cuja pro‑ gramação destina-se especialmente ao público afro-americano dos Estados Unidos. (N.T.) 5 Lifetime Movie Network (LMN) é uma rede de TV a cabo com filmes e shows desti‑ nados às mulheres. (N.T.)

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e reality shows da TV a cabo. Além disso, a programação fajuta da BET é uma caricatura e, considerando que assisti a dois episódios de O vestido perfeito (Amsale Girls)6 na WE tv, considerem que minha tolerância para programas fajutos é excepcional. É vergonhoso como os negros têm de se contentar com pouco quando se trata de programas de qualidade. É vergo‑ nhoso haver tão poucas opções além do BET. As redes de TV oferecem um entorpecente mar de alvura, exceto pelos programas produzidos por Shonda Rhimes (Grey’s Anatomy, Private Practice, Scandal), que faz um deliberado esforço para abordar raça, sexo e, em menor grau, sexualidade quando lança um projeto. Além disso, o negro – na verdade, todas as pessoas “de cor” – só consegue ver a si mesmo no papel de advogados e amigos petulantes e, é claro, como A resposta (The Help)7. Até mesmo quando um novo progra‑ ma promete inovar, como Girls, de Lena Dunham, da HBO, passado no Brooklyn, em Nova York, que acompanha a vida de quatro amigas na faixa dos vinte anos, somos forçados a engolir mais do mesmo – uma retificação generalizada ou o desconhecimento da raça. Até o ponto em que BET estiver preocupada, nós nos contentamos com absolutamente nada a não ser a exibição de reprises de Girlfriends8, que é criminosamente subestimado. Demorei muito tempo para apreciar Girlfriends, mas a série estava no caminho certo, sem jamais receber o apoio que merecia. No entanto, às vezes, vejo-me observando pessoas que se parecem comigo. Pele escura é bonita; gosto de ver tipos diferentes de histórias. O problema é que, na BET, vejo gente parecida comigo, mas é aí que as seme‑ lhanças terminam. A justificativa está no fato de eu ter quase quarenta anos e, portanto, para BET, sou velha. Por mais que esteja ligada na cultura pop, 6 Amsale Girls – referência a um programa que retrata a vida pessoal e profissional de seis funcionárias do salão de Amsale Aberra (estilista de vestidos de noiva) na Madison Avenue, em Nova York. (N.T.) 7 Referência ao livro The Help (A resposta, no Brasil), de Kathryn Stockett, depois adaptado para o cinema (Histórias cruzadas), que aborda a vida de empregadas domésticas negras norte-americanas no Mississipi dos anos 1960, as quais constroem uma improvável ami‑ zade com uma mulher branca, o que abala as regras sociais da época. (N.T.) 8 Girlfriends é uma série norte-americana bastante popular que foca a vida de quatro mulheres negras bem-sucedidas que vivem em Los Angeles, Califórnia. (N.T.)

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há coisas que desconheço. A geografia e minha profissão não ajudam. En‑ quanto começava a redigir este ensaio, havia um programa na BET chamado Toya9. Vi o nome quando procurava a programação da TV, ainda que de fato nunca tivesse assistido a ele. Até que finalmente vi dois episódios, sem sequer entender por que o programa é um programa. Qual a premissa? Consultei o mestre Google e aprendi que Toya é a ex-mulher de Lil Wayn, e é só isso. Acho que ela não é nem uma cantora backup10, ou uma artista de vídeo ho11. O limiar da fama sempre enfraquece com muita rapidez. Assisti à série Toya, e não havia nada sobre qualquer coisa com que eu pudesse me identificar, a não ser os cuidados com a família. Eu tinha a vaga sensação de que Toya cuidava de sua família e tentava ajudá-los a ficar no bom caminho, embora isso estivesse relativamente confuso, porque a maior parte do programa envolvia pessoas falando de coisas chatas. Durante a série, ela namorou alguém chamado Memphitz (agora estão casados), que ficava olhando para maravilhosos anéis de diamante. Ele é rapper? O que essas pessoas fazem para viver? O apoio à infância de Lil Wayne não pode ser assim tão bom. Espero que BET faça mais para representar a gama completa de experiências dos negros de forma equilibrada. Se você assiste a BET, tem a impressão de que o único modo de os negros alcançarem sucesso é por meio do esporte profissional, ou casar-se/foder/ser mãe do bebê de alguém que está envolvido com esportes profissionais ou música. Ocasionalmente, gostaria de ver um exemplo de negros que alcança‑ ram sucesso envolvendo outros contextos profissionais. Na maioria dos pro‑ gramas de TV, personagens brancas proporcionam aos telespectadores uma autêntica panóplia de opções para “O que quero ser quando crescer”. De certo, há exceções. Laurence Fishburne interpretou o papel principal em CSI em uma ou duas temporadas. No passado, Blair Underwood fez um advogado em LA Law. Há ainda a já mencionada Shonda Rhimes, roteirista 9 Toya é uma série de TV em forma de documentário que narra a vida de Toya Jackson. (N.T.) 10 Os cantores backup atuam como apoio ao vocalista, sendo responsáveis pela harmonia vocal junto a ele. (N.T.) 11 Dançarinas altamente sensuais, ou atrizes, geralmente negras e que aparecem em ví‑ deos musicais de hip-hop. (N.T.)

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de programas. Imagino que a ideia se refira ao fato de uma pessoa de cor como advogado, ou médico, ou escritor, ou, que inferno, músico de jazz, ou professor de escola, ou professor universitário, ou funcionário de correio, ou garçonete não ser tão interessante para as crianças, porque o fascínio de ofertas disponíveis é inegável. E ainda há mais. Em algum momento, temos que parar de vender a cada criança negra do mundo a ideia de que basta a ela segurar uma bola ou um microfone para conseguir alguma coisa. Bill Cosby é um tipo louco desses dias, mas sabe do que está falando; ele é assim por‑ que tem vivenciado essa batalha durante toda a sua maldita vida. BET me frustra por ser uma dolorosa lembrança de que você pode ter alguma coisa e nada em comum com as pessoas ao mesmo tempo. Aprecio diferenças; porém, de vez em quando, quero apreender um vislumbre de mim mesma nos outros. Na pós-graduação, eu era a conselheira da associação de estudantes ne‑ gros. Havia uma presença insignificante de negros no campus (poderiam ser contados nos dedos da mão), uma gente que vivia muito ocupada, ou esgotada, ou completamente desinteressada pelo trabalho. Depois de quatro anos, entendi. À medida que envelheço, compreendo melhor um monte de coisas. Aconselhar uma associação de estudantes negros é uma tarefa exaus‑ tiva, ingrata e penosa. É uma coisa do tipo que destrói sua fé depois de algum tempo. Um novo membro negro do corpo docente chegou ao campus há alguns anos, e perguntei por que ele não trabalhava com os alunos negros. A resposta foi: “Esse não é meu trabalho”, e completou: “Eles são inacessíveis”. Odeio quando dizem que algo não faz parte de seu trabalho ou que não é possível. Claro que todos nós dizemos tais coisas, mas certas pessoas acreditam de fato que não têm de trabalhar além daquilo que está escrito nas funções do cargo, ou que não devem tentar atingir aqueles que, aparentemente, não podem ser alcançados. Minha ética no trabalho veio de meu incansável pai. Quando se trata de mostrar a jovens estudantes negros que existem professores que se parecem com eles; quando se trata de orientá-los e estar lá para apoiá-los, sinto que esse processo é trabalho de todos (não importa a etnia), e se você, como um acadêmico negro, não acredita nisso, é necessário que se autoavalie de

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imediato, e depois se autoavalie de novo, mantendo essa autoavaliação até que coloque a cabeça no lugar. Quando eu era conselheira, os estudantes negros provavelmente me res‑ peitavam, ainda que muitas vezes não gostassem de mim. Compreendo isso. Sou um gosto que se conquista. Sobretudo, achavam-me “refinada”. Muitos deles me chamavam de redbone12 e riam quando eu me irritava. E também achavam meu modo de falar hilário, porque eu arredondava as vogais. Eles me diziam: “Fale ‘olá’ de novo”, e eu dizia, em função de essa ser uma das minhas palavras favoritas, mesmo que talvez a pronunciasse errado de acor‑ do com os alunos. Assim, eu meio que cantava a palavra. Em especial, eles adoravam o modo como eu dizia “gangsta”. Eu não ligava para as brincadei‑ ras. Em vez disso, importava-me com o que eles achavam de eu esperar tan‑ to deles, e a definição de “tanto” era absolutamente nenhuma expectativa. Sim, eu era uma cadela exigente e, por vezes, talvez, irracional. Insistia na excelência, traço que herdei de minha mãe. Minhas expectativas envol‑ viam coisas como exigir dos administradores que aparecessem nas reuniões executivas, assim como que eles e os outros membros comparecessem às as‑ sembleias gerais no mínimo com cinco minutos de antecedência, afinal, es‑ tar adiantado significa chegar na hora. Insistia que, se os estudantes tivessem concordado em realizar determinada tarefa, teriam de levá-la a cabo; insistia que fizessem o dever de casa; insistia que pedissem ajuda, e ainda recebes‑ sem aulas de reforço quando necessitassem desse tipo de apoio; insistia que parassem de pensar que um C ou D é uma boa nota; insistia que levassem a sério a faculdade; insistia que parassem de ver teoria de conspiração em toda parte; insistia que nem todo professor que tinha feito alguma coisa de que não gostassem era racista. Logo percebi que muitas daquelas crianças não sabiam como ler ou mesmo ser um estudante. Quando falamos sobre questões sociais na uni‑ versidade ou em meios intelectuais, falamos muito sobre privilégio, e sobre como todos somos privilegiados e precisamos ter ciência disso. Eu sempre soube porque sou privilegiada, mas trabalhar com aqueles alunos, a maioria 12 Termo usado em grande parte do sul dos Estados Unidos para indicar indivíduo ou cultura multirracial. (N.T.)

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deles do centro de Detroit, me levou a compreender a extensão do meu privilégio. Sempre que alguém me diz que não reconheço o quanto sou privilegiada, quero mais é que a pessoa cale a boca. Acha que não sei? Tenho absoluta clareza sobre isso. A noção de que eu deveria estar bem com o status quo, ainda que não seja totalmente afetada por ele, é repulsiva. Aquelas crianças não sabiam como ler, então consegui dicionários, e, como eram tímidos demais para discutir letramento nas reuniões, eles se aproximavam enquanto eu andava pelo campus, ou iam à minha sala e sus‑ surravam: “Preciso de ajuda na leitura”. Nunca me passou pela cabeça antes que era possível uma criança ser educada e chegar à faculdade sem conse‑ guir ler em nível universitário. É vergonhosa para mim, com certeza, essa ignorância acerca das irritantes disparidades no modo como as crianças são educadas. Que vergonha. Aprendi muito mais na pós-graduação fora da sala de aula do que sentada a uma mesa discorrendo sobre conceitos teóricos. Aprendi como sou ignorante. E ainda estou trabalhando para corrigir isso. Pessoalmente, os estudantes e eu nos relacionávamos bem melhor. Eles eram mais receptivos. E eu não tinha ideia do que andava fazendo. Como você pode ensinar alguém a ler? Consultava o mestre Google regularmente. Comprei um livro com alguns exercícios gramaticais elementares. Às vezes, apenas líamos o dever de casa deles palavra por palavra e, quando desconheciam a palavra, eu os fazia anotá-la, procurar seu significado e escrevê-lo, pois assim minha mãe tinha me ensinado. Ela estava sempre em casa depois da escola e se sentava co‑ migo dia após dia, ano após ano, até que cheguei ao ensino médio, sempre me ajudando com o dever de casa, incentivando-me e, com certeza, impelindo-me rumo à excelência. Havia coisas em minha vida que minha mãe era incapaz de ver, mas, quanto à minha formação, para ter certeza de que eu era uma pessoa boa e bem-educada, ela esteve de prontidão em todos os sentidos. Às vezes, eu me ressentia em função da quantidade de trabalho escolar que era obrigada a fazer em casa. Meus colegas de classe norte-americanos não precisavam fazer nada do que eu precisava. Assim, não compreendia por que minha mãe, na verdade, os meus pais, ambos, eram tão obcecados em nos fazer usar a mente. Em nosso lar, havia muita pressão. Muita. Eu era uma criança bastante estressada, e um pouco daquela pressão toda foi autoinduzida, embora outro tanto, não. Adorava ser a melhor e deixar meus 21

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pais orgulhosos. Adorava o senso de controle que sentia sendo boa na escola, quando havia outras partes de minha vida que estavam desesperadamente fora de controle. Eu esperava tirar nota A. Trazer para casa uma avaliação in‑ ferior a A não era uma opção que eu sequer cogitasse. Esse comportamento é típico da história de uma criança filha de imigrantes, sem nenhum atrativo. Quando trabalhei com aqueles alunos, entendi a razão de meus pais nos mostrarem por que precisávamos trabalhar três vezes mais arduamente que as crianças brancas para receber metade da consideração. Eles não nos transmitiram essa realidade com amargura. Estavam nos protegendo. No final de nossas reuniões, os alunos com quem trabalhava geralmente diziam: “Não conte a ninguém que eu vim até aqui”. E isso, quase sempre, não significava que se sentiam constrangidos por pedir ajuda. Sentiam-se constrangidos por serem vistos empenhando-se tanto em sua formação; por serem vistos preocupados. Algumas vezes, eles se abriam acerca da vida que levavam. Muitos deles não tinham pais que pudessem prepará-los para o mundo do modo como eu fazia. Muitos deles eram os filhos mais velhos, os primeiros na família a chegar a uma faculdade. Um dos garotos era o mais velho de nove filhos. Uma garota, a mais velha de sete. Outra, a mais velha de seis. Havia muitos pais ausentes, e mães, pais, primos, tias e irmãos encarcerados. Havia alcoolismo, dependência de drogas e abuso. Havia pais que, ressentidos com o fato de os filhos estarem na faculdade, tentavam sabotá-los. Havia alunos que enviavam cheques de reembolso do crédito estudantil de volta para casa, a fim de ajudar no sustento da família, e pas‑ savam o semestre sem livros didáticos, sem dinheiro suficiente para comer, pois as bocas em casa precisavam ser alimentadas. Havia alunos com pais extraordinários, com famílias que os apoiavam, que nada tinham de miséria e estavam bem preparados para viver a experiência da faculdade, ou bem preparados para fazer o que fosse preciso para entrar no ritmo. Esses estu‑ dantes eram exceção. Muitas vezes, penso no perigo de uma única história, como discutido por Chimamanda Adichie em seu TED talk13, mas às vezes há de fato uma única história, e ela dilacera meu coração. 13 TED (em português, Tecnologia, Entretenimento, Design) é uma série de conferên‑ cias realizadas na Europa, na Ásia e nas Américas pela Fundação Sapling, dos Estados

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Até o final de meu último ano escolar, considerando todas as outras coisas com as quais lidava em minha vida pessoal, eu estava completamen‑ te destroçada. Nada mais tinha para oferecer. Com bastante frequência, os alunos não davam a mínima, nem eu. Não me orgulho disso, mas estava mesmo lidando com muita coisa. Isso é o que digo a mim mesma. Os alunos não apareceram nos encontros de BSA (Boy Scouts of America)14. Foram incompetentes em sua participação nos eventos do clube, não promoveram eventos e falharam, e eu já estava sem energia para enfrentar tudo aquilo, para gritar, empurrar, cutucar e incentivá-los para que desejassem fazer me‑ lhor. Se depois de quatro anos eles não haviam aprendido nada, eu tinha fracassado, e pouco poderia fazer para consertar a situação. Eles estavam sendo apenas universitários, é claro, mas era frustrante. Quando acabou o último semestre, senti-me aliviada. Ficaria com saudades dos estudantes porque, para ser franca, eles eram uma imensa alegria – brilhantes, engraça‑ dos, charmosos, meio loucos, mas bons garotos. No entanto, eu precisava de um tempo, um tempo muito longo. A mulher que me recrutou para a escola havia trabalhado com alunos negros durante vinte anos. Quando se aposentou, estava tão exausta que não conseguia sequer falar sobre eles sem ser esmagada pela frustração, devido à falta de vontade que mostravam em mudar, à maneira como haviam sido in‑ justiçados e à ausência de fé de que existisse um caminho diferente e melhor além das gotículas de mijo que eram os esforços da administração em criar mudanças, tudo isso junto. Compreendi o esgotamento dela. Foram neces‑ sários apenas quatro anos, mas cheguei lá. E aqui estou. Houve um banquete no final do ano no qual os alunos me surpreenderam, oferecendo-me uma placa e lendo um belo discurso que dizia ser eu a síntese da integridade e da graça. Eles me agradeceram em função de meu reconhecimento de que eram talentosos e poderosos além da conta. E ainda disseram que me manifestei em nome deles, mesmo quando estavam errados, e que eu era da família, o que explicava muito bem nosso relacionamento – incondicional, mas complicado. Unidos, sem fins lucrativos e com o objetivo de disseminar ideias que merecem ser disseminadas. (N.T.) 14 A maior organização de escoteiros da América. (N.E.)

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Disseram várias outras coisas maravilhosamente elogiosas, e não tinham de dizer nada daquilo. Eu deixei a escola com a sensação de que os havia atingido. Eles certamente o fizeram, despertando em mim o sentimento de que eu era parte de algo, ainda que fosse meu o trabalho de fazê-los se sentir assim. Como membro da faculdade, não procurei a associação do estudante negro ainda porque estou tentando cavar energia dentro de mim. Sinto-me culpada por estar tão lenta. Sinto esse senso de responsabilidade. E sinto-me também fraca e estúpida. Durante meu primeiro ano, tive um aluno negro na minha turma e senti que mexia com ele porque era negro. Tenho contado isso com frequên‑ cia quando chego a uma faculdade de negros. Eu não estava mexendo com aquele garoto. Por um lado, não tenho tempo para esse tipo de coisa, e, por outro, espero que todos os meus alunos alcancem a excelência, sem exceção. Aquele estudante tinha um GPA15 perfeito antes e simplesmente não podia acreditar que não estava conquistando um A na minha turma. Ele estava incrédulo por eu não achar que ele merecia um notório cookie em função de ter sido um bom aluno antes de chegar à minha tur‑ ma. Eu estava incrédula por sua arrogância. Tenho a sensação de que ele queria que eu me impressionasse por ele ser “diferente”, um bom aluno, como se eu devesse apenas avaliá-lo pelo desempenho anterior, em vez de pelo que fazia em minha turma. Certa vez, ele me disse: “Não sou como os outros [palavras com N]16 no campus”. Eu retruquei que seria melhor que ele verificasse sua atitude e linguagem. Tivemos algumas conversas bem tensas, uma delas tão carregada de tensão que meu chefe, sem meu conheci‑ mento, permaneceu no corredor o tempo todo, porque sentiu que o garoto talvez criasse confusão. Pensei que o rapaz estivesse prestes a armar algum barulho. Demorou um semestre inteiro para contornar esse problema. Até que finalmente per‑ cebi que ele não queria ser visto como um daqueles alunos que chegam e 15 GPA (Grade Point Average) é a escala de notas dadas nas universidades norte-ameri‑ canas, calculada usando as notas de determinado período, que varia de acordo com o curso e a instituição. (N.T.) 16 No original, N words refere-se a um eufemismo de como as pessoas brancas aludem aos negros, com receio de empregar a palavra inteira. (N.T.)

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não sabem o bastante para passar, ou que sequer se importam com isso. Para provar que era diferente, ele, a todo custo, mantinha o GPA perfeito. Esse aluno se formou e não sei por onde anda agora, mas espero que não passe a vida em negociações políticas por respeitabilidade.

....... Trabalho duro. Sou voluntária em muitas frentes. E tento cumprir mi‑ nha promessa quando assumo que farei algo. Tento trabalhar direito. Eu me esforço, extrapolando a mim mesma. Trabalho no trabalho e trabalho em casa. Analiso minhas avaliações de ensino na tentativa de encontrar sentido em minhas imperfeições, de modo que, na próxima vez, possa acertar. Sen‑ to-me com meus colegas e penso: Por favor, gostem de mim. Por favor, gostem de mim. Por favor, gostem de mim. Por favor, me respeitem. No mínimo, não me odeiem. Com frequência, as pessoas me interpretam mal; interpretam mal minhas motivações. A pressão é permanente e sufocante. Digo que sou uma workaholic, e talvez seja mesmo, mas talvez esteja apenas tentando, como aquele meu aluno, mostrar que sou diferente. No início da pós-graduação, uma vez escutei uma colega falar algo em sua sala enquanto eu passava, sem saber que eu estava lá. Ela bisbilhotava sobre mim com um grupo de colegas nossos, e disse que eu era uma aluna de ações afirmativas17. Fui para minha sala tentando me controlar até que es‑ tivesse sozinha. Eu não seria a garota que chora no corredor. Tão logo cruzei o umbral, desandei a chorar, porque este era meu maior medo: não ser boa o bastante, e todos saberem disso. Racionalmente, sei que era um absurdo, mas me magoou de verdade ouvir como ela e talvez os outros me viam. Não havia ninguém com quem pudesse falar sobre essa situação toda, pois eu era a única estudante de cor no programa. Portanto, ninguém entenderia. Claro que eu possuía ami‑ gos, bons amigos que iriam se solidarizar, ainda que jamais conseguissem

17 A expressão se refere a políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no pas‑ sado ou no presente. (N.T.)

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entender, e eu jamais fosse capaz de confiar no fato de que eles não se sen‑ tiam do mesmo modo que os demais. Parei com a brincadeira sobre ser relapsa e tripliquei o número de proje‑ tos em que estava envolvida. E fui excelente na maior parte do tempo, ainda que ficando aquém por algum tempo. Tenho certeza de que tirava boas notas. Tenho certeza de que meus pormenorizados exames eram consisten‑ tes. Escrevi a conferência proposta, e eles a aceitaram. Publiquei-a. Elaborei um projeto de pesquisa bastante ambicioso para minha dissertação, do tipo que me deu vontade de morrer. Não importava o que eu fizesse, eu ouvia aquela menina, aquela garota que havia realizado uma fração da fração do que eu realizara, dizendo ao grupo de nossos colegas ser eu a única que não merecia estar no programa. A propósito, esses colegas não me defenderam. Não discordaram. E essa postura me magoou demais. As palavras dela se mantiveram comigo durante a noite. Ainda posso ouvi-la, a clareza de sua voz, a certeza de sua convicção. No trabalho, constantemente me aflijo. Será que eles pensam que sou a contratação da ação afirmativa? Eu me aflijo pensando: Será que mereço estar aqui? Eu me aflijo: Será que estou fazendo o suficiente? Tenho um maldito PhD muito bem-feito, e me aflijo com a ideia de não ser boa o suficiente. Isso é insano, irracional e exaustivo. Falando com franqueza, é deprimente. Sei que talvez nada disso faça sentido, mas, para mim, tudo está conectado. Ainda estou escrevendo minha rota rumo a um lugar onde me encaixe, mas também estou descobrindo minha gente em lugares inesperados – Ca‑ lifórnia, Chicago, a península superior de Michigan e outras localidades, algumas delas que sequer figuram no mapa. Escrever abre caminhos para muitas diferenças. Gentileza também abre caminho para muitas diferenças, e é assim que se fez o amor de Lances da vida (One Tree Hill), ou Lost, ou lindos livros, ou filmes terríveis. Há momentos em que desejaria que encontrar uma comunidade fosse algo simples, como inserir algumas informações pessoais e deixar um algo‑ ritmo me mostrar à qual eu pertenço. E, então, percebo que, em muitos aspectos, é isto que a internet e as redes sociais têm feito por mim: oferecer uma comunidade. Ou talvez eu não esteja buscando algoritmo nenhum. 26

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....... Um algoritmo é um processo de resolução de um problema em um nú‑ mero finito de passos. Um algoritmo conduz a uma nítida maneira de enten‑ der um problema cuja resolução é bastante complexa para a mente humana. Não é isso que estou procurando. John Louis von Neumann disse: “Se as pessoas não acreditam que a matemática é simples, é porque não perceberam toda a complexidade da vida”. A matemática pode muito bem ser simples, mas as complexidades de raça e cultura são com frequência irre‑ dutíveis, e a abordagem de tais questões não cabe em um único ensaio, ou em um livro, ou mesmo em um programa de TV ou filme. Continuarei escrevendo sobre essas intersecções como escritora e pro‑ fessora, como mulher negra, como má feminista, até deixar de sentir que o que desejo é impossível. Não quero mais acreditar que esses problemas sejam tão complexos, que não consigamos dar sentido a eles.

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