O imperador das lâminas

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BRIAN STAVELEY

lâminas o imperador das

As Crônicas do Trono de Pedra Bruta livro i

tradução Sonia Strong

S ão P au l o , 2 0 1 5

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O imperador das lâminas (As Crônicas do Trono de Pedra Bruta, livro I) The Emperor’s Blades (Chronicle of the Unhewn Throne, Book I) Copyright © 2013 by Brian Staveley Copyright © 2015 by Novo Século Editora Ltda. This is a work of fiction. All of the characters, organizations, and events portrayed in this novel are either products of the author’s imagination or are used fictitiously. All rights reserved. A Tor Book Published by Tom Doherty Associates, LLC 175 Fifth Avenue New York, NY 10010 www.tor­‑forge.com Tor® is a registered trademark of Tom Doherty Associates, LLC.

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João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Vitor Donofrio

Renata de Mello do Vale Acácio Alves

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Emily Reis

tradução

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ilustração de capa

diagramação

montagem de capa

Sonia Strong Tássia Carvalho João Paulo Putini

Fernanda Guerriero Antunes Richard Anderson João Paulo Putini

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Staveley, Brian O imperador das lâminas Brian Staveley ; tradução Sonia Strong. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2 0 15 . (As Crônicas do Trono de Pedra Bruta, livro I) Título original: The emperor’s blades 1. Ficção de fantasia 2. Ficção norte-americana I. Título. II. Série. 15 ­‑10 0 9 9

cdd­‑813.5

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção de fantasia : Literatura norte-americana 813.5 novo século editora ltda.

Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Para meus pais, que liam hist贸rias para mim

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A G RADE C IMEN T OS

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enho certeza de que alguns escritores escrevem livros por si mesmos, mas eu precisei de muita ajuda. As seguintes pessoas leram os capítulos, deram ideias brilhantes para nomes, ridicularizaram minhas ideias ruins, encorajaram as boas, exigiram um número maior de lutas mais legais, fizeram campanha por vilões mais covardes, insistiram em monstros mais assustadores, queixaram­‑se de imprecisões que varia‑ ram de fatores militares a cartográficos, pintaram as Montanhas dos Ossos, e em geral me vaiaram e me levaram a fazer melhor. Escrever sem a ajuda de vocês teria sido um processo sombrio e solitário: Suzanne Baker, Ol‑ iver Snider, Tom Leith, Patrick Noyes, Colin Woods, John Muckle, Leda Eizenberg, Heather Buckels, Kyle Weaver, Kenyon Weaver, Brook Detter‑ man, Sarah Parkinson, Becca Heymann, Katherine Pattillo, Matt Holmes, John Norton, Mark Fidler, Andrika Donovan, Shelia Staveley, Skip Staveley, Kristin Nelson, Sara Megibow, Anita Mumm, Ryan Derby, Morgan Faust, Adrian Van Young, Wes Williams, Jean Klingler, Amanda Jones, Sharon Krauss, Susan Weaver, Bella Pagan, Robert Hardage, Bill Lewis. Um agradecimento especial à minha agente, Hannah Bowman, e a meu edi‑ tor, Marco Palmieri, por terem depositado fé no livro, pelos olhos afiados para os detalhes, e por me reapresentarem a personagens e lugares que eu achei já conhecer. Gavin Baker, um leitor incansável e amigo, leu cada palavra de cada ras‑ cunho. Seus insights críticos foram inestimáveis, mas ainda mais importan‑ te foi sua crença inabalável de que eu poderia escrever o livro, de que eu iria 7

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escrevê­‑lo, e de que ele seria bom. Tomei empréstimo de seu suprimento de convicção mais vezes do que ele sabe. Por fim, Johanna Staveley. Os Csestriim não têm palavras para exprimir gratidão ou amor, mas há uma frase comum em seus escritos: ix alza – crucial para, de absoluta necessidade. Ela captura perfeitamente o relacionamento de Jo tanto com este livro quanto com o autor. Sem ela, eu estaria vivendo embaixo de uma pedra em algum lugar, solitário sem o saber, desconcertado por uma ausência não percebida, roendo as próprias unhas dos pés, e provavelmente ainda reescrevendo o prólogo.

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Prólogo

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issolução. Era a dissolução, Tan’is refletiu, enquanto olhava nos olhos da filha, que havia dominado sua criança. Gritos e imprecações, súplicas e choro estremeciam o ar enquanto as longas filas de prisioneiros enchiam o vale. O cheiro de sangue e urina era mais forte no calor do meio­ ‑dia. Tan’is ignorou tudo isso, concentrando­‑se no rosto da filha que estava ajoelhada, agarrando­‑se aos joelhos dele. Faith era uma mulher adulta agora, 30 anos e um mês. Para um olhar casual, ela poderia passar por uma mulher saudável – olhos cinzentos e brilhantes, ombros delicados, mem‑ bros fortes –, mas os Csestriim não tinham mais filhos saudáveis havia séculos. – Pai – a mulher implorou, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Aquelas lágrimas, também, um sintoma da dissolução. Havia outras palavras para isso, é claro. Os jovens, em sua ignorância ou inocência, chamavam a doença de envelhecimento, mas nisso, como em tan‑ tas outras coisas, eles cometiam um erro. A idade não significava decrepitude. Tan’is, ele mesmo era velho, tinha centenas de anos, contudo os tendões eram fortes, a mente ágil – se necessário, conseguia correr o dia todo, a noite toda, e a maior parte do dia seguinte. A maioria dos Csestriim era mais velha ainda, com milhares e milhares de anos, e mesmo assim eles continuavam a caminhar na terra, aqueles que não haviam tombado nas longas guerras com os Nevariim. Não. O tempo passava, estrelas giravam ao longo de seus arcos silenciosos, as estações cediam lugares umas para as outras, e nada disso, por si só, causava danos. Não era a idade, mas a dissolução que corroía as crianças, consumindo

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as entranhas e os cérebros, minando a força, erodindo o pouco de inteligência que uma vez tinham possuído. Dissolução e, então, a morte. – Pai – implorou Faith, incapaz de prosseguir além dessa palavra. – Filha – Tan’is respondeu. – Você não… – Ela arquejou, olhando por cima do ombro em direção à vala, onde os doran’se faziam seu trabalho, o aço brilhando à luz do sol. – Você não pode… Tan’is inclinou a cabeça para o lado. Ele tentara entender a filha, tentara entender todas as crianças. Embora não fosse um curandeiro, como soldado aprendera havia muito tempo a tratar de ossos quebrados e pele rompida, a tra‑ tar a carne apodrecida causada por uma ferida suja ou a tosse atormentada de homens há muito tempo no campo de batalha. E, no entanto, isso… Ele não era capaz de compreender a natureza dessa decadência mais do que podia curá­‑la. – Ela a pegou, filha. A dissolução a pegou. Ele estendeu a mão e deslizou um dedo ao longo dos vincos na fronte de Faith, esboçou o traçado delicado das linhas ao redor dos olhos dela, levantan‑ do um fino filamento de cabelos prateados dos cachos castanhos. Apenas algu‑ mas décadas de sol e vento já haviam começado a tornar áspera a pele lisa cor de oliva. Ele pensara, quando a filha emergiu de entre as coxas de sua mãe, com os pulmões fortes e gritando, que talvez ela pudesse crescer ilesa. A questão o havia intrigado, e agora fora respondida. – Seu toque é leve – ele disse –, mas ficará mais forte. – E então você precisa fazer isso? – ela explodiu, sacudindo a cabeça deses‑ peradamente em direção à vala de terra recém­‑revolvida. – Isso é o que acontece no final? Tan’is balançou a cabeça. – Não foi minha decisão. O conselho votou. – Por quê? Por que vocês nos odeiam? – Odiar? – ele perguntou. – Essa palavra é sua, criança, não nossa. – Não é apenas uma palavra. Ela descreve um sentimento, uma coisa real. Uma verdade sobre o mundo. Tan’is assentiu. Ele tinha ouvido tais argumentos antes. Ódio, coragem, medo. Aqueles que pensavam que a dissolução afetava apenas a carne não entendiam nada. Ela corroía a mente também, afetando as próprias bases do pensamento e da razão. 10

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– Eu cresci de sua semente – Faith prosseguiu, como se aquilo fosse a conti‑ nuação lógica do que viera antes. – Você me alimentou quando eu era pequena! – Essa é a maneira de agir de muitas criaturas: lobos, águias, cavalos. Quan‑ do são jovens, dependentes, todos eles devem confiar nos progenitores. – Lobos, águias e cavalos protegem suas crias! – ela protestou, chorando abertamente agora, enterrando as unhas na parte de trás de suas pernas. – Eu já vi! Eles guardam e cuidam, alimentam e nutrem. Eles criam os filhotes. – Ela ergueu a mão trêmula, suplicante, para o rosto do pai. – Por que vocês não nos criam? – Lobos – Tan’is respondeu, afastando a mão da filha – criam os filhotes para serem lobos. Águias, águias. Vocês – continuou ele, franzindo a testa mais uma vez –, nós os criamos, mas vocês estão quebrados. Poluídos. Danificados. Você pode ver por si mesma – ele disse, apontando para as formas derrotadas e curvadas, à espera na borda das valas – centenas deles, apenas esperando. Mesmo sem isso, você iria morrer de qualquer forma e em breve. – Mas nós somos pessoas. Somos seus filhos. Tan’is balançou a cabeça, cansado. Não adiantava argumentar com alguém cuja razão havia se deteriorado. – Vocês nunca poderão ser o que somos – ele disse calmamente, puxando a faca. Ao ver a lâmina, Faith soltou um som profundo e estrangulado em sua gar‑ ganta e recuou. Tan’is se perguntou se ela iria tentar correr. Uns poucos o faziam. Eles nunca iam muito longe. Essa sua filha, no entanto, não correu. Em vez disso, fechou as mãos contraídas em punhos pálidos e trêmulos e, então, com um óbvio esforço de sua vontade, levantou­‑se. Em pé, ela foi capaz de olhá­‑lo diretamente nos olhos, e, embora as lágrimas fizessem seu cabelo grudar no rosto, ela não chorou, pois por um breve momento, embora fugaz, o terror que desfigurava suas feições a deixara. Ela parecia quase íntegra, saudável. – E vocês não podem nos amar pelo que somos? – ela perguntou, as palavras lentas e firmes pela primeira vez. – Mesmo poluídos, mesmo danificados? Mes‑ mo contaminados, vocês não podem nos amar? – Amor – Tan’is repetiu, provando a estranha palavra, revolvendo­‑a na lín‑ gua enquanto dirigia a faca para dentro e para cima, passando pelos músculos, pelas costelas, para dentro de seu coração galopante –, como ódio, essa palavra é sua, filha, não nossa. 11

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CapÍTUlo 1

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sol acabara de aparecer sobre os picos, uma brasa silen‑ ciosa, furiosa, encharcando os penhascos de granito com um tom de vermelho‑sangue, quando Kaden encontrou a carcaça despedaçada do bode. Ele estivera seguindo a criatura ao longo das trilhas tor‑ tuosas da montanha havia horas, procurando rastros onde o solo era macio o suficiente, tentando adivinhar quando chegava às pedras nuas, voltando sobre seus passos quando errava. Era um trabalho lento e tedioso, o tipo de tarefa que os monges mais velhos tinham prazer em ordenar aos alunos. À medida que o sol se punha e o céu oriental se tornava cor de púrpura como um grande hematoma, ele começou a se perguntar se teria de passar a noite nos al‑ tos picos com apenas o manto de tecido grosseiro para se aquecer. A primavera havia chegado semanas mais cedo, de acordo com o calendário annuriano, mas os monges não prestavam qualquer atenção ao calendário, bem como ao clima, que permanecia penoso e malévolo. Trechos cobertos de neve suja pairavam nas longas sombras, o frio infiltrava as pedras, e os espinhos dos poucos arbustos re‑ torcidos de zimbro ainda estavam mais cinza do que verdes. – Vamos lá, seu velho desgraçado – ele murmurou, verificando outro rastro. – Você quer dormir aqui fora tanto quanto eu. As montanhas formavam um labirinto de entalhes e desfiladeiros, ravi‑ nas desgastadas e saliências onde o cascalho se esparramava. Kaden já havia cruzado três riachos cheios de neve derretida, espumando contras os incle‑ mentes paredões de pedra que os cercavam, e seu manto estava úmido pelos

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respingos. Ele congelaria quando o sol se pusesse. Kaden não tinha ideia de como o bode havia passado pela corrente de água. – Se você me arrastar por esses picos por muito mais tempo… – ele come‑ çou, mas as palavras morreram nos lábios quando, por fim, encontrou sua presa a trinta passos de distância, encravada em um estreito desfiladeiro, apenas os quartos traseiros visíveis. Embora Kaden não pudesse dar uma boa olhada na coisa – que parecia estar presa entre uma grande pedra e a parede do desfiladeiro –, percebeu ime‑ diatamente que algo estava errado. A criatura mantinha­‑se imóvel, imóvel de‑ mais, e havia algo não natural no ângulo das ancas, na rigidez das pernas. – Vamos lá, bode – ele murmurou enquanto se aproximava, esperando que o animal não estivesse muito ferido. Os monges Shin não eram ricos e dependiam dos rebanhos para obter leite e carne. Se Kaden voltasse com um animal ferido, ou pior, morto, seu umial lhe imporia uma severa penitência. – Vamos lá, meu velho – ele disse, abrindo caminho lentamente até o desfi‑ ladeiro. O bode parecia estar preso, mas, caso pudesse correr, Kaden não queria acabar perseguindo­‑o pelas Montanhas dos Ossos. – A pastagem é melhor lá embaixo. Vamos voltar juntos. As sombras da noite esconderam o sangue até Kaden quase pisar nele, uma grande poça escura e imóvel. Algo havia estripado o animal, selvagemente arran‑ cando uma fatia do traseiro, atravessando o estômago, dilacerando músculos e chegando até as vísceras. Enquanto Kaden observava, as últimas gotas remanes‑ centes de sangue escorreram, transformando os pelos macios da barriga em fios encharcados e emaranhados, descendo pelas pernas rígidas como urina. – Que ‘Shael o leve – ele amaldiçoou, saltando sobre a pedra encravada. Não era tão incomum que um felino das montanhas arrebatasse um bode, mas agora ele teria de carregar a carcaça para o mosteiro sobre os ombros. – Você tinha que sair andando por aí – ele disse. – Você tinha que… As palavras morreram em sua garganta, e a espinha ficou tensa quando ele olhou cuidadosamente o animal pela primeira vez. Um temor frio e rápido passou sobre sua pele. Kaden respirou fundo e, então, extinguiu a emoção. O treinamento dos monges Shin não servia para muita coisa, mas, depois de oito anos, ele havia conseguido domar os sentimentos; medo, inveja, raiva, entusias‑ mo – ele ainda os sentia, mas não penetravam tão profundamente em seu corpo 14

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como no passado. Mesmo dentro da fortaleza de sua calma, no entanto, ele não pôde deixar de olhar. O que quer que tivesse estripado o bode não havia parado por aí. Alguma criatura – Kaden se esforçou em vão para pensar em qual – tinha arrancado a cabeça do animal dos ombros, rasgando os fortes tendões e músculos com golpes afiados, brutais, até que somente o coto do pescoço permanecera. Feli‑ nos das montanhas ocasionalmente matavam os membros mais fracos de um rebanho, mas não assim. Esses ferimentos eram selvagens, desnecessários, não demonstrando a parcimônia que ele vira em outros ataques na natureza. O ani‑ mal não tinha sido apenas abatido; ele tinha sido destruído. Kaden olhou em volta, procurando o resto da carcaça. Pedras e galhos ha‑ viam sido levados para baixo pelas enchentes do início da primavera e estavam encravados na boca do desfiladeiro, em um emaranhado de plantas e lodo e de‑ dos esqueléticos de madeira, branqueados pelo sol e parecendo­‑se com garras. Tantos detritos obstruíam o desfiladeiro, que ele demorou algum tempo para localizar a cabeça, que jazia de lado a alguns passos de distância. Grande parte dos pelos tinha sido arrancada e os ossos do crânio estavam partidos. O cérebro se fora, como se removido do crânio com uma colher. O primeiro pensamento de Kaden foi fugir. O sangue ainda escorria da pe‑ lagem sangrenta do bode, mais negro do que vermelho à luz fraca, e o que quer que o tivesse atacado ainda poderia estar nas pedras, guardando sua presa. Era pouco provável que qualquer um dos predadores locais atacasse Kaden – ele era alto para seus dezessete anos, magro e forte devido ao trabalho duro por mais da metade de sua vida –, mas, por outro lado, nenhum dos predadores locais teria arrancado a cabeça do bode e comido o seu cérebro. Ele se virou em direção à boca do desfiladeiro. O sol havia se posto abaixo da estepe, deixando apenas uma mancha queimada acima das pastagens no oeste. A noite já enchia o desfiladeiro como óleo escorrendo para dentro de uma tigela. Mesmo que ele partisse imediatamente, mesmo que corresse o mais rápido possí‑ vel, teria de andar as poucas milhas até o mosteiro em completa escuridão. Embo‑ ra Kaden achasse que superara há muito tempo o medo da noite nas montanhas, não gostava da ideia de tropeçar ao longo do caminho cheio de pedras espalhadas, com um predador desconhecido seguindo­‑o na escuridão. Ele deu um passo para longe da criatura despedaçada, e então hesitou.

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– Heng vai querer uma pintura disso – murmurou, obrigando­‑se a voltar para a cena da carnificina. Qualquer pessoa com um pincel e um pedaço de pergaminho podia fazer uma pintura, mas os monges Shin esperavam um pouco mais de seus noviços e acólitos. Uma pintura representava o produto da visão, e os monges tinham sua própria maneira de ver as coisas. Saama’an, eles o chamavam: “a mente esculpida”. Era apenas um exercício, é claro, um passo no longo caminho que conduzia à libertação final do vaniate, mas tinha alguns escassos usos. Durante seus oito anos nas montanhas, Ka‑ den havia aprendido a ver, a realmente ver o mundo como ele era: a trilha de um urso malhado, o serrilhado de uma pétala tripartida, as ameias de um pico distante. Ele passara incontáveis ​​horas, semanas, anos olhando, vendo, memo‑ rizando. Podia pintar qualquer uma de mil plantas ou animais até a última pena ornamental, e conseguia internalizar uma nova cena em questão de segundos. Kaden respirou lentamente duas vezes, abrindo um espaço na mente, uma ardósia em branco, na qual iria esculpir cada detalhe em particular. O medo permaneceu, mas o medo era um impedimento, e ele o empurrou para baixo, concentrando­‑se na tarefa em suas mãos. Com a ardósia preparada, começou a trabalhar. Demorou apenas algumas respirações para gravar a cabeça decepada, as poças de sangue escuro, a car‑ caça mutilada do animal. As linhas eram precisas e determinadas, mais deta‑ lhadas do que qualquer pincelada, e, ao contrário da memória normal, o pro‑ cesso deixou­‑o com uma imagem nítida, vívida, durável como as pedras sobre as quais ele estava; uma que ele seria capaz de lembrar e escrutinar à vontade. Terminou o saama’an e soltou um suspiro longo e cuidadoso. – “O medo é cegueira” – murmurou, repetindo o velho aforismo Shin. – “A calma, a visão.” As palavras lhe conferiram pouco conforto à vista da cena sangrenta, mas, agora que terminara a escultura, podia partir. Olhou uma vez sobre o ombro, procurando algum sinal do predador nas montanhas, e, então, virou­‑se na di‑ reção da abertura do desfiladeiro. Enquanto a névoa escura da noite cobria os picos, Kaden correu para baixo através da escuridão, pelas trilhas traiçoeiras, os pés metidos em sandálias passando pelos galhos abatidos e por pedras capazes de quebrar seu tornozelo. Suas pernas, frias e enrijecidas depois de tantas horas

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arrastando­‑se à procura do bode, aqueceram­‑se com o movimento, enquanto o coração batia em um ritmo constante. Você não está fugindo, pensou, está apenas indo para casa. Ainda assim, Kaden soltou um pequeno suspiro de alívio após percor‑ rer um quilômetro e meio quando chegou a uma torre de pedras – o Talon, os monges o chamavam – e conseguiu ver Ashk’lan à distância. Milhares de pés abaixo dele, os escassos edifícios de pedra construídos sobre uma saliência estreita pareciam se encolher para longe do abismo. Luzes que pa‑ reciam irradiar calor brilhavam em algumas das janelas. Haveria fogo na cozinha­‑refeitório, lâmpadas acesas na sala de meditação, o cantarolar tran‑ quilo dos monges Shin cuidando de abluções e rituais noturnos. Seguro. A palavra veio espontaneamente à sua mente. Era seguro lá embaixo, e, apesar de sua determinação, Kaden aumentou o ritmo, correndo em direção da‑ quelas poucas luzes fracas, fugindo do que quer que estivesse rondando a escuridão desconhecida atrás dele.

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