Minha Vida Indecisa

Frita e queimada A delegacia cheirava a pão queimado. É como se alguém tivesse colocado uma fatia de pão na torradeira e esquecido lá, ou talvez as partículas do cheiro da fumaça ainda estavam dentro das minhas narinas, como rebeldes clandestinos agarrados ao meu sistema respiratório como um convidado inconveniente que se recusa a ir embora mesmo depois de terminada a festa. E, acredite, a festa terminou há muito tempo.

Ainda não sabia o quanto os bombeiros conseguiram salvar da casa.

Quando fui levada na viatura, as chamas ainda estavam devorando incansavelmente o lugar.

Parecia que estava naquela salinha abafada desde sempre. Acho que era a sala do descanso, porque tinha uma mesa no canto com uma jarra de café sobre um aquecedor enferrujado e, a cada cinco minutos, um policial vinha e se servia num copo de isopor, e olhava para mim como dissesse “cara, você se ferrou”, erguendo as sobrancelhas.

Não havia absolutamente nada para se fazer ali: nada para ler e nada para ver, a não ser o relógio na parede. E, acredite, aquela coisa devia estar quebrada. Eu juro que só fazia tique a cada cinco segundos.

Tinha um homem gordo e careca que volta e meia vinha me dizer que ele estava “resolvendo as coisas” e que eu não deveria me preocupar.

Parecia ser o assistente social designado para o meu caso. E tudo em que eu consegui pensar foi “ótimo, agora eu sou um caso”.

Fiquei esperando trazerem a Shayne. Pelo menos, eu teria alguém com quem conversar. Ela estava junto comigo quando os policiais chegaram… e os bombeiros e as ambulâncias e os carros das emissoras de TV. Suas últimas palavras antes de eu ser algemada e levada foram: “Não se preocupe, Brooks, estamos juntas nisso”.

Mas, nas últimas seis horas, não parecia ter ninguém nisso a não ser eu. Ah, e o Phil, o “assistente social”, feliz demais por estar ali tão cedo. Acho que deviam estar com a Shayne em outra sala. Sempre fazem isso nos filmes. Separam os criminosos para ver quem vai falar primeiro.

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Bem, se pensavam que ia delatar minha melhor amiga, estavam muito enganados.

Afinal, todo esse negócio foi inicialmente ideia dela, mas fui eu que aceitei, que consegui arrombar a casa, que acendi o fogão…

Felizmente, não era a minha casa. Na verdade, não era a casa de ninguém. Esse era a brilhantismo da coisa – ou, pelo menos, era para ser o brilhantismo da coisa. É engraçado como a palavra “brilhantismo” muda de significado quando você está sentada dentro de uma delegacia às sete da manhã.

O contexto também é uma coisa sacana, porque, segundo o Phil, o fato de não ter sido a minha casa não era necessariamente uma coisa boa. Era tudo tão confuso e avassalador. Todos estavam falando expressões como “invasão de domicílio”, “incêndio doloso”, “tempo de reclusão” e “menor alcoolizado”, e eu não fazia a menor ideia do que significavam. Bom, fora a parte do menor alcoolizado. Essa, infelizmente, eu sabia muito bem o que era, principalmente agora que o efeito do ponche batizado estava passando e a ressaca estava tomando conta. Acredite, a situação não estava melhorando. Eu bem que queria gostar de café. Até aquele café velho naquela mesa estava começando a parecer melhor do que esse furacão em forma de dor de cabeça que estava fervendo na minha testa. Tentei dormir deitando a cabeça em cima da mesa, mas a superfície dura da madeira só aumentava o latejo. Custava me trazerem um analgésico? Ou um calmante?

A porta rangeu ao se abrir de novo, pouco depois das dez da manhã, e justamente quando achava que ia ganhar outro olhar de decepção de um policial do Colorado, a autoridade com o nome “Banks” gravado em seu distintivo olhou para a prancheta que segurava, e depois para mim, perguntando: – Brooklyn Pierce?

Fiz que sim com minha cabeça latejante apoiada em minhas mãos.

– Sim? Rezei para que ele fosse me dizer que poderia ir para casa, ou que a Shayne estava em outra sala esperando para me ver, ou que a fada da liberação sem fiança houvesse vindo para usar sua varinha mágica e me tirar daquele lugar.

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Mas não era o que ele estava dizendo. Em vez disso, franziu a testa e estudou meu rosto com uma expressão confusa, como se estivesse tentando se lembrar da capital de algum país obscuro da América Central.

– Por acaso você é a Bebê Brooklyn? Aquela menininha que caiu na mina vários anos atrás?

Fantástico, pensei com um resmungo. Era tudo de que precisava: uma fama de virar notícia.

– Sim, era eu.

O policial Banks levantou as sobrancelhas, aparentemente impressionado com minha condição de celebridade.

– Uau! Tá brincando? E aí, como foi lá embaixo? Você ficou com medo?

– Não lembro – respondi com os dentes cerrados. – Eu tinha dois anos.

Ele parecia não se dar conta do meu tom aborrecido, porque simplesmente continuou falando.

– Como foi que você foi parar lá mesmo? Perseguindo um coelho ou algo assim?

– Lagarto – murmurei.

– Aposto que se arrependeu da decisão, hein? – observou Banks com uma risada que me irritou profundamente. – Não foi a coisa mais inteligente do mundo, né?

– Tem alguma coisa que você queira me falar? – fiz um sinal para sua prancheta.

– Ah, sim – respondeu, voltando à situação. – Tenho boas notícias.

Parece que você vai poder ir para casa.

Graças a DEUS! Saltei da minha cadeira e corri em sua direção, com vontade de abraçar seu corpo rechonchudo e apertá-lo. Obviamente, eu me contive.

– Obrigada, obrigada, obrigada! – exclamei. Já era hora de me deixarem sair desse buraco.

Pensei na minha cama macia e confortável, meu travesseiro branco e fofo, meu pijama limpo de algodão. Calcinha limpa. Pasta de dente e 15

enxaguatório bucal. Todas as coisas que parecem óbvias até que você fica presa em um lugar desses por quatro horas seguidas.

Mas meu alívio durou pouco, porque as palavras que ele disse a seguir foram as mais assustadoras da noite inteira, mais que “incêndio doloso”, que “invasão de domicílio”, muito mais que “tempo de reclusão”.

O policial Banks abaixou a prancheta e deu uma piscadela solidária: – Seus pais chegaram.

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Amigas não deixam as amigas fazer fajitas Não é que eu não tenha considerado meus pais nessa equação.

Apenas escolhi não pensar nisso de propósito, preferindo viver em um mundo (ainda que imaginário) onde os pais simplesmente não existiam.

Existe uma palavra para isso, sabia? Chama-se “negação”.

– Eles conseguiram embarcar em um voo bem cedo saindo de Boston – contou o policial, enquanto abria a porta e me conduzia por uma série de corredores.

Boston. Tudo havia começado em Boston, Massachusetts. Ou, como minha perfeita, prudente irmã mais velha, que nunca incendiaria uma casa, logo corrigiria: Cambridge, Massachusetts. Lar da Universidade de Harvard, uma instituição para pessoas que tomavam decisões corretas em suas vidas, decisões que não terminavam em delegacias de polícia que cheiravam a biscoito queimado.

Em outras palavras, uma instituição para pessoas como Isabelle Pierce.

No início de cada mês de outubro, havia um fim de semana especialmente dedicado aos pais orgulhosos dessas pessoas eminentes, que nunca incendiariam uma casa. Chamava-se Fim de Semana da Família, mas poderia se chamar também “Fim de Semana dos Pais”, porque, como membro oficial da “família”, não me lembro de ter recebido um convite.

Não que eu teria ido, não que eu sequer pensaria em ter ido, principalmente depois de ficar sabendo que o “Fim de Semana da Família” também se chamava “Brooklyn fica com a casa toda para si no fim de semana”. Apesar de imaginar que, com o passar do tempo, os dois nomes iriam acabar sendo completamente esquecidos e substituídos simplesmente por “O fim de semana em que Brooklyn queimou uma casa-protótipo” – um dia que, muito tempo depois, poderemos relembrar, dando boas risadas.

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Claaaaro.

A culpa era da Izzie. Se ela não tivesse entrado em uma instituição tão prestigiosa e metida, meus pais nunca teriam viajado no fim de semana e eu nunca teria tido a oportunidade de aceitar a ideia (que já foi) genial da Shayne. Se a minha irmã tivesse sido uma grande fracassada como eu, provavelmente moraria conosco, frequentando alguma faculdade vagabunda no centro de Denver, e nada disso teria acontecido. Eu estaria dormindo na minha cama, imersa nas últimas horas abençoadas do fim de semana, em vez de estar ali, prestes a ser executada.

– VOCÊ INCENDIOU MINHA CASA-PROTÓTIPO?! É claro que minha mãe me enxergou antes que eu a visse, e não perdeu tempo.

– Como pôde fazer umas coisas dessas? – ela urrou, antes de eu ter entrado no hall.

– Camille – disse o meu pai, pousando a mão no ombro dela –, prometemos lidar com isso de modo racional.

– Aquilo tinha mais de 3 mil m2! – minha mãe rugiu. – Essa história veio parar no hall de entrada da Delegacia de Polícia de Parker. A racionalidade está completamente fora de cogitação neste momento.

– Foi um acidente, eu juro! – tentei, mas meu pai me calou com um olhar que dizia “se você quer continuar viva, fique quieta”.

– Um acidente? – bradou minha mãe. – Um acidente! E eu suponho que invadir meu escritório, roubar minhas chaves e dar uma balada na minha casa-protótipo do meu maior projeto em desenvolvimento também foi um acidente?!

Tenho certeza de que a minha mãe quis dizer “festa”, mas fui esperta o bastante para não corrigir. Provavelmente a primeira decisão sábia que tomei em um bom tempo.

O policial Banks pigarreou e voltamos nossa atenção para ele. Para a minha surpresa, ele não parecia estar à vontade no meio de nossa desavença familiar. Acho que devia presenciar esse tipo de coisa o tempo todo. Afinal de contas, não é como se a polícia nessa cidade tivesse algo melhor para fazer do que acabar com as “baladas” adolescentes. Parker, no Colorado, não é exatamente um cidade repleta de crimes. No ano pas18

sado, pegaram um universitário vendendo baseado na traseira do utilitário da mãe, e as pessoas ainda estavam falando sobre o escândalo que foi.

Infelizmente, isso não era um bom indício para o meu plano de esquecer que toda essa história aconteceu.

– Por que não discutimos isso quando chegarmos em casa? – sugeriu meu pai, fazendo um sinal para se desculpar com o policial.

Sem mais nenhuma palavra, minha mãe se virou e saiu brava porta afora, quase dava para ver um rastro de fumaça atrás dela.

– Teremos que chamar o Bob – disse meu pai, enquanto guiava o carro para a Estrada 83. O sol claro da manhã era ofuscante para quem havia passado a noite inteira confinada numa delegacia de polícia, então mantive meus olhos fechados. Minha mãe lançava um olhar vago pela janela. Na verdade, sua expressão só parecia vaga. Eu a conhecia o suficiente para saber que vazio era a última coisa que se passava pela sua cabeça. Era um olhar que ela tinha quando se sentia traída, uma mistura perturbada de raiva, tristeza e “o que eu fiz para merecer isso?” Era o bastante para fazer você vomitar culpa.

– Quem é o Bob? – tive a coragem de perguntar. Foi a primeira coisa que disse desde que saímos da delegacia. Minha mãe, para a minha surpresa, ainda não tinha dito uma palavra.

– É o advogado da família – respondeu meu pai.

– Ah – murmurei baixinho, me sentindo triste e emocionalmente exausta. Mas o que eu realmente queria perguntar era “temos um advogado da família?” Era estranho eu não saber disso. Acho que era porque nunca tínhamos precisado dele até então. Ou suponho que deva dizer… até eu.

– Tomara que ele consiga defendê-la da acusação de incêndio doloso – pensou meu pai em voz alta. – Porém, a invasão de domicílio vai ser difícil de negar. Você era a única pessoa com acesso à chave da casa; e a acusação de menor alcoolizado, nem se fala. O nível de álcool no sangue estava nas alturas quando a prenderam. Temos sorte por ninguém ter se ferido nesse negócio. Poderíamos ter levado um sério processo ainda por cima.

Sorte.

Eu estava sentindo um milhão de emoções, mas “sorte” certamente não era uma delas.

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Meu pai navegou pelo labirinto de ruas em nosso bairro até estacionarmos em nossa garagem. Mesmo antes de o motor ser desligado, minha mãe destravou o cinto de segurança, abriu a porta e entrou na casa. Às vezes, acho que o silêncio dela é pior do que a gritaria. E, naquela hora, eu quase queria que ela voltasse a gritar comigo; pelo menos, eu saberia o que estava pensando.

Meu pai, por outro lado, era contido, comedido, moderado como de costume. Posso contar nos dedos de uma mão as vezes em que o vi perder a cabeça na minha vida. As pessoas sempre diziam que minha mãe e meu pai se complementavam perfeitamente, como um balão amarrado a uma pedra. Eu nunca tinha entendido o que isso queria dizer – até esse momento.

– O que incêndio doloso significa? – perguntei ao meu pai, destravando meu cinto de segurança, mas permanecendo firmemente sentada no banco. Apesar da minha impaciência para chegar em casa, já não estava com tanta pressa para entrar.

Meu pai respirou fundo.

– Significa que pensam que você botou fogo de propósito.

Podia sentir o pânico subindo pela garganta.

– Mas eu não fiz de propósito! – bradei. – Juro que não fiz!

Meu pai olhou para mim pelo retrovisor. Apesar da decepção que estava evidente em seu rosto, nele também havia pequenos rastros de compaixão.

– Eu sei, Brooks – ele disse com uma voz angustiada, contrastando com o tom afetivo de costume. – E é por isso que precisamos de um advogado.

Tecnicamente, fui eu que comecei o incêndio, mas não menti quando disse que foi um acidente. Tinha dificuldade em tomar decisões, mas não era piromaníaca. Só achei que a festa ficaria muito melhor se tivéssemos fajitas. Admito, eu não sabia onde estava com a cabeça quando cheguei a essa conclusão. E eu acho que provei, de uma vez por todas, que beber ponche batizado e fazer fajitas simplesmente não combinam, principalmente quando os “vegetais frescos” que você está cozinhando são, na verdade, feitos de plástico, como tantas coisas que podem ser encontradas 20

em uma casa-protótipo. Não preciso dizer que os “pimentões” e “tomates” começaram a queimar bem rápido, e os guardanapos elegantes que usei para tirar os falsos vegetais queimados da frigideira acabaram se mostrando bem mais inflamáveis do que eu pensava. Quando vi, cem adolescentes bêbados estavam correndo pela casa gritando “fogo!”, e então acabei algemada.

Mas não era para ter sido assim.

Era para ter sido a festa do século… do milênio, um evento que me garantiria um lugar ao sol, uma entrada no hall da fama do Colégio de Parker. Pelo menos, foi o que a Shayne me prometeu.

Meu Deus, a Shayne. Espero que ela não esteja na delegacia ainda.

Tenho certeza de que seus pais foram buscá-la horas atrás. Não foram?

Caminhei exausta até a casa, peguei o telefone e o levei comigo para cima. Ainda não tinha informado aos meus pais que precisaria de um novo celular, porque o meu estava debaixo de uma pilha de escombros queimados no meio de uma vazia e multimilionária área residencial. Em todo caso, não parecia o momento certo para começar a fazer pedidos.

Fechei a porta do meu quarto e disquei o número de Shayne. Tocou duas vezes e foi para a caixa de mensagens, então deixei um recado apressado e bem frenético.

– Shayne – eu disse, ofegante –, não te vi na delegacia. Espero que esteja bem. Só quero que saiba que estou bem, no geral. Estou em casa agora, mas parece que vou ter que ir a uma audiência no tribunal na segunda de manhã. Chato, né? Me desculpa. Toda essa história é um saco.

Só espero que você não tenha se ferrado muito. Em todo caso, me liga e podemos conversar sobre tudo. Ah, e eu perdi meu celular no incêndio, então você vai ter que me ligar em casa. Era só. Tchau.

Desliguei e joguei o telefone na minha mesa.

Tomara que ela esteja bem.

Estava me sentindo péssima em relação a tudo: à Shayne, à minha sombria audiência na manhã do dia seguinte, à casa-protótipo – ou o que era a casa-protótipo. Conseguir esse novo projeto de área residencial era para ter sido a grande chance da minha mãe como corretora de imóveis, era para ter sido o “passaporte” para a glória da empresa dela.

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Acho que não sou a única pessoa que se deu mal hoje.

Quando finalmente caí na cama, fui atormentada pelos pensamentos e imagens girando na minha cabeça. Incêndio e arrependimento. Sirenes e remorso. Autoridades policiais e seus olhares recriminadores. Por mais exausta que estivesse, dormir era praticamente impossível. E, por mais pesadas que estivessem minhas pálpebras, elas ficaram abertas pelo resto da madrugada.

Minha culpa me manteve acordada.

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