O caçador de si mesmo

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JOSÉ CARLOS V ITOR GOMES

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo, 2 016

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O caçador de si mesmo

Copyright © 2016 by José Carlos Vitor Gomes Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

editorial

Vitor Donofrio Cleber Vasconcelos

Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda

preparação

revisão

Fernanda Guerriero

Barbara Cabral Parente

diagramação

capa

Nair Ferraz

Dimitry Uziel

aquisições

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Gomes, José Carlos Vitor O caçador de si mesmo / José Carlos Vitor Gomes; Barueri, SP: Novo Século Editora, 2015. (coleção talentos da literatura brasileira)

1. Ficção brasileira I. Título. 16-0543

cdd-869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699-7107 | Fax: (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Este livro é dedicado a Ninguém.

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Esta foi a última imagem de Lost antes da sua partida para a temporada de autocaçada. A caçada da espécie durou dez mil anos, o que para a eternidade é quase nada. No entanto, como nenhuma história é compreendida por aqueles que a vivem, esta só será entendida mais tarde, e este livro proibido só deve ser lido um século depois.

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1 Meu nome é Lost Os que amam como Ninguém são tratados como Ninguém. – Lost – Socorro! Tirem-me daqui! – Foram os gritos que eu ouvi daquele serzinho sentado sobre uma grande pedra na beira da estrada. Ele parecia-me estar ali já há muito tempo. Quem é essa criatura esquisita? De onde ela vem? Para onde vai? De qualquer maneira, cada um se encontra onde se coloca. Pensei já sem querer pensar mais nada, porque deixei de acreditar na maior parte das coisas em que penso. O vento desértico rugia a sua estranha cantiga, e a areia que brilhava como ouro também ardia e lixava o rosto de quem passasse no meio das suas ondas. No entanto, de forma alguma Lost – como, por fim, disse-me que se chamava – esboçava qualquer medo de tempestades. E éramos rigorosamente da mesma espécie. De sua pele, dedos e mãos brotavam folhas verdes e galhos, e ele tinha um hálito amadeirado talvez de frutas cítricas ou de ervas. A pele de seu rosto cor de doce de leite parecia queimada pelo sol furioso das regiões altiplanas e talvez ele tivesse fome ou sede. Teria sido melhor perguntar, e o fiz! Parei a viagem e comecei a conversar com aquela coisinha assexuada, indagando primeiro o seu nome. Sem demora, comecei a ouvir o que até agora eu jamais conseguiria esquecer. 9

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Enquanto falava, as ondas ventaniosas continuavam a rugir. E eis a resposta misteriosa que escutei daquele ser que parecia, talvez, recém-chegado de outros mundos: – Meu nome é Lost; lost.com – respondeu-me. – Desertei-me de mim mesmo. Acho que eu merecia ter sido alguém “como eu” e desisti desse imenso desafio. Agora estou fora do meu lugar e vago perdido de mim mesmo e desse meu lugar que sou eu. – Onde estão os meus restos? – questiono-me. – Eu queria pagar o milionário imposto de me pertencer e de ser o meu único dono de mim mesmo. Eu já me busquei por todos os lugares e nada de mim! Quase desisti. E qual não foi a minha surpresa quando, há alguns dias, dei-me de cara comigo sentado em posição de lótus contemplando os bosques que ficam no horizonte quase do outro lado da vida! Eu mal entendia do que falavam os losts, embora fôssemos irmãos da mesma espécie; especialmente aquele que se chamava Nowhere Man, o mais perfeito líder dos líderes losts, ou dos mundos perdidos, e ainda se gabava de pertencer aos seres de Lugar Nenhum. Enfim, percebi que se tratava de um personagem. E eu facilmente o compreendia, como se falássemos a mesma língua. Parecia ter problemas mentais, mas Lost não estava perdido; ele era perdido. Ele precisava ser perdido e dependia dessa condição, mas ainda parecia desconhecer que, se alguém quiser um dia se encontrar, antes terá de se desertar. Estou com sorte! Descobri que procuro um sentido para a minha vida e que esse sentido me falta desde que nasci. Ele precisaria necessariamente faltar para que eu o buscasse com todas as forças da minha alma. E eu, apesar de toda ignorância sobre mim, descobri ainda no amanhecer

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da existência que o sentido da vida é buscar algum sentido para a nossa vida. Por isso, pertenço ao planeta dos perdidos e à espécie lost, assim como os humanos, agora extintos, pertenceram à humanidade! Esta é a minha espécie! Gosto da minha vida de caçador. Eu sempre fui assim! Vivo me buscando aqui e acolá. Sempre fui um perdido, e essa condição de “lost” conforta e justifica a minha essência. Preciso me buscar, preciso de um sentido. Sinto falta desse “buscador” que me fareja e quero que ele me encontre e me devolva de volta para mim. Onde está o meu piloto automático? Eu preciso de algo que procure por mim o que eu preciso procurar e me ache entre as coisas que eu busco. As minhas desconfianças eram essenciais porque me definiam e me conferiam segurança. Elas inauguravam o meu “lostismo*”, a minha condição de estar-aí perdido no mundo e as necessidades que eu tinha e tenho de encontrar o meu sábio Mestre Caçador, ou talvez o autocaçador que se fareja e clama por si mesmo. – Que estranho me ver ali diante de mim mesmo! – continuou o nosso curioso Nowhere Man, o perdido dos perdidos, que, prontamente, batizava-se como Lost. O meu surpreendente amigo também clara e orgulhosamente se definia como Ninguém e ria da sua condição como Homem de Lugar Nenhum. – Eu estou totalmente sem jeito! Quem te viu e quem te vê, hein; disse eu? Meu olhar se espanta ao ver que eu vou quase que arrastando o meu próprio corpo, como o velho Zaratustra com seu barulhento caixão quando esfolava o cascalho. * Lostismo é a afirmação de que o ser está perdido no mundo. Sempre fomos perdidos, mas isso não é ruim, pois é estando perdido que se busca um sentido para a vida.

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Os meus cabelos longos estão queimados pelo sol do deserto, esse astro luminoso cujos raios zombeteiros vivem punindo os perdidos, aqueles que vagam sem rumo e sentido. Nem as montanhas ventaniosas refrescam a face dos que pingam suor. Mais adiante, avistei um idoso e olhei com o cuidado de um forasteiro como se eu fosse uma estrela de bangue-bangue ou talvez um fora da lei. Ele se aproximou sem reservas, estendeu a mão e se apresentou como simples caçador. Será? – Boa tarde, meu Caçador! – disse-lhe, certo de que adivinhara o seu nome. Ele poderia ter outros nomes, eu sei, mas sentia que era o “guia”, o salvador, o “buscador” preferido dos perdidos ou das coisas perdidas desta Terra de Ninguém. – O meu nome é Ninguém. Na verdade, às vezes me chamam de Nada! Eu exijo respeito, caro senhor! Sou um lenhador, um caçador e às vezes um buscador nestas Terras de Ninguém. Venho das montanhas perdidas, nas quais todos são meio monges e meio curandeiros e onde a dúvida e a incerteza há muitos anos já não existem mais. Dizendo isso, ele se voltou para si mesmo, fez meia-volta e retornou para o trono das matas com um ar seguro e arrogante. Eu permaneci ali boquiaberto, assustado ou, quem sabe, encantado com a postura firme e a forte blindagem daquele misterioso ser.

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