No mundo das mulheres do norte

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Carmen Coimbra

NO MUNDO DAS MULHERES DO NORTE

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

S達o Paulo, 2014

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Copyright © 2014 by Carmen Coimbra

Coordenação Editorial Diagramação Capa Preparação Revisão

Nair Ferraz Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Monalisa Morato Alessandra Miranda de Sá Rita Costa

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no- 54, de 1995) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Coimbra, Carmen No Mundo das Mulheres do Norte / Carmen Coimbra – 1-a ed. – Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014 – (Talentos da Literatura Brasileira) 1. Romance brasileiro I. Título. II. Série. 13-08727

cdd-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11-o andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br

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Dedicatória

Uma família grande e querida é uma benção para qualquer pessoa. Deus em sua misericórdia me presenteou com muitos amores. Meu marido, filhos, pais, avós, irmãos, sobrinhos, tios, primos, padrinhos, afilhados... Nomes que se repetem por gerações e que evocam lembranças de alegrias, lutas, companheirismo... Este livro é para vocês: Dacivaldo, Elinôr, Dário, Francisco, Franceli, Zuila, Rosana, João, Antônio, Yasmin, Ana, Karine, Fátima, Marita, Laila, José, Flávio, Fabrício, Eduardo, Alexandre, Paulo, Eunice, Denise e Nazaré.

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Para o leitor

Escrevo este romance com a intenção de desvendar alguns segredos sobre a minha floresta e de meu povo. Tenho consciência que adoro morar nas proximidades dos rios e das matas, e que relatei minha região não com os olhos de um forasteiro que enxerga esta terra como um “fim do mundo”, onde viver é encarar a monotonia no passar dos dias e penetrar na mesmice de paisagens semelhantes. Registrei neste livro a emoção de um caboclo nativo da Amazônia, que acredita que cada amanhecer oferece uma nova oportunidade de vivenciar acontecimentos maravilhosos. Que se encanta com a luz do sol, com o azul do céu, com o brilho das águas, com o canto dos passarinhos... Que anda devagar, observando as flores, petiscando os frutos do mato, sonhando em fisgar um peixe de bom tamanho, mas que se alegra ao levar para casa uma cambada de charutinhos... Nestas páginas, ajustei alguns acontecimentos que me foram revelados pelos antigos com os episódios verdadeiros documentados por escrito, sobre os quais pesquisei e aprendi através da leitura de livros, artigos, teses, dissertações e dezenas de informações encontradas por diversos meios. Todas as plantas, animais, remédios e alimentos citados nestes contos fazem parte do cotidiano real do norte, assim como todos os eventos históricos relatados, ocorreram e são fatos descritos como legítimos em noticiários. A vida das mulheres desta narrativa está romanceada, mas os costumes e valores dos portugueses, nativos e africanos, que moraram na Amazônia do século XIX, foram expostos da maneira mais próxima do que me foi confidenciado.

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Segundo os relatos dos idosos, as estâncias da Amazônia na época de minhas bisavós eram primorosas. Os velhos engenhos e fazendas do norte possuíam grandes plantações de cana de açúcar, café e cacau. As casas-sedes ficavam rodeadas de jardins. Mas as senzalas existiam e eram horrendas: os cativos que se vestiam de sarrapilheira eram constantemente humilhados e muitos dos negrinhos nascidos após a Lei do Ventre Livre foram abandonados nas praças. Nesta mesma época, os indígenas vagavam nus pelos matos, gostavam de roubar frutas e patos, fediam um bocado, sendo que alguns mostravam o semblante em constante sorriso e mantinham a pele limpa e lustrosa, enquanto outros sempre estavam tisnados de preto e emburrados... Os grupos eram pequenos e possuíam costumes completamente diferentes: em algumas tribos os maridos possuíam várias esposas, noutras as fêmeas podiam ter dois maridos e nas mais desorganizadas as mulheres dormiam com todos os homens e seus filhos eram considerados cria de todos os machos... Conforme descreviam os antigos, muitos nativos conheciam ervas que provocavam a ereção masculina e a anticoncepção feminina, mas era normal as tapuias engravidarem, passarem um período agradando um caboclo ou um escravo para depois sumirem na floresta e deixarem os filhos com os pais... Este livro conta várias histórias, tenta explicar o uso de alguns costumes indígenas do tronco tupi-guarani e aruak. Pretende informar aos leitores de uma maneira fascinante e prazerosa um pouco do que aconteceu na Amazônia, durante o século XIX: um período de escravidão, de riqueza causada pelo ciclo da borracha, da chegada de inúmeros estrangeiros e nordestinos e da criação das estradas de ferro. Este romance fala de lutas pela sobrevivência, de costumes nativos, de pessoas com tradições completamente diferentes que precisaram aprender a conviver entre si; provocaram a quebra de tabus, sincretizaram as crenças, geraram paixões proibidas e determinaram através da miscigenação, a criação do povo do norte. Aqui se expõe um povo que enfrentou as dificuldades como barreiras naturais passíveis de serem ultrapassadas, que recebeu uma forte influência indígena – uma das razões pelas quais no norte é comum as mulheres serem chefes de família, estudarem e trabalharem mais do que os homens, trocarem de parceiro quando não estão satisfeitas, terem menos preconceitos, serem mais liberais e constantemente se engajarem nos acontecimentos da comunidade e da política. Boa leitura! Carmen Coimbra

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Sumário

CAPÍTULO I – A portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 CAPÍTULO II – A nativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 CAPÍTULO III – A africana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204 CAPÍTULO IV – Miscigenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331 Cronologia Histórica e Evolução Feminina . . . . . . . . . . . . . . . . . . 485 Personagens do romance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497 Palavras e expressões africanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 517 Palavras e expressões nordestinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 519 Palavras e expressões portuguesas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 520 Palavras nortistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 521 Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525

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Capítulo I

A PORTUGUESA 1º- DIA SÍTIO DOS CAJUEIROS – MARAJÓ – PARÁ 4/8/1890 Angelina Fragoso de Braga acorda, espreguiça-se e abre os olhos sentindo todo o corpo dolorido. Lembra-se da data: 4 de agosto de 1890. Hoje é seu aniversário. Está completando 41 anos de idade, mas, pela primeira vez desde que se recorda, ninguém notará ou festejará seu nascimento. São cinco horas da manhã. O sol ainda não apareceu, entretanto os periquitos e as garças já começam a gritar nos ninhais próximos. O dia está nublado e o calor ainda não se infiltrou na casa. Vira para o lado direito da cama; o marido dorme de bruços com os braços abertos, mostrando uma ruga de preocupação na testa. Sente uma imensa ternura e a mesma vontade de protegê-lo volta, como sempre acontece. Álvaro...

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Seu primo caçula... Camponês, alto, robusto, louro, com incríveis olhos azuis que sorriem com os lábios. Balança a cabeça; faz um esforço para desviar os olhos. Benze-se, murmura uma prece rápida e tenta se levantar... Sente uma vertigem. Coloca as pernas para fora da cama e calça as sandálias que estão sobre o tapete. Examina os braços... parecem-lhe magros demais... Impulsiona-se com as mãos e, enfim, consegue ficar em pé... Observa-se no espelho. O reflexo de uma mulher madura, muito branca, alta, de cabelos castanho-avermelhados e olhos verde-escuros, devolve-lhe o olhar. Mesmo vestindo o camisolão de dormir, dá para notar o estado avançado de gravidez. Penteia os longos cabelos em uma trança e prende-os em um coque no alto da cabeça. Depois, troca a roupa de dormir por uma blusa branca de gola e mangas curtas. Acrescenta uma anágua de algodãozinho e uma saia cinza-escura. Pega um avental azul na gaveta do criado-mudo e anda pelo cômodo, apressada. Precisa pôr o café na mesa antes de os trabalhadores acordarem. Sai pela porta do quarto, encaminhando-se para a varanda comprida e repleta de janelas. Não se detém em abri-las; está atrasada. Caminha em direção ao fundo da casa, de onde vem o cheiro e o ruído da cozinha. Pelo som, alguém conversa com Zé. Pelo aroma, alguém já iniciou os preparativos do café. Mas quem? Santana e Abelardo foram embora por ordem de Álvaro... Hoje não terá a ajuda nem de Maria Lúcia. Sua afilhada casou-se no domingo e partiu no mesmo dia com o cônjuge, um caixeiro-viajante – matrimônio apressado por Álvaro, que, de tão rápido, pegou a todos desprevenidos. Não se seguiu o protocolo de tempo necessário para conhecer os costumes e o caráter do pretendente; não houve festa, nem padre. Só os votos dos noivos e o testemunho do padrinho, escritos numa folha de papel, que seria registrada logo que possível, por uma igreja ou um cartório. No meio do mato, considera-se isso normal. É verdade que sua protegida tinha implorado para que Álvaro adiasse o casamento. Desejava ausentar-se somente após o nascimento do filho da madrinha, mas o português encontra-se muito magoado. Sempre tão bondoso e risonho, agora está irreconhecível. Porta-se de maneira irredutível, agressivo até. Pensando e andando, a grávida chega à cozinha, o maior compartimento da casa. Perto da porta, que se abre para o quintal, cortando madeira e alimentando um enorme forno de argila, usado com a finalidade de assar pães e bolos,

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encontra-se José dos Gama. O homem negro, alto, magro e de cara fechada veste camisa e calça branca surrada, e se mantém descalço. Com uma enorme pá de madeira, agita o leite de búfala, fervendo dentro de um alguidar, em cima do fogão de pedra e barro. Josefina dos Gama Guerra, sua irmã, conversa e gargalha, um sorriso de enormes dentes claros, fazendo perguntas, às quais Zé responde apenas com resmungos incompreensíveis. A bela cabrocha vem visitando o Sítio dos Cajueiros durante os finais de semana nos últimos meses. Ao contrário do irmão, a morena apresenta um bom humor crônico. Tem um casal de filhos adolescentes de pele bem mais clara, num tom mestiço quase branco. Demonstra, pela forma de se comportar, pela alfabetização e pelas roupas alvas de renda, que era a escrava preferida de algum senhor rico. A mulher é muito asseada; toma banho religiosamente ao nascer do dia e ao pôr do sol. Seu corpo sempre espalha um perfume suave e intenso de essência de priprioca, enquanto desliza num requebrado espontâneo e sensual. Os resmungos de José não tiram o contentamento da mulata, que procura mimá-lo, numa demonstração clara de que está muito feliz em permanecer a seu lado, tentando ajudá-lo em todas as tarefas possíveis. Josefina apresenta ter perto de trinta anos. Exibe na cabeça um turbante branco rendado, veste saia rodada, que aumenta ainda mais suas ancas generosas, e blusa decotada de mangas curtas, da qual mostra o colo sedoso e o início dos seios pequenos e bem-feitos. A morena mantém um avental amarrado na bonita cintura, uns galhos de arruda atrás da orelha, e caminha, os grandes passos de pés nus ao redor das mesas, distribuindo pratos, canecas e colheres sobre as toalhas quadriculadas de azul e branco, em uso desde o dia do casamento de Maria Lúcia. Em cima de um balcão estreito que percorre toda a lateral direita do cômodo, encontram-se distribuídos em tigelas: açúcar mascavo, sal, geleia, coalhada, mingau de arroz, banana assada, farinha-d’água, queijo caipira, manteiga de nata, biscoitos secos, beiju torrado, bolinhos de farinha tapioca e canjica. No outro canto da cozinha, sobre um fogão de ferro, fervem dois enormes bules de café e grandes panelas, onde se cozinham pupunha, piquiá, espigas de milho-verde, macaxeira, batata-doce e cará-roxo. Angelina entra sem ser notada. Vendo que tudo se apresenta sob controle, a portuguesa desaba sobre uma cadeira e, depois de um longo suspiro, começa a soluçar. O gemido do pranto chama a atenção do casal, que interrompe o trabalho e vem correndo ao seu encontro.

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O par de irmãos tem conhecimento do motivo que provocou o ataque de nervos da europeia, mas também sabe, por experiência própria, que a vida não espera quem fica chorando as mágoas. Os trabalhadores virão tomar café em meia hora, e Angelina deverá estar firme e calma. A missão de distribuir as tarefas executadas na casa-sede e na refinaria lhe cabe; Álvaro cuida apenas do trabalho do campo e da colheita. Josefina pega um copo de água do pote, põe um pouco de açúcar dentro, enxuga o rosto da senhora num guardanapo limpo e fala: – Fica assim, não, sinhazinha! Chora mais, não! Toma este copo com garapa pra acalmar. Enxuga as lágrimas. Sinhô Álvaro num vai ficar fulo pra sempre! O tempo amansa todo mundo. Logo, as molecas vão voltar. Parado na frente das mulheres que adora, José observa entristecido as lágrimas de Angelina. Mira a amiga, como enfeitiçado, estático, os olhos esbugalhados de surpresa e consternação. Então, a mestiça grita: – Que é isso, homem! Deixa de lenga-lenga! Num vê que ela tá com fome? Coitadinha! Tá xendengue que nem um fiapo! Inda de barriga! Tira um pão fresquinho do forno e traz aqui com um caneco de café amargo. A sinhá vai se aquecer e ficar odara. Falando desse jeito, Josefina vai empurrando a comida garganta abaixo da lusitana, que se acalma aos poucos e fica encabulada com seu comportamento. A faladeira continua: – Num precisa se preocupar, sinhá! Malu, antes de viajar, me ensinou tudinho o que tem de se fazer de manhã. Quando tua afilhada soube que ia pra longe, fez beiju e biscoito pra mais de mês. Ditinho deixou eu ficar aqui, até vosmecê achar uma empregada entendida de fogão. Posso ajudar a treinar uma das moças que tão quebrando cacau, até ela aprender de como fazer os quitutes. Em três semanas, a cozinha vai tá em ordem de novo e vosmecê vai ter tempo de cuidar só do açúcar e da cachaça. Vou ficar com o Zé até o mano dizer que já posso ir. Vosmecê precisa pensar nesse neném que tá aí dentro. A barriga pode desmanchar se vosmecê ficar muito apoquentada e aperreada. A mulata pega uma faca e coloca na frente da portuguesa, dizendo: – O pessoal inda demora um tempinho pra chegar. Vá andar um pouquinho lá no jardim e colher uns jasmins, a modo de pôr no cabelo e ficar cheirosa. Aproveita e troca as fulôs do vaso dos santinhos. Leva esta faca pra cortar o banzo. Logo, logo vosmecê vai ficar boazinha, boazinha! Angelina sai da cozinha envergonhada e com o talher na mão. Poucas vezes tinha chorado na frente de alguém. Também fazia tempo que não se sentia

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tão sozinha e impotente. Isso havia acontecido só quando a mãe, Francisco e a irmã morreram. Apesar de amargurada, não se descontrolara nem quando pai Armando casara novamente. Mas agora suas filhas tinham sido afastadas de sua convivência, e a sensação de perda ultrapassa até a de solidão. E Angélica, responsável por todas essas mudanças, onde se encontrava? Pelo menos estava feliz? Falando consigo mesma, a europeia anda até o escritório, um quarto isolado da casa, onde organiza as finanças, a costura, e ensina as crianças a ler e escrever. Lá dentro, para um pouco e, devagar, pega o longo vaso branco de louça, cheio de flores murchas, que se encontra na frente do oratório. Olhando a capelinha de madeira, depara-se com a imagem de Jesus menino sorrindo de braços abertos. Ajoelha-se com um olhar distante e reza pelo bem-estar de todas as suas filhas, já antecipando a saudade. Após vários minutos de reflexão, levanta-se e caminha pela trilha que leva ao jardim. Sentindo o cheiro doce de jasmins, açucenas e angélicas impregnando o ar, primeiro arranca com as mãos alguns galhos do jasmineiro florido no caramanchão, e então se curva a fim de cortar com a faca alguns cachos de angélicas, antevendo um bonito e perfumado arranjo. Os pendões das plantas cortadas deixam escorrer um líquido viscoso e liso. Depositando as flores no vaso, a caucasiana tenta lavar as mãos numa lata com água, utilizada para regar mudas novas. O som de metal batendo contra metal informa que a aliança caiu do dedo emagrecido. A grávida se debruça, pega o anel e lê as letras gravadas na face interna: A & A. Nesse momento, percebe uma dor lancinante no abdômen, seguida de uma contração. Sentando-se em um banquinho, tenta proteger o útero, segurando a barriga. Não adianta se enganar: começou o trabalho de parto. Angelina é parteira de mão-cheia e também já foi mãe oito vezes. Três filhos seus morreram anjinhos. Em suas contas, faltam mais de trinta dias para completar os noves meses necessários a uma boa gestação, mas pode estar errada. Precisa voltar urgente para a cama. Apertando a joia na mão, tenta colocá-la no dedo. Ergue-se e uma nova pontada de dor, seguida de contração, arrebenta a bolsa, espalhando água e sangue sob a saia. A mulher automaticamente fecha as pernas, senta no chão e grita o mais forte que consegue: – Álvaro!

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Angelina está prestes a desmaiar, e aos poucos vai deitando. Uma calma toma conta de seu ser. Desconfia de que este filho virou anjinho. Os olhos vão fechando por conta própria, embora tente ficar consciente. O cheiro forte das flores quase a embriaga; as mãos perdem as forças. O anel rola no chão e para em frente a seu rosto. Lê novamente as letras na aliança e, sem perceber, balbucia: – Angélica! Entra numa espécie de transe. Não está mais no Brasil; encontra-se em Portugal. As lembranças de alguns dos momentos importantes de sua vida desfilam em sua mente e às vezes se embaralham...

QUINTA DAS CEREJEIRAS – PROVÍNCIA DO MINHO – PORTUGAL 4/8/1855 De vestido verde, Angelina se vê correndo muito animada e feliz na quinta de tio Anselmo Sousa. A pequena fazenda fica em um vale, na região montanhosa do norte de Portugal. Por toda parte, encontram-se espalhadas figueiras e cerejeiras repletas de frutos. A menina deleita-se com o vento, que traz o cheiro de animais, plantas e terra. É seu aniversário. Está completando seis anos. O clima de verão permanece agradável; o dia vai ser longo e ensolarado. A temperatura serrana da província do Minho é deliciosa. Todas as crianças encontram-se rindo às gargalhadas e brincando de esconde-esconde. São acostumadas a conviver juntas. No momento, os infantes tentam se ocultar nos compartimentos da casa de dois andares feita de granito e madeira. Francisco está correndo e puxando-a pela mão. O par sobe pela escada externa rumo à varanda e fica atrás de portas e móveis. A família raiz de mãe Angélica é muito ligada. Seus membros praticam o catolicismo de forma fervorosa. Angelina, seus pais, irmãos, tios e primos pelo lado materno sempre se reúnem em festas religiosas e aniversários. O sentimento de união, ajuda e compartilhamento entre eles é constante e considerado normal. Tio Anselmo Sousa tem oito filhos. Todos são louros e parecidos. Ela vai se casar com o primo caçula... Qual das crianças é Álvaro?

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BRAGA – PORTUGAL 4/8/1863 Este ano, o verão está quente demais. Mãe Angélica permanece adoentada e não haverá a comemoração do 14ºaniversário de Angelina. Sua irmã Lilica, de onze anos, fica em casa ajudando a cuidar do caçula Benjamin. Angelina se vê carregando uma sacola com alguns artefatos médicos e andando em direção à casa das Irmãs de Caridade. Lá existe uma enfermaria em que as freiras trabalham atendendo pessoas doentes, preparando e distribuindo soluções de remédios ou ervas medicinais. Alva Fragoso, sua irmã, tem dezessete anos e está encantada com a vida monástica. Já decidiu que vai se internar como noviça e depois dedicará a existência toda a servir e adorar Jesus. Alva é uma das pessoas mais simples, bondosas e calmas que Angelina conhecerá durante a vida inteira. Sabendo que Angelina tem obsessão especial pela medicina, vai abrir as portas das bibliotecas e do conhecimento das plantas e da cura das doenças à irmã. Embora queira se tornar carmelita, viver na clausura e se dedicar totalmente à contemplação e à oração, a jovem vai entrar na ordem das Dominicanas de Santa Catarina de Sena, fundada por Teresa de Saldanha, e praticar também o estudo, a vida fraterna e o apostolado. Isso porque essa congregação é a única que nasceu em Portugal, numa época em que foram eliminadas todas as ordens religiosas no país. Em Portugal, mosteiros e conventos masculinos foram extintos, e os femininos não podem mais aceitar noviças e serão fechados após o falecimento da última freira. As moças que pretendem ser missionárias estudam nos conventos, mas têm de dormir em casa. Angelina acompanha Alva durante as idas aos claustros. Ajuda as religiosas a cuidarem dos doentes e é frequentadora assídua das bibliotecas: entra quase em transe quando está devorando com os olhos as páginas dos livros sobre fórmulas de medicamentos e anatomia humana. Muitos ensaios estão escritos em latim ou em inglês, mas a jovem também procura estudar essas linguagens e sente uma facilidade enorme fazendo isso, como se a vida inteira estivesse envolvida com doenças e curas. No dia de seus catorze anos, Angelina é apresentada ao padre Robert Smith Johnson, um médico americano, franciscano recém-ordenado, que está estagiando em Portugal e tentando aprender a linguagem portuguesa. O sacerdote ficou se

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adaptando ao estilo de vida europeu por seis meses no Convento dos Dominicanos de Lisboa. Agora, permanecerá em Braga por quatro anos, trabalhando no hospital da Santa Casa de Misericórdia. O único convento que sobreviveu em Portugal à expulsão dos religiosos em 1834 foi o dos Dominicanos de Lisboa. No final do século XVI, Henrique VIII, rei de Inglaterra, perseguiu os católicos da Grã-Bretanha, e os dominicanos irlandeses refugiaram-se em Portugal com os dominicanos do Convento de São Domingos de Benfica. Decorridos alguns anos, esses monges se instalaram definitivamente em Lisboa, no Convento do Corpo Santo. Quando começou a evacuação dos mosteiros portugueses, a comunidade do Convento do Corpo Santo hasteou a bandeira inglesa, e as autoridades portuguesas, tentando evitar desagradar a Inglaterra, não ousaram perturbar os frades. Com a saída dos religiosos do país, os hospitais portugueses ficaram com poucos e mal treinados ajudantes. No momento, devido a um grande incêndio ocorrido na parte pobre da cidade, padre Robert precisa desesperadamente de auxílio para cuidar de vários feridos e queimados que estão na enfermaria. O médico necessita de alguém que tenha coragem de assisti-lo: amputar membros, dar pontos em cortes e cuidar de fraturas expostas, por isso foi procurar ajuda no Ambulatório das Irmãs de Caridade. A freira responsável pelo local manda chamar Angelina, enquanto a descreve ao franciscano: – Lina é a melhor colaboradora que o senhor pode encontrar. Apesar da pouca idade, não tem horror a sangue ou nojo de ferida, nem medo dos gritos de dor ou vergonha quando tem de desnudar alguém doente. Já ajudou a tirar anjinho, cortar braço fora, arrancar dente, fechar olhos de defunto. Uma pena não ter vocação religiosa... Sempre é de grande valia em qualquer ocasião de doença. Pelos quatro anos nos quais padre Robert Smith Johnson permaneceu em Braga, Angelina foi seu braço direito. Em Portugal, naquela época, não existiam mulheres que exerciam a medicina, mas o clérigo, devido à necessidade do hospital, ensinou a jovem de tudo um pouco. A portuguesa aprendeu a dar pontos em cortes, cauterizar feridas com fogo, fazer tala para osso quebrado, reconhecer as doenças mais comuns e, principalmente, acudir parturientes e amparar crianças recém-nascidas. Além disso, o doutor treinou-a em preparar e utilizar várias soluções de medicamentos e ervas. Angelina aprendia rápido e mantinha sempre a calma e o bom humor. Nas horas de operações ou tratamentos mais difíceis, entrava numa espécie de transe e incorporava a tranquilidade e a eficiência necessárias à função.

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A moça achava engraçado o sotaque linguístico do americano e, sempre que não estavam trabalhando, enchia-o de perguntas sobre os livros de medicina que lia e as pronúncias de palavras em inglês, que tentava memorizar. Padre Robert é a primeira pessoa que a chama de Anjo. O missionário costumava brincar que, com a lusitana por perto, os doentes estavam protegidos. Antes de viajar de volta aos Estados Unidos, o sacerdote convidou-a para aperfeiçoar seu aprendizado médico em Lisboa, no Convento dos Dominicanos. Por que será que seu pai Armando, sendo tão caridoso, não queria que ela aprendesse nem praticasse medicina? Por que seu genitor afirmava que ela já estudara o suficiente para uma mulher e a obrigava a trabalhar todas as manhãs como caixa e vendedora da padaria Fragoso?

BRAGA – PORTUGAL 15/6/1866 Angelina se enxerga caminhando com Francisco pela ruela de Braga, que liga sua casa à panificadora da família. São seis horas da manhã, mas, em razão da cidade se encontrar entre o oceano e as serras, a temperatura no verão sempre é elevada. Dentro da padaria está muito quente. Seu pai Armando e seu irmão Augusto encontram-se assoviando canções e trabalhando na produção de pães e biscoitos. O bolo de aniversário de mãe Angélica está assando, quase pronto. A moça termina de confeitá-lo usando glacê e amêndoas. Ao voltarem para casa, encontram Ana Clara, Anselmo e vários primos. Tia Ana Clara Sousa é missionária da Ordem de Santa Doroteia da Frassinetti. Mora na Itália, porque em Portugal está proibida a admissão ao noviciado de novas freiras desde 28 de maio de 1834, quando foram extintos todos os conventos e casas de religiosos do reino. A missionária encontra-se em Braga, despedindo-se da família, pois vai viajar para Recife, no Brasil. Ela e outras moças, Filhas da Santa Fé, vão trabalhar no litoral nordestino promovendo obras evangelizadoras externas e disseminando a catequese entre mulheres, crianças e adolescentes. A tia é jovem; não deve ter mais que 25 anos. No momento, permanece alojada na Quinta das Cerejeiras.

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Na hora da separação, mãe Angélica abraça-a longamente e, soluçando, implora: – Aninha, se eu morrer ou acontecer alguma coisa comigo, tu ajudas meus filhos a encontrar o caminho deles? A freira, de forma afável, consente e a acalma. Será que sua mãe pressentia que iria falecer antes de rever a irmã caçula?

SÍTIO DOS CAJUEIROS – MARAJÓ – PARÁ 4/8/1890 Na cozinha, os peões contratados chegam para a primeira refeição do dia. Há muito mais homens que mulheres. Vieram apanhar a safra de cacau, café e cana – na roça, o serviço é colher; na casa, é secar as sementes e moer a cana para preparar rapadura, açúcar mascavo e cachaça. Todas as pessoas vão trabalhar mais de seis horas antes de almoçar, portanto o desjejum é sempre bem reforçado. Josefina, sorridente, serve a mesa em meio a uma gritaria ensurdecedora. Com uma comprida pá de madeira, José coloca e retira pães, broas e bolos do imenso forno de argila. Em um canto reservado, sentado à frente de uma mesa de quatro lugares, Álvaro Sousa de Braga conversa com os dois filhos mais velhos, Francisco e Anselmo, enquanto combina com Rogério Castilho, o fiscal recém-contratado, qual lote da plantação será colhido hoje. O cultivo do Sítio dos Cajueiros é feito em consórcio. Em cada cova está plantado um cacaueiro ou cafeeiro junto a uma pupunheira ou bananeira. Nas entrelinhas dos arbustos perenes foram introduzidas cinco fileiras de cana-de -açúcar, providência que torna impossível colocar fogo no canavial. O perigo com ferradas de tucandeiras, caranguejeiras e serpentes é grande, mas o rendimento com o cacau e o café e a economia com a menor área de manutenção compensam. Angelina, caída e desacordada no solo do jardim, não percebe mais dor nem as contrações de seu ventre. Tem a sensação de estar deixando o corpo. Sente-se leve e completamente livre para viajar pelas recordações.

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RESIDÊNCIA DE ARMANDO FRAGOSO – BRAGA 24/12/1866 A família está reunida: os pais, Armando e Angélica Fragoso; os irmãos, Augusto e Benjamin; Angelina e as irmãs, Alva e Angélica; tio Anselmo Sousa, a esposa Alaíde e seus oito primos: Fernando, Nelson, Anselmo, Vitor, Zacarias, Francisco, Tiago e Álvaro. Todos, alegres, cantam “Noite feliz”. Mãe Angélica encontra-se radiante... A ceia está servida. O prato principal consiste em bacalhau com cebolas e ovos. Após o peixe, é ofertado arroz com polvo. Como sobremesa, têm-se rabanadas e diversos tipos de mexidos. Para acompanhar, bebe-se vinho do Porto. Antes de abrir os presentes, cada membro da família, espalhados e sentados em frente à lareira, tem de fazer uma prece ou dizer um propósito de Ano-Novo. Alva solicita falar primeiro: – Este é o último Natal que passo em família. Fui aceita pelo Convento de Sienna das Dominicanas Contemplativas, em Drogheda, na Irlanda. Vou receber os votos no domingo, 30 de janeiro. Escolhi o nome de “Maria da Luz”. Ninguém carece se preocupar comigo, pois estou certa de que é isso que quero. Encontro-me tranquila e contente. Augusto pede para ser o segundo a discursar: – Este também é o último Natal que passo em família. Eu, Chico e Vavá vamos viajar dia 28 de julho pro Brasil. Conseguimos passagens e documentos grátis. O navio Augustine nos levará do porto de Vigo até o porto de Belém. Trabalharemos por um período numa ferrovia que ligará Benevides a Bragança; receberemos salário e um lote pra cultivar. A terra será nossa. Ninguém precisa se inquietar, já está tudo providenciado. Antes de responder às perguntas de vosmecês, Vavá quer falar. Álvaro levanta, meio encabulado, e explica: – Seu Armando e tia Angélica, estou a ir ao Brasil, mas antes quero pedir a mão de Lilica em casamento e ficar noivo dela. Sei que Lilica acabou de completar quinze anos, mas desde novinhos nós gostamos muito um do outro. Faço casa e envio a passagem dela antes de três anos. Tia Aninha prometeu vir buscá-la e ficar com ela até o dia do casamento. Vosmecês conhecem-me; sou homem de palavra. Ninguém precisa se preocupar.

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Mãe Angélica sabe que Álvaro é pobre. É o último filho de seu irmão Anselmo, um agricultor que possui uma pequena fazenda na província do Minho. Chamando Vavá e Lilica ao centro da sala, entrega a própria aliança de casamento ao futuro genro. Álvaro coloca o anel na mão direita da prometida, e as duas Angélicas se abraçam emocionadas. Em transe, Angelina nota a enorme semelhança entre suas três Angélicas: miúdas, louras, olhos azuis, parecidas com pequenas bonecas frágeis e sonhadoras. Irrequieta, pergunta-se: onde estará sua filha Lilica? Mas agora Angelina enxerga todos ao redor dos noivos e Alva, e vislumbra Francisco encostando-se nela por trás, passando o braço sobre sua cintura e lhe fazendo sinal de silêncio, enquanto a puxa para o escritório sem chamar a atenção dos presentes. O sexto filho de tio Anselmo chama-se Francisco Sousa. É mestre de obras e tem cinco anos a mais que Angelina. Desde que a portuguesa se entende por gente, Francisco a acompanha a todo lugar. A família sabe que o rapaz é totalmente enamorado por ela. Desde novinha, Angelina acredita que vai casar com esse primo. Francisco é a cópia mais velha de Álvaro. Tem os mesmos traços, os mesmos cabelos louros e os mesmos olhos azuis. A maior diferença aparece por conta da idade – com seus 22 anos, Francisco tem o corpo de homem formado e é bem mais musculoso e robusto que o irmão. A portuguesa já se acostumou a ter esse primo por perto. Francisco a trata sempre com benevolência, segurança e bom humor. Aceita sua falta de aptidão doméstica e a paixão pela medicina. Também mora em Braga e é quem sempre vai buscá-la, e a Alva, dos locais onde estudam e trabalham. Encarando-a de frente, Francisco, sorrindo, confessa: – Lina, minha querida, não é segredo pra ninguém que desejo casar-me contigo. No mesmo dia que me aceitaste como marido, isso já tem mais de três anos, eu pedi tua mão e comecei a dialogar sobre o assunto com seu Armando. Guardei segredo de ti sobre nossas conversas, mas foi só assim que teu pai deixou-me levar-te pra cima e pra baixo, e permitiu-me opinar sobre tuas birutices. Hoje de manhã, solicitei que ele consentisse a ti estudar medicina, aqui em Braga. Não inventes de querer ir a Lisboa, meu amor. Lá é perigoso demais. Enquanto eu estiver fora, promete-me que vais ficar perto do amparo da família? – Pai Armando deixou-me estudar medicina de novo? Ele exigiu que eu parasse; disse que devia tentar melhorar meus dotes domésticos, principalmente os

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culinários. Acha que vou acabar por envenenar-te. E que história é essa de já ser meu noivo e eu nem saber? Por que não apressas esse casamento e leva-me junto ao Brasil? Como tens coragem de deixar-me sozinha por três anos, Chico? Como vou conseguir ficar tanto tempo sem te ter por perto? É uma malvadeza da tua parte! – Nós temos pouco tempo a sós, Lina. Para com essas perguntas e não começa com tuas teimosias. Não me atormentes ainda mais, meu amor. Eu já sabia que ias protestar. Meu coração está a gritar pra levar-te. Meu cérebro está a implorar pra manter-te perto de mim. Tu nem imaginas quantas noites já perdi acordado, a tentar descobrir outra maneira de encontrar um futuro pra nós, eu que nunca consegui ficar mais que duas semanas afastado de ti. Mas, meu amor, ainda não tenho condições de sustentar-te como mereces. Nem sei como é essa viagem! Sabias que os homens são separados das mulheres? Todos que conheço recomendam que tens de partir para o Brasil com pelo menos mais uma moça... Francisco a abraça apertado e beija-a na testa, continuando: – Sei que tu queres continuar a estudar medicina, Lina. Então, concentra-te no teu aprendizado e só começa a preocupar-te comigo quando fores viajar. Procura ficar bem ocupada, assim o tempo vai passar rápido e logo vou estar a fazer-te companhia de novo. Eu já tenho um pouco de dinheiro. Trabalharei em Benevides e ganharei um lote de terra perto de Álvaro. Comprarei depois um terreno na capital, ao lado da residência de Augusto, e farei uma casa pra nós na cidade ou no sítio. Tudo vai depender de onde for mais fácil obter renda. Prometi a Álvaro e a Augusto que os ajudarei no Brasil. Após construir uma habitação pra nós, edificarei uma pra eles. – Com voz embargada pela saudade antecipada, Chico continua: – Não te preocupes, Lina! Tomarei conta de ti, mesmo não estando em Portugal. Já conversei com Fernando: ele vai proteger-te e buscar-te no trabalho todos os dias, depois que fechar o Empório do Minho. – Então, Chico, se já estamos noivos há mais de um ano, já cumprimos todo o protocolo. Não me deixes a esperar esse tempo todo. Vamos casar logo. Leva-me junto contigo ao Brasil, de uma vez. Eu sei que vou gostar de qualquer lugar, contanto que fique perto de ti. – Sabe, Lina, eu invejo essa tua pressa em realizar as coisas; essa tua sandice de querer aproveitar cada momento, de não deixar passar as oportunidades. Foi por isso que pedi segredo ao teu pai sobre nosso noivado. Se tu soubesses antes, com certeza eu já teria feito a tua vontade: nós já estaríamos casados e a morar embaixo da ponte. Se eu fosse um pouquinho mais corajoso ou se te amasse menos, te levaria comigo agora.

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Francisco tira um envelope do bolso, onde encontra-se um par de alianças. Coloca a argola menor no anular direito da noiva e solta a mão, para Angelina encaixar o outro anel no seu dedo. Em seguida, olha de forma apaixonada nos olhos da moça, abraça-a apertado, dá-lhe um beijo rápido na boca e continua a falar: – Augusto e Álvaro prometeram entreter os outros por uns quinze minutos pra eu poder conversar a sós contigo. Vem aqui, Lina. Eu preciso de um beijo. Angelina, ainda protestando, mas sorrindo, pega as orelhas do primo e lhe dá um beijo no nariz. Francisco puxa-a num abraço forte e a encosta contra a porta, fugindo da visão que a janela aberta do escritório oferece aos que se encontram na sala. Com voz rouca, diz: – Não quero um beijo de namorada, Lina. Quero um beijo de noiva. Um beijo pra eu lembrar nos próximos meses. Escuta, meu amor, nem que tenha de trabalhar por trinta homens, prometo a ti que, no máximo em dois anos, vou mandar-te uma passagem. Vem pronta pra ser minha mulher. No dia que Lilica unir-se a Álvaro, tu também casas comigo. Francisco passa os braços da prima ao redor de seu pescoço e pela primeira vez a abraça com paixão. Moldando seu corpo ao dela, beija-lhe os lábios, o pescoço, o colo, e fica acariciando seu corpo por cima da roupa, dizendo: – Mas agora, meu amor, vou esquecer-me da promessa de não te tocar que fiz ao teu pai. Eu vou abraçar-te, sentir o teu cheiro, apertar-te ao meu encontro e dar-te um monte de beijos, até que alguém venha interromper-nos. Quero fazer isso de olhos bem abertos, porque pretendo guardar cada detalhe deste momento na minha memória. Essa lembrança é que vai fazer-me companhia pelo período em que ficaremos separados. Até este dia, Angelina tinha praticado o namoro católico tradicional. Evitava ficar a sós com o primo e, durante os momentos que tinham de privacidade, sempre o impedia de avançar em suas carícias; nunca foram além de beijos e abraços. Angelina recorda de não saber como corresponder aos carinhos do noivo; apenas para de protestar e deixa-o tocá-la do jeito que necessita. Continua sorrindo, fitando seus olhos e afagando seus cabelos com as mãos. Em poucos minutos, pai Armando dá falta do casal e manda Benjamin trazê-los para junto dos outros na sala. De dentro dos sonhos, Angelina tem clarões de memória e recorda... Alva deitada no chão da igreja; cortando os cabelos; fazendo os votos e recebendo o hábito. Augusto, Francisco e Álvaro se despedindo e partindo para o Brasil, tão jovens, esperançosos e confiantes...

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Mãe Angélica bebendo um copo de leite e subindo para dormir um sono do qual não acordaria. Pai Armando casando com Elvira, uma moça de vinte anos. Tia Ana Clara voltando a Portugal com duas passagens para o Brasil e a notícia de que Álvaro tinha uma casa e um lote de terra no Marajó; Augusto abrira uma padaria na cidade de Belém; e Francisco, infelizmente, morrera de um mal desconhecido há dois meses. Relembra o sentimento de desânimo e prostração que a dominou depois da morte de mãe Angélica e Francisco. Elvira tomando o lugar de Angelina no caixa da padaria. Lilica chorando apavorada por ir morar sozinha longe, pedindo que a acompanhasse. A proposta de casamento feita por primo Fernando... A indecisão sobre o futuro, coincidindo com o pedido de padre Robert para que ela passasse alguns anos no Brasil, ajudando os capuchos a difundirem práticas de higiene e medicina no interior da Amazônia.

SÍTIO DOS CAJUEIROS – MARAJÓ – PARÁ 4/8/1890 São sete horas da manhã e os trabalhadores já foram todos para o campo. A cozinha encontra-se vazia e limpa. O serviço na casa precisa se iniciar. Álvaro procura Angelina. Enquanto não a acha, manda as mulheres quebrarem os frutos do cacau e espalharem as sementes no terreiro com a finalidade de secar. Segue em direção ao escritório e nada de localizar a esposa por lá. José se prepara para passar o dia todo cortando madeira de lenha. Tem de deixar uma pilha grande de ripas para ser queimada durante a preparação do açúcar. Está no terreiro, suado e sem camisa; as costas negras apresentam muitas listras claras, demonstrando que já sofreu castigos de chicote. Observa quando Álvaro vem em sua direção. O português diz que não encontra Angelina. Sentindo um aperto no coração, Zé dá um grito tão alto e desesperado, que todos saem correndo atrás dele para o lado do jardim. É o primeiro que vê a prenhe caída, agora numa poça de sangue e ardendo em febre. Tenta abraçá-la e carregá-la, contudo Josefina, horrorizada, não deixa.

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Álvaro transporta a esposa para a cama, porém a mulher delira e não reconhece mais ninguém. O português grita para o negro ir atrás da parteira e da benzedeira. No meio do mato, não tem médico, nem padre. Quando uma grávida que está parindo tem febre, todos sabem que o infante virou anjinho, mas uma boa parteira muitas vezes retira a criança do ventre e salva a vida da mãe. A benzedeira reza para a mãe não querer acompanhar o anjinho. Também vai batizar o natimorto e fazê-lo ir direto ao céu, para não deixá-lo esperando o dia do Juízo Final, vagando no limbo. Angelina, deitada na cama, não sente mais as dores do corpo. Está leve e distante. Em seus sonhos, suas lembranças continuam a se atropelar...

LISBOA – PORTUGAL 4/8/1868 Em Lisboa, Angelina encontra-se em visita a Alva, que no momento acha-se no Convento dos Dominicanos, preparando-se para prosseguir sua vocação na Irlanda. As irmãs permanecem em diálogo no jardim do mosteiro. Angelina está completando dezenove anos. Até agora não decidiu se casa com Fernando ou acompanha Lilica ao Brasil. Só não quer continuar morando com o pai. Alva conversa, tranquila e feliz, e, com um grande sorriso, discursa: – Não leves a vida tão a sério, Lina, senão tua existência vai passar rápido demais e nem vais aproveitá-la. Papai fez mamãe feliz enquanto ficaram juntos; é justo que ele viva contente com Elvira, agora. Se isso incomoda-te, vai ao Brasil. Fica com Lilica por uns dois anos. Ajuda os brasileiros como enfermeira e depois, quando estiveres pronta pra ter tua própria família, pai Armando ou tia Aninha arrumam outro viúvo pra ti. A padaria permanece indo bem, mano Benjamin gosta de Elvira e pai Armando está alegre. Tu sempre quiseste estudar e conhecer novas plantas, doenças e pessoas. Por que vais perder esta oportunidade? Pensa nisso; olha dentro de ti, deixa as mágoas de lado, enxerga sempre a bondade nos outros. Lá no céu, tenho certeza de que mãe Angélica e primo Francisco estão contentes com a felicidade do pai, preocupados com a viagem de Lilica e a querer que tu te encontres e sejas feliz. Então Alva pega um pedaço do papel que enrolava o presente que dera à irmã e continua:

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– Vou escrever meu pensamento predileto nesta folha de embrulho, pra ti recordá-lo quando te lembrares de mim. Ela escreve: “O tempo é uma ilusão. A vida refaz-se sempre por amor. Com amor, a morte não é nada; é só o início de uma maravilhosa viagem”. Depois, abraça a irmã e fala ao seu ouvido: – Lina, não existe ciúme depois da morte. Mãe Angélica com certeza está feliz com a alegria de pai Armando, e Francisco deseja que tu cases e refaças tua vida com outra pessoa.

PORTO DE VIGO – PORTUGAL 9/10/1868 Angelina está no cais de Vigo, entrando no transatlântico, com Lilica, tia Ana Clara, a freira Camila e duas mocinhas. Sua tia explica: – A travessia no navio Amazonense deve durar uns trinta dias. Nossas passagens são na terceira classe, junto com os emigrantes. Esta jornada vai ser uma verdadeira provação, por isso devemos ficar sempre juntas ou pelo menos em dupla. Os homens não respeitam as mulheres sozinhas. Estas duas raparigas são Amália e Bianca; elas viajarão conosco. Enquanto anda, a freira comenta: – Trouxemos biscoitos, frutas secas, salames e queijo provolone. A comida deste navio nem sempre é razoável. Nosso pernoite será feito nos dormitórios do porão, mas passaremos a maior parte do tempo ao ar livre, inclusive comeremos aqui. A cozinha encontra-se ali em cima. Ficarei responsável de buscar e repartir a nossa parte de alimento; provavelmente teremos café e mingau de manhã; e macarronada, sopa, pão e vinho no almoço e jantar. O dormitório é dividido por sexo. Os roubos são muito frequentes, por isso tomem conta das sacolas. Vamos escolher uns colchões perto da parede e tentar manter este local limpo. A nau deixa Portugal e entra no oceano Atlântico. Os dias vão passando rapidamente para Angelina; ela e Lilica não sofrem de enjoo de mar. É certo que a embarcação tem balançado pouco. No convés, as moças alimentam gaivotas, gritam aos golfinhos, avistam cardumes de peixes e até baleias. Para Ana Clara, a travessia está sendo um suplício. A religiosa permanece indisposta e sente náuseas do cheiro intenso que agora exala do dormitório. Nem a comida é do seu gosto, tendo se alimentado praticamente de biscoitos e frutas secas.

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Hoje é um dia especial. A portuguesa encontra-se amparando um parto em pleno oceano. Nasce uma meninota forte, gritando, e que se chamará Angelina. Agora que as pessoas descobriram que a lusitana entende de medicina, acaba seu sossego. Todo mundo quer remédio para alguma coisa. Seu suprimento de ervas terminou, mas, mesmo assim, muitos doentes a reconhecem e continuam a procurá-la. Existem várias moléstias a bordo, principalmente por falta de higiene. A maioria dos emigrantes dorme vestida e calçada, está sempre suja e não troca a roupa. As crianças deixam fezes, urinas e vômitos por onde brincam, e as mães pouco limpam. O forte odor, o calor, o suor e o volume de gente aglomerada propiciam mal-estar em muitos passageiros. Mas, agora, ouvem-se gritos de alegrias: – Viva o Brasil! Enxergaram o vulto da terra. As pessoas correm para cima, tentando se tornar o mais apresentável possível. Homens fazem a barba, crianças trocam a roupa, mulheres se lavam e se penteiam. Ana Clara se benze e exclama: – Graças a Deus! Estamos em casa!

MARAJÓ – PARÁ 4/8/1890 Começa a chover, mas Zé nem percebe. Se tivesse ido atrás de Angelina quando ela demonstrou fraqueza, a amiga não estaria tão doente. Pensativo e sentindo-se culpado, apressa-se. Depois de duas horas remando, chega à casa da parteira, que está de saída para atender uma emergência. Tudo que Rosa Carmona sabe sobre gravidez e bebês, aprendeu com sinhá Anjo. Ao ouvir a notícia de que a enfermeira está doente, nem pensa duas vezes; entra imediatamente na canoa. Mal José deixa a parteira no sítio, monta o cavalo e vai desenfreado atrás de dona Maroca Ferrão, a melhor benzedeira da região do Marajó. Ao chegar de volta, as mulheres informam: – Dona Rosa tirou o anjinho, mas a sinhá ainda está perdendo muito sangue. A infecção não passou e tudo se encontra nas mãos de Deus. Só resta orar.

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Ouvindo a notícia, Zé arruma umas coisas, pega um facão e se mete na selva. O negro já rezou muito na vida, faz tempo que perdeu a fé. Vai resmungando no escuro: – Nunca vi reza levantar gente que tá pra virar zumbi. Eu vou atrilhar pelos matos e si precisar inté roubo uma bajara. Mas amanhã mesmo chego em Belém e trago padre Robert pra ver minha Kisimbi, nem que seji no arrasto. Deitada na cama, Angelina encontra-se desmaiada. A parteira Rosa removeu o anjinho e a placenta, mas ainda não conseguiu estancar a hemorragia. A portuguesa continua vagando pelo subconsciente...

CIDADE DE BELÉM – PARÁ 23/11/1868 O calor de Belém é quase sempre amenizado pela chuva tropical que cai à tarde. Angelina ainda não se acostumou com o clima, então decidiu banhar-se com água fria do poço, todas as manhãs. Mesmo tentando se controlar, passou a noite toda chorando, rezando e lembrando-se de Francisco, por isso acordou um pouco atrasada, e se apressa em colocar seu vestido mais bonito. Hoje, sua irmã Angélica vai se casar. O primo Álvaro já deve ter chegado ontem de noite, em Belém, e o matrimônio será celebrado às oito horas. A portuguesa precisa correr e transformar a tristeza no melhor sorriso que conseguir. No quarto ao lado, tia Ana Clara veste a noiva, que soluça sem parar. Angélica está toda de branco e rosa. Os enormes olhos azuis, o véu fino e o coque frouxo de cabelos louros emolduram seu rostinho e a tornam mais menina. A nubente está linda, parecendo uma bonequinha frágil de porcelana. Ao ver Angelina, corre e se atira em seus braços. A irmã tenta acalmá-la: – Lilica, tu estás belíssima. O noivo não vai conseguir tirar os olhos de ti. Calma! Daqui a pouco tempo, Augusto me levará ao teu sítio. Até lá, tu aproveitas pra conhecer melhor teu marido e brincar de ser senhora da casa. Vamos! A cerimônia de casamento tem de acabar antes das dez horas. Teu barco vai sair meio-dia, e Augusto já levou teus pertences a bordo. Depois do casamento de Angélica, Angelina retorna ao seu quarto, deita na cama e deixa-se abater por um misto de depressão e saudade. Sem conseguir dominar-se, pranteia em soluços cada vez mais altos.

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Augusto, angustiado, entra no cômodo trazendo um envelope nas mãos. Senta na cama, onde a irmã está deitada de bruços, o rosto escondido no travesseiro, e conversa: – Lina, tu não podes deixar-te abater assim. Francisco pediu o tempo todo pra não largar-te abandonada e triste. Disse-me pra entregar-te isso depois do casamento de Angélica. Ele sabia que só quando ficasses sozinha irias desabafar. Aqui tens uma carta com as chaves do cofre e dos cadeados dos baús. O cofre é embutido embaixo destas tábuas do assoalho. O primo te exigiu olhar e usar o que quiseres, mas te proibiu de doar ou vender qualquer coisa pelos próximos dez anos. Ele não quer que distribuas esses valores aos pobres; ele trabalhou pra ti. Afirmou que tu vais viver muito e deves usar essas importâncias com tuas crianças. Mandou prometeres que vais formar uma das tuas filhas em medicina. O padeiro, acariciando os cabelos da moça, tenta confortá-la: – Francisco amava-te demais, minha irmã. Trabalhou de sol a sol todos os dias, desde que chegou aqui. Tudo o que fazia era pensando em ti. Fez primeiro esta casa, porque esperava convencer-te a morar em Belém, mas comprou o sítio no Marajó pra construir um chalé de refúgio, onde poderias passar os finais de semana perto de Angélica. Aqui existem construções sendo levantadas o tempo inteiro. Quando chegamos de Portugal, soubemos que haviam atrasado as obras da estrada de ferro. Como estávamos sem emprego, Francisco foi pelos comércios, mercados, conventos e igrejas, e identificou-se em todos os lugares possíveis, até que conseguiu carta de recomendação de padre Robert e começou a trabalhar como ajudante de construtor. A partir daí, surgiram oportunidades de serviços de todos os lados. Ele nos sustentou sozinho por quase seis meses. Depois, quando eu e Álvaro nos arranjamos, comprou terreno, edificou nossos domicílios e começou a juntar coisas pra ti. O pessoal gostava do estilo do trabalho dele, e ele conseguia arranjar dinheiro rápido. Teu noivo trocou serviço por tudo que achava que ias gostar. Trabalhou por móveis, tecidos, joias, material de construção, além de “mil-réis”, claro. Nunca recusou nenhuma ocupação. Com olhar saudoso e pensativo, Augusto continua: – No dia do enterro de Francisco, tinha tanta gente por aqui, que eu até agora não sei como ele conseguiu conhecer tantas pessoas em apenas dois anos. Acho que o primo ajudava padre Robert a melhorar a morada dos pobres, também. O capucho pode informar-te mais a respeito dos serviços que teu noivo prestou. Foi ele que o confessou e deu-lhe a extrema-unção. Francisco faleceu depois de quase quinze dias doente, mas morreu tranquilo, sem dor, a dormir. Quando o primo estava a morrer, disse ter certeza de que tu acabarias por vir amparar Angélica.

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