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ginger garrett
o desejo
a história não contada de
sansão e dalila
a mores perdidos da bíblia livro II
São Paulo, 2016
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O desejo: a história não contada de Sansão e Dalila Desired Copyright © 2016 by Ginger Garrett Copyright © 2016 by Editora Ágape Ltda. coordenação editorial Rebeca Lacerda tradução Tássia Carvalho preparação Patrícia Murari
revisão Fernanda Guerriero Antunes Vânia Valente capa Dimitry Uziel diagramação Larissa Caldin
coordenador editorial Vitor Donofrio editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
gerente de aquisições Renata de Mello do Vale assistente de aquisições Acácio Alves
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Todas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Garret, Ginger, 1968
O desejo: a história não contada de Sansão e Dalila / Ginger Garret; tradução Tássia Carvalho. ‑ ‑ Barueri, SP: Editora Ágape, 2016. ‑ ‑ (Amores perdidos da Bíblia ; livro 2) Título original: Desired : the untold story of Samson and Dalilah. 1. Ficção cristã 2. Mulheres na Bíblia ‑ Ficção I. Título. II. Série. 16 ‑02113 cdd ‑813 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção cristã : Literatura norte‑americana 813
editora ágape ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1112 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.editoraagape.com.br | atendimento@agape.com.br
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Prólogo Mãe Não vou lhe dizer meu nome. Fiquei face a face com um anjo de Deus e, depois disso, por dias não consegui lembrar meu próprio nome. Quando eu mor‑ rer, haverá apenas um nome em meus lábios. Não será o meu. Contarei a você a história de Sansão, meu filho. Uma últi‑ ma história, para ser meu mitzvá, meu ato de justiça, uma his‑ tória verdadeira neste mundo falso. Contarei a minha história e a dele. Falarei para os mortos. Eu lhe contarei sobre homens e anjos, sobre filhos e tris‑ tezas. Eu lhe contarei sobre a coragem necessária para esperar um Deus silencioso. Eu lhe contarei sobre o homem mais forte que já andou na terra, aquele que se provou mais poderoso do que a força. Afinal, a força de um homem não pode salvar ninguém, nem mesmo a ele próprio. Mas venha. É mais tarde do que você imagina, e, mesmo agora, na morte, tenho de compartilhar meu filho com outros. Não se demore com eles. Venha para mim o mais rápido que puder. Começarei minha história dissertando sobre seios, como todas as boas histórias provavelmente começam.
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PARTE UM NOIVA DE FOGO
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1 AMARA
Final da primavera na cidade filisteia de Timna, perto do mar Mediterrâneo Mãe e pai sentaram‑se na soleira da porta, bebendo vinho e cumprimentando a quem passava. Toda a cidade filisteia de Timna estava passeando. Não se trabalhou. Celebrávamos o primeiro sinal das estrelas Plêiades nos céus, marcando o início do período de colheita do trigo. Todos em Timna eram pro‑ prietários de um campo, fosse ele grande ou pequeno. Timna era famosa em todo o vale de Soreque pelas nossas uvas, nos‑ sas azeitonas e nossa cevada, mas principalmente pelo nosso trigo, tão macio que, quando moído, necessitava de pouco fermento. Nós dizíamos que tal era a leveza do trigo que ele flutuava. Tudo que crescia no vale era bom. Nós amávamos a terra, e a terra nos amava, produzindo e permitindo‑nos uma vida feliz e sem fome. Muitos casamentos aconteceram hoje. Não propriamente casamentos de bens, como aqueles que meu pai um dia iria providenciar para Astra e para mim. Esses eram casamentos de homens com homens, considerados como o teste definitivo de virilidade. Eu não discuti a razão – a crença de que um homem 11
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poderia ser muito viril, mesmo com outro homem desejando ‑o. Meu povo sempre havia honrado a paixão, qualquer que fosse sua forma. Nós entendíamos que homens casavam com outros homens por prestígio. Homens casavam com mulheres para trabalho e crianças. Meu pai, assim como alguns homens, não se interessava em provar sua masculinidade. Ele se contentava com minha mãe. Nós ainda amamos muito o pai que nada tinha a nos provar. Eu nem sequer lamentei por minha mãe; tudo isso representava o quanto ele nos amava. Minha mãe deve ter invejado outras mulheres, cujos maridos tomaram homens em casamento e conquistaram respeito nos portões da cidade. Mas o que quer que tenha sofrido, inveja ou descontentamento, ela manteve os sentimentos bem escondidos no coração. Papai sentou‑se na soleira da porta, contente por assistir às festividades de longe, rindo dos malabaristas bêbados e olhan‑ do de soslaio para as dançarinas do templo. Ele bebia vinho e levava azeitonas lustrosas e oleosas à boca, enquanto mamãe esfregava os ombros dele. Um servo pertencente a um vizinho apressou‑se até nós, exibindo seu anel de casamento, ruboriza‑ do como uma virgem. Mamãe o abraçou, avisando‑lhe de que não se atrasasse para o mercado no dia seguinte de manhã. Ele piscou e moveu‑se de modo afetado. Meu pai revirou os olhos e mergulhou a mão na bacia de azeitonas, capturando uma delas na ponta de seu dedo indicador. Então a removeu e a colocou no dedo anelar, com um suspiro exagerado de melancolia. Ma‑ mãe socou o ombro dele enquanto Astra e eu dávamos risada. O templo de Dagon, que ficava a uma caminhada de apenas duas horas daqui, estaria lotado mais tarde esta noite. Depois que todas as crianças tivessem sido acomodadas na cama, as
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lâmpadas se apagassem e os recém‑casados puxassem as cortinas em torno das camas, os casados há muito tempo e os homens ainda solteiros se encontrariam todos no mesmo caminho, com o mesmo pensamento na mente. O templo oferecia belas prostitutas de variadas idades. Os homens se prostrariam aos pés de Dagon, o grande deus dos campos, e, em seguida, prostitutas desceriam os degraus de pe‑ dras frias e se tornariam Dagon para os homens. Em nome de Dagon, elas fariam amor com eles, libertando‑os de todos os me‑ dos e das preocupações. Os homens filisteus eram bastante de‑ votos; nenhum deles jamais queria perder um culto do templo. Claro, eu nunca tive permissão de entrar lá para ter tais visões. O pouco que eu sabia veio de Astra, dona de ouvidos que sempre escutavam os detalhes mais deliciosos de boatos e tradições. Ela possuía um dom para segredos. Embora dois anos mais jovem do que eu, Astra sabia muito mais. Seu cabelo era mais longo do que o meu, e mais escuro, e seu rosto mais atraente, com olhos amendoados e uma boca carnuda e rosada. Suponho que ela possuía muitos dons que eu não tinha. Apesar de não ser desagradável ao olhar, eu era comum. Levantei meu rosto pouco interessante para a lua e a deixei que o banhasse. Um arrepio de expectativa percorreu‑me. A noite, ilu‑ minada pela lua e pelo fogo, despertou novos e estranhos desejos. Enquanto os homens adoravam, as esposas deixadas em casa beberiam muito vinho e comeriam todas as uvas secas an‑ tes de desabar nas camas com as túnicas manchadas. Crianças se esgueirariam de seus catres e correriam para as ruas, onde brincariam até o amanhecer. Nós amávamos as festas, que eram sempre determinadas pelas épocas de plantio. Comemoráva‑ mos quando era hora de plantar, e implorávamos a Dagon uma
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boa colheita, e comemorávamos quando era hora de colher, e implorávamos a Dagon bons preços no mercado. Meu pai se levantou para sair, e minha mãe lhe deu um beijo de adeus antes de anunciar que iria para a cama mais cedo essa noite. Implorei permissão, e acabei recebendo‑a, para Astra e eu subirmos até o telhado e passarmos a noite lá. Tínhamos ca‑ tres no telhado apenas para tais noites, mas não dormíamos. As‑ sim que nos instalamos, caminhei para me aproximar da borda do telhado, com os braços levantados a fim de acolher a noite. Será que minha mãe já havia se sentido como eu nesse mo‑ mento, minha respiração rugindo nos ouvidos semelhante a um leão, meu coração disparado enquanto, em nosso telhado, eu observava a cidade? O vento deslocou‑se sob minha túnica, le‑ vantando o tecido e fazendo‑o flutuar entre meus braços como as asas de uma borboleta. Eu me senti leve e suave. E imaginei que era bonita, provocante, poderosa. Algum dia, talvez, um homem notaria quando eu passasse; eu ouviria o inalar profun‑ do da respiração dele, flagrando um furtivo segundo olhar. Em seus olhos, eu veria que realmente me tornara bela, e minha be‑ leza iria amedrontá‑lo. Astra já produzia esse efeito nos homens. Minha irmã havia me avisado acerca do que nos esperava. Haveria um casamento, e roupas de cama penduradas do alto com a exposição da honrosa mancha de sangue, e, um dia, um choro de nascimento. Ela ouvia o que as esposas falavam en‑ quanto trabalhavam. Mas nessa última fase de nossa juventude, antes que os homens tivessem direito sobre qualquer uma de nós, as noites eram deliciosas e inebriantes. Sonhávamos, esticadas no telha‑ do, olhando as estrelas, rindo, gritando sobre os ventos para nos‑ sos amigos que também observavam as estrelas. Sentíamo‑nos
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acalentadas dessa forma, acima de nossos pais, acima de nossas vidas, embaixo das estrelas. – O incenso queimou todo. Temos mais algum? Astra estava sentada de pernas cruzadas em seu catre, olhan‑ do as estrelas da noite. O pote de incenso estava a seu alcance, mas voltei da borda do telhado para levantar a tampa e verificar o interior. Vi sedimentos brilhantes dentro, peguei a pequena colher, escavei uma nova porção de incenso da bacia de pedra e coloquei‑a na travessa quadrada sobre o fogo. Uma fumaça cin‑ za apareceu e subiu encaracolando‑se, girando em espiral no ar. Sentei‑me ao lado de Astra e aspirei o rico aroma, seguran‑ do meu longo cabelo preto para trás com as mãos nos ombros, inclinando‑me sobre o fogo e inalando. Mamãe comprava incen‑ so do químico egípcio que frequentava nossa cidade, o qual acam‑ pava entre as planícies costeiras do mar e as Colinas da Judeia. Ele criava misturas de almíscar e florais e especiarias, fragrâncias de emoções engarrafadas para as quais ainda não tínhamos nomes. Suspirei de prazer e me servi de uma nova taça de vinho. Astra olhou para sua própria taça, vazia a seu lado, mas balancei a cabeça negativamente. Muito vinho lhe causava pesadelos. Ela iria rastejar para a minha cama e chorar, e nada que eu dissesse lhe traria qualquer conforto. – Leite, então? – ela perguntou. – Terei de descer. – Não. Não se preocupe. – Minha irmã ajeitou as pernas antes de se deitar no catre e sorrir para mim. Muitas vezes eu a servia como uma escrava e não me importava. – O que você pensa do pai? – ela quis saber. – Você precisa escolher as palavras cuidadosamente, Astra. Alguém poderia pensar que está sendo desrespeitosa.
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A ideia de termos sido autorizadas a formar uma opinião a respeito dele era sacrilégio. – Eu não. Lamento muito por ele. Baixei a voz em um sussurro rouco. Astra precisava apren‑ der a ser cautelosa. – Não há nenhuma razão no mundo para ter pena dele. – Você está errada. Ele nasceu em uma família modesta e de poucos recursos, e não fez nada, por si mesmo, para melhorar. Nossa mãe nunca lhe deu um herdeiro, e, mesmo sendo a única chance de ele prosperar, não o deixou melhor do que quando ela se casou com ele. Papai está perdido. Fiquei chocada com tal ousadia. – Que coisa horrível de dizer. Seremos melhores para ele do que dez filhos. – Como? Cite uma maneira de como ele irá se beneficiar conosco. – Nosso preço de noiva. Podemos nos empenhar por um preço elevado. – Para a filha de um comerciante de tapetes? Ele compra ta‑ petes das caravanas de comerciantes e depois os vende no mer‑ cado. Nem sequer possui o tear nem o escravo que tece. Ele é tão rico quanto seu próximo negócio, e ambas sabemos que não estamos falando de muito. – Há as azeitonas. Além da nossa plantação de trigo, que mal deu trigo su‑ ficiente para os nossos próprios estômagos, tínhamos um pe‑ queno bosque de oliveiras. Também elas produziam apenas o bastante para a nossa família e nada mais. Astra bufou com desgosto por minha sugestão. Virei as costas para ela, ainda que não sentisse raiva. Eu estava condenada. Era como se Astra revelasse a verdade mesmo 16
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sem tentar. Eu era tão miseravelmente egoísta. Desde que havia começado meu primeiro sangramento mensal, sete meses atrás, eu me tornara obcecada com a próxima fase da minha vida. – Realmente lamento muito por ele não ter herdeiro – afir‑ mei. – Mas, mesmo não sendo ricas e não podendo oferecer nenhuma terra ou poços ou camelos, somos boas trabalhadoras. Homens gostam de mulheres trabalhadoras. No entanto, eu só conseguia mesmo pensar, secretamen‑ te, na dor que deveria enfrentar em breve. Quando eu fosse dada, meu pai perderia uma filha, mas eu perderia toda a minha família, minhas comodidades constantes, a paz já conhecida. Quem confortaria Astra no meio da noite quando eu tivesse ido embora? Quem a protegeria das moças menos privilegiadas de beleza e com línguas ferinas? Também eu teria uma nova mãe, uma nova configuração familiar para conquistar. Teria de agradar a meu marido, e à sua mãe, e a seu pai, e talvez também a seus irmãos e aos parceiros de negócios e vizinhos. Toda a minha energia iria para agradar aos outros. E, se eu fizesse isso bem, minha única recompensa seriam as expectativas deles de que continuasse assim. Eu servi à minha família vigorosamente, mas amava‑os, de modo tal que o fardo tornava‑se leve. Mas não sabia quais seriam meus sentimentos por meu marido e sua família. Além disso, não era bonita. Os homens eram sempre mais amáveis com moças bonitas. Meu sangramento mensal tinha um preço. A moeda tro‑ caria de mãos para assegurar meu casamento, mas meu débito nunca seria cancelado. Eu estaria em uma nova casa, com uma sogra que apertaria meus seios para ver se neles havia leite, que saberia quando sangrei e observaria o que eu comia. Eu menti‑ ria para um homem que não conhecia e não havia escolhido, e
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cuidaria de alguma velha apodrecendo, enquanto minha própria mãe avançava completamente sozinha em sua velhice. Enfrentando esses mesmos medos, Astra só pensava em se lamentar por nosso pai. Ela se preocupava com ele, enquanto eu me preocupava comigo. Então me mantive de costas para minha irmã, lutando para conter as lágrimas de vergonha que começaram a brotar em meus olhos. – Amara! Venha aqui! Sentei‑me e respirei profundamente. Astra estava na beira do telhado, perscrutando as ruas. Inquieta como era, tinha en‑ cerrado nossa conversa muito antes de eu começar a prepará‑la. – Olhe! – ela disse, apontando para a rua abaixo. – É aquele hebreu de que ouvimos falar! Olhei com ela para a rua, e vi um brutamontes enorme e de‑ sajeitado, sozinho. Ele era uma visão bastante estranha por si só, mas, por estar sozinho, parecia ainda mais esquisito. Ninguém vinha sozinho ao festival, nem mesmo os hebreus, que sempre viajavam em grandes grupos ruidosos. Os hebreus nos odiavam, porque esta terra era nossa. Eles nos odiavam por nossa rique‑ za, e por nosso ferro, e por nosso poder, porque queriam tudo para si. Mas ele estava sozinho, sem amigos ou companheiros. Parecia não sentir falta de mais ninguém, a julgar pela maneira como inspecionava a cidade que se abria diante dele, e parou para comprar uma vareta de pombo assado de um vendedor. Timna tinha apenas uma prostituta, uma mulher feia e velha que às vezes conseguia negócio com homens muito can‑ sados para andar a longa distância até o templo, que fez um grande esforço para se levantar e se dirigir a ele. – Você é novo na nossa cidade? Precisa de um momento de conforto?
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Ele riu e chamou o jovem vendedor, dando‑lhe uma moeda. O rapaz voltou com outra vareta de carne assada, que o homem entregou à mulher. Ela zombou do rosto grande e sorridente dele, mas se deixou cair sobre as ancas e comeu com ferocidade. O homem seguiu em frente, apa‑ rentemente alheio a todos os olhos sobre si. Para ele, nós éramos o espetáculo, os filisteus maus que não tinham saído da terra sagrada dele. Dizem as lendas que, há muito tempo, os hebreus tinham um deus e que o levaram consigo para fora do Egito. Esse deus “os presenteou” com nossa terra. Tudo que os hebreus precisa‑ vam fazer, disse o deus, era matar a todos nós em primeiro lugar. Isso não aconteceu, é claro. Nós éramos o povo do ferro, o povo que podia forjar lanças e facas para rasgar os hebreus ao meio e cortar seu escudo também. Eles não tinham esperança alguma de nos conquistar. A tecnologia não era o nosso deus, mas nos livrou do deus deles. E nós adorávamos de maneiras melhores, abraçando o prazer em vez de evitá‑lo, acolhendo a todos os deuses, sem negar nenhum. Astra voltou correndo até o fogo. Achei que ela estava as‑ sustada com a estranha visão do homem, cujo cabelo grosso estava puxado para trás em uma enorme trança e cuja cabeça estava envolta por um lenço vermelho. A barba negra também era longa, pendendo até o estômago. Apesar da túnica folgada, vi que tinha os ombros tão largos como a canga de um boi, com pernas fortes como granito. Essa visão fez meu estôma‑ go contrair‑se em um sentimento de excitação. Ele era bonito, tanto quanto qualquer hebreu podia ser, com grandes olhos es‑ curos e lábios suaves e vermelhos cujas extremidades viravam para cima em um sorriso malicioso. Seu cabelo chamou minha
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atenção mais uma vez, pois aquela massa negra me impressio‑ nava. Ele se parecia muito com um homem‑leão, uma extraor‑ dinária fera selvagem. Tínhamos ouvido falar dele antes, mas pensamos que as histórias eram apenas mais mitologia hebraica. Timna ficava entre duas populares regiões de comércio, de modo que muitas vezes víamos coisas estranhas passarem por nossa aldeia. Homens cobravam uma pequena taxa e levanta‑ vam o véu de uma gaiola, e tínhamos um vislumbre de uma tartaruga com duas cabeças, ou de um macaco que vestia uma túnica e bebia vinho de uma taça. Éramos freguesas experientes. Mas esse homem foi um choque no processo, um choque que senti descer até o interior de minhas coxas. Nenhuma visão se comparava a ele. Eu me afastei da beira do telhado para verificar Astra. Che‑ guei tarde demais. Ela correu por trás de mim, segurando uma vara da borda do fogo. Depois, foi até a beira do telhado e lançou‑a, acertan‑ do o gigante na testa. Então se atirou de bruços contra o teto, prendendo a respiração em terror absoluto, enquanto fiquei em pé, minha boca aberta completamente horrorizada. – Astra! Por que você fez isso? Ela deu uma risadinha. – Ele é um hebreu. Não tem de estar aqui. Eles têm seus próprios festivais. Olhei para a rua, o coração parado e frio como uma pedra. O homem estava olhando diretamente para o meu telhado. Ele ia nos matar. – Sinto muito, meu senhor. Foi um acidente – eu disse. 20
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Uma luminosidade estranha passou sobre ele e desapare‑ ceu. Um truque da lua talvez. Mas, quando olhei de novo para o rosto do homem, ele estava sorrindo para mim. – Qual é seu nome? – perguntou em voz calma e impassível. Vi um calombo vermelho começando a aparecer na testa dele. Voltei a olhar para Astra, estreitando os olhos para ela. Se ele não a matasse, eu o faria. – Não posso responder, meu senhor – pedi desculpas. – Espero que tenha uma excelente noite. – Recuei para fora de sua linha de visão, as mãos tremendo. – Ele perguntou meu nome – sibilei para Astra, que havia fugido para agachar‑se junto ao fogo. Sentamo ‑nos muito quietas, nossos ouvidos esperando captar algum barulho da rua, querendo saber o que ele faria em seguida. Os olhos de Astra estavam arregalados. – Mas você não lhe disse, não é? Balancei minha cabeça em negação. – Eu devia ter dado a ele o seu nome. Continuamos sentadas até nossas pernas queimarem e te‑ rem cãibras por tanto tempo na mesma posição. Eu concluí que tinha me enganado sobre o sorriso dele. Poderia ter sido um olhar maldoso. Tochas de rua lançam sombras não confiáveis. Com muita cautela, desdobramos as pernas e fomos des‑ cansar nos catres, nossos olhos ainda arregalados, enquanto nos olhávamos e escutávamos. Não ouvimos nada pelo resto da noi‑ te, a não ser o som de crianças brincando e mulheres cantando canções de bêbados. Quando a aurora começou a brilhar cor‑de‑rosa no hori‑ zonte, Astra estava adormecida, a boca escancarada, os cílios 21
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negros tremulando contra as bochechas suaves. Eu me aproxi‑ mei e acariciei os cabelos dela, os quais pendiam da testa lisa. Balancei a cabeça apesar de ela não poder ver minha repreen‑ são. Astra era cheia de terríveis travessuras, é bem verdade, mas tinha o coração puro de uma criança. Rezei a Dagon para que fosse paciente com ela e lhe trouxesse um marido gentil. Sabendo que Astra não acordaria, desci as escadas e esgueirei‑me pela casa. O piso de madeira rangia e estalava. Meu pai ainda não havia retornado do templo, mas isso não me preocupava. Minha mãe roncava alto, esparramada sobre seu catre de palha. Puxei as emaranhadas cobertas aos pés dela e ajeitei‑as antes de caminhar furtivamente na direção da porta da frente. Dei uma olhada em nosso grande recipiente de barro para óleo perto da porta. Estava quase vazio. Precisaríamos de di‑ nheiro, e em breve, se fosse para enchê‑lo novamente. Os bebês estavam despertando, e os adultos começavam a dormir. O festival mudava o horário de dormir de todos, exceto o dos bebês, indiferentes à nossa celebração de Dagon. O deus deles ainda era o leite. Eu amava a música matinal de nossas ruas: os recém‑nascidos com seus gritos entrecortados, os ju‑ mentos que bufavam e batiam os cascos nas baias, os cordeiros que baliam por sua refeição matinal ao primeiro som de passos fora de seu aprisco. Havia o som de carroças conduzidas pelas ruas, de mercadores indo se estabelecer no mercado, de gemi‑ dos e suspiros e galos irritados. Escapei para a rua, segurando minha túnica nas mãos, levantando‑a para longe dos meus pés enquanto me abaixava. Eu queria olhar o chão da rua, para ver se encontrava qualquer vestígio de pegadas do homem. 22
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Eu as encontrei à beira do caminho bem sob nosso teto, onde ele devia ter ficado para me olhar enquanto decidia se nos matava. As pegadas eram enormes. Tirei meu pé da sandália e coloquei‑o dentro de uma delas. Tinha duas vezes o tamanho da minha. Ouvi meu pai chegando, assobiando a mesma canção para Dagon que ele sempre cantava pela manhã. Apaguei as pegadas do homem com os dedos dos pés, virando‑me para cumpri‑ mentar meu pai. – Querida – disse ele, agarrando‑me para um beijo breve no alto da cabeça enquanto eu andava a seu lado. – Como foi a sua noite em casa com Astra? – Boa. Dei uma olhada para seu rosto, mas ele não franziu a testa ou duvidou de mim. Meu pai tinha sobrancelhas grandes e espessas, semelhantes a dois cães selvagens, as quais arqueavam e se jun‑ tavam uma à outra quando falava. Longas covinhas marcavam cada bochecha, que se aprofundavam quando ele sorria, e isso era bem comum. Minha mãe dizia que ele era um homem bonito. Eu não poderia julgá‑lo assim. Ele era simplesmente meu pai. Os pais das outras meninas as tratavam de forma severa, beirando o desprezo, mas meu pai me tratava com indulgên‑ cia, apesar do meu gênero. Ele não se preocupava ou ameaçava, como outros pais faziam, e não se importava quando eu discu‑ tia assuntos como política do templo ou dinheiro. Mas, mesmo assim, eu tomava cuidado para não abusar do meu privilégio. – E a sua mãe? – Dormindo lá dentro. Devo preparar o seu desjejum? – Vamos esperar sua mãe. Eu gostaria de falar com você. – Ele parou no vão da porta. 23
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Olhei em volta para me certificar de que não havia sinal de mais pegadas. E então eu vi aquilo, e quase morri de terror. Um grande lenço vermelho tinha sido amarrado no alto do nosso batente. O hebreu marcara nossa casa, para se lembrar de onde morávamos. – Você sabe que eu a amo tanto quanto qualquer pai pode amar uma filha. Eu não conseguia me concentrar no que ele estava dizendo. Só via o lenço vermelho. – Se você tivesse sido um filho, essa conversa seria diferen‑ te. Não posso protegê‑la para sempre. Senti uma pontada no coração. – Por que eu preciso de proteção? Ele riu. – Não seja tão exagerada. Qualquer família pode pedir você em casamento agora. Você irá morar em outra casa, com outro pai e outra mãe, um marido a quem deverá servir, crianças. – Ele enxugou uma lágrima antes de continuar: – Se os outros pais me virem fazer isso, serei ridicularizado nos portões da ci‑ dade para todos os tempos. Eles me farão moer a cevada com as mulheres. Meu pai não sabia que eu não viveria o suficiente para ser pedida em compromisso. Como ele não havia visto o lenço? E o que isso significava? Se eu o tirasse, o que significaria? Aceitação de culpa? Decidi deixá‑lo ali e esperar. Papai pigarreou e olhou para mim com uma expressão se‑ vera. Eu não achei que fosse sério. – Então, se eu tiver de aceitar uma oferta, preciso saber o que lhe agradaria mais.
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O dia estava só piorando. – Nada me agradaria. Eu não quero me casar. Ele riu novamente. – Eu posso apenas viver aqui com você, mamãe e Astra. Não quero me casar. – Mas você vai. – Você não tem de se livrar de mim. Posso ficar aqui e tra‑ balhar. E vou pagar por mim mesma, você vai ver. – Você se sentiria mais à vontade falando com sua mãe? Poderá dizer a ela o que quiser. – Eu não estou sendo tímida. Não quero me casar. – O sol não nos pergunta se queremos que ele nasça. O vento não nos pergunta se queremos que ele sopre. Nada neste mundo se importa com o que queremos. Não viva no deserto do pensamento achando que sua vontade importa. Especialmente sendo mulher. Agora, talvez devamos ter aquele desjejum. Ele virou‑se para entrar e viu o lenço. Congelei, esperando que meu pai conectasse a presença do homem com Astra e co‑ migo e nosso comportamento terrível ontem à noite. Ele teria perguntas. E eu era uma moça a quem faltava todo o encanto, até mesmo o encanto de mentirinhas rápidas. Ele riu e amarrou‑o na cintura. – Festivais! A loucura sempre impera.
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