R. Costac
O Círculo de Pedra As Lendas Vivem
Coleção
NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
São Paulo 2012
Prólogo
A caminhonete vermelha rodava pelas ruas quase desertas da região portuária. O lugar era cercado por enormes armazéns abarrotados de mercadorias que, em algum momento, seriam embarcadas em grandes navios cargueiros. O veículo reduziu a velocidade até estacionar próximo ao único bar-restaurante das redondezas. Era véspera de um feriado prolongado e nuvens escuras prenunciavam um dia chuvoso. Após descer da antiga pickup reformada, era um modelo Chevy fabricado em 1954, o motorista teve problemas para travar a porta, era sempre assim, correr para escapar das primeiras gotas de chuva e se esconder no bar que acabara de abrir. O estabelecimento tinha janelas largas envidraçadas que expunham a rua vazia. O movimento seria fraco naquele dia com os trabalhadores do porto fugindo para o lazer e o descanso de três dias. O homem escolheu uma mesa junto a maior janela até que alguém resolvesse vir atendê-lo. O bar estava quieto, sem pressa e sem clientes. O único frequentador olhou para as garrafas enfileiradas na prateleira atrás do balcão. Decidiu não beber nada que o deixasse tonto naquela manhã. Pediria um café bem forte a fim de espantar o tédio e rever algumas anotações para o seu próximo livro. Seus olhos escuros avaliavam o ambiente, nunca havia estado ali, todavia, era um local que oferecia o que ele mais queria naquele instante: sossego para relaxar. A chuva apertou e os pingos repicavam muitas vezes na lataria do robusto Chevy 1954. O escritor solitário não tinha pressa. Pouco se importava se demoravam a vir à sua mesa para fazer o pedido. O seu maior comprometimento era em repensar sobre o que havia se passado com ele uma hora atrás: a discussão que teve com o seu editor, e que o deixara colérico. As insistentes propostas de inventar histórias para fazer seu livro vender mais eram uma grande afronta à seriedade do seu trabalho e um desrespeito à sua dignidade. Nunca antes havia usado de artimanhas para que suas obras tivessem aceitação do público e da crítica, e não seria agora que lançaria mão de ardis para enganar seus leitores com o intuito de vender seus livros. Estava convencido de que a ganância havia transformado o bom e honesto editor em um maníaco inconsequente que agora só pensava em ganhar dinheiro com o mercado literário.
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A sua última publicação Fábulas e Mitos, o que há de verdade neles, havia atingido mais de quinhentos mil exemplares vendidos pelo mundo afora. Desse modo, ele havia conquistado respeito e admiração. Era um pesquisador ferrenho e dedicado, todas as suas teorias tinham um cunho científico e estavam bem amarradas e embasadas. Quando não havia respaldo para levar em frente a sua investigação, decidia, então, abandonar meses de estudos e sacrifício com a mesma facilidade que se amassa uma folha de papel rasurada e a joga em um cesto de lixo. A chuva se avolumava lá fora e as calhas do armazém em frente ao bar expulsavam jorros de água na calçada. As sarjetas formavam pequenos rios que desciam a rua na direção do porto. Ele cerrou os olhos para reposicionar as ideias e pensar sobre o que deveria fazer a partir dali. Estava preso a um maldito contrato que exigia dele mais quatro publicações; caso contrário, a multa rescisória o arruinaria. Obviamente, nada o obrigava a fraudar o conteúdo de sua obra ainda inédita. Contudo, a pressão exercida pelo seu algoz editorial abalava a sua serenidade. Quando seus olhos voltaram a se abrir, o aborrecido escritor se deparou com a presença de uma pessoa de pé ao seu lado. Num primeiro momento imaginou ser o empregado do bar que, finalmente, achou por bem vir atender a única mesa ocupada. Não era. Junto dele estava um homem muito idoso que o observava com algum interesse. – Me permite desfrutar de sua companhia? – pediu o sujeito de idade bastante avançada. Não obstante o dia chuvoso e calorento, o velho vestia uma camisa cáqui de mangas compridas abotoadas no punho. Seu olhar era jovial, embora o seu rosto trouxesse as marcas rugosas de muitas décadas vividas. O escritor resistiu em aceitar dividir sua mesa com alguém, principalmente um estranho. Preferia ficar sozinho e decidir o que fazer a respeito da questão incômoda entre ele e seu inescrupuloso editor. Deu-se por vencido e sua educação falou por ele, gesticulando meio a contragosto para que o ancião puxasse uma cadeira e se sentasse. – Não há muito que fazer por aqui a não ser observar, entre um e outro gole de café, a chuva caindo na rua. – O velhote puxou assunto, desejando mostrar-se afável. O escritor esfregou as mãos com declarada impaciência e comentou. – Ouvi dizer que chove durante todo o feriado. – E viu um cão do outro lado da rua encolhendo-se na enxurrada, o pelo encharcado, a expressão triste e assustada.
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– Eu o conheço – afirmou o velho. – Você escreve sobre lendas e coisas do tipo. Li toda a sua obra e, obviamente, aprecio o que faz. Desde bem pequeno me interessei por histórias fora do comum. – E acrescentou, demonstrando conhecer bem sobre o seu interlocutor: – Você assina como L. A. S. Dypes... – É o meu nome: Lucad Anacleto Sidromus Dypes. Ficaria muito extenso na capa de um livro – explicou, daí olhou pela janela, o cão havia desaparecido. – Você deve ter vivido experiências emocionantes em suas viagens pelo mundo. Testemunhado coisas que a maioria das pessoas nem sonharia em ver. Lucad apenas assentiu com a cabeça. Estava impaciente com a intromissão educada do homem diante dele. Pensou em arranjar uma desculpa, se levantar e ir embora. Mas não houve tempo, pois o velho o interpelou com uma pergunta aparentemente óbvia. – Gosta de ouvir histórias, senhor Dypes? – Eu vivo delas – respondeu secamente. Lucad notou pela expressão do velhote que a resposta não foi exatamente a que ele esperava ouvir. Havia algo nos olhos daquele indivíduo, um segredo, um enigma aguardando para ser desvelado. Lucad sabia disso. Tinha muita experiência em entrevistar pessoas e conseguia identificar uma história verdadeira dentre centenas de outras contadas por mentirosos ávidos por fama. Imediatamente corrigiu o que havia dito. – Me interesso por boas histórias, desde que sejam verdadeiras. E acho que o senhor tem algo muito interessante guardado em suas lembranças. O que me diz? – Você é um rapaz muito esperto, Lucad. Mas não consigo falar por muito tempo sem tomar algo. E o que tenho para lhe revelar é uma história muito, mas muito longa. Está mesmo disposto a escutar um velho carcomido pelos anos? Pediram a mesma coisa: grandes xícaras de café preto e sanduíches de queijo e presunto. A chuva que persistia fustigando, inclemente, não dava sinais de cessar. O ancião prendeu a xícara com as suas mãos enrugadas, bebericou o café quente, e começou a narrar a sua surpreendente história.
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Divina Providência
Foi numa tarde de maio de 1539. A Nau Divina Providência já navegava há quarenta e dois dias cruzando o imenso oceano Atlântico rumo ao novo continente conhecido como América do Sul. O mar se mostrava calmo naquele dia. O vento que soprava de nordeste para sudoeste estufava as velas distendidas como o tórax de gigantes, fazendo com que a embarcação de mais de setecentas toneladas atingisse a velocidade de onze nós com facilidade, cortando o oceano impetuosamente rumo ao seu destino. A nau portuguesa não tinha a mesma navegabilidade das ágeis caravelas, mas era ideal para o fim a que se destinava: transportar grande quantidade de carga e passageiros que deveriam desembarcar no auspicioso e misteriosamente fascinante Novo Mundo. O entardecer conferiu um tom dourado às velas abertas e as primeiras estrelas despontavam timidamente no leste, anunciando a chegada de outra noite que tudo levava a crer ser marcada pela quietude. Alguns tripulantes, esparramados pelo convés, descansavam preguiçosamente sem se darem conta do que estava para acontecer naquele dia fatídico. Uma figura baixa e atarracada usando longas costeletas grisalhas dirigia-se rapidamente em direção ao castelo da popa, seu andar era cambaleante por ter as pernas arqueadas, o convés de tábuas grossas rangia sob seus pés. A cabine do capitão Gaspar Manuel dos Reis era pequena, mas de extremo bom gosto para os padrões e as condições dos navios onde a falta de higiene era comum; ratos e baratas infestavam os porões, dividindo o espaço e a comida com a tripulação. Muitos adoeciam e até morriam durante as viagens que, de tão longas, pareciam intermináveis. Uma mesa e cadeiras de carvalho compunham o ambiente sóbrio da cabine de comando. Duas lamparinas pendiam do teto e dançavam ritmadas ao balanço provocado pelas ondas do mar, e uma janelinha deixava entrar os últimos raios de sol iluminando fracamente o interior da cabine. O capitão Gaspar Manuel já passava dos quarenta anos, sua barba bem aparada e suas vestes cobertas por um gibão que ia até a altura dos joelhos lhe conferiam uma aparência digna de sua posição de liderança.
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– Com sua licença, caro senhor – disse o Mestre Pedro Martins quando adentrou o aposento e fechou a porta atrás de si, suas costeletas pareciam se afastar para cima quando ele fez menção de continuar falando, no entanto, foi interrompido. – Algum problema, marujo? – perguntou o comandante ao erguer os olhos semicerrados para o seu comandado, deixando de lado suas anotações no diário de bordo. – Ao contrário, capitão – respondeu animadamente, a voz dísfona. – As notícias são favoráveis. Devemos avistar a terra daqui a três dias, se não enfrentarmos nenhuma calmaria. A boa informação satisfez o capitão, pois sendo ele um homem de confiança da Coroa Portuguesa, teve a importante incumbência de conduzir com segurança os fidalgos, os artífices e os demais passageiros que deveriam compor a administração e exploração das terras descobertas há quatro décadas. Portugal iniciava um difícil desafio de colonização dos seus territórios além-mar recobertos por léguas e mais léguas de florestas desconhecidas e habitadas por gente de pele morena e animais exóticos. Um imenso continente a desbravar. – Libere um pouco de vinho e biscoitos para a tripulação – ordenou o capitão, voltando o olhar através da pequena janela para a esteira de espuma formada pela passagem do Divina Providência. – Preciso de todos os homens bem-dispostos nos próximos dias. Pedro fez um aceno com a cabeça concordando e seguiu rumo ao depósito de mantimentos. A chegada da noite escurecia o horizonte. Era tema corriqueiro das conversas a bordo, as lendas fantásticas contadas como verdadeiras entre os homens que passavam a maior parte de suas vidas no mar ou nos portos, em tavernas mal iluminadas frequentadas por gente de todo tipo. Afinal, as superstições eram bastante comuns aos homens do mar que invariavelmente navegavam por lugares desconhecidos. Essas histórias eram regadas à cerveja e música, por vezes rompendo a madrugada e indo até o raiar do dia. Sempre havia alguém que conheceu um pobre diabo que por pouco não escapou de ser devorado por algum monstro marinho surgido repentinamente no meio de uma tempestade. Relatos de ruídos estranhos no casco anunciavam o aparecimento de serpentes gigantescas que, ao se enroscarem na embarcação, arrastavam-na e a todos a bordo para o fundo, deixando apenas destroços como vestígio, ou nem isso. Outras histórias descreviam polvos descomunais com tentáculos tão longos como grandes mastros e que, desferindo um abraço fatal, destroçavam qualquer navio em mil pedaços. O fato é que muitos juravam ter visto criaturas grotescas, demônios e bestas de todas as formas e tamanhos ameaçando suas vidas miseráveis a cada viagem. Viam, ou imaginavam ter visto, olhos cintilando no meio do oceano escuro,
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espreitando e aguardando o melhor momento para arrastar os pobres infelizes para as profundezas do inferno. Essas e muitas outras lendas povoavam as mentes e as conversas daqueles que passavam meses ou mesmo anos entre céu e mar. No convés, três dos marinheiros que descansavam de seu turno depois de um árduo dia de trabalho, entretinham-se falando sobre um dos assuntos preferidos. Apoiado na amurada estava Diogo, um experiente marinheiro, que apesar dos seus cinquenta e tantos anos, ainda possuía o vigor e a agilidade de um jovem grumete. Seu rosto coberto por uma barba espessa aumentava ainda mais a severidade de suas palavras. Profundas cicatrizes nos braços curtidos pelo sol eram testemunhas de uma vida rude que levava desde os treze anos de idade. Comentava-se que ele era um homem de mau agouro como um corvo que surge pela janela em meio a um temporal. Falava de um jeito como se as desgraças flutuassem sobre a cabeça dos incautos. Um profeta do infortúnio. – Essas águas são amaldiçoadas – afirmou ele com dramaticidade. – Essa calma aparente pode ser traiçoeira. Acreditem! – Estamos quase chegando, mais alguns dias e pisaremos em solo firme. – Tentou tranquilizá-lo seu companheiro Antonio, um jovem marinheiro alto e magricelo, com pouca experiência na arte da navegação e que não tinha muita convicção em suas próprias palavras. – Além disso, o céu está limpo e duvido que tenhamos alguma mudança no tempo antes de atracarmos – completou Felício, um terceiro marujo de rosto redondo e ar bonachão, apontando para o céu negro e estrelado. – Pois aí é que vocês se enganam, amigos – persistiu Diogo, olhando enigmaticamente um a um, Antonio e depois Felício. – As desgraças também acontecem em dias como esse. O tempo muda de repente, o vento deixa de soprar e algo terrível acaba com nossos sonhos e nossas vidas. Todos foram interrompidos pela voz disfônica de mestre Pedro. – Comemorem! – gritou ele. – O capitão mandou distribuir vinho e biscoitos para festejar o fim de nossa viagem que se aproxima. Comam e bebam, mas mantenham-se sóbrios ou serão pendurados no mastro grande até o fim da viagem. Disse isso e ergueu o primeiro copo de vinho, deixando escorrer pelos cantos da boca a bebida preciosa. A aprovação foi geral e a marinhagem se aproximou do tonel, disputando, com algum rebuliço, a sua parte. – Viu?! – disse Antonio, o marujo magricelo a Diogo. – Nossa sorte está mesmo mudando, para melhor. – Eu diria que para muito melhor – acrescentou Felício deliciando-se com a visão das canecas sendo enchidas.
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– O diabo é astucioso e enganador – retrucou Diogo, seu olhar se apertou ainda mais. – Primeiro ele nos dá migalhas e nos deixa felizes e desatentos, mas logo se aproveita de nossa ingenuidade e suga nossas almas para que padeçam no seu mundo infernal por toda a eternidade. Uma hora após o modesto banquete, o silêncio voltou a reinar quebrado apenas pelo ranger dos cabos do velame ao roçarem nas malaguetas e ferros e pelas ondas que batiam incessantemente no casco. A noite, já absoluta, cobria com seu escuro véu a tudo e a todos. O cansaço fez com que a maioria dos tripulantes aqui e ali fosse mergulhando em um sono pesado, improvisando rolos de cordas como travesseiros e panos imundos como aconchegantes cobertores que os protegiam da fria brisa do mar. Antonio, o jovem marujo magricelo, deitou-se próximo ao castelo de popa e pôs-se a observar o céu perfurado de estrelas. Ele notou que a lua que acabara de nascer lançava o seu brilho de mármore projetando compridas sombras e formando imagens indefinidas pelo convés. As palavras de Diogo arranhavam a sua mente, mas aos poucos, vencido pela preguiça, adormeceu embalado pelo suave balanço do mar como um bebê sob o olhar materno. O enigmático marujo Diogo, debruçado na amurada, tentava sem sucesso enxergar através da escuridão que enegrecia totalmente o horizonte. Ele sabia que estavam navegando numa área onde se registravam vários naufrágios sem uma explicação satisfatória. O sono não vinha e Diogo tentou se distrair fixando o olhar na estrada de luz que o reflexo da Lua formava no oceano. Estava quase se convencendo de que naquela noite teria um pouco de paz e sossego, contrariando as suas mais sombrias expectativas. Do interior de sua cabine o capitão Gaspar Manuel revisava, juntamente com o seu piloto, Fernando de Souza Bento, os últimos cálculos realizados com o auxílio da bússola e dos instrumentos de navegação, concluindo que a rota que haviam traçado estava correta. O piloto Fernando, de cabelos louros e pele clara ruborizada pelo sol, aparentava não ter mais do que trinta e cinco anos, acumulava um forte conhecimento técnico marítimo que conquistou a confiança de seu capitão e de toda a tripulação. Porém, sua maior experiência era as rotas do oriente onde havia passado os últimos oito anos costeando a África quando rumava para os entrepostos comerciais na Índia. – Perfeito, capitão! – afirmou Fernando com veemência. – Há muito não fazíamos uma viagem tão bem-sucedida, pelo que me recordo, nem mesmo em nossas empreitadas pela costa africana.
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– Fora as calmarias, as correções de traçado no percurso e as brigas a bordo, os resultados foram positivos – acrescentou o capitão com palavras bem-humoradas. – Mas só me darei por satisfeito quando deixarmos essa gente da comitiva da Coroa em terra firme. As recomendações foram muitas para que eles tenham o melhor tratamento ao longo dessa viagem – concluiu apoiando os cotovelos sobre a mesa e acarinhando com as pontas dos dedos a barba que quase lhe escondia o rosto. Lá fora, Diogo o marinheiro, inclinou-se sobre a amurada ao perceber que algo estranho estava ocorrendo. Sem que houvesse algum motivo aparente, alguma coisa sacudiu o barco e as águas se tornaram mais encrespadas. Voltando-se e percorrendo rapidamente o velame com o olhar, não notou nenhuma mudança na direção ou velocidade dos ventos. – Droga, está acontecendo! – praguejou Diogo disparando em direção à cabine do capitão. Diogo abriu a porta com violência e gritou com nervosismo. – Os malditos demônios vieram buscar nossas almas, senhores! – O que deu em você, marujo? – disse exaltado o piloto Fernando em tom de repreensão, imaginando que uns goles a mais do vinho tinham afetado o seu juízo. – As águas, venham ver as águas – insistiu Diogo voltando para o convés. O capitão e o piloto seguiram-no ainda sem entender o que acontecia. Mas ao olharem o mar a sua volta compreenderam que algo estava muito errado. – Estamos fora de rota, senhor – disse o piloto ao observar a posição das estrelas, em seguida subiu as escadas que davam na parte superior do castelo de popa onde se localizava a roda do leme. – O diabo nos aguarda para dar o seu abraço mortal! – dramatizou Diogo com voz profética e os olhos fixos no mar cada vez mais agitado. – Todo o leme a bombordo – ordenou o piloto ao timoneiro. – Já virei todo o timão, senhor, mas estamos sendo arrastados para oeste. Fernando verificou as velas sem se dar conta de por que o Divina Providência não se deslocava para o sudoeste. – Mantenha o leme todo a bombordo – disse o piloto enquanto descia as escadas e procurava o capitão no meio da escuridão. Alguns passageiros que perceberam a agitação e a gritaria saíram de suas cabines exigindo explicações sobre o que ocorria. O capitão procurou tranquilizá-los pedindo que voltassem aos seus aposentos. Disse que estavam atravessando um encontro de correntes marinhas e que logo tudo estaria bem. Ele mesmo não acreditava no que estava dizendo.
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– O leme não responde, capitão – disse ofegante o piloto enquanto olhava as águas ainda mais encrespadas a sua volta. – Estamos sendo arrastados por uma força invisível. Pela cabeça do capitão rodopiavam mil pensamentos. Aquilo não devia estar acontecendo. Havia mulheres e crianças a bordo. Ele precisava fazer alguma coisa. Mas o quê? – Baixem a âncora! – gritou o capitão numa atitude desesperada. – Tentaremos roçar o fundo para diminuir a velocidade. Se houver fundo – pensou. A âncora foi lançada, mas a velocidade só parecia aumentar. A luta travada pelos ventos contra as velas e a forte corrente já começava a tombar a Nau, fazendo com que os tripulantes e os passageiros corressem para o convés, aumentando a confusão que já se instalara. Um dos líderes da comitiva que iria desembarcar no Novo Mundo agarrou o capitão pelo braço e sem ter noção do que estava se passando perguntou com voz trêmula: – O que se passa? Os passageiros estão apavorados. – O capitão notou que o homem atracado ao seu braço era o vigário que fora designado para dirigir uma paróquia em um dos povoados da novíssima colônia portuguesa. – Eu não sei – respondeu friamente com os olhos fixos na escuridão da noite. – Só nos resta esperar. – Então as palavras saíram lúgubres de sua boca. – Rogue por nossas vidas, vigário, se não for o bastante, implore a Deus pelas almas dessa pobre gente. Nenhum dos trezentos e vinte e dois tripulantes e passageiros do Divina Providência haviam passado por algo semelhante. A velocidade ultrapassara os vinte nós naquele momento, ameaçando romper a estrutura da nau de grande tonelagem. – Senhor, temos que alinhar o curso do navio ao arrasto ou iremos a pique – avisou o piloto Fernando como sendo um ultimato. – Então faça rápido, piloto – concordou refletindo sobre o que devia ter feito de errado para se encontrar naquela situação. O breu da noite, pouco iluminado pelas estrelas e pela Lua que aos poucos ganhava altura, dificultava as ações dos tripulantes que se apinhavam no convés aguardando uma ordem milagrosa do capitão como se ele pudesse salvá-los. Mas a ordem nunca vinha. – Terra, terra à vista! – berrou a todos pulmões um marinheiro que se postava no cesto da gávea localizado no mastro principal, e que observava de uma privilegiada perspectiva o tumulto lá embaixo. – Onde você vê terra, marujo? – gritou o capitão postando as mãos junto a boca para melhor se fazer ouvir. – Bem à frente, senhor!
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– Descreva o que consegue avistar. – Ainda não está bem visí... – ele interrompeu o que ia dizendo com uma breve pausa, procurando identificar melhor, e emendou: – Rochedos! Agora posso ver as ondas se quebrando neles! – e enchendo os pulmões novamente, disparou: – Vamos bater! Vamos bater! Do convés era possível avistar a muralha de rochas que se erguia pela frente. Os gritos desesperados do marinheiro levaram pânico a todos; alguns se jogavam nas águas revoltas tentando evitar o choque inevitável; famílias inteiras se abraçavam sem saber o que fazer; outros se agarravam ao comandante do Divina Providência implorando para que suas vidas fossem salvas. Pela primeira vez o capitão Gaspar Manuel dos Reis sentiu que a situação fugira completamente de seu controle. Àquela altura, se tornava bem nítida a visão da fúria do mar se arrebentando contra os rochedos que eram mais altos do que o cesto da gávea, agora abandonado pelo marinheiro que presenciou tudo desde o começo. O capitão se esforçava para localizar, naquela muralha inexpugnável, um ponto onde pudessem se agarrar e assim tentar salvar o maior número de vidas, mas era um paredão muito íngreme e que parecia crescer a cada segundo à medida que a nau se aproximava atingindo perigosamente a velocidade de trinta nós. A estrutura de madeira do navio começava a se desmantelar produzindo estalos por toda parte e que só aumentavam o pavor generalizado. Por um breve momento, o capitão observou toda a desordem como se esta passasse lentamente diante dos seus olhos: as pessoas correndo de um lado para outro, uns caindo nà sua frente... e os gritos, muitos gritos. Os sons lhe eram quase imperceptíveis e toda a sua vida foi lembrada numa pequena fração de tempo. O impacto violento interrompeu seus pensamentos, despertando-o de seu transe e arremessando-o a longa distância. Os estampidos de madeiras se quebrando se misturavam aos gritos agonizantes e ao estrondo ensurdecedor das ondas explodindo nos rochedos. O capitão já não sabia direito onde estava, procurava agarrar-se com todas as suas forças a um pedaço da amurada que se partiu, enquanto via o mastro principal tombar trazendo na sua queda vários cabos e amarras que iam sendo tragados pelas ondas. A violência das águas atirava pessoas e pedaços da embarcação contra os rochedos. Não restava mais nada a fazer. Ele mesmo foi jogado violentamente contra o paredão, ferindo o ombro e o joelho esquerdos. Precisava sair dali ou morreria despedaçado. Tenho que fugir desse inferno. Talvez se nadar para o outro lado eu encontre uma saída – pensou.
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Numa última olhada, ainda pôde ver o que fora o Divina Providência, agora transformado em um monte de destroços atirados repetidamente contra o gigantesco paredão. Seu raciocínio era confuso. Ele nadou e lutou contra a morte por muito tempo. O cansaço tomava conta do seu corpo e todos os seus músculos doíam. O ar parecia não querer entrar mais em seu peito. Quando pensava em desistir, avistou uma faixa de areia que reavivou as suas forças. Preciso conseguir – continuou com aquele pensamento obstinado, lutando e tentando assim não desistir. Então nadou com maior ímpeto mesmo que as águas enfurecidas continuassem batendo no rosto, dificultando muito mais a sua respiração ofegante. Com muito esforço conseguiu sair da água arrastando-se pela areia de uma pequena praia, os dedos enterrando-se na areia úmida e o joelho ardendo com o ferimento. Procurou, com muita dificuldade, levantar-se, mas foi superado pela exaustão e caiu desfalecido. O vaivém das ondas ainda molhava os seus pés, entretanto, ele já não respondia mais a nenhum estímulo. Horas haviam transcorrido quando o capitão abriu os olhos lentamente e a primeira coisa que viu foi a Lua que ia alta no céu tomado de estrelas. Ele sentou-se e olhou ao seu redor, conseguindo discernir apenas umas poucas dezenas de metros, até onde sua visão alcançava, os restos do naufrágio espalhados pela praia. Alguns corpos inertes despertavam sua dúvida se jaziam mortos ou somente permaneciam desacordados pelo extremo esforço na tentativa de sobreviverem. O capitão Gaspar Manuel levantou-se claudicante buscando se orientar melhor, e caminhou para o interior do terreno desconhecido, e que tudo indicava ser uma ilha não identificada em suas cartas náuticas. Havia pouca esperança de conseguir ajuda naquele fim de mundo, mas ele não tinha outra alternativa e resolveu prosseguir. O luar clareava com palidez o caminho à sua frente confundindo a sua visão embaçada pelo castigo que lhe foi imposto. O marulhar das ondas rosnava atrás dele, e se distanciava, abafado pela sinistra quietude do interior daquela terra estranha. O silêncio foi quebrado por um grito apavorante que deveria vir de onde o seu nariz apontava. Ele correu e viu mais adiante uma intensa luz emanando do que poderia ser a entrada de uma caverna. Seu impulso de aventureiro fez com que ele ali entrasse, apoiando-se nas paredes rochosas, sentindo estranhamente uma forte pressão nos ouvidos, que reduziu sensivelmente sua audição. Passo a passo, prosseguiu na direção da luz que lhe era mais e mais brilhante. Foi naquele instante que o capitão ficou estarrecido ao deparar-se com aquela coisa. Seus olhos se arregalaram diante da visão aterradora. Algo que ele jamais esqueceria enquanto vivesse.
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Capítulo 1 O envelope pardo Daniel Crowley pedalava sua bicicleta pelas ruas da luxuosa e agradável vila de Marylebone ao sul do Regent´s Park, na capital londrina. Ele inclinava o corpo para frente a fim de atingir maior velocidade e logo chegar a sua casa localizada na rua Portland Place, depois de uma manhã repleta de cálculos na enfadonha aula de matemática. O vento frio do início de dezembro batia no seu rosto obrigando-o a enrolar o cachecol para proteger o nariz e as orelhas que congelavam até doer. Daniel era o melhor aluno da escola, só ameaçado por sua irmã Margaret que o atormentava com troças cada vez que o superava nas notas das provas periódicas. Seus olhos azuis e cabelos bem ruivos eram parcialmente ocultados pelo boné cinza dado pelo seu avô na última vez que veio a Londres visitar a família. O menino Daniel tinha uma grande paixão pelos truques de ilusionismo e gostava de se exibir para seus amigos, deixando-os boquiabertos com a sua mágica. Certa vez, Daniel deixou uma pequena plateia de colegas de sua escola intrigada ao transformar um ás de espadas em um rei de copas e depois fazer desaparecer no ar com um simples movimento de mãos, bem debaixo dos olhares arregalados e dos murmúrios perplexos de curiosidade. Ao chegar em casa, Daniel encostou a bicicleta na grade de ferro que separava a entrada e o jardim e subiu rapidamente depositando os livros e os cadernos em um balcão ao lado da porta. A sala da residência era espaçosa e bem arrumada, um grande candelabro dourado de cinco braços pendia do teto, quando aceso, devia emitir luzes encantadoras sobre os móveis lustrosos. – Mãe! – gritou, procurando nos cômodos amplos que se distribuíam no térreo do luxuoso sobrado. Ele ouviu os passos de sua mãe vindo da escadaria que dava acesso ao segundo pavimento. A Sra. Dorothy Crowley possuía lindos olhos azuis como os de Daniel, seus cabelos claros quase louros ficavam presos o que a fazia aparentar mais do que os seus trinta e quatro anos. Ela era a pessoa mais equânime da casa, o pilar que equilibrava e sustentava a família nas frequentes ausências do marido. – Parece que o seu presente chegou um pouco atrasado – disse ela.
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A Sra. Dorothy se referia ao pedido que Daniel havia feito quando perguntado o que gostaria de ganhar no seu último aniversário, quando completara quatorze anos. Ele entendeu as palavras de sua mãe no instante em que ela lhe entregou um envelope pardo com um símbolo impresso, e que lhe era familiar. Seu coração disparou quando ele pegou aquele envelope e, olhando-o contra a luz, procurou a melhor maneira de abri-lo sem danificar o conteúdo. Sua mãe olhava-o com uma expressão incógnita analisando cada movimento seu. Daniel rasgou cuidadosamente a borda do envelope e retirou de dentro uma folha de papel que tinha o mesmo timbre do invólucro, o conteúdo datilografado continha a seguinte mensagem: Congratulações Prezado, Daniel Crowley É com satisfação que comunicamos a sua admissão na escola internacional do Atlântico. A partir de agora, você faz parte de um seleto grupo de alunos que terá a oportunidade de desenvolver um alto grau de produção intelectual nas mais diversas áreas do conhecimento humano. Junto com este comunicado, segue um cartão de identificação com um código personalizado que deverá ser apresentado no momento da sua matrícula. Você terá até o dia 15 de dezembro de 1932 (ano corrente) para confirmar a sua matrícula na embaixada da República Federativa do Brasil localizada em seu país. A confirmação deverá ser feita por um responsável legal devidamente identificado. Importante: o não comparecimento até a data limite para a realização da referida matrícula será interpretado como desistência de sua vaga em caráter inapelável. Ilha da Coroa, 14 de novembro de 1932. Helmut Neckel Diretor Daniel voltou a vasculhar o envelope encontrando o cartão mencionado com o mesmo timbre da instituição impresso no centro e o seu nome completo seguido por um código: 21BCFH. – Fui aceito, mãe! – exclamou Daniel com um largo sorriso, não conseguindo conter a emoção.
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Naquele instante, Margaret, sua irmã, também entrou em casa e se deparou com a cena sem perceber direito o que se passava. A garota usava longos cabelos ruivos quase vermelhos que emolduravam o seu belo rosto pontilhado de sardas. Ela era um ano mais jovem que Daniel, havia completado treze dois meses atrás. – Passei, Meg, fui aprovado na Escola Internacional do Atlântico – disse ele, agitando os papéis e explodindo de felicidade. Margaret sinceramente ficou feliz pelo irmão, mas não conseguiu evitar uma pontinha de inveja, pois também havia se esforçado para ser aprovada submetendo-se a difíceis testes de conhecimento realizados seis meses antes. Daniel notou a frustração da irmã e procurou se conter para não causar um constrangimento em família. A Sra. Dorothy intercedeu: – Também tenho algo para você, querida. Os olhos da menina brilharam quando viram sua mãe exibir outro envelope igual ao de Daniel. Tanta felicidade contrastava com o sorriso tímido da Sra. Dorothy, ciente que seus dois únicos filhos estariam tão distantes, a milhares de quilômetros nos próximos oito anos. Há anos, o pai de Daniel e Margaret, um respeitado oficial da Real Marinha Inglesa, o capitão John Crowley, incentivava sutilmente os dois a tentarem a aprovação naquela inusitada escola, apesar da resistência da mãe deles. Ele dizia que, se concluíssem o curso, estariam aptos a seguirem carreiras brilhantes em praticamente qualquer profissão. Ele mesmo havia se formado na mesma instituição que lhe deu condições para exercer uma das mais cobiçadas carreiras do Reino Unido. Daniel não via a hora de poder falar para seu pai da sua felicidade e de poder abraçá-lo antes de partir. Devolvendo os papéis novamente ao envelope, perguntou a sua mãe que ainda esboçava aquela expressão melancólica: – Será que papai chegará a tempo de se despedir de nós dois, mamãe? – Não sei ainda, Daniel – respondeu com uma suave voz maternal. – Talvez seu pai só retorne no final de janeiro. – Provavelmente não estejamos mais aqui – disse Daniel, imaginando qual a data em que deveriam partir. O capitão John Crowley permanecia há mais de dois meses em missão no Oriente, e quando fazia tais viagens nunca tinha um dia certo para voltar para casa. As cartas que escrevia para sua família eram enviadas sempre relatando fatos incomuns vividos em terras estranhas e distantes que despertavam a imaginação de Daniel. O orgulho e a admiração que o filho tinha pelo pai eram tão grandes que
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ele sonhava em seguir toda a sua trajetória. A admissão na Escola Internacional seria o seu primeiro passo. O almoço estava na mesa e a Sra. Dorothy chamou Daniel e Margaret que desceram aos saltos ocupando seus lugares como de costume. Os três almoçaram e o assunto girou em torno dos preparativos para a longa viagem. – Preciso dizer algo a vocês dois – interrompeu a Sra. Dorothy pondo o guardanapo de lado, ela estava mesmo sem muito apetite. – Sei o quanto é importante para vocês e para o seu pai tudo isso que está acontecendo, mas quero que saibam que eu não concordo que tenham de ir tão longe para estudar. Existem ótimas escolas aqui mesmo em Londres. Na verdade, eu nunca entendi essa insistência de seu pai em querer que vocês se afastem por tanto tempo de nós. Os dois sentiram nas palavras amarguradas a insatisfação da mãe e ficaram desconcertados sem saber ao certo o que dizer. Daniel e Margaret se entreolharam. – Estaremos bem, mamãe – arriscou Margaret procurando consolá-la. – Além do mais, voltaremos para casa duas vezes por ano – concluiu tocando carinhosamente a mão da Sra. Crowley. – Escreveremos todas as semanas contando tudo – disse Daniel repetindo o gesto da irmã. – Não sei. – As palavras da Sra. Dorothy pesaram. – Algo me diz que não deveriam ir, mas se é a vontade de vocês e de seu pai, só me resta desejar-lhes boa sorte e torcer para que dê tudo certo – encerrou olhando ternamente os filhos. Daquele momento até o dia do embarque eles teriam vários detalhes a cumprir desde a confirmação das matrículas até os preparativos finais, arrumando as malas e verificando os pormenores da viagem que seriam orientados convenientemente pela embaixada brasileira. Daniel tinha um outro motivo para querer tanto estudar naquela escola. Ele era fascinado pela aventura. Ouvia histórias sobre aquele lugar encoberto por mistérios que o faziam sonhar, e o momento tão esperado finalmente havia chegado.
Do outro lado do vasto oceano Atlântico, na encalorada cidade do Rio de Janeiro, Rafael Fab havia acabado de fazer o seu desjejum antes de sair para ir à escola; um simples café com leite e pão lambuzado com manteiga. Seria mais um dia agitado, já que após cada aula, ele ajudava a sua família, trabalhando em uma pequena oficina no bairro, na dedicada atividade de chaveiro. O pouco dinheiro que recebia, dava-o todo para a sua mãe. Ele possuía olhos e cabelos castanhos e a pele bronzeada típica de um habitante dos trópicos. Rafael que acabara de com-
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pletar quatorze anos, trabalhava desde os oito aprendendo a consertar fechaduras, fazer cópias de chaves e até a descobrir segredos complicados de pesados cofres. Aprendia tudo com extrema facilidade. Seu ótimo desempenho na escola fazia com que seus pais vissem um futuro melhor para ele que não o de passar o resto da vida numa profissão sem grandes expectativas. Ao retornar no final da tarde para casa, cansado e ainda tendo que fazer os deveres escolares, recebeu a notícia que o encheu de alegria. O envelope com a insígnia característica era o prenúncio de um futuro muito promissor. A alegria de Rafael contagiou os seus pais que tinham consciência do esforço do garoto que passou as noites e finais de semana estudando por meses a fio sem reclamar. – E você pai, como fará para se virar sozinho? – indagou Rafael, consciente que o trabalho de chaveiro ajudava no sustento da casa. – Não se preocupe, filho – tranquilizou-o Sr. Lino. O dedicado pai de mãos grandes e grossas calejadas pelo trabalho de tantos anos como carregador de caixas pesadas no mercado municipal. Por trás dos pequenos óculos ovais ele olhava o filho com satisfação e carinhosamente o abraçou como a um amigo que não via há muito tempo. – Posso muito bem me virar como fazia antes de você crescer. Além disso, seus irmãos já estão crescendo e muito em breve também estarão em condições de nos ajudar. Lino se referia aos seus outros dois filhos, a pequena Duane de sete anos e Vitor de cinco, ambos muito apegados a Rafael. A Sra. Odete, mãe de Rafael, muito magra, de olhos negros e fundos, cabelos castanhos e voz gentil, aproximou-se do filho pondo algo na palma de sua mão, uma diminuta imagem de Nossa Senhora. Disse-lhe que a pequena miniatura da santa católica iria protegê-lo e que o menino sempre deveria levá-la com ele. Rafael assentiu dando um forte abraço em sua mãe. A imagem da santa indo direto para o seu bolso. As conversas se estenderam até tarde da noite quando o cansaço tomou por completo o garoto. Ainda meio confuso com toda aquela revolução que estava acontecendo em tão pouco tempo na sua vida. Rafael se retirou para o quarto que dividia com os irmãos e, mesmo esgotado, não conseguiu dormir de tanta excitação. Os pensamentos conturbavam a sua cabeça juvenil. Nunca havia se separado dos pais e isso lhe causava um certo vazio que intensificava a sua ansiedade. Ele olhava para os irmãos menores que dormiam profundamente sem saberem o que estava acontecendo e que logo mudaria por completo a sua vida. Seu irmão, Vitor dormia abraçado com um elefante de pano de orelhas grandes e cara engraçada que sua mãe havia feito para ele. Aquela noite estava particularmente agradável apesar
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da proximidade do verão. Rafael olhava pela janela do quarto a rua já deserta, somente iluminada pelas luzes amareladas dos postes parcialmente encobertos pelas copas das árvores. Da porta do quarto, entreaberta, ele conseguia ouvir resquícios da conversa de seus pais. – Dizem que essa escola é muito rigorosa – comentava Odete. – Muitos alunos não conseguem terminar sequer o primeiro ano. – Estou confiante de que ele vai conseguir concluir o curso – dizia Lino, esperançoso. – Do sucesso dele depende o futuro dos irmãos. Rafael sentiu o peso da responsabilidade e estava disposto a tudo, para um dia voltar e mostrar aos pais o resultado do seu esforço. Naquele instante ele assumiu um compromisso consigo mesmo de um dia regressar para casa formado e com condições de prover seus dois irmãozinhos que tanto amava. Os dias se transformaram em semanas e a ansiedade aumentava com a aproximação do momento em que Rafael partiria finalmente. – Não esqueça de escrever! – gritou tia Mary despedindo-se de Chester da soleira de casa. – Cuide do Coronel! – respondeu ele, referindo-se ao seu cavalo Quarto-de-Milha que havia recebido de presente dos tios quando completou dez anos. Chester Thompson, agora com quatorze anos, de cabelos louros bem aparados e olhos azuis-claros acinzentados, havia passado quase toda a sua vida morando no rancho dos tios, a quarenta quilômetros da cidade de Houston no Estado americano do Texas, depois que seus pais haviam perdido a vida em algum lugar a sudoeste de Oklahoma, vítimas de um tornado devastador quando ele ainda tinha cinco anos. Chester sobreviveu por milagre quando foi jogado em um buraco e ficou ali até tudo terminar. As autoridades tiveram dificuldade para localizar alguém que fosse responsável pelo garotinho ferido e assustado, pois não havia nada que revelasse a sua identidade, e os seus pais haviam desaparecido e seus corpos só foram encontrados dois dias depois no meio de uma pilha de destroços. Seus tios o amavam como a um filho, e a separação deixaria o rancho menos alegre sem as cavalgadas que Chester fazia todas as tardes. – Não se esqueceu de nada? – perguntou o tio Fred ao mesmo tempo em que acomodava as bagagens na caminhonete. O tio Fred era alto como um urso e gostava de se vestir com seu velho macacão surrado, ele sempre usava um farto bigode que quase lhe cobria a boca. – Creio que não, tio – disse o garoto empurrando a última mala de viagem para dentro da carroceria.
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O tio Fred deu a partida e o veículo foi saindo lentamente dando tempo de Chester acenar pela última vez para a tia. A caminhonete passou pela porteira do rancho Neblina virando à esquerda em direção à cidade. – Você não precisa ir se não quiser – disse Fred mesmo assim, embora estivesse consciente que seu sobrinho não voltaria atrás. – Eu sei disso, tio – respondeu, registrando na memória as últimas imagens daquele lugar aprazível em que conhecia cada arbusto, árvore ou riacho. – Mas não posso perder essa oportunidade que tanto lutei para conseguir. – Bem, se você não se ajeitar por lá poderá desistir – insistiu. – Está bem, prometo fazer isso – riu Chester da última tentativa do tio. Chester permaneceu em silêncio por vários minutos enquanto Fred alternava o olhar entre a estrada e o calado sobrinho que mantinha os olhos voltados para fora do veículo. Tio Fred quebrou a breve pausa. – O que você está pensando, Chester? – Meus pais... o que eles achariam se estivessem vivos? – respondeu com outra pergunta e com a expressão ainda pensativa. – Certamente estariam orgulhosos de você – disse Fred trocando a marcha e acelerando mais. – Qualquer um ficaria feliz e orgulhoso ao saber do sucesso de um filho. – Gostaria que eles estivessem aqui agora. Gostaria de me lembrar deles... mas não me lembro de nada – respondeu com a voz embargada e olhando novamente para fora. – Você não tem culpa, filho – disse o tio para confortá-lo. – Quando eles se foram você ainda era muito pequeno. – É... eu sei – disse Chester com o olhar perdido nos vãos das árvores que separavam a estrada de uma pastagem ressecada pela falta de chuva dos últimos meses. A caminhonete seguiu seu caminho levantando uma leve nuvem de poeira e depois sumiu entre as curvas da estrada de terra.
A sala era ampla e acomodava no seu centro um piano de cauda que sempre era tocado magistralmente por um menino de apenas quatorze anos. Seu nome era Marc Fournier, um jovem de altura acima da média, olhos claros e cabelos negros que emolduravam o seu rosto de expressão desafiadora. Marc era assim, enfrentava as pessoas, mesmo os adultos.
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Seus pais tentavam dissuadi-lo da ideia de morar em uma ilha que nem sabiam ao certo onde ficava no mapa. O certo é que o rapaz tinha muito talento para a música e não entendiam como ele estava disposto a interromper uma carreira de sucesso para estudar em uma escola no meio do oceano que nem oferecia em suas disciplinas um mísero curso de música. Marc era uma daquelas pessoas privilegiadas que tinha o ouvido absoluto. Ele identificava facilmente a nota musical de um talher caindo no chão, uma porta batendo ou um cão latindo. Marc também tocava flauta e violino com refinada desenvoltura e costumava passar horas seguidas das frias noites do inverno parisiense acompanhado por seus pais que também eram músicos como ele, todos embalados pelo que havia de melhor da música clássica. Marc dedilhou as últimas notas de um noturno de Chopin e sorriu para os pais satisfeito do seu próprio desempenho ao piano o qual tocava sem o menor esforço. Em seguida tirou do bolso o envelope que era o seu passaporte para um outro mundo totalmente diferente daquele que desfrutara até o momento. Leu mais uma vez o que dizia a mensagem e, voltando-se para seus pais, disse muito seguro de si: – Não se preocupem, prometo que darei sequência aos meus estudos, e quando eu voltar nas próximas férias mostrarei que o meu talento está mais afiado do que nunca. Jean Paul ouvia atentamente as explicações do filho. Jean Paul Fournier, podia se dizer que era um desses homens que gostava de se vestir bem, mesmo dentro de casa, ele tinha a constituição magra e estatura alta, cabelos escuros penteados para trás com brilhantina. Amava o seu único filho como um pai dedicado que era, mas respeitava sua decisão por considerar que o rapaz era suficientemente maduro para fazer escolhas. Foi então que ele argumentou. – Filho – disse, debruçando-se sobre o piano de cauda. – A música está no seu sangue e você sabe que indo para esse fim de mundo não aprenderá nada de novo. Porém, se é isso mesmo o que deseja, estaremos do seu lado. Quer mesmo levar isso adiante? Marc fez que sim, inabalável e determinado. Sua mãe, a Sra. Monique Fournier, uma serena senhora de quase quarenta anos, cabelos e pele clara e marcas de expressão nos cantos da boca, prosseguiu de onde Jean Paul havia parado. – Gosto da sua ousadia em querer enfrentar o mundo sem nossa presença, mas sua carreira poderá ser prejudicada pelo tempo que você ficará fora – disse ela,
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e juntou as mãos quase num gesto de oração. – Essa interrupção pode interferir negativamente no seu desenvolvimento. O que diz disso? Marc propôs um acordo. – Vejam. – Se ajeitou no banquinho em frente ao piano negro e tão polido que refletia o brilho da sala como se fosse um espelho. – Se nas próximas férias, quando voltar pra casa, o meu desempenho estiver a desejar, prometo desistir da ideia e ficar em Paris. Os pais de Marc se olharam e com alguma resistência acabaram consentindo. Marc sabia do seu potencial e podia mostrar muito mais para os pais que, embora fossem bons músicos, não possuíam nem de perto o mesmo talento do filho que, naquela fase de sua vida, poderia ser considerado um gênio musical. Ele era cobiçado por mestres que lecionavam música na França e em toda a Europa e que enviavam cartas oferecendo seus préstimos como orientadores do jovem que era, sem dúvida, uma joia a ser lapidada. Tendo em vista que Marc não poderia levar o piano na bagagem, ao menos levaria a sua flauta transversal que seria a sua fiel companheira naquele mundo tão diferente do seu, um mundo estranho... e fascinante. Ao seu modo, alunos previamente selecionados estariam vindo de todas as partes do mundo para estudar em uma das escolas mais eficientes de todos os tempos, e seguramente, a mais estranha. Alguns desses alunos iriam passar por uma experiência tão fantástica que se tornaria a maior aventura que eles jamais imaginariam ter.
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