O Clube dos Imortais

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K I Z Z Y

YSAT I S

O C lube dos

I mortai S Romance

Nova edição revista e ilustrada pelo autor

vencedor do prêmio

RACHEL DE QUEIROZ UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES

UBE – RJ Integrante da Federación Latinoamericana de Sociedades de Escritores

São Paulo 2013

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Copyright © 2013 by Kizzy Ysatis

Coordenação Editorial Diagramação Ilustrações e arte de capa Revisão

Letícia Teófilo Sergio Gzeschnik Kizzy Ysatis Alexandra Fonseca

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ysatis, Kizzy Clube dos imortais: trilogia leão negro / Kizzy Ysatis. – São Paulo: Novo Século Editora, 2012. “Prêmio Rachel de Queiroz” UBE - União Brasileira de Escritores. Conteúdo: Livro 1. O clube dos imortais – Livro 2. O diário da Sibila Rubra – Livro 3. A queda do vampiro. 1. Ficção brasileira I. Título. 12-01262 CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira   869.93

2013 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. Alameda Araguaia, 2190 – CEA II – 11o andar – Conj. 1111 CEP 06455-000 – Barueri/SP Fone (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Em mem贸ria de Gl贸ria, cujo poder de seu fasc铆nio ainda vive e me inspira a escrever. Ao meu pai e irm茫os, por serem o meu tesouro mais precioso. Aos noturnos de preto vestidos e Aos poemas de poetas calados.

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Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede! Ă lvares de Azevedo

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Sumário Prólogo..................................................................................................................... 13  1o Episódio – No além da tempestade, manifesta-se o morto-vivo............... 27  2o Episódio – Leão Negro Moto Clube............................................................... 47  3o Episódio – A face do terror, nada além de um medonho pesadelo........ 63  4o Episódio – A longa e dura estrada de partida para o inferno.................... 83  5o Episódio – Nosferatu não convidado veio buscar o que lhe foi tomado..... 103  6o Episódio – Uma noite no Madame Satã, a performance........................... 119  7o Episódio – Sua majestade, o vampiro............................................................ 145  8o Episódio – A Nova Quimera dos Vampiros.................................................... 171  9o Episódio – O triste legado das Sibilas Rubras................................................. 197  10o Episódio – Entre as horas infernais, nasce O Clube dos Imortais.............. 221  11o Episódio – Algo a ver com morte, sexo e poesia........................................ 245  12o Episódio – Toque um réquiem para as flores............................................... 269  13o Episódio – Os imortais nunca morrem.......................................................... 295   Último Episódio – Quando brotam as lágrimas vermelhas.............................. 321 Epílogo..................................................................................................................... 349 Prólogo de O Diário da Sibila Rubra..................................................................... 355

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Pr贸logo

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Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Antes da Quaresma há o Carnaval. Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos

Rio de Janeiro, 1848 – durante aquele baile fascinante C om

notável presença de espírito , a jovem dama irrompeu no

salão. Convicta sempre e na maior desenvoltura, deslizava no ambiente iluminado, cheia de si. A pequena orquestra localizada no palco dava o toque alegre que contagiava o teatro, cujos bancos foram removidos, convertendo o espaço em amplo salão de baile, ornado em profusão com ricas flores de perfume exótico e envolvente, mesclando-se ao cheiro do tabaco, velas e essências odoríficas, criando habitual atmosfera, típica dos bailes embalsamados da corte. O vestido escuro da moça descrevia estreitíssima cintura, e leve mantilha espanhola de cor roxa escondia-lhe os cabelos e cobria-lhe as costas. A meia-máscara de veludo preto revelava diminuta boca na maciez do pálido e arredondado rosto, olhos azuis na sombra do disfarce. Olhos radiantes, cheios de mistérios, mas que não transpareciam o engenho da trapaça. Ao longe, um jovem cavalheiro louro, trajando uma sobrecasaca azul-marinho, a contemplava, dirigindo-lhe um olhar amistoso. Ele a conhecia e estava a par de suas ousadas intenções. A moça correspondeu com um risinho de satisfação nos finos lábios, bordados no rosto com linha carminada. Levava consigo um pequeno, porém vistoso, buquê de violetas (suas flores prediletas) e

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aguardava com paciência os pretendentes tirarem-na para uma dança e uma contradança. Ela, que guardava um segredo inverossímil, mal sabia que um dia entraria para a história, mas sob outro aspecto; e que aquela noite extraordinária seria quase esquecida, transformando-se em mais uma das muitas lendas que assombram seu nome, ainda secreto ao leitor. Ninguém jamais ousaria imaginar que ela não fosse quem aparentava, pois a própria verdade era tão mais prodigiosa que mesmo o gênio inventivo de Mário de Andrade — que sobre ela falaria de modo insinuante — não a conceberia daquela forma e talvez não tenha ficado a par deste evento. Entretanto, somente compreenderão o fato quando souberem a verdadeira identidade da jovem. Tratava-se de uma festa tremenda, enfeitada com o rigor da Antiguidade, como aquela mesa ali adiante, de requinte maravilhoso, guarnecida de apetitosos doces e bebidas refrigerantes. O baile estava apinhado de gente da maior importância. Famílias ilustres e abastadas, nobres e artistas renomados. Dentre a elite da fidalguia podia-se citar o Barão de Itaboraí; o Visconde de Macaé; o Embaixador da França, chevalier Louis de Saint-George; o Conde Alexandre Fe d’Ostiani, representante do Reino das Duas Sicílias; o pintor francês, Félix-Émile Taunay; e Vossa Majestade Imperial, Dom Pedro II do Brasil, que contava então com 22 anos. E, sem desconfiar, um desses celebres era vigiado pela dama da máscara negra. A bem da verdade, ela queria se divertir praticando o apimentado entrudo carnavalesco. Herdado, pois, dos portugueses, o entrudo foi por muitos anos a maneira mais divertida de brincar o carnaval no Brasil da Era Imperial. A brincadeira consistia em azucrinar os outros. Pregar-lhes peças, caçoar e atirar-lhes coisas como ovos, muitas vezes podres, farinha, e, principalmente, água. Até o Imperador participava, sendo este um fã convicto da brincadeira. Nas ruas, as coisas ficaram mais violentas, houve mortes. E embora banido por lei, o costume durou até o fim do século. Enquanto a plebe comemorava nas ruas, a nobreza o fazia em bailes fechados como este que apresento na narrativa, pois o carnaval 16

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brasileiro descende da Europa e não da África, como muitos pensam. Foi com o passar dos anos que os descendentes dos africanos deram charme próprio ao que veio a se transformar no maior espetáculo do mundo. Mesmo em pleno verão carioca, a noite estava fresca; e o clima de romantismo pungia nos corações ansiosos de moços que davam adeus à luz do Rio para embarcar para a nebulosa São Paulo, rumo aos estudos. A figura do Imperador, que fulgurava no salão, fora ofuscada no exato instante em que (outra) misteriosa dama de firmes passos adentrou no recinto. Sua chegada, estrategicamente não anunciada, surpreendeu todos os comensais, incluindo o próprio Imperador. A mocinha da máscara negra, no entanto, sorriu ao vê-la surgir. A recém-chegada trazia a face oculta por máscara italiana, dourada e marchetada com safiras. Já desconfiavam de quem se tratava, tamanho o dote de sua altivez, ou fosse, talvez, por seu alto talhe. Sempre fora o que mais chamava atenção. Em seus áureos dias foi a mais bela, não teve rival. Porém, na presente ocasião, a nobre senhora contava com cinquenta anos (idade avançada naquele século). Ainda assim, continuava formosa e elegante. Perfeita escultura de olhos petulantes, negríssimos, cuja voracidade faiscava pela máscara e incendiava o salão. Recolhia suspiros de admiração, medo e às vezes respeito, apesar da inveja dos minguados e despeito dos que não enxergavam além dos aléns, incapazes de distinguir a audácia de uma mulher à frente de seu tempo. E embora a honorável senhora fosse sempre convidada para os bailes da corte, dificilmente aparecia. Para tal, teria de se submeter a exaustiva viagem, já que residia em um solar na então distante província de São Paulo. Não a esperavam, de modo que ela surgiu neste baile como uma aparição assim magnífica, num vaporoso vestido. Um luxo de cetim azul-cobalto brocado em ouro, com festões e escumilhas de finíssima seda. Ostentava toda sorte de joias de valor inestimável, dentre elas, presilhas de ouro e brilhantes em ramos a lhe prender as tranças do penteado soberbo. Existia, antes, uma inconveniente desafeição da parte de Pedro II pela velha fidalga, por outrora ter sido amante de seu pai. Mas quis a 17

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história que, certa feita, o atual esposo da referida dama, o Brigadeiro Tobias de Aguiar, herói da Revolução Liberal, tivesse sido confinado na Fortaleza da Laje. Proibida de visitá-lo, rogou diretamente ao Imperador, através de breve troca de eloquentes missivas, pedindo para ser presa com o marido, já que não podia vê-lo. Sua elegância e resignação feminil desarmou o jovem regente. Eis como Pedro II, comovido, respondeu-lhe: “Meu falecido pai (D. Pedro I) foi incomensuravelmente grande; e agora compreendo por que, entre tantas mulheres no mundo, ele se rendeu a uma só: à senhora. Por favor, não me beije as mãos. Eu tive enorme honra em conhecê-la. Hoje mesmo informarei ao Intendente da Laje que, em caráter mais do que especial, seu pedido é atendido. Adeus... Pedro II” Naquele baile histórico, viam-se pela primeira vez como amigos. Pedro II estava diante da mulher que poderia ter sido sua mãe, e sabia disso. Encararam-se por longos instantes até que ela fez a reverência solene, devidamente correspondida pelo monarca louro, lançando, à austera senhora, amistoso e breve sorriso feito na boca rosa-púrpura. Via-se indubitavelmente uma dona que havia nascido para ser rainha. Ela removeu a máscara, revelando o que todos desconfiavam, que entre eles se encontrava dona Domitila de Castro Canto e Melo — a Marquesa de Santos. Perceba, caro leitor, como a Marquesa de Santos roubou a cena da donzela da máscara negra, descrita no princípio desta narrativa. Voltemos, portanto, a ela e aos seus lúdicos sortilégios. Antes urge ressaltar que, como sempre, a Marquesa veio acompanhada de numerosa comitiva. E entre os que com ela chegaram constava um jovem cavalheiro elegantemente alto e airoso, cuja branca máscara de pierrô, de tenebroso aspecto, cobria-lhe a face inteira. Apesar de tanto espírito, entrou despercebido, graças à triunfal entrada da Marquesa. — Até que ponto pretendes ir com essa farsa? — perguntou o cavalheiro louro da sobrecasaca azul à donzela da máscara negra. 18

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— Irei até o fim! Apenas tu, meu Luís, sabes o que escondo. Vês que ninguém suspeita? À fé que estejam com umas na cabeça. Duas ou três de Johannisberg. Há mais mancebos que encanecidos. — Já avistaste a quem procuras? — Pois sim, lá está ele, o Chancelier Louis de Saint-George, a conversar com nosso amigo Fe d’Ostiani. — Deus Santo! O que fazes é uma grande doidice. Crês que podes ludibriar o Embaixador da França? — Tenho certeza! — respondeu a donzela ao pasmo amigo. — Ele já demonstrou interesse por minha irmã mais nova, Marianinha. Certamente demonstrará por mim também, basta que uma pessoa importante e amiga apresente-o a mim. Ele diz querer desposá-la, mas provarei que não é o candidato ideal. Além do mais, o coração da maninha já tem dono. Ah, estou um primorzinho, não estou? De nobre dama passarei a messalina. Observe como farei com que o Chancelier demonstre comigo suas intenções vulgares e, por fim, a surpresa! Enquanto falavam, o pierrô deslizou por eles em pés de lã. O baile transmitia-lhe beatitude. Tudo se apresentava familiar, embora inédito. Nunca estivera numa festa de tal quilate e era como se jamais tivesse saído de uma. Déjà vu? Não fazia sentido, crescera num lugar sobremodo inverso. Fatos que engendravam dúvidas. Ao avistar o Imperador entretendo-se sem a máscara, intuiu que a própria vida fora uma farsa, adivinhou glórias roubadas e enxergou, nos traços de Pedro II, alguma relação consigo. O instinto dizia perigo, mas o pierrô cedeu à insensatez e foi até ele. — E não sentes desconfortável nesses trajes? — perguntou Luís Antônio à donzela da máscara negra. — De modo algum! Minha querida Nhanhã emprestou-me o vestido e com a ajuda de mamãe o ajustou em mim. Mamãe ria sem mais se aguentar. Disse que só mesmo eu poderia fazer uma coisa dessas. O vestido de minha mana mais velha pareceu-me feito sob medida. — Macacos me mordam! Não foi isso que te perguntei, mas passo. Se quiseres mesmo ter sucesso, eu bem sugiro que rogues à Marquesa de Santos para que te apresente ao Embaixador. 19

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— Amado amigo, agradeço a excelente sugestão, mas eu já havia pensado nisso e hei de procurá-la agora mesmo. Com sua permissão... O Imperador era servido de mais um champanhe quando se sentiu varar por mórbido calafrio. Ao virar-se, deu-se com a figura do pierrô, que lhe pareceu macabra com aquele dominó longuíssimo e negro, a horrenda máscara branca. Assustou-se como se estivesse vendo a morte cara a cara. Sua taça espatifou-se no assoalho. De imediato, o monarca retomou a compostura, preparando-se para ter com o pierrô que se aproximava resoluto e a passos largos. Uma mão, porém, tocou-lhe o ombro. Virou-se num sobressalto para ver quem era e, surpreso, esqueceu-se do pierrô. — Danças comigo, Majestade? — solicitou a Marquesa, e o Imperador a obedeceu. E sem que Dom Pedro II visse, ela fuzilou o pierrô com um olhar de censura. O pierrô pareceu despertar de um transe hipnótico, virou-se bruscamente e trombou com a donzela mascarada, que quase caiu no chão, não fosse o reflexo do pierrô, que a apanhou pela cintura e disfarçou o acontecido dançando com a moça. Apreensivo com a cena a que assistia, Luís Antônio levou as mãos à cabeça. E tudo acontecia na rapidez do acaso, do imprevisto. Quando a pequenina mascarada deu por si, estava nos braços do pierrô. Não tinha como se desvencilhar, todo o cuidado era pouco. Não queria pôr a perder o disfarce. — Perdoe-me, senhorita, não deu para evitar. Como te sentes? — perguntou o pierrô com voz suave. A moça nada respondeu. — Que me chova o dilúvio da grandíssima injustiça se eu a tiver ferido. A moça permaneceu calada. — Por favor, diga-me algu… Calou-se ele, de repente. Revelava-se aí o pierrô apaixonado. A clássica sensação, agradável e desesperadora da paixão, abateu-se sobre mais um coração. E a moça, cheia dos ramos da inteligência, deduziu prontamente do que se tratava ao ver o fogo faiscar lá longe nas profundezas dos olhos do moço no rebuço. Olhos negríssimos expostos por furos simétricos de uma máscara inexpressiva. Temeu então desapontá-lo, 20

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pois já o julgava assim gentil e misteriosamente encantador. Sentiu-se encrencada e ao mesmo tempo comovida com o súbito amor que via brotar daqueles olhos. — Estou bem, obrigada — disse ela com voz fina, em falsete, porém dotada de certa macieza. — ...É que estou me sentindo um pouco indisposta — continuava a mascarada —, talvez por conta do encontrão. E isso era verdade. No momento do choque, pareceu-lhe ter trombado com um muro. Agora, só pensava em desaparecer. — Perdoe-me... Foi tudo que o pierrô conseguiu expressar. Abaixou-se para apanhar o buquê e, ao se erguer, ela havia escapulido. Perdeu-a de vista. Procurou e procurou até que a viu com a Marquesa. Não ousou se aproximar desta vez. Logo, a mascarada estava dançando com o chevalier Louis, a lançar risinhos de vitória a Luís Antônio, que desaprovava com um gesto de cabeça. O pierrô inquieto a vigiava com o buquê de violetas nas mãos trementes, mordendo-se de ciúmes, raiva, frustração. Ansioso, aguardava a chance de uma contradança, mas o momento parecia longínquo. A noite avançava. O Embaixador, moço fino, parisiense, aristocrata, estava deslumbrado com a educação da donzela mascarada, que com ele falava num francês fluente. Entretanto, ela não teria se aproximado dele sem a intervenção da Marquesa. Para isso teve de lhe contar a verdade. A Marquesa, que era amiga da família da moça, já a havia reconhecido por detrás da máscara, deliciou-se com o plano e aprovou a folia. Sorrindo benevolente, a Marquesa salientou que, tendo em vista o carnaval como data apropriada, o feito era saudável e a causa era nobre. Foi assim que a patusca mascarada foi apresentada ao Embaixador, ao passo que Luís Antônio deixou Fe d’Ostiani a par de tudo. Bem como a Marquesa, o Conde napolitano era amigo da moça mascarada e riu entusiasmadamente com a ideia do entrudo. “Bravíssimo!”, repetia gargalhando. Mas o chevalier distraiu-se com a bebida e o pierrô puxou a moça para outra dança e, declarando-se, abriu a alma em versos galantes que a fizeram vibrar, pela primeira vez, com a possibilidade da existência de um amor verdadeiro e puro. Luís Antônio aterrorizou-se com a cena. 21

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— Nobre senhor — disse-lhe a mascarada —, quem sois vós cuja negrura dos olhos, e os longos cílios de menina, não reconheço por detrás de tão sinistra máscara? — E vós, quem sois? — Eu?… Chama-me de Marianinha. — E a qual família pertences, Marianinha? — Família Álvares de Azevedo. — Hum! Acho que conheci teu irmão. — Conheceste Maneco?! — Ora, sim! Não somos próximos, mas tive a honra de vê-lo recitar seus poemas num sarau na casa da Marquesa há alguns anos, quando foi a São Paulo com o tio para prestar exames. Passou em todos, mas era tão moço que não tinha idade para a matrícula. Um jovem brilhante. A mascarada ruborizou-se e sorriu triunfante. — Ainda não disseste vosso nome. — Sou um Conde. Ao fim do baile, saberá meu nome. — Saberei teu rosto. — Meu rosto? — Sim. Imagino-te belo. — O Embaixador a espera, mocinha — disse a Marquesa, interrompendo o diálogo e tomando o pierrô para dançar. Antes feliz, por ter falado com a donzelinha, o pierrô agora murchava ao vê-la se afastar. Porém, uma fisgada fez a moça estancar. Pensou no pierrô. Não queria magoá-lo, embora tivesse ciência de que o iludia e sabia-se vil por isso. Ficou especialmente curiosa em saber quem ele era, interessou-se sobremaneira por seu jeito garboso, ar misterioso e estilo romanesco de ser. Toda uma aura trágica o cobria. Que titubeio. Que aflição! Chacoalhou a cabeça e seguiu noutra direção, na do chevalier. A tramoia a excitava. Afinal de contas, havia ido longe com o plano, não desistiria. — Por favor — disse a Marquesa ao pierrô em tom de alerta e súplica —, não te aproxima do Imperador outra vez. Foi arriscado trazer-te, mas o fiz, tinha de aproveitar a viagem do Tobias. Tu mereces, és meu menino. Mas temo que lhe façam algum mal se o descobrirem aqui. Não 22

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saberia explicar tua presença. Afasta-te também da jovem de vestidinho preto. Asseguro-te, ficarias desapontado com a verdade que ela esconde, tu me compreendes? — Sim, senhora. — Bom menino. — Sra. Marquesa, rogo-te uma pergunta. — Pois fala. — Alguém aqui é parente meu? Sinto em meu peito que sou filho da realeza. Houve um silêncio abissal entre os dois. Então a Marquesa respondeu com os olhos rasos d’água: — Meu filho… eu sinto muito. Não tens parentes na corte. Tua mãe jaz sepulta e não era nobre — aqui, ela engasgou. — Era uma criada a quem eu devia um favor. No leito moribundo prometi guardar-te — falou a Marquesa com a voz enrouquecida, notando que seu protegido abaixara a fronte para ocultar o pranto. Dele saiu um gemido baixo, um grunhido assim miúdo, mas recebido como bomba de canhão no coração da Marquesa, que não se aguentou e deu-lhe as costas. Caminhou ferida. E, como ele, não quis que a vissem chorar sob a máscara. Como previsto, o chevalier alcoolizado mostrara sua faceta. Acreditou que a donzela da máscara negra fosse uma dama de costumes fáceis e muito a bajulou à espera de maiores favores. O pierrô assistia a tudo sem nada poder fazer, a não ser o que já fazia desde a conversa com a Marquesa: chorava sem mais poder. Lembrava-se das mãos pequeninas da linda e galante mulherzinha. Uma dessas maravilhas que passam pela vida só na juventude, enchendo-nos de esperança. Mas depois, como uma estrela cadente, some da vista no horizonte perdido do espaço sem-fim. Conforme combinaram, Luís Antônio e o Conde Fe foram aos poucos deixando os convidados a par da brincadeira, revelando a identidade da senhorinha da máscara negra. Somente o chevalier Louis e o pobre pierrô (que não falava com ninguém) não compreendiam. A notícia espalhou-se. O Embaixador claudicava ébrio, a recitar versos, a pedir, a rogar, a exigir, numa insana insistência enquanto a donzela se esquivava 23

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com educadas recusas. Os convidados zombavam em cochichos. O pierrô achava estranho. Na alta madrugada, desvendou-se o mistério: — Monsieur Chancelier Louis — chamou a donzela, já removendo a máscara, a mantilha e retomando o tom delicado, porém masculino, de sua verdadeira voz —, espero que leve em consideração o espírito carnavalesco brasileiro e nos perdoe a brincadeira, meu nome é Manuel Antônio Álvares de Azevedo e o senhor caiu no meu entrudo! Todos aplaudiram e riram alegremente. O Imperador não se conteve com a situação, gargalhou com deboche e aplaudiu com especial vontade. O Embaixador francês fora pego em calças curtas. E, mediante a situação, por mais vexatória que lhe fosse, achou conveniente agir com diplomacia e acatar a brincadeira. Durante a ovação e os tapinhas nas costas, a donzela mascarada, ou melhor, o jovem Álvares de Azevedo, procurava pelo pierrô no meio da multidão, mas ele havia desaparecido. E a inexorável página do tempo virou-se uma vez mais, deixando para trás, sob a poeira da morte, o nome de muita gente que fez História.

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