FERNANDO JORGE
V IDA
P
E OESIA DE
O L AV O B I L A C 5ª edição, revista e aumentada Introdução de Menotti Del Picchia
novo século
NOTA PRELIMINAR DA QUINTA EDIÇÃO
A
quinta edição desta obra surge aumentada nos capítulos XVI, XVII, XXI, XXIII, XXIV, e XXV. Tais acréscimos, alguns pequenos e outros não muito extensos, deixaram a nossa biografia mais informativa e homogênea. Ela é o fruto de pesquisas minuciosas, durante cerca de quarenta anos. Sempre aperfeiçoada com paciência e carinho, não tivemos outro objetivo, ao escrevê-la, de que o de produzir uma obra digna da grandeza de Olavo Bilac. Estava certo o historiador inglês Thomas Carlyle (1795-1881), quando observou no seu diário, em 13 de janeiro de 1832: “Uma vida bem escrita é quase tão rara como uma vida bem vivida” A well-writen life is almost as rare as a well-spent one. Expresso o meu reconhecimento ao dinâmico editor Luiz Vasconcelos, às competentes Silvia Segóvia e Nilda Campos Vasconcelos, bem como a todos que participaram deste trabalho em prol da cultura brasileira. FERNANDO JORGE São Paulo, 8 de março de 2007.
NOTA PRELIMINAR DA QUARTA EDIÇÃO
A
quarta edição desta obra surge aumentada nos capítulos XVII, XIX, XXI, XXII, XXIV e XXV. Efetuei uma revisão geral no texto, do ponto de vista estilístico e da correção de alguns dados informativos. E foram completadas, quando se tornou necessário, as notas no pé das páginas, com o nome dos jornais ou das editoras, o ano da publicação dos livros, o número das páginas citadas, a data do aparecimento dos artigos, etc. Também ficou ampliada e aperfeiçoada a bibliografia, a fim de facilitar as consultas e o trabalho dos pesquisadores. Agora se acham em itálico as cartas e os títulos das obras, para que o texto adquira mais estética, sob o aspecto gráfico. 9
R. Magalhães Júnior, membro da Academia Brasileira de Letras, foi um inimigo tenaz desta biografia. Criticou-a duramente, com perversidade, num artigo publicado no Diário Carioca, em 24 de novembro de 1963, e nas páginas 7, 8, 33, 58, 95 e 177 do babélico Olavo Bilac e sua época. Ele tentou provar, na página 58 desse monstrengo biográfico, que divulgamos um embuste, em relação a um soneto de Bilac dedicado a Sarah Bernhardt. A nossa resposta, insofismável e arrasadora, está na nota 11 deste livro. Outros ataques contra a presente obra, desfechados por ocasião do seu aparecimento, hoje nos parecem absurdos. Ela foi impedida de entrar na Academia Brasileira de Letras, conforme salienta Esdras Passaes numa extensa reportagem de página inteira, publicada no Jornal do Brasil, em 4 de dezembro de 1963: “O livro de Fernando Jorge, Vida e poesia de Olavo Bilac, é tão escandaloso que os acadêmicos proibiram sua entrada no Petit Trianon.” Mas a fúria dos “imortais” não parou aí. A revista Manchete, no seu número 607 (de 07/12/1963), reproduziu um telegrama de Aristeu Seixas, presidente da Academia Paulista de Letras: “Academia protesta contra livro de Fernando Jorge, que afronta nossa cultura pt Bilac era homem puro, de virtudes exemplares.” José Condé já havia publicado um telegrama de Aristeu na sua coluna do Correio da Manhã, em 28 de novembro do referido ano: “Academia Paulista de Letras protesta contra Fernando Jorge detrator de Bilac pede registrar protesto prestigiosa seção ‘Escritores e livros’ condenando Vida e poesia de Olavo Bilac pt. Aristeu Seixas, presidente.” O escritor Nataniel Dantas, sem dúvida um dos mais expressivos valores da moderna literatura brasileira, resolveu defender a nossa obra, num artigo publicado no número 77 da revista Leitura: “Sem exagero, posso afirmar: raros são aqueles que conseguem um livro de tal categoria, onde o estilo equilibrado e absorvente implica no que existe de veracidade, de pesquisa interpretativa. “Se alguns não apreciarem, achando até irreverência no autor ao descrever a vida boêmia, acredito que são zelos demasiados ou burrice, como se o fato furtasse a Bilac brilho — pelo contrário, dá-lhe, a meu ver, sal humano.” Toda esta briga em torno do livro, e a enorme celeuma provocada por ele, já se incorporaram à documentação literária e paraliterária do Museu Histórico Nacional, segundo informa Fábio Freixieiro nas páginas 56 e 57 do volume XXV nos Anais do referido museu (Documento nº 176, lata 4). Que os novos leitores da nossa biografia, portanto, depois de conhecer tais fatos, agora a julguem, a fim de ver se a Academia Brasileira de Letras tinha razão em proibir a entrada deste livro no seu “augusto recinto”. FERNANDO JORGE São Paulo, 15 de agosto de 1991
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DA BIOGRAFIA E DE OLAVO BILAC
O
lavo Bilac tem agora, através do carinho de Fernando Jorge — o consagrado e premiado evocador de O Aleijadinho, sua vida, sua obra, sua época, seu gênio — uma nova encarnação biográfica. É interessante registrar como a sensibilidade e o talento de um moço da presente geração literária focaliza a figura do poeta que foi o mais alto expoente lírico da sua época. Uma biografia é um ponto de vista. Pode ela de tal forma recriar uma vida que essa demiurgia literária é capaz de fazer reviver, com a carne das palavras, uma personalidade nova, não raro diversa, senão mesmo avessa, daquela que se quis evocar. Nesta biografia, Bilac não corre tal risco. Fernando Jorge, escritor de raça, procurou retratar, com um máximo de fidelidade, a figura do grande poeta. Ao receber, na Academia Brasileira de Letras, o exato e brilhante biógrafo de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, o escritor Luís Viana Filho, tive ensejo de esclarecer as preocupações que me causam as biografias. Disse então, entre outras coisas: “Um biógrafo pode ser um indivíduo mágico. Com uns fragmentos de lápide do templo de Al-Ubaid, umas tradições quase míticas da gente sumeriana e algumas hipóteses, é capaz de retratar o chefe da primeira dinastia de Ur, como Cuvier, de um osso fossilizado, reconstruía a estrutura de um brontosáurio. Há uma anedota em que um filho com muita ternura e pouco miolo pediu a um pintor que lhe fizesse um retrato do pai falecido. ‘Tem fotografia dele?’ ‘Não’. ‘Algum desenho?’ ‘Não’. E deu ao pintor notícias somáticas do progenitor morto: bigode grande e preto, testa curta, nariz rombudo. Feita a pintura com tais ingredientes, o filho, ao ver a obra, quase desfaleceu decepcionado: ‘Oh! o meu pobre pai como está mudado!...’ Eu já deparei com vários Napoleões ‘muito mudados!’. Uns épicos, de perfil de águia em vôo desferido, como no quadro de David, todos resplandecentes de sonho e de glória. Outros, vulpinos e calculistas, esgueirando-se pela política entre Talleyrand serviçal e escorregadio e Fouché tratante e policial, a arrastar uma desaçaimada fome de poder, tendo aos calcanhares a matilha da família esfomeada. Qual, dentro dessas centenas de corpos fatídicos vivendo na carne biográfica das palavras, é o pálido cadete de Brienne, o conspirador vitorioso de 18 Brumário e o estrategista genial de Marengo? O meu Lincoln era o lenhador longo, magro e 11
atlético, estranho morcego funéreo flabelando as abas da sobrecasaca desalinhada, limpo e reto de alma, soturno e introvertido de espírito. O amor o tornara romântico e pusera lágrimas que estriavam as chanfras da máscara talhada em ângulos como estalactites pingando em anfractuosidade de rochas. Estóico na dor, hábil no governo, assistia, impávido, o drama do seu povo, integrado no ideal de lavar na terra a mancha das discriminações raciais. Como, porém, o manipulou o popularíssimo Dale Carnegie? Um cidadão pouco asseado e displicente, infelicitado por uma esposa ciumenta, neurótica e negocista, renteando pela inépcia no governo, vencendo pela surpresa de um acaso a parada política e ganhando a guerra mais pela testarudez que pela genialidade. Os biógrafos são senhores da arte quase divina de recriar as criaturas, fazer das cinzas das suas memórias carne e nervos, ação e espírito, para nos dar como nos deu, por exemplo, Maurois, o fidalgo judeu ítalo-britânico Disraeli, vivo e gracioso, desesperando Gladstone com sua malícia política e encantando a grande Rainha com um madrigal ou uma rosa. Que linda coisa: um criador de império arrulhando versos... Seria isso ou seria, num disfarce de poeta, um voraz imperialista falando em cifras e arquitetando, à sombra da esquadra inglesa, expedições predatórias? Na mão dos biógrafos está o poder de fazer-nos ridículos ou grandes! A nossa ressurreição espectral está na força da sua simpatia e na esperança da sua integridade, ou na autenticidade dos testemunhos e dos documentos, porque biografia é apenas História. E o que é História, essa memória congelada no tempo, se não um admitir que ‘sim’ de alguma coisa que pode ser substancialmente ‘não’? Lembremo-nos daquela fina sátira de Daudet — o enciumado inimigo das Academias — ao ironizar o infeliz ‘imortal’ Astier-Rehu, fazendo-o revolucionar a história da França baseado, candidamente, em textos e pergaminhos gatafunhados por um refinado falsário. História pode ser ‘história’, no pessimismo bem-humorado do povo. O selo da sua autenticidade depende de mil circunstâncias. Homero funde o humano com o divino e a realidade às vezes se esfuma em mito, na fuga surrealista de uma transferência de planos. Nesses mitos vai, não raro, o biógrafo destacar o herói, compor-lhe a vida, como as desses reis fabulosos, Menelau, Édipo, Numa Pompílio, cuja essência é um hibridismo paradoxal de humano e social porque, como mitos, são criaturas que incorporaram, na sua essência, seu drama pessoal e o espírito do seu tempo transformado em alegoria. Biografia pede cultura e honestidade: prudência na escolha do material e imparcialidade no expor. Nunca me esqueço, quando penso na história — pois biografia não é mais que a história de uma vida e a História, no conceito carlyliano, uma seqüência de biografias — do cético e indulgente Anatole France nas páginas maliciosas da Ile des pinguins, nas quais uma hetaira se transforma em santa e se sagra, nos altares, como Santa Orberose, somente porque as partes mais ondulantes do seu corpo eram famosas por terem a graça móvel das ondas e a cor cálida das rosas. Entre nós que se tem feito no nosso Tiradentes? E Calabar, Judas cívico ou herói frustrado, manipulado ao gosto das preferências passionais ou políticas, ora acusado da sórdida felonia de quem trai o próprio berço, ora redimido na sua 12
defecção por se lhe atribuir o sonho de um futuro diferente para seu país, isento das humilhações da servidão reinol? Como pode o biógrafo fixar ‘a verdade’ do biografado? Somente ‘Deus Todo-poderoso’, no dizer de Whitman, produz, com sua divina criação, a verdade de uma criatura, porque a verdade é uma essência e a visão humana dessa verdade, uma vidência, portanto, um espelhismo. Como vimos, cinemático nas suas transformações corporais e psíquicas é o modelo do biógrafo; cinemática a evolução mental e temperamental do indivíduo exposta ao meio social, também este cinemático. Conclusão: o biógrafo é um caçador que desfere seu tiro em ave em pleno vôo, fundido seu vulto na bruma, tão instável, tão múltipla e, por isso mesmo, tão infixa a personalidade à qual procura dar a constante de um retrato. Pode atirar numa pomba e acertar num marreco. Na realidade uma alma é um ponto de vista. Qual é a personagem que sai autêntica e imutável de uma biografia? Somente as criaturas ideais. Na verdade — e Pirandello tinha razão — realidade integral é apenas a “personagem” no puro sentido da criação literária. Aliás, tais personagens, quando vivas da vida que o consenso unânime lhes dá, são as únicas definitivamente reais, porque infungíveis no seu atrito com o tempo. A personagem literária é o ‘ente de razão’ kantiano, vivendo sua inamolgável existência de arquétipo, ubíqua e universalmente presente, íntegra na carne da sua estrutura somática imaginada, carregada eternamente da mesma carga anímica. Não flutua como homem ao vento das opiniões e das necessidades, o qual será fatalmente inúmero e irrepresável para seus biógrafos, portanto parcela ou instante de si mesmo, mas não seu todo vibrátil. A personagem, porém, não muda. Não oferece ângulos na sua estática de criação intemporal, não atingida pelo fluxo e refluxo das opiniões, não violada na sua imortal contextura pelo desgaste implacável do tempo. Essa biografia, a do ‘personagem’, é a única que pode oferecer, com segurança, o selo da autenticidade. Exemplo: D. Quixote de la Mancha...” Esta esplêndida biografia de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac — legítimo Príncipe dos Poetas do seu tempo — traz chancela de autenticidade. O jovem autor, já consagrado mestre no gênero, com suas Vidas de grandes pintores do Brasil — honesto Vasari dos artistas plásticos nacionais — não quis inventar um Bilac a seu gosto e capricho, numa dessas muito comuns mágicas intelectuais das quais já foi vítima nosso Castro Alves. O baiano condoreiro, vate participante e polêmico que era, e já transformado em mito, oferecia ângulos para deformações, apesar da sua curta e fulgurante vida. A atmosfera romântica que respirou com sua geração, sua veemência passional, a febre de corpo e de espírito que o requeimou, deram aos seus biógrafos mais que uma criatura notável e excepcional, um fatalizado personagem de drama. Um Byron patrício. Bilac foi o avesso. Foi por excelência um poeta urbano. Sua biografia vem traçada pelos passos de uma vida normal, fácil de ser rastreada no desdobrar cotidiano dos seus dias; os do frustrado médico que abandona a escola de medicina já quase na altura de receber o diploma, como os do aluno da famosa Faculdade de Direito de São Paulo, que não chega a ser bacharel porque, no fundo, temperamento 13
boêmio e visceralmente artista, o que ele realmente aspira é ser perpetuamente estudante. A cidade — a Guanabara da paisagem magna e das rodas boêmias — fora seu mundo. A cultura nitidamente urbana da metrópole, inspirada, quer na vida social, quer nas rodas literárias, pelo espírito gaulês, e informada pelos artistas da França, é que condiciona a musa do poeta. É o espírito litorâneo, contrastando com a cultura da hinterlândia que nutre o lírico da “Via-Láctea”. Bilac parece sentir alegria pelo campo. Daí ser ele a antítese de Gonçalves Dias e Varela, do primeiro que tentava exprimir uma linguagem patrícia ao tomar Numa por Juno, isto é, o indianismo de torna viagem através do romantismo do bon sauvage, como expressão nacionalista de uma poesia, e do segundo, esse mais integrado no cosmo bárbaro do que ainda havia de virgem na paisagem e no homem do sertão. Como tal, Olavo Bilac seria fatalmente envolvido pela atmosfera parnasiana dominante na França, fascinado pelo requinte intelectualizado da forma, cuja receita iria buscar em Gautier. Essa forma, polida, policiada, geométrica, não podia ser um instrumento bárbaro capaz de exprimir a violência ainda selvagem da terra e do homem do interior. Daí criar ele, com requintes de grande artesão, uma poesia de evasão, repetindo a temática dos fidalgos artistas parnasianos, só aflorando temas nacionais — “A morte de Tapir”, “O caçador de esmeraldas”, etc. — com a mesma ênfase com que descrevia a destruição de Cartago e a “Tentação de Xenócrates”. Dele, no ciclo poemático da “República dos Estados Unidos do Brasil”, ao historiar nossos expoentes culturais, dissemos: “... Amo teu lirismo que ouve estrelas, tua devoção à forma vazada em tercetos, o drama burguês das tuas donzelas que moram nas casas geométricas dos teus sonetos; teu sexualismo intranqüilo, teu parnasianismo servil e tua paixão pela pureza do estilo pelo qual ainda há suicídios no Brasil. No hino nacional do teu civismo ufano vibro de entusiasmos revéis e pasmo ante o teu milagre de Tirteu provinciano empilhando de Jecas os quartéis. Presidiário da cidade, tua existência foi um drama sem cor, sem surtos, sem paixões, picado pelos pernilongos da maledicência que pululam, aos enxames, nos cafés e redações.
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O feitiço mágico do sertão brasileiro não te seduziu e ignoraste o drama do interior mortal e trágico dentro do qual o meu Brasil surgiu. Mentalidade cosmopolita, minha terra em teus poemas sensuais quis se anunciar numa alvorada, mas amavas demais a frase bonita, a rima complicada, e minha terra é bárbara, áspera e morena, e a arte medida é pequena para cantar uma terra grande demais. A forma irreverente com que tratávamos o poeta máximo de sua geração era, para nós, os de 22, uma reverência. Discuti-lo era amá-lo. Era querê-lo integrado no nosso anseio de autonomia mental e no espírito de revisão dos valores nacionais que postulávamos, pois levávamos em conta a seiva do seu estro, a força do seu verbo, o ímpeto passional dos seus poemas e sua mestria de artesão, que, no tempo, o enfileiraram entre as grandes vozes líricas da América: Rubén Darío, Amado Nervo, Alfonsina Storni, Gabriela Mistral, estas mais jovens. Mário de Andrade, em 1921, com revolucionários olhos modernistas, fez minudente análise da poemática do artista perfeito de “O caçador de esmeraldas”. Do parnasiano, concluiu: “Bilac reuniu na sua obra todos os artifícios e perfeições da Beleza, sob o ponto de vista formal. Assim sendo, considero-o o maior entre os parnasianos. Maior para o Brasil. Outro nenhum existe, que se lhe compare na língua e, mesmo fora desta, poucos emparelham com ele.” Esta a justiça que nossa geração de 22 prestava ao líder parnasiano. A restrição que lhe fazíamos era por vê-lo limitar seu estro ao rígido estetismo da escola na qual, entre nós, era pontífice. Mário, porém, adivinhava nele, já na altura melancólica e profunda da Tarde, o vôo mais largo, fora da clausura rígida da “deusa serena, a serena Forma”, movendo já suas asas numa atmosfera de sonho. Esta biografia de Fernando Jorge, que com erudição, sensibilidade e amor reevoca a figura do artista permanentemente vivo da “Via-Láctea”, “Sarças de fogo”, Tarde, é uma oportunidade — diante da arte de hoje tão representativa de um fim caótico de ciclo social — para se reavaliar a grandeza do artista, visto, neste prefácio, com os olhos da geração de 22 e estudado, no texto desta magnífica biografia, pela inteligência sensível, culta e moça de um esteta e de um ensaísta de 1963. MENOTTI DEL PICCHIA
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NOTA PRELIMINAR DA PRIMEIRA EDIÇÃO
N
ós, os escritores, temos uma simpatia especial pelos poetas. Eles são os nossos irmãos injustiçados, que sofrem mais porque sentem mais. Enquanto costumamos agir em função do cérebro, os poetas vivem para o coração e pelo coração. Somos, quase sempre, materialistas. Adoramos o conforto, os prazeres dos sentidos. Acreditamos nas coisas que vemos, que sentimos ou que podemos apalpar. Eles, entretanto, são os grandes loucos, os grandes sonhadores. Ignoram as leis da lógica. Possuem a vidência de um cosmo indefinível, todo feito de névoas e visões sobrenaturais. Este livro foi escrito por um amante da Poesia, porém da alta, da verdadeira, da imorredoura Poesia. Porque os versos que andam por aí, infestando os suplementos literários, podem ser tudo, até mesmo o idioma javanês, menos aquilo que pretendem ser: uma mensagem de emoção e de beleza. Querem renovar a poética? Querem abolir as regras acadêmicas? Detestam o Romantismo, o Simbolismo, o Parnasianismo e outros “ismos”? De acordo. A arte não deve sujeitar-se a nenhum dogma rigoroso, a nenhuma camisa de força que possa conter a livre expansão dos seus gestos. Mas, não sejam néscios ou charlatães! Abandonem esses ares de gênios incompreendidos, pois vocês não são poetas, são poeticidas... Ah, Poesia! Como exprimir o meu imenso nojo, o meu absoluto desprezo por todos os bárbaros que te cobriram com um manto de excremento? Radiosa Poesia! Pura e inefável Poesia! Ainda haverás de caminhar no meio do povo, de fronte erguida! Todos se inclinarão à tua passagem, reconhecendo a supremacia e o sortilégio do teu verbo! Esta obra nasceu da minha velha admiração por Olavo Bilac. Não que eu o considere o nosso maior poeta. Mas ele foi, sem dúvida, um autêntico poeta, na mais completa acepção do vocábulo. O que me fascina, em Bilac, é a sua coerência, o seu destino de esteta, de homem que abominou a vulgaridade, que nunca traiu o ideal. Agora que se aproxima o primeiro centenário do seu nascimento, ofereço este livro aos meus patrícios, a fim de prestar uma homenagem à sua nobre figura de artista. É preciso observar, todavia, que ele não foi apenas um exímio virtuose do verso, um prosador terso e elegante. 17
Bilac amou o Brasil como poucos o amaram. Procurou revitalizar as energias do nosso povo. Solteirão, casou-se com a pátria. E fez dela o motivo permanente das suas preocupações, dos seus devaneios. Desejava, no seu íntimo, que a nossa terra fosse forte para ser boa, armada para ser justa, e rica para ser generosa. Nesta época absurda, que consagra o apedeuta e condena ao ostracismo os cidadãos de talento e de caráter, em que os grandes homens do nosso país são os jogadores de futebol, em que a mocidade se mostra tão imbecilizada e sem fibra, época babilônica que endeusa o sexo e transforma a política numa transação financeira, nesses tempos dissolutos, vergonhosos, de canalhocracia, incultura e arrivismo, é sobretudo consolador evocar o vulto de Olavo Bilac, um poeta que confiou no futuro da sua terra, que consumiu os derradeiros anos de sua existência na tarefa de acender, no peito dos brasileiros, a sacrossanta labareda do civismo. FERNANDO JORGE São Paulo, 29 de março de 1963
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
Q
uando saiu a primeira edição deste livro, o autor ficou surpreso com as discussões que se travaram em torno da obra. Choveram tantos ataques, houve tantas polêmicas, que no começo não pudemos compreender a razão da extraordinária barafunda. Alguns jornais, lançando gasolina na fogueira, informaram que amigos e pessoas da família de Bilac estavam indignados, pois o biógrafo pintara o lírico de “Virgens mortas” como um libertino, um devasso... O repórter Esdras Passaes foi entrevistar, num casarão de Botafogo, a sra. Corina de Assunção, sobrinha do poeta e já octogenária, que fez várias declarações contra o livro. Ela desmentiu categoricamente certas passagens do nosso trabalho: negou que Olavo recebia, homem feito, auxílio econômico da própria mãe, que o vate bateu uma carteira em Ouro Preto, que participou de uma farra nas Furnas da Tijuca, em companhia de moças alegres... Ary da Matta, professor catedrático da Universidade Católica do Rio de Janeiro, expeliu dois violentos artigos no Diário de Notícias, asseverando que Vida e poesia de Olavo Bilac se restringe “à área de irresponsabilidade, de mexericos e fofocagens abastardantes”. Na sua opinião, apenas salientamos as fraquezas humanas mais evidentes do glorioso parnasiano. E escandalizado, cheio de melindres puritanos, o mesmo crítico acentuou: “Um anedotário picaresco, fronteiriço do déclassé, despe a casaca dos deuses para exibi-los em ceroulas e mangas de camisa, num esforço inconsistente de ridicularia aviltante e inconseqüente, que nada constrói nem pode ser levado à conta de literatura. Por exemplo: o episódio de cinema mudo concebido para descrever a excursão de Bilac, Guimarães Passos, Pardal Mallet, Aluísio Azevedo e Coelho Neto às Grutas de Agassiz.” O acadêmico R. Magalhães Júnior endossou o julgamento de Ary da Matta. Mas em vez de realizar uma análise honesta, imparcial, caiu no destampatório, começou a urrar, a investir às tontas, e isto numa tediosa e longa moxinifada. Irritou-se sobremaneira, o fracassado biógrafo de Cruz e Sousa, com a descrição que fizemos da existência boêmia de Olavo: “Lendo tal livro, tem o leitor a impressão de que Bilac era um sujeitinho gracejador e irresponsável, pertencente a uma súcia de gaiatos mais ou menos desocupados, que levavam a vida entre brejeirices e anedotas, pregando peças a Deus e ao mundo.” 19
E aludindo às nossas inocentes indiscrições, o detrator da honra de Rui Bar* bosa sentenciou: “— Bilac é intocável. Está morto e não pode defender-se.” Íamos acolhendo todos esses comentários com um misto de espanto e curiosidade: até onde os acusadores pretendiam chegar? O nosso pasmo atingiu o auge quando soubemos, pela imprensa, que o escritor Austregésilo de Athayde, presidente da Academia Brasileira de Letras, tencionava convocar uma reunião, a fim de deliberar sobre as medidas que a Casa de Machado de Assis deveria adotar para a defesa da memória do sonetista de “Ouvir estrelas”. “— Não é admissível que Bilac — declarou o presidente da Academia — uma personalidade tão rica de humanidade e de vida, um poeta da sua grandeza e significação, seja apresentado ao público apenas no seu aspecto menos simpático e tantas vezes depreciativo, como no citado livro.” Secundando o sr. Austregésilo de Athayde, a Liga de Defesa Nacional, que tem em Olavo Bilac um dos seus patronos, também ameaçou de formular um protesto. A esta altura, no meio de tamanha celeuma, o livro transformou-se num bestseller, sendo colocado na lista dos mais vendidos em todo o país, conforme o resultado de uma pesquisa feita pelo jornal O Globo. Até a prestigiosa revista Manchete dedicou três páginas ao combatido volume. Se os nossos adversários alimentaram a pretensão de destruir, de modo completo, a biografia que escrevemos com tanto escrúpulo, acreditamos, modéstia à parte, que fracassaram no seu objetivo. Afinal, não se condena uma obra vomitando frases repletas de aleivosias e deturpações. A calúnia pode espalhar sua gosma, todavia nunca será capaz de esconder o que é visível, de uma clareza meridiana. Aquelas palavras de Lincoln, pronunciadas em 1865, ao tomar posse do governo dos Estados Unidos, pela segunda vez, ainda repercutem na consciência dos homens sensatos: “É possível ludibriar toda a gente durante algum tempo e muita gente durante toda a vida; impossível, porém, ludibriar toda a gente durante toda a vida.” Entretanto, a bem da verdade, temos de reconhecer que apareceram excelentes defensores da nossa biografia, como Agrippino Grieco, Manuel Bandeira, Waldemar Cavalcanti, Nestor de Holanda, Geir Campos, Carlos Rizzini e Nataniel Dantas. Este último, por exemplo, observou o seguinte: “Se alguns não apreciarem, achando até irreverência no autor ao descrever a vida boêmia, acredito que são zelos demasiados ou burrice, como se o fato furtasse a Bilac brilho — pelo contrário, dá-lhe, a meu ver, sal humano.” E Carlos Rizzini, jornalista ponderado, disse num artigo: “Li-o de fio a pavio e nele não achei um só fato, um só raciocínio, uma única alusão desprimorosa à grandeza do cantor da ‘Via-Láctea’. Ao contrário. Nenhum dos autores que evocaram o poeta, Medeiros, Rodrigo Otávio, Leôncio Correia,
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O livro de Salomão Jorge, Um piolho na asa da águia, verdadeiro pé de vento, reduziu a um montão de poeira a torre de Babel de incongruências e falsidades que é Rui, o homem e o mito, de R. Magalhães Júnior.
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Elmo Elton, Elói Pontes, este em obra minuciosa, se ateve mais à verdade dos fatos e à sua boa interpretação.” Que o leitor nos perdoe as transcrições, não veja nisto um indício de vaidade. Somente tivemos em mira o desejo de informar. E se assim, por outro lado, estamos defendendo o nosso livro, para o qual reivindicamos um só mérito — o de ser honesto — é preciso não esquecer que os réus, inocentes ou criminosos, também encontram bons advogados. Menotti Del Picchia, quando leu os originais de Vida e poesia de Olavo Bilac, aconselhou-nos que do texto fossem escoimadas certas passagens. Respondemos que se tratava de episódios já conhecidos, evocados em livros de memórias. No intuito de sermos fiéis, nada víamos que pudesse denegrir o poeta. A época de Bilac, além disso, era de franca boêmia. Desprezar tais episódios, a nosso ver, seria um ato de farisaísmo, uma desonestidade. O biógrafo autêntico conhece o dualismo do ser humano, não ignora os matizes e o claro-escuro das almas. Quem se propusesse a narrar a existência de Byron sem dizer que ele foi incestuoso, ou a de Baudelaire, omitindo os seus amores com uma negra sórdida, ou a de Paganini, esquecendo-se da sua avareza, ou a de Victor Hugo, silenciando a respeito da sua tragédia conjugal, ou a de André Gide, sem se referir à sua perversão, indiscutivelmente deturparia a verdade. E deste modo, como alcançar êxito na análise psicológica? Ver o homem só através dos ângulos positivos, das melhores qualidades, é o mesmo que apenas contemplar a natureza como um elemento harmonioso, desprovido de forças cegas. Nesta segunda edição fizemos acréscimos no texto e o editor incluiu mais algumas ilustrações. Qual a ambição do nosso espírito ao produzir este trabalho? Contar fatos inéditos e sensacionais da vida de Bilac? Não, em absoluto. É que havíamos verificado uma coisa: falta seguimento lógico e ordem cronológica às biografias do poeta. Elas se comparam a casas em desordem, cujos móveis não se acham nos seus devidos lugares. Quisemos recomeçar tudo. Buscamos as fontes. O esforço foi enorme, porquanto se tornou necessário aferir e reconstituir. Dando seqüência à carreira de Olavo, acompanhando a real trajetória dos seus sonhos, das suas lutas, das suas desilusões, a personalidade do grande poeta adquiriu contornos mais nítidos, dimensão mais exata. Muitos gestos de sua existência, que eram incompreensíveis ou singulares, perderam o caráter enigmático. Uma ação, um pensamento, resultam de um ato anterior, são conseqüências do tempo morto, já que a vida se entretece de um número infinito de teias, um riso pode ter origem numa lágrima, uma palavra de afeto talvez derive de um sentimento de angústia. Recusamo-nos, em biografia, a complicar o que é simples, a enxergar mistério naquilo que por si já é explicável. Se uma frase, ou um gesto, são bastante eloqüentes para expressar tudo, por que motivo vamos ser metafísicos? Não é desejar ir além da realidade? Não é ter pouca confiança na inteligência do leitor ou querer demonstrar uma profundidade fictícia? O biógrafo é o “historiador do indivíduo”, que pode e deve utilizar-se da sociologia e da psicologia em suas análises. Mas nas deduções, nas sondagens da 21
alma, sempre se valerá do documento, que é o seu ponto de apoio, o sólido arcabouço das criaturas que ele consegue ressuscitar graças à magia do verbo. FERNANDO JORGE São Paulo, 1 de outubro de 1972
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PREFÁCIO À TERCEIRA EDIÇÃO
N
o prefácio à segunda edição deste livro, mostramos a repercussão que ele obteve. O nosso objetivo, agora, depois de ter inserido pequenos acréscimos e realizado algumas correções no texto, é o de apresentar uma relação de obras e de artigos de jornais que fizeram referência a esta biografia. Referências nem sempre em tom de panegírico, mas expressivas, pois salientam a forte reação causada por um livro honesto, involuntariamente polêmico: GRIECO, Agrippino. Disparates de todos nós. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1968, v. 1, pp. 156, 164 e 194. REIS, Antônio Simões dos. Bibliografia da crítica literária em 1907. Rio de Janeiro, 1968, p. 161. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1977, pp. 254, 562. FARIA, Álvaro de. “A vida de Bilac, novamente”, in Diário de São Paulo, 25 de fevereiro de 1973. MATTA, Ary da. “Ausências de Bilac”, in Diário de Notícias, 13 de outubro de 1963. Idem, “Ausências de réplica”, in Diário de Notícias, 17 de novembro de 1963. SOBRINHO, Barbosa Lima. Presença de Alberto Torres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pp. 220, 221, 222. RIZZINI, Carlos. “Vida e poesia de Olavo Bilac”, in Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1963. LUFT, Celso Pedro. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre: Editora Globo, 1967, p. 47. FERREIRA, Delson Gonçalves. Língua luso-brasileira. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares, 1967, pp. 298 e 300. SILVA, Domingos Carvalho da. “Biografia de Bilac movimenta o mundo da pequena literatura”, in Diário de São Paulo, 15 de dezembro de 1963. Enciclopédia Mirador Internacional, (Encyclopaedia Britannica do Brasil) São Paulo, 1945, v. 18, p. 10.241. PASSAES, Esdras “Olavo Bilac passado a limpo”, in Manchete, n. 605, 23 de novembro de 1963. Idem, “Bilac inédito”, in Jornal do Brasil, 4 de dezembro de 1963. 23
CUNHA, Fernando Whitaker da. Ficção e ideologia. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1972, p. 106. Idem, A teoria e os seres. Rio de Janeiro: Barrister’s Editora, 1985, pp. 155, 159. CAMPOS, Geir. “Olavo Bilac, 65”, in última Hora do Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1963. CAMPOS, Gutenberg de. “Quem vê cara não vê coração”, in Jornal da Cidade, Bauru, 13 de fevereiro de 1973. LYRA, Heitor. O Brasil na vida de Eça de Queiroz. Lisboa: Edição “Livros do Brasil” 1965, pp. 294, 314 e 546. PIRES, Herculano. “Bilac: vida e poesia”, in Diário da Noite, 12 de outubro de 1963. MACEDO, Horta de. “Vida e poesia de Olavo Bilac”, in Diário de Jundiaí, 7 de dezembro de 1963. LIMA, J.B. de Souza. “Poucos amaram o Brasil como Bilac”, in Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1963. COELHO, Jacinto do Prado; AMORA, Antônio Soares; CAL, Ernesto Guerra da. Dicionário de literatura. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Publicações, 1969, v. 1, pp. 108 e 608; v.2, p. 1.283. PENTEADO, Jacob. Martins Fontes, uma alma livre. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1968, pp. 175 e 226. CONDÉ, José. “Defende-se Fernando Jorge”, in Correio da Manhã, 8 de dezembro de 1963. RIZZINI, Jorge. “Bilac e o amor”, in Edição Extra, nº 62, São Paulo, 5 de outubro de 1963. ARROYO, Leonardo. “Olavo Bilac”, in Folha de São Paulo, 11 de outubro de 1963. PICCHIA, Menotti Del. “Biografia de Bilac”, in A Gazeta, 12 de dezembro de 1963. DANTAS, Nataniel. “Uma biografia: Bilac”, in Leitura, n. 77, Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1963. HOLANDA, Nestor de. “Telha solta”, in Diário de Notícias, 1 de outubro de 1963. BARBOSA, Osmar. Bilac: tempo e poesia. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965, pp. 12, 13, 17, 20, 23, 29, 37, 54, 66, 70, 84, 90, 114, 118, 134, 163, 260, 266, 267, 274, 277. CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1964, p. 195. SIQUEIRA, Paranhos de. “O melhor biógrafo de Olavo Bilac”, in Diário do Povo, de Campinas, 2 de dezembro de 1975. MALLET, Pardal Mallet. Hóspede. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 11. FÁBIO, Paulo. “Bilac”, in Jornal do Commercio, 10 de novembro de 1963. PINHEIRO, Péricles da Silva. “Bilac”, in Shopping News de São Paulo, 20 de outubro de 1963. 24
SILVA, Quirino da. “Um livro discutido”, in Diário da Noite, 10 de outubro de 1963. MENEZES, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969, v. 1, p. 216; v. 3, p. 639. JÚNIOR, R. Magalhães. “Um biógrafo de Olavo Bilac”, in Diário Carioca, 24 de novembro de 1963. Idem. Olavo Bilac e sua época. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1974, pp. 7, 8, 33, 58, 95, 177. LEITE, Roberto de Paula. “Um livro contra Bilac”, in A Nação, São Paulo, 28 de dezembro de 1963. AZEVEDO, Sanzio de. “Poesia de todo o tempo”, in Unitário, Fortaleza, 2 de agosto de 1964. CAVALCANTI, Valdemar. “Biografia”, in O Jornal, 18 de outubro de 1963. GUIMARÃES, Vicente. Bilac, história de um príncipe. Rio de Janeiro: Editora Minerva, 1968, pp. 19-21, 90-93. Todos os comentários sobre Vida e poesia de Olavo Bilac, justos ou injustos, severos ou indulgentes, e até mesmo referências em dicionários e enciclopédias, não tiveram o dom de tanto sensibilizar o biógrafo como a carta que este recebeu de Campos de Figueiredo, talentoso poeta, ensaísta, cronista e dramaturgo português, nascido em 1899 e falecido no ano de 1965. O leitor nos desculpe a imodéstia, porém o nosso livro foi tão mal interpretado que as generosas palavras do aedo de Imagem da noite se transformaram, para nós, num consolo, numa recompensa. Ei-las, tal como brotaram do cérebro e do coração do autor de Navio na montanha: “Notável obra! Que posso eu dizer criticamente dela? Basta que diga isto: Se Olavo Bilac pudesse vir do outro mundo a este, se repetisse todos os passos de sua vida, desde o berço ao túmulo; e falasse com todos os seus amigos; e lesse todos os seus versos; e amasse as mesmas mulheres; e sofresse e gozasse as horas todas da sua existência; e recebesse os mesmos louros de vitória; e repetisse a sua boêmia e contemplasse todos os retratos que lhe fizeram, decerto não se reencontraria tão integralmente vivo e tão parecido consigo mesmo, como se lesse a sua biografia, a Vida e Poesia de Olavo Bilac, que saiu das mãos de Fernando Jorge. Creio que Fernando Jorge, graças ao seu talento de mineiro do subsolo das Almas, conseguiu esgotar o tema Olavo Bilac, e nada mais deixou para os vindouros. Disse tudo, mas justamente tudo o que era preciso. Outros poderão redundar, mas não dizer senão o excesso inútil e desnecessário. É certo que pode ainda variar-se à volta do Poeta, mas criticamente. Nunca biograficamente mais do que foi escrito por Fernando Jorge.” 25
Obrigado, Campos de Figueiredo. Que este meu agradecimento chegue até às regiões altíssimas onde o nobre poeta, liberto das humanas contingências, está ouvindo, à semelhança de Bilac, as vozes etéreas de milhares de estrelas mais belas e reverberantes do que Antares, Procyon, Altair, Canopus e Aldebaran. FERNANDO JORGE São Paulo, 23 de junho de 1977
“Escritores há cuja vida pode ser totalmente separada de sua obra. Outros, pelo contrário, têm-na tão unida à obra que não é possível, a rigor, separá-las. Creio ser esse o caso de Olavo Bilac. Sua vida e sua obra, entre 1865 e 1918, datas do seu nascimento e de sua morte, se acham de tal maneira entrelaçadas que é muito difícil considerá-las em separado.” ALCEU AMOROSO LIMA
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CAPÍTULO I OS INQUIETOS CAMINHOS DA INFÂNCIA O berço em que, adormecido, Repousa um recém-nascido, Sob o cortinado e o véu, Parece que representa, Para a mamãe que o acalenta, Um pedacinho do céu. Que júbilo, quando, um dia, A criança principia, Aos tombos, a engatinhar... Quando, agarrada às cadeiras, Agita-se horas inteiras Não sabendo caminhar! Depois, a andar já começa, E pelos móveis tropeça, Quer correr, vacila, cai... Depois, a boca entreabrindo, Vai pouco a pouco sorrindo, Dizendo: “mamãe”... “papai”... Vai crescendo. Forte e bela, Corre a casa, tagarela, Tudo escuta, tudo vê... Fica esperta e inteligente... E dão-lhe, então, de presente, Uma carta de A. B. C... (“A infância”)
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Sei que um dia não há (e isso é bastante A esta saudade, mãe!) em que a teu lado Sentir não julgues minha sombra errante, Passo a passo a seguir teu vulto amado. — Minha mãe! minha mãe! — a cada instante Ouves. Volves, em lágrimas banhado, O rosto, conhecendo soluçante Minha voz e meu passo costumado. E sentes alta noite no teu leito Minh’alma na tua alma repousando, Repousando meu peito no teu peito... E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho, E abres os braços trêmulos, chorando, Para nos braços apertar teu filho! (Soneto XXI da “Via-Láctea”)
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RANCISCO SOLANO LÓPEZ desenvolveu o seu espírito militarista na Europa, para onde tinha sido enviado, em 1854, como ministro do Paraguai. Comprou, no velho mundo, bastante munição e apetrechos bélicos. Acolhido generosamente por Napoleão III, o filho do ditador Carlos Antônio López ficou deslumbrado com a faustosa corte de Paris. Regressando ao país natal, após demorada estada em França, levava consigo duas coisas perturbadoras: uma ambição voraz de poderio e uma linda mulher, Elisa Alice Lynch, de quem se tornara amante. Quando seu progenitor morre, Francisco assume o governo do Paraguai. De modo simultâneo, ele começa a urdir planos fabulosos. Sonha em transformar sua nação num vasto império. Deseja ser “imperador do Prata”. Quer dar à terra em que nasceu uma saída para o oceano. Só há um estorvo, a impedir a concretização dos seus desígnios: é a pátria de d. Pedro II. Pouco importa, entretanto, este empecilho! Seu enérgico e defunto pai já lhe asseverara que dez mil paraguaios conquistariam, de forma fácil, o colossal Império do Brasil. Assim que se empossa na presidência da República, Francisco Solano López manda construir na Europa três couraçados e encomenda cinqüenta canhões. O país se converte num grande acampamento militar. Milhares de homens são armados até os dentes. Enquanto esperam as ordens do caudilho, afiam os sabres, fazem manobras, treinam a pontaria. Além do Brasil, o ditador pretende esmagar a Argentina e o Uruguai. Apenas aguarda o mais simples pretexto, a fim de declarar guerra ao Império e às duas repúblicas do Prata. O pai de Francisco, antes de falecer, deixou de lado a fanfarronice, recomendando ao filho, no testamento, prudência no trato das questões internacionais. 30
Mas o amante da bela madame Lynch é um impulsivo, um superambicioso faminto de glória. Por isto, em 1864, exige do Brasil que este cesse a sua intervenção no Uruguai, causada pelo despotismo de Aguirre. D. Pedro II não se intimida. López, rápido, sem prévia declaração de guerra, determina o aprisionamento, no porto de Assunção, do navio brasileiro Marquês de Olinda, que conduzia o presidente da província de Mato Grosso, o coronel de engenheiros Frederico Carneiro de Campos. O tirano ordena a invasão de Mato Grosso e da província do Rio Grande do Sul. Desrespeita, ainda por cima, a soberania da Argentina, invadindo-lhe a província de Corrientes. Forma-se, imediato, a Tríplice Aliança. O Império e as Repúblicas Argentina e do Uruguai se unem para vencer o ditador. É a longa e impiedosa guerra do Paraguai que se inicia.
✺✺✺ Em julho de 1865, o dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac deixa o seu lar, no Rio de Janeiro, com destino aos campos de luta. Ele parte integrando o 31º Batalhão dos Voluntários da Pátria. Tinha, na Corte, uma clínica muito freqüentada, e fora, sem prejuízo de suas atividades, nomeado cirurgião da Polícia Militar. Seguia, pode-se dizer, a tradição dos seus ancestrais, pois o seu bisavô, Jean Olivier Martin Bilac, havia sido médico das tropas do general Junot, quando este, no ano de 1807, capitaneou a primeira invasão francesa em Portugal. A esposa do honrado facultativo, dona Delfina Belmira dos Guimarães Bilac, nascera na Bahia. Ambos já possuíam uma filha, chamada Cora, porém aguardavam, em breve, outro rebento. Cinco meses após a sua partida, nasce no modesto sobrado da rua da Vala, a 16 de dezembro de 1865, o novo filho do cirurgião, que iria receber o nome de Olavo. D. Pedro II, três meses antes do nascimento dessa criança, juntamente com o general Mitre, entrara na cidade de Uruguaiana, ocupada por Estigarribia, o qual se rendeu, em companhia de seis mil homens, às forças aliadas. O menino vai crescer numa atmosfera de angústia. No seu lar, como em milhares de outros lares, havia tristeza, ansiedade, mas esses momentos de susto e melancolia são contrabalançados pelos instantes de êxito. Quando o almirante Barroso destrói a esquadra paraguaia na batalha do Riachuelo, a alma popular exulta de contentamento. E Rosendo Muniz Barreto, autor do “Cântico de Humaitá”, tornase o intérprete dos corações patrióticos, transbordantes de orgulho: Oh! Riachuelo! intervenção divina Vales para o Brasil vitorioso! Reviveram heróis de Salamina, Fez-se — novo Têmistocles — Barroso.
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Enquanto os soldados brasileiros se atolam nos charcos do sul, enfrentando a malária e as balas dos adversários, a imprensa paraguaia compara os generais do Império a vagarosas tartarugas, arrastando, com muito custo, pesadíssimas espadas... D. Pedro II era representado como um chimpanzé de coroa, a ostentar longas barbas... Um dos jornalecos de Assunção procurou, certa vez, definir os Aliados: Orientales... generales sin ejército! Brasileños ... ejército sin general! Argentinos... ni general, ni ejército! Os acontecimentos se precipitam, sucedem-se, à semelhança de vertiginoso calidoscópio: Osório derrota os paraguaios em Tuiuti, na mais sanguinolenta batalha da América do Sul; o forte de Curuzu é tomado pelos Aliados; fracassa a primeira investida contra a fortaleza de Curupaiti e no norte do Paraguai se efetua a trágica e heróica retirada da Laguna. O povo acompanha, febricitante, o desenrolar do conflito. Cada vitória é uma explosão de júbilo, embora, por outro lado, traga luto e lágrimas a várias famílias: O López subiu ao céu, Para a Deus pedir perdão; Os anjos deram-lhe pedras E São Pedro um bofetão... O López comeu pimenta, Pensando que não ardia, Agora está se queixando, Toda noite e todo dia... A mãe de Olavo, nesses dias incertos, mostra uma notável fortaleza de ânimo. Com paciência, coragem e resignação, vai educando o filho. É sempre ansiosa que abre as cartas enviadas pelo marido. Este, devido aos seus méritos, foi nomeado major em comissão do Corpo Especial da Corte, recebendo do governo imperial um expressivo elogio. Todavia, a peleja prossegue. Solano López continua a acreditar em sua invencibilidade. A um cidadão de Corrientes, chamado Vitor Silvero, o tirano havia dito: — O imperador do Brasil não tem soldados que possam deter o arranco do soldado paraguaio, nem que possam resistir aos reveses de uma campanha no Estado Oriental. Para essa campanha não tem mais soldados do que os rio-grandenses, e estes são republicanos, que saberão aproveitar tal ensejo para se tornarem independentes. E sobretudo, o imperador não possui hoje exército, e sua esquadra não é temível. 32
No entanto, apesar dessas bazófias, Caxias iniciara a famosa “marcha de flanco”, indo acampar em frente da poderosa fortaleza paraguaia de Humaitá. Daí por diante, à custa de muito sangue, de duros sacrifícios, os Aliados vão infligindo sucessivas derrotas ao inimigo. Os brasileiros, sob o comando do general Marques de Sousa, alcançam outra vitória em Tuiuti e, em seguida, forçam a passagem de Humaitá. Este baluarte, considerado inexpugnável, acaba caindo. Depois é a vez de Curupaiti. Caxias, guerreiro hábil, audacioso e pertinaz, vence o bravo general Caballero nas batalhas de ltororó e Avaí. Mas não cessam, nesses lugares, as suas vitórias. Ele derrota o próprio López em Lomas Valentinas e após tomar Angostura, penetra em Assunção, orgulhosa cidade fundada por João de Ayala e que foi, durante mais de um século, a indomável capital das colônias espanholas do rio da Prata. O conflito do Paraguai termina com a morte do ditador em Cerro Corá, o qual faleceu em conseqüência de um tiro disparado pelo soldado João Soares. Um alferes nortista, então, cortou a orelha esquerda do tirano, justificando-se desta maneira: — É uma promessa que fiz na minha terra: levar a orelha de López! Quando a carnificina chegou ao fim, a 1º de março de 1870, Olavo contava apenas quatro anos de idade. O menino, nessa época, vai assistir, em companhia da mãe, ao desembarque do 31º Batalhão dos Voluntários da Pátria. Atravessa as ruas apinhadas de povo. Das janelas vê as senhoras acenarem com os lenços. Escuta, vibrante, as cadências épicas de uma triunfal marcha de guerra. Que delírio, que entusiasmo! Os tambores rufam e os oficiais, de fardas cobertas de galões, se perfilam ao sol. A multidão, no porto, abre alas. No momento em que o batalhão estaca e cessa a música, o povo, frenético, prorrompe em aclamações. De súbito, porém, a banda lança aos ares os compassos arrebatadores do hino nacional. A bandeira brasileira, que se achava no centro de um pelotão, impelida por brando vento marítimo, agita-se, estremece, desdobra-se, ondeia, adquire uma soberba e esplêndida majestade. A criança viva e inteligente, emotiva e sonhadora, perante esse inesquecível espetáculo, principiou a compreender o significado grandioso do substantivo “pátria”. E ao avistar o pai pela primeira vez, com o peito adornado de medalhas, esta impressão se tornaria ainda mais acentuada. O dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac é um homem de abundante cabeleira e olhar perscrutador. Tem a testa ampla, bigodes caídos e cavanhaque. Olavo vai crescendo a respirar, por toda a meninice, uma contagiante atmosfera de glória. Tudo que lembra a guerra do Paraguai o impressiona: as narrativas dos combates, as bandeiras rotas e ensangüentadas, as fardas vistosas e as condecorações reluzentes, os arcos de triunfo e os cortejos monumentais. Solano López, para ele, “era como a personificação do diabo, pérfido e cruel, assinando a sentença de morte da própria mãe, assassinando os irmãos, vivendo jubilosamente no meio das carnificinas”. Muitas vezes Olavo ouviu contar, nos serões domésticos, o que foi o embarque de d. Pedro II para Uruguaiana: a população carioca, em peso, aclamava o imperador, vociferando ameaças e pragas cabeludas contra os odientos paraguaios. 33
O ambiente de rancor em relação aos vencidos subsistiu por bastante tempo. A cidade ainda se cobria de luto, chorando os seus mortos. E o garoto, quando lhe falavam a respeito do Paraguai, experimentava um forte sentimento de repulsa e de cólera. À semelhança de quase todos os meninos da sua idade, Olavo ficava de olhos arregalados e respiração suspensa, ao escutar as narrativas dos horrores da guerra. Decerto sobrava quixotismo nas histórias que ouvia. Era um quixotismo de acordo com a nossa natureza: ultrafogoso, resplandecente, tropical, mas capaz de iluminar, por isto mesmo, a infância monótona de qualquer menino tristonho. O dr. Brás, depois da guerra, volta a clinicar. A vida entra no seu ramerrão primitivo. Na família do médico há somente duas transformações: mudança do lar para a rua dos Andradas e o aparecimento de mais uma filha. É figura popular, o pai de Olavo: de elevada estatura, espadaúdo, usa chapéu alto, luvas, bengala, sobrecasaca marrom, que lhe desce até os joelhos, e calças irrepreensivelmente brancas. Possui aspecto solene, de burguês circunspecto, mas apresenta espírito um tanto irônico, um tanto excêntrico. Alimenta um sonho, este homem amante da tradição: quer que o filho também seja médico. Já imaginando Olavo como cultor zeloso da ciência que deu glória à Laënnec, matricula-o na escola do conhecido padre Belmonte. De nacionalidade portuguesa, o sacerdote era um professor velho, tabaquento e carrança. Andava com passos vagarosos, fazendo ranger no soalho as suas botas faiscantes e grossas. Assim que escutavam o ruído áspero do seu calçado, os alunos, de modo rápido, simulavam exagerada aplicação no estudo. Usava, o padre-mestre, ampla sobrecasaca. E sua cabeça, de linhas vigorosas, emergia de um colarinho alto e claro. Exibia cabelos compridos, levemente ondeados, onde brilhavam fios de prata, que lhe caíam sobre os ombros. Os seus olhos, grandes e severos, reluziam atrás dos óculos de aros de ouro. Gostava de andar com as mãos nas costas. Ora concedia afagos na cabeça de um aluno pequenino, ora dava ligeiro piparote nas orelhas de um preguiçoso. Às vezes se detinha, atendendo, numa voz sonora e autoritária, ao pedido de explicação de um aluno. O padre conservava sempre, diante de sua pessoa, no período das aulas, um bolorento compêndio de Raffy e uma enorme palmatória de jacarandá. Segundo esse compêndio, Deus havia criado o mundo no ano 4.138 antes de Cristo. Certo dia Olavo foi chamado à lição e intimado a dizer, de maneira certa, a data da criação do mundo. O filho do dr. Brás titubeia, gagueja, atrapalha-se. E por fim, com muito custo, responde: — 4.136 ... Boca que tal disseste! Houvera apenas um engano de dois anos... Uma ninharia... E no entanto, ó ferocidade pedagógica!, Olavo recebe, como castigo, meia dúzia de bolos. A reprimenda causa-lhe choro, amargura, humilhação, desespero. 34
E ele fica perguntando, a si próprio, por que Deus, sendo a suprema misericórdia, não se teria lembrado de criar o mundo dois anos mais cedo, a fim de lhe poupar a dor e o vexame daqueles bolos. O seu orgulho nunca mais iria esquecer nem perdoar a crueldade absurda de semelhante castigo. Desde então achou que o padre havia praticado um gesto abominável. Este sacerdote incomplacente, de férula em punho, rígido e inteiriço como aprumado monumento megalítico, era homem de poucas letras e de muita crença. Costumava classificar todos os indivíduos que lhe inspiravam desprezo com um simples e arrasador vocábulo: — Mação! Ele não dizia “maçom”, em hipótese alguma, como em geral quase todos dizem. Quando se abespinhava com alguém, só tinha mesmo esta palavra para fulminar os hereges, os vadios, os briguentos, os insubordinados: — Mação, mação! Tal palavra iria gravar-se, de forma indelével, na alma do menino Olavo, enchendo-a de profundo terror. O filho da modesta dona Delfina passará a tremer de susto diante dos símbolos cabalísticos das lojas maçônicas. Terá receio, sobretudo, do “Signo-de-Salomão”, isto é, da estrela de seis lados, cujo triângulo branco simboliza a Entidade Divina, o fogo espiritual, as forças da evolução, e cujo triângulo negro, oposto e complemento do primeiro, representa a criatura humana, os poderes da terra e a evolução regressiva. O significado exato do “Signo-de-Salomão” era ignorado totalmente por Olavo. Ele apenas enxergava algo de misterioso nas duas estrelas entrelaçadas... No colégio os alunos tinham um parlamento mirim, onde discutiam, todas as tardes, na hora do recreio, desde questões metafísicas até regras de gramática. A pequena assembléia contava com um presidente e dois secretários, que eram eleitos de sete em sete dias. E havia, além do mais, um rigoroso regimento interno. Os desmandos de linguagem recebiam, como pena, a expulsão perpétua do infrator. Aqueles fedelhos, mal saídos dos cueiros, tratavam-se por “excelência”, trocando difíceis mesuras e complicados salamaleques. Inúmeras ocasiões o padre Belmonte ia assistir à sessão. Cruzava as mãos sobre a respeitável barriga e, de face avermelhada pelo trabalho da digestão, se punha em estado de êxtase, estupidificado diante daqueles geniozinhos eloqüentes e precoces. Uma tarde — Olavo estava presente — discutiam se Calabar foi ou não foi traidor. Um jacobino de doze anos tecia o panegírico do mulato, porém um adversário, da mesma idade, dava-lhe apartes truculentos. A discussão atingiu tal ponto de acrimônia que o orador esbravejou: — Peço vênia a vossa excelência para lhe declarar que logo mais tenciono puxar-lhe as orelhas! O aparteante, no mesmo tom, respondeu: — E eu declaro a vossa excelência, com todo o respeito devido, que, à hora da saída, pretendo quebrar-lhe a cara! 35
Realmente, no momento da saída, em pleno largo do Rocio, os dois “parlamentares” se engalfinharam, trocando socos e pontapés...1 Olavo foi gago na infância, mas com força de vontade procurou corrigir esse defeito, lendo em voz alta os autores clássicos de sua predileção. Em tenra idade o mundo já lhe parecia mau e hostil. Não encontrava quem pudesse dar-lhe uma explicação do que fosse a vida. As injustiças que ele sofria, “essas pequeninas injustiças que assombram a alma da criança e ficam eternamente doendo na alma do homem”, adquiriam, aos seus olhos, contornos exagerados, fornecendo-lhe a impressão de serem tremendas e monstruosas. Muitas vezes julgava-se mais infeliz do que os escravos, que ele via acorrentados e submetidos a torturas, e do que os burros de carga, que deparava nas ruas, a ofegar sob as selvagens chicotadas. O seu espírito, embora ainda infantil, sofria inquietações, revoltas, desesperos. A existência se lhe afigurava uma coisa sórdida, um ergástulo repugnante, horrível, em que tudo era severo e duro, e sobre a qual pairava, “ameaçadora, numa eterna inclemência, a sombra da negra palmatória do cônego Belmonte”. Ah, o terror que lhe infundia esse instrumento de castigo! Uma ocasião, quando já havia sentido despertar o prurido poético, Olavo compôs uns versos e, sem terminá-los, adormeceu. O padre, descobrindo aquela “falta imperdoável”, aquele “delito infamante”, decidiu castigá-lo com a sua pesada palmatória. Em outra ocasião o sacerdote notou que Olavo quase não freqüentava as missas e que, embora tivesse memória invejável, desconhecia bastante o catecismo. O padre o chamou ao seu gabinete e passou-lhe uma enérgica descompostura. O menino ultra-sensível foi fazer queixa ao pai. Mas o cônego, apesar disso, voltou a repreendê-lo. Desta feita, porém, Olavo retruca: — Senhor padre, eu creio em Deus, sou religioso, mas a questão é que toda vez que ouço o reverendo falar, eu me lembro que infunde mais medo à criança do que propriamente fé. Nessas condições, vou à missa com um olho no Evangelho e outro na palmatória de vossa reverendíssima. Esse menino precoce, de inteligência brilhante e sensibilidade à flor da pele, fica todo atento, entretanto, quando acompanha, à noite, a leitura de folhetins que sua mãe faz em voz alta. Olavo, na escola, vai encontrar um lenitivo para os seus aborrecimentos nos encantadores livros de Júlio Verne. Todos os alunos, aliás, gostavam de ler o escritor francês. Os seus livros passavam de mão em mão. Até na hora do estudo, no grande salão de paredes despidas, Bilac e seus companheiros se refugiavam no universo fabuloso do romancista que iria influenciar o alto destino de homens como Charcot, Lyautey e o almirante Byrd. Enquanto o ventrudo padre Belmonte dormia a sesta na sua larga poltrona, e o bedel Sizenando, apaixonado pelo charadismo, tentava decifrar enigmas e 1
Bilac narrou cenas da sua infância em três livros: Crítica e fantasia, Ironia e piedade, e Últimas conferências e discursos.
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logogrifos, ele, Olavo Bilac, ia contemplando paisagens desconhecidas, correndo perigos inauditos, curtindo frio no Pólo, fome em ilhas desertas, sede devoradora nas infinitas extensões da África... Graças ao criador de Miguel Strogoff, aquela criança sonhadora podia dormir “à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da índia”. E perder-se em florestas virgens, navegar no fundo do oceano, no centro de “vegetações fantásticas e animais imensos”, ouvir o estrondo da queda do Niágara, enjoar-se com as oscilações de um balão “no meio do céu formigante de astros”. O efeito mágico só terminava quando Olavo lia a última linha de qualquer um desses romances. Então ele se via de novo na sala funérea, melancólica, a ouvir o ofego do padre e o andar do bedel maníaco por charadas. Confessaria, depois, que era como um pano de boca a descer “sobre o palco da ilusão, matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento...” Em cada fim de ano surgia, para Bilac, a perspectiva agradável das férias, mas o tédio de ter de suportar o colégio tornava-se um suplício indizível. Mal podia escutar as preleções do mestre. Sentia-se distraído. Deixava vagar o pensamento, olhando, através das janelas da sala de aula, o céu azul e as árvores verdes. O mundo externo lhe falava de liberdade, de folguedos. Enquanto a voz do professor ia arrastando-se, monótona, no ar pesado e adusto, ele, ansioso, contava os dias que ainda tinha pela frente, a fim de entrar na época cor-de-rosa das férias. Quando o mestre percebia, ao cabo de certo tempo, o alheamento dos seus alunos, mandava fechar as janelas e, como castigo, prolongava a soporífera lição. Não foi sem motivo que Raul Pompéia escreveu: “O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.” Inúmeras vezes, ao sair do lar rumo à escola, com os livros na maleta e a alma risonha, prazenteira, Olavo deparava, na rua, com um espetáculo comovente: as procissões de escravos que irrompiam das famigeradas “casas de comissão”. Eram seres maltrapilhos, cobertos de chagas, destinados aos trabalhos rudes do eito. Vários desses infelizes, por serem comedores de terra, carregavam no rosto uma máscara de ferro. Outros, bem velhos, de carapinhas embranquecidas, andavam tortos, aos tremeliques, tendo à cabeça cestos imundos para o serviço do “ganho”. O menino também via molecotes nus, verdadeiros saquinhos de ossos, a sugar, cheios de avidez, seios murchos, sem leite. E Olavo ficava paralisado de surpresa, de assombro.
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C A P Í T U L O II VOZES DA ADOLESCÊNCIA Crê no Dever e na Virtude! É um combate insano e rude A vida, em que tu vais entrar. Mas, sendo bom, com esse escudo, Serás feliz, vencerás tudo: Quem nasce, vem para lutar. E crê na Pátria! Inda que a vejas, Presa de idéias malfazejas, Em qualquer época, infeliz, — Não a abandones! porque a Glória Inda hás de ver numa vitória Mudar cada uma cicatriz. E crê no Bem! Inda que, um dia, No desespero e na agonia, Mais desgraçado que ninguém, Te vejas pobre e injuriado, De toda a gente desprezado, — Perdoa o mal! E crê no Bem! E crê no Amor! Se pode a guerra Cobrir de sangue toda a terra, Levando a tudo a assolação, — Mais pode, límpida e sublime, Caindo sobre um grande crime Uma palavra de perdão! (“O credo”)
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Ó natureza! Ó mãe piedosa e pura! Ó cruel, implacável assassina! — Mãe, que o veneno e o bálsamo propina E os sorrisos às lágrimas mistura! Pois o berço, onde a boca pequenina Abre o infante a sorrir, é a miniatura, A vaga imagem de uma sepultura, O gérmen vivo de uma atroz ruína?! Sempre o contraste! Pássaros cantando Sobre túmulos... flores sobre a face De ascosas águas pútridas boiando... Anda a tristeza ao lado da alegria... E esse teu seio, de onde a noite nasce, É o mesmo seio de onde nasce o dia... (“Pomba e chacal”)
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RIO DE JANEIRO, apesar de ser a capital de um vasto Império, era uma cidade pacata, de feições provincianas. Os leiteiros, de manhã cedo, estacionavam com suas vacas nas portas das moradias, para chamar os fregueses. As carroças de água em pipas rodavam aos solavancos pelas ruas pedregosas. Os cães, em matilha, ganindo, subiam e desciam as vias públicas, enquanto o chinês, de passinhos curtos, ligeiros, passava apregoando peixe, e a doceira, em geral uma negra-mina, exibindo o seu tabuleiro, gritava louvores às cocadinhas e ao arroz-de-leite. Naquele tempo o dinheiro tinha valor. Com um vintém, qualquer miserável podia comprar um pão, duas bananas ou um pé-de-moleque. Na saída dos colégios os alunos encontravam o preto das empadinhas, o moleque vendedor de puxa-puxa e de amendoim torrado. Havia fartura. Com vinte mil-réis, informa Coelho Neto, “ia-se à praia do Peixe, enchia-se um cesto de compras e podia-se convidar Luculo”. O aluguel das casas era baratíssimo. Um sobrado e loja na rua dos Ourives custava trinta e poucos mil-réis. As famílias gostavam de recepcionar nas amplas “salas de visita”. À tardinha, as moças românticas permaneciam com os cotovelos fincados no parapeito das janelas. E à noite, o chefe de família jogava cartas ou gamão. As boas donas-de-casa procuravam escolher cozinheiras que soubessem preparar, com arte e perícia, uma deliciosa galinha de molho pardo, um apetitoso tutu de feijão, um arroz-doce que se desfizesse na boca, uma perfumada e sedutora canjica de milho verde. Isto sem falar na feijoada completa, no mocotó, no siri 39
recheado, no porco à mineira, no caruru, no pirão e na pamonha. Esses pratos eram comuns na época da infância e da adolescência de Olavo. No Rio semicolonial, mas tão pitoresco, da sua idade verde, um jovem poderia ter instantes de deslumbramento. Nas ruas estreitas, repletas de imundície, às vezes ressoavam notas agudas de clarins. O povo se alvoroçava. Surgiam, de modo inopinado, vários batedores precedendo a desengonçada carruagem onde d. Pedro II, de aspecto imponente, barbas longas, claras, a contrastar com o seu peito reverberante de medalhas de ouro, passava acompanhado de um esquadrão a galope, de espadas desembainhadas a cintilarem sob a luz do sol. Em outras ocasiões, porém, o monarca vinha sonolento, quase a cochilar, trajando uma simples sobrecasaca. Mostrava, nesses momentos, um ar mais burguês, de rei filósofo em vilegiatura. Depois de concluir o curso do padre Belmonte, o filho do dr. Brás é matriculado no Colégio Vitório, casa de ensino situada na rua Gonçalves Dias. Iria impressioná-lo, de forma viva, a figura do diretor desse estabelecimento. O conselheiro Vitório era um tipo capaz de inspirar Balzac. Andava sempre vestido de linho branco e possuía também uma venerável barba branca. No entanto, esse personagem todo claro, alvinitente, que parecia ter tomado um banho de cal, convertia-se num carrasco diabólico quando empunhava a terrível “santa luzia”, uma palmatória negra, dura, de cinco pontas. Bilac experimentará, como tantos outros, os bolos da “santa luzia”... As lembranças da guerra do Paraguai, narradas por alguns veteranos, ainda alimentavam os instintos bélicos do menino que ia penetrando na adolescência. Freqüentava a casa do seu progenitor, um homem já grisalho, que nunca se vestia à paisana. Aparecia sempre com uma velha farda bem escovada, cheia de galões, os quais fulguravam à noite, sob a claridade do querosene. Olavo nutria por ele uma profunda admiração. Abandonava os seus divertimentos, os seus livros de estudo, esquecendo-se até de comer as torradas do chá. Aqueles galões o fascinavam. O homem devia ser um militar glorioso, que participara de inúmeras batalhas. Um dia, morto de curiosidade, Olavo perguntou ao amigo do seu pai: — Diga-me uma coisa: você matou muita gente nas guerras? O freqüentador da casa ficou sem jeito, tossiu, ruborizou-se, e não disse nada. Mas uma pessoa da família, sorrindo, explicou: — Este menino tem cada tolice... Menino!, “seu” coronel nunca matou ninguém!, “seu” coronel é da Guarda Nacional! Ao obter distinções em exames, Olavo rejubila. Sabe que seus progressos no estudo vão alegrar o coração do pai, que anseia por vê-lo formado em medicina. Nesse tempo, de estudante de preparatórios, o rapazinho ingressa no grêmio literário do Externato Jásper. Esta sociedade escolar, que discutia problemas de filosofia, de história e de arte, chamava-se “Clube Demóstenes”. Possuía cerca de trinta sócios. E todos tinham idade que variava entre os quatorze e os dezoito anos. Eram mocinhos pretensiosos, de espírito revolucionário. Bilac participava das sessões agitadas, em que se discutia a existência da alma. Cinco ou seis sócios, que 40
acreditavam em Deus, defendiam a imortalidade do espírito. Entretanto, a maioria se compunha de materialistas. Durante meses houve discussões. Estas degeneraram em desaforos, invectivas, descomposturas... A sessão acabava, não raro, em brigas corporais. Finalmente encerrou-se a disputa, tendo o “Clube Demóstenes” decretado, com cinco ou seis votos contrários, as seguintes verdades: 1º — que não havia Deus. 2º — que a alma não existia. Bilac era ainda menino quando viu o marechal Osório, em carruagem descoberta, visitar o largo do Capim. O bravo soldado, que tanto se distinguira na batalha do Avaí, estava vestido à paisana “e a sua face repousada, de cores animadas pelo ar frio dos pampas, tinha uma bonomia cativante”. Olavo sofreu uma decepção terrível, apesar de sentir simpatia pelo marquês. É que a sua imaginação e o seu romantismo exigiam um militar de aspecto feroz e organismo hercúleo, “de cabeça dominadora e olhar de águia, brandindo uma espada formidável”, tendo o corpo apertado numa farda “cujos debruns vermelhos fizessem lembrar laivos de sangue paraguaio”. Em vez desse guerreiro portentoso, aparecia diante dos seus olhos “um velhinho risonho, de ar patriarcal e sobrecasaca na moda”. Os devaneios perturbavam a alma do impressionável adolescente. Daí o seu aspecto distraído, as variações de caráter, os súbitos acessos de interesse pelo estudo, os períodos de indolência e de apatia, as vagas torturas de uma sensibilidade que despertava e não se compreendia a si própria. É nessa fase que começa a desabrochar, com maior evidência, o seu talento poético. Os debates no “Clube Demóstenes” contribuíram, sem dúvida, para acentuar a sua predileção pela literatura. Segundo Martins Fontes, este foi um dos primeiros sonetos que Bilac escreveu: Asas ao vento abertas, a gaivota Parte, buscando a doce companheira; Roçando as plumas na azulada esteira Pousa distante, na pequena ilhota. Ali, dos mares na amplidão ignota, Oculto pela encosta da pedreira, Tem ela o ninho pendurado à beira Da água, entre a relva que viçosa brota. Quando a procela, nos brutais arrancos, Açoita irada do rochedo os flancos, E os ventos uivam com fragor profundo; Sem temor, em seu ninho, ela, quieta, É a imagem pura da alma do poeta, Tranqüila, em face das paixões do mundo. 41
O Rio de Janeiro daquele tempo não era uma cidade confortável. A viajante austríaca Ida Pfeiffer já se havia queixado, em suas impressões de viagem, da quantidade de formigas, baratas, bichos-do-pé e pernilongos, que encontrara na terra carioca. O Rio assemelhava-se, neste ponto, às urbes africanas. Mulatas de ancas largas, de leque em punho, com o corpo sarapintado por panos de cores berrantes, atravessavam, garbosas, as ruas estreitas, atulhadas de poeira. Negros esbaforidos, vergados ao peso de enormes fardos, ritmavam seus passos pelo som monótono de melopéias estridentes. Apenas a rua do Ouvidor, rutilante de luxo, parecia uma artéria parisiense transplantada para os trópicos. Os episódios da escravidão deixaram, desde cedo, um doloroso vestígio na alma do rapazinho. O futuro confidente de estrelas nunca mais poderia esquecer as cenas deprimentes que presenciou. Nessa época de opróbrio, anterior à luminosa data de 13 de maio de 1888, Bilac conheceu um singular fazendeiro italiano. Esse estrangeiro, apesar de ser um poderoso senhor de escravos, era um feiticista da palavra “liberdade”. Tinha vindo, na infância, para a América do Sul, e, em sua mocidade, estivera no Uruguai e na Argentina, participando das guerras civis dessas duas nações. Pelejara contra dois tiranos: Rosas e Francia. Depois disso lhe restou, no espírito, um amor apaixonado pela liberdade. Se ouvia falar nela, logo ficava doido de entusiasmo. Os seus olhos fulguravam, as suas faces se coloriam de intenso rubor, o seu sangue, em estos de febre, precipitava-se, célere, nas veias. Após as peripécias em que se vira envolvido, tornou-se, no Brasil, proprietário de uma fazenda. Dedicara-se ao cultivo do café, ajudado por cinqüenta escravos vigorosos. Assim que a aurora surgia, apanhava o seu precioso rebenque e ia em direção ao lugar onde os cativos mourejavam. Tal rebenque constituía uma relíquia do tempo em que lutara no sul. Na sua fazenda não existia feitor encarregado de incutir disciplina por meio do chicote, pois ele próprio, o audaz fazendeiro, nos momentos necessários, aplicava a punição. Entretanto, aquilo que mais havia causado espanto ao jovem Olavo Bilac, foi ter visto, na velha prata fosca que encastoava o famoso relho, esta expressiva frase, artisticamente gravada a buril: “Viva la libertá!” Em outra ocasião, Bilac estava convalescendo numa fazenda do interior, na qual trabalhavam mais de trezentos escravos. O feitor dessa fazenda era um mulato elegante e de boa compleição, dono de uma fisionomia dura e de “músculos mais duros ainda”. Embora fosse bem robusto, quando chegava a noite, sentia-se exaurido. É que ele surrava trezentos homens por dia, tarefa sobremodo ingente, capaz de deixar em frangalhos qualquer gigante de força descomunal... Certo dia, Olavo encontra o feitor a cavalo, em roupa de viagem, acompanhado de muares, sobre cujos lombos as suas canastras balouçavam. Vamos reproduzir, conforme Bilac depois narrou, o diálogo do jovem poeta com o feitor: — Que é isso, “seu” João? Vai viajar? — Vou, “seu” doutor! Pedi uma licença e vou descansar, que não posso mais! — Está aborrecido do ofício? — indagou Olavo. 42
— Qual, “seu” moço! — disse o homem. — O trabalho honrado nunca aborrece... Mas cansa! Tenho os braços espatifados: vou descansar um bocado! Passei o vergalho ao meu substituto legal. O substituto do carrasco era um sujeito chamado Manuel, igualmente mulato e provido de sólida musculatura, talvez um pouco mais fraco, porém dono do mesmo entranhado amor à profissão. E despedindo-se de Olavo, o feitor exclamou: — Adeusinho, “seu” doutor! Vou refazer as forças... Olhe que estes negros dão cabo de um homem! — Acredito, “seu” João, acredito! — respondeu Bilac. — É o diabo ter a gente de ganhar o pão à custa do suor das costas dos outros... Passe bem! O feitor, dando de rédea ao cavalo, partiu.2 Estas cenas da escravidão, presenciadas pelo jovem estudante, iam-se gravando, de modo indelével, no seu íntimo. O Abolicionismo já tinha sido pregado, desde 1758, pelo padre Manuel Ribeiro da Rocha. Também o bispo Azeredo Coutinho, criador dos estudos econômicos em Portugal, havia defendido a emancipação dos escravos. A idéia, aliás, figurou no programa da Conjuração Mineira e, da mesma forma, no projeto da Constituição de 1823, da lavra de José Bonifácio. Grande passo, neste sentido, já fora dado com a Lei da Supressão do Tráfico, da autoria de Eusébio de Queiroz, e com a Lei do Ventre Livre, concebida pelo visconde do Rio Branco. Apesar desses progressos, o dia da redenção ainda parecia estar distante. Multiplicavam-se, durante a adolescência e a mocidade de Olavo, os requintes de crueldade dos senhores de escravos. Os cativos sofriam toda espécie de torturas. Eram metidos no tronco, marcados a fogo, amordaçados a ferro, algemados pelo pescoço, pulsos e tornozelos. E, além do mais, recebiam sovas tremendas de palmatória, azorrague ou bacalhau. Também serviam, como instrumento de castigo, o umbigo de boi e a vara de guiné, untada de urucum e banha de cobra... Um dos suplícios mais comuns era o que se chamava “anjinho”. Consistia num laço de cordel encerado, aplicado na raiz das unhas das mãos e apertado, aos poucos, por duas pessoas. O escravo, sob o efeito dessa tortura chinesa, urrava de dor, soltava berros pavorosos... As idéias abolicionistas e republicanas de Olavo teriam origem no choque de sua sensibilidade diante das cenas vergonhosas da escravidão, mas o dr. Brás, sendo monarquista e conservador, não enxergaria, com bons olhos, essas inclinações do filho. Homem austero, de princípios inabaláveis, alimentava ojeriza pelos poetas, apodando-os de “vagabundos incorrigíveis e incapazes”. Aos quinze anos, Olavo conclui os preparatórios. Sua cabeça está povoada de sonhos e ambiciona formar-se em Direito para, em seguida, ingressar na carreira diplomática. Quer fugir da rotina de todos os dias. Por isto deseja percorrer outros países, admirar outras paisagens. Talvez já tivesse lido este trecho de As mil e uma noites: 2
Reminiscência de Bilac no volume Crítica e fantasia.
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