Vida e poesia de Olavo Bilac

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FERNANDO JORGE

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E OESIA DE

O L AV O B I L A C 5ª edição, revista e aumentada Introdução de Menotti Del Picchia

novo século


Copyright © 2007 by Fernando Jorge

Direção Geral Supervisão Editorial Editoração Eletrônica Capa Revisão

Nilda Campos Vasconcelos Silvia Segóvia Sergio Gzeschnik Guilherme Xavier José Ricardo Kobayashi Cristiane Mezzari

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jorge, Fernando Vida e poesia de Olavo Bilac / Fernando Jorge; introdução de Menotti Del Picchia. — 5ª ed. rev. e aum. — Osasco, SP : Novo Século Editora, 2007. Bibliografia. 1. Bilac, Olavo, 1865-1918 2. Poesia brasileira I. Título.

07-1075

CDD -869.91 -928.6991 Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura brasileira 869.91 2. Poetas brasileiros : Biografia 928.6991

2007 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei. Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à Novo Século Editora Ltda. Av. Aurora Soares Barbosa, 405 – 2º andar – Osasco – SP – CEP 06023-010 Fone (11) 3699-7107 www.novoseculo.com.br editor@novoseculo.com.br


In memoriam, ao meu dinâmico e inteligente amigo ELI BEHAR, que me incentivou a escrever este livro sobre a agitadíssima vida de OLAVO BILAC.



DA BIOGRAFIA E DE OLAVO BILAC

O

lavo Bilac tem agora, através do carinho de Fernando Jorge — o consagrado e premiado evocador de O Aleijadinho, sua vida, sua obra, sua época, seu gênio — uma nova encarnação biográfica. É interessante registrar como a sensibilidade e o talento de um moço da presente geração literária focaliza a figura do poeta que foi o mais alto expoente lírico da sua época. Uma biografia é um ponto de vista. Pode ela de tal forma recriar uma vida que essa demiurgia literária é capaz de fazer reviver, com a carne das palavras, uma personalidade nova, não raro diversa, senão mesmo avessa, daquela que se quis evocar. Nesta biografia, Bilac não corre tal risco. Fernando Jorge, escritor de raça, procurou retratar, com um máximo de fidelidade, a figura do grande poeta. Ao receber, na Academia Brasileira de Letras, o exato e brilhante biógrafo de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, o escritor Luís Viana Filho, tive ensejo de esclarecer as preocupações que me causam as biografias. Disse então, entre outras coisas: “Um biógrafo pode ser um indivíduo mágico. Com uns fragmentos de lápide do templo de Al-Ubaid, umas tradições quase míticas da gente sumeriana e algumas hipóteses, é capaz de retratar o chefe da primeira dinastia de Ur, como Cuvier, de um osso fossilizado, reconstruía a estrutura de um brontosáurio. Há uma anedota em que um filho com muita ternura e pouco miolo pediu a um pintor que lhe fizesse um retrato do pai falecido. ‘Tem fotografia dele?’ ‘Não’. ‘Algum desenho?’ ‘Não’. E deu ao pintor notícias somáticas do progenitor morto: bigode grande e preto, testa curta, nariz rombudo. Feita a pintura com tais ingredientes, o filho, ao ver a obra, quase desfaleceu decepcionado: ‘Oh! o meu pobre pai como está mudado!...’ Eu já deparei com vários Napoleões ‘muito mudados!’. Uns épicos, de perfil de águia em vôo desferido, como no quadro de David, todos resplandecentes de sonho e de glória. Outros, vulpinos e calculistas, esgueirando-se pela política entre Talleyrand serviçal e escorregadio e Fouché tratante e policial, a arrastar uma desaçaimada fome de poder, tendo aos calcanhares a matilha da família esfomeada. Qual, dentro dessas centenas de corpos fatídicos vivendo na carne biográfica das palavras, é o pálido cadete de Brienne, o conspirador vitorioso de 18 Brumário e o estrategista genial de Marengo? O meu Lincoln era o lenhador longo, magro e 11


atlético, estranho morcego funéreo flabelando as abas da sobrecasaca desalinhada, limpo e reto de alma, soturno e introvertido de espírito. O amor o tornara romântico e pusera lágrimas que estriavam as chanfras da máscara talhada em ângulos como estalactites pingando em anfractuosidade de rochas. Estóico na dor, hábil no governo, assistia, impávido, o drama do seu povo, integrado no ideal de lavar na terra a mancha das discriminações raciais. Como, porém, o manipulou o popularíssimo Dale Carnegie? Um cidadão pouco asseado e displicente, infelicitado por uma esposa ciumenta, neurótica e negocista, renteando pela inépcia no governo, vencendo pela surpresa de um acaso a parada política e ganhando a guerra mais pela testarudez que pela genialidade. Os biógrafos são senhores da arte quase divina de recriar as criaturas, fazer das cinzas das suas memórias carne e nervos, ação e espírito, para nos dar como nos deu, por exemplo, Maurois, o fidalgo judeu ítalo-britânico Disraeli, vivo e gracioso, desesperando Gladstone com sua malícia política e encantando a grande Rainha com um madrigal ou uma rosa. Que linda coisa: um criador de império arrulhando versos... Seria isso ou seria, num disfarce de poeta, um voraz imperialista falando em cifras e arquitetando, à sombra da esquadra inglesa, expedições predatórias? Na mão dos biógrafos está o poder de fazer-nos ridículos ou grandes! A nossa ressurreição espectral está na força da sua simpatia e na esperança da sua integridade, ou na autenticidade dos testemunhos e dos documentos, porque biografia é apenas História. E o que é História, essa memória congelada no tempo, se não um admitir que ‘sim’ de alguma coisa que pode ser substancialmente ‘não’? Lembremo-nos daquela fina sátira de Daudet — o enciumado inimigo das Academias — ao ironizar o infeliz ‘imortal’ Astier-Rehu, fazendo-o revolucionar a história da França baseado, candidamente, em textos e pergaminhos gatafunhados por um refinado falsário. História pode ser ‘história’, no pessimismo bem-humorado do povo. O selo da sua autenticidade depende de mil circunstâncias. Homero funde o humano com o divino e a realidade às vezes se esfuma em mito, na fuga surrealista de uma transferência de planos. Nesses mitos vai, não raro, o biógrafo destacar o herói, compor-lhe a vida, como as desses reis fabulosos, Menelau, Édipo, Numa Pompílio, cuja essência é um hibridismo paradoxal de humano e social porque, como mitos, são criaturas que incorporaram, na sua essência, seu drama pessoal e o espírito do seu tempo transformado em alegoria. Biografia pede cultura e honestidade: prudência na escolha do material e imparcialidade no expor. Nunca me esqueço, quando penso na história — pois biografia não é mais que a história de uma vida e a História, no conceito carlyliano, uma seqüência de biografias — do cético e indulgente Anatole France nas páginas maliciosas da Ile des pinguins, nas quais uma hetaira se transforma em santa e se sagra, nos altares, como Santa Orberose, somente porque as partes mais ondulantes do seu corpo eram famosas por terem a graça móvel das ondas e a cor cálida das rosas. Entre nós que se tem feito no nosso Tiradentes? E Calabar, Judas cívico ou herói frustrado, manipulado ao gosto das preferências passionais ou políticas, ora acusado da sórdida felonia de quem trai o próprio berço, ora redimido na sua 12


defecção por se lhe atribuir o sonho de um futuro diferente para seu país, isento das humilhações da servidão reinol? Como pode o biógrafo fixar ‘a verdade’ do biografado? Somente ‘Deus Todo-poderoso’, no dizer de Whitman, produz, com sua divina criação, a verdade de uma criatura, porque a verdade é uma essência e a visão humana dessa verdade, uma vidência, portanto, um espelhismo. Como vimos, cinemático nas suas transformações corporais e psíquicas é o modelo do biógrafo; cinemática a evolução mental e temperamental do indivíduo exposta ao meio social, também este cinemático. Conclusão: o biógrafo é um caçador que desfere seu tiro em ave em pleno vôo, fundido seu vulto na bruma, tão instável, tão múltipla e, por isso mesmo, tão infixa a personalidade à qual procura dar a constante de um retrato. Pode atirar numa pomba e acertar num marreco. Na realidade uma alma é um ponto de vista. Qual é a personagem que sai autêntica e imutável de uma biografia? Somente as criaturas ideais. Na verdade — e Pirandello tinha razão — realidade integral é apenas a “personagem” no puro sentido da criação literária. Aliás, tais personagens, quando vivas da vida que o consenso unânime lhes dá, são as únicas definitivamente reais, porque infungíveis no seu atrito com o tempo. A personagem literária é o ‘ente de razão’ kantiano, vivendo sua inamolgável existência de arquétipo, ubíqua e universalmente presente, íntegra na carne da sua estrutura somática imaginada, carregada eternamente da mesma carga anímica. Não flutua como homem ao vento das opiniões e das necessidades, o qual será fatalmente inúmero e irrepresável para seus biógrafos, portanto parcela ou instante de si mesmo, mas não seu todo vibrátil. A personagem, porém, não muda. Não oferece ângulos na sua estática de criação intemporal, não atingida pelo fluxo e refluxo das opiniões, não violada na sua imortal contextura pelo desgaste implacável do tempo. Essa biografia, a do ‘personagem’, é a única que pode oferecer, com segurança, o selo da autenticidade. Exemplo: D. Quixote de la Mancha...” Esta esplêndida biografia de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac — legítimo Príncipe dos Poetas do seu tempo — traz chancela de autenticidade. O jovem autor, já consagrado mestre no gênero, com suas Vidas de grandes pintores do Brasil — honesto Vasari dos artistas plásticos nacionais — não quis inventar um Bilac a seu gosto e capricho, numa dessas muito comuns mágicas intelectuais das quais já foi vítima nosso Castro Alves. O baiano condoreiro, vate participante e polêmico que era, e já transformado em mito, oferecia ângulos para deformações, apesar da sua curta e fulgurante vida. A atmosfera romântica que respirou com sua geração, sua veemência passional, a febre de corpo e de espírito que o requeimou, deram aos seus biógrafos mais que uma criatura notável e excepcional, um fatalizado personagem de drama. Um Byron patrício. Bilac foi o avesso. Foi por excelência um poeta urbano. Sua biografia vem traçada pelos passos de uma vida normal, fácil de ser rastreada no desdobrar cotidiano dos seus dias; os do frustrado médico que abandona a escola de medicina já quase na altura de receber o diploma, como os do aluno da famosa Faculdade de Direito de São Paulo, que não chega a ser bacharel porque, no fundo, temperamento 13


boêmio e visceralmente artista, o que ele realmente aspira é ser perpetuamente estudante. A cidade — a Guanabara da paisagem magna e das rodas boêmias — fora seu mundo. A cultura nitidamente urbana da metrópole, inspirada, quer na vida social, quer nas rodas literárias, pelo espírito gaulês, e informada pelos artistas da França, é que condiciona a musa do poeta. É o espírito litorâneo, contrastando com a cultura da hinterlândia que nutre o lírico da “Via-Láctea”. Bilac parece sentir alegria pelo campo. Daí ser ele a antítese de Gonçalves Dias e Varela, do primeiro que tentava exprimir uma linguagem patrícia ao tomar Numa por Juno, isto é, o indianismo de torna viagem através do romantismo do bon sauvage, como expressão nacionalista de uma poesia, e do segundo, esse mais integrado no cosmo bárbaro do que ainda havia de virgem na paisagem e no homem do sertão. Como tal, Olavo Bilac seria fatalmente envolvido pela atmosfera parnasiana dominante na França, fascinado pelo requinte intelectualizado da forma, cuja receita iria buscar em Gautier. Essa forma, polida, policiada, geométrica, não podia ser um instrumento bárbaro capaz de exprimir a violência ainda selvagem da terra e do homem do interior. Daí criar ele, com requintes de grande artesão, uma poesia de evasão, repetindo a temática dos fidalgos artistas parnasianos, só aflorando temas nacionais — “A morte de Tapir”, “O caçador de esmeraldas”, etc. — com a mesma ênfase com que descrevia a destruição de Cartago e a “Tentação de Xenócrates”. Dele, no ciclo poemático da “República dos Estados Unidos do Brasil”, ao historiar nossos expoentes culturais, dissemos: “... Amo teu lirismo que ouve estrelas, tua devoção à forma vazada em tercetos, o drama burguês das tuas donzelas que moram nas casas geométricas dos teus sonetos; teu sexualismo intranqüilo, teu parnasianismo servil e tua paixão pela pureza do estilo pelo qual ainda há suicídios no Brasil. No hino nacional do teu civismo ufano vibro de entusiasmos revéis e pasmo ante o teu milagre de Tirteu provinciano empilhando de Jecas os quartéis. Presidiário da cidade, tua existência foi um drama sem cor, sem surtos, sem paixões, picado pelos pernilongos da maledicência que pululam, aos enxames, nos cafés e redações.

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O feitiço mágico do sertão brasileiro não te seduziu e ignoraste o drama do interior mortal e trágico dentro do qual o meu Brasil surgiu. Mentalidade cosmopolita, minha terra em teus poemas sensuais quis se anunciar numa alvorada, mas amavas demais a frase bonita, a rima complicada, e minha terra é bárbara, áspera e morena, e a arte medida é pequena para cantar uma terra grande demais. A forma irreverente com que tratávamos o poeta máximo de sua geração era, para nós, os de 22, uma reverência. Discuti-lo era amá-lo. Era querê-lo integrado no nosso anseio de autonomia mental e no espírito de revisão dos valores nacionais que postulávamos, pois levávamos em conta a seiva do seu estro, a força do seu verbo, o ímpeto passional dos seus poemas e sua mestria de artesão, que, no tempo, o enfileiraram entre as grandes vozes líricas da América: Rubén Darío, Amado Nervo, Alfonsina Storni, Gabriela Mistral, estas mais jovens. Mário de Andrade, em 1921, com revolucionários olhos modernistas, fez minudente análise da poemática do artista perfeito de “O caçador de esmeraldas”. Do parnasiano, concluiu: “Bilac reuniu na sua obra todos os artifícios e perfeições da Beleza, sob o ponto de vista formal. Assim sendo, considero-o o maior entre os parnasianos. Maior para o Brasil. Outro nenhum existe, que se lhe compare na língua e, mesmo fora desta, poucos emparelham com ele.” Esta a justiça que nossa geração de 22 prestava ao líder parnasiano. A restrição que lhe fazíamos era por vê-lo limitar seu estro ao rígido estetismo da escola na qual, entre nós, era pontífice. Mário, porém, adivinhava nele, já na altura melancólica e profunda da Tarde, o vôo mais largo, fora da clausura rígida da “deusa serena, a serena Forma”, movendo já suas asas numa atmosfera de sonho. Esta biografia de Fernando Jorge, que com erudição, sensibilidade e amor reevoca a figura do artista permanentemente vivo da “Via-Láctea”, “Sarças de fogo”, Tarde, é uma oportunidade — diante da arte de hoje tão representativa de um fim caótico de ciclo social — para se reavaliar a grandeza do artista, visto, neste prefácio, com os olhos da geração de 22 e estudado, no texto desta magnífica biografia, pela inteligência sensível, culta e moça de um esteta e de um ensaísta de 1963. MENOTTI DEL PICCHIA

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“Escritores há cuja vida pode ser totalmente separada de sua obra. Outros, pelo contrário, têm-na tão unida à obra que não é possível, a rigor, separá-las. Creio ser esse o caso de Olavo Bilac. Sua vida e sua obra, entre 1865 e 1918, datas do seu nascimento e de sua morte, se acham de tal maneira entrelaçadas que é muito difícil considerá-las em separado.” ALCEU AMOROSO LIMA

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CAPÍTULO I OS INQUIETOS CAMINHOS DA INFÂNCIA O berço em que, adormecido, Repousa um recém-nascido, Sob o cortinado e o véu, Parece que representa, Para a mamãe que o acalenta, Um pedacinho do céu. Que júbilo, quando, um dia, A criança principia, Aos tombos, a engatinhar... Quando, agarrada às cadeiras, Agita-se horas inteiras Não sabendo caminhar! Depois, a andar já começa, E pelos móveis tropeça, Quer correr, vacila, cai... Depois, a boca entreabrindo, Vai pouco a pouco sorrindo, Dizendo: “mamãe”... “papai”... Vai crescendo. Forte e bela, Corre a casa, tagarela, Tudo escuta, tudo vê... Fica esperta e inteligente... E dão-lhe, então, de presente, Uma carta de A. B. C... (“A infância”)

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Sei que um dia não há (e isso é bastante A esta saudade, mãe!) em que a teu lado Sentir não julgues minha sombra errante, Passo a passo a seguir teu vulto amado. — Minha mãe! minha mãe! — a cada instante Ouves. Volves, em lágrimas banhado, O rosto, conhecendo soluçante Minha voz e meu passo costumado. E sentes alta noite no teu leito Minh’alma na tua alma repousando, Repousando meu peito no teu peito... E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho, E abres os braços trêmulos, chorando, Para nos braços apertar teu filho! (Soneto XXI da “Via-Láctea”)

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RANCISCO SOLANO LÓPEZ desenvolveu o seu espírito militarista na Europa, para onde tinha sido enviado, em 1854, como ministro do Paraguai. Comprou, no velho mundo, bastante munição e apetrechos bélicos. Acolhido generosamente por Napoleão III, o filho do ditador Carlos Antônio López ficou deslumbrado com a faustosa corte de Paris. Regressando ao país natal, após demorada estada em França, levava consigo duas coisas perturbadoras: uma ambição voraz de poderio e uma linda mulher, Elisa Alice Lynch, de quem se tornara amante. Quando seu progenitor morre, Francisco assume o governo do Paraguai. De modo simultâneo, ele começa a urdir planos fabulosos. Sonha em transformar sua nação num vasto império. Deseja ser “imperador do Prata”. Quer dar à terra em que nasceu uma saída para o oceano. Só há um estorvo, a impedir a concretização dos seus desígnios: é a pátria de d. Pedro II. Pouco importa, entretanto, este empecilho! Seu enérgico e defunto pai já lhe asseverara que dez mil paraguaios conquistariam, de forma fácil, o colossal Império do Brasil. Assim que se empossa na presidência da República, Francisco Solano López manda construir na Europa três couraçados e encomenda cinqüenta canhões. O país se converte num grande acampamento militar. Milhares de homens são armados até os dentes. Enquanto esperam as ordens do caudilho, afiam os sabres, fazem manobras, treinam a pontaria. Além do Brasil, o ditador pretende esmagar a Argentina e o Uruguai. Apenas aguarda o mais simples pretexto, a fim de declarar guerra ao Império e às duas repúblicas do Prata. O pai de Francisco, antes de falecer, deixou de lado a fanfarronice, recomendando ao filho, no testamento, prudência no trato das questões internacionais. 30


Mas o amante da bela madame Lynch é um impulsivo, um superambicioso faminto de glória. Por isto, em 1864, exige do Brasil que este cesse a sua intervenção no Uruguai, causada pelo despotismo de Aguirre. D. Pedro II não se intimida. López, rápido, sem prévia declaração de guerra, determina o aprisionamento, no porto de Assunção, do navio brasileiro Marquês de Olinda, que conduzia o presidente da província de Mato Grosso, o coronel de engenheiros Frederico Carneiro de Campos. O tirano ordena a invasão de Mato Grosso e da província do Rio Grande do Sul. Desrespeita, ainda por cima, a soberania da Argentina, invadindo-lhe a província de Corrientes. Forma-se, imediato, a Tríplice Aliança. O Império e as Repúblicas Argentina e do Uruguai se unem para vencer o ditador. É a longa e impiedosa guerra do Paraguai que se inicia.

✺✺✺ Em julho de 1865, o dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac deixa o seu lar, no Rio de Janeiro, com destino aos campos de luta. Ele parte integrando o 31º Batalhão dos Voluntários da Pátria. Tinha, na Corte, uma clínica muito freqüentada, e fora, sem prejuízo de suas atividades, nomeado cirurgião da Polícia Militar. Seguia, pode-se dizer, a tradição dos seus ancestrais, pois o seu bisavô, Jean Olivier Martin Bilac, havia sido médico das tropas do general Junot, quando este, no ano de 1807, capitaneou a primeira invasão francesa em Portugal. A esposa do honrado facultativo, dona Delfina Belmira dos Guimarães Bilac, nascera na Bahia. Ambos já possuíam uma filha, chamada Cora, porém aguardavam, em breve, outro rebento. Cinco meses após a sua partida, nasce no modesto sobrado da rua da Vala, a 16 de dezembro de 1865, o novo filho do cirurgião, que iria receber o nome de Olavo. D. Pedro II, três meses antes do nascimento dessa criança, juntamente com o general Mitre, entrara na cidade de Uruguaiana, ocupada por Estigarribia, o qual se rendeu, em companhia de seis mil homens, às forças aliadas. O menino vai crescer numa atmosfera de angústia. No seu lar, como em milhares de outros lares, havia tristeza, ansiedade, mas esses momentos de susto e melancolia são contrabalançados pelos instantes de êxito. Quando o almirante Barroso destrói a esquadra paraguaia na batalha do Riachuelo, a alma popular exulta de contentamento. E Rosendo Muniz Barreto, autor do “Cântico de Humaitá”, tornase o intérprete dos corações patrióticos, transbordantes de orgulho: Oh! Riachuelo! intervenção divina Vales para o Brasil vitorioso! Reviveram heróis de Salamina, Fez-se — novo Têmistocles — Barroso.

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Enquanto os soldados brasileiros se atolam nos charcos do sul, enfrentando a malária e as balas dos adversários, a imprensa paraguaia compara os generais do Império a vagarosas tartarugas, arrastando, com muito custo, pesadíssimas espadas... D. Pedro II era representado como um chimpanzé de coroa, a ostentar longas barbas... Um dos jornalecos de Assunção procurou, certa vez, definir os Aliados: Orientales... generales sin ejército! Brasileños ... ejército sin general! Argentinos... ni general, ni ejército! Os acontecimentos se precipitam, sucedem-se, à semelhança de vertiginoso calidoscópio: Osório derrota os paraguaios em Tuiuti, na mais sanguinolenta batalha da América do Sul; o forte de Curuzu é tomado pelos Aliados; fracassa a primeira investida contra a fortaleza de Curupaiti e no norte do Paraguai se efetua a trágica e heróica retirada da Laguna. O povo acompanha, febricitante, o desenrolar do conflito. Cada vitória é uma explosão de júbilo, embora, por outro lado, traga luto e lágrimas a várias famílias: O López subiu ao céu, Para a Deus pedir perdão; Os anjos deram-lhe pedras E São Pedro um bofetão... O López comeu pimenta, Pensando que não ardia, Agora está se queixando, Toda noite e todo dia... A mãe de Olavo, nesses dias incertos, mostra uma notável fortaleza de ânimo. Com paciência, coragem e resignação, vai educando o filho. É sempre ansiosa que abre as cartas enviadas pelo marido. Este, devido aos seus méritos, foi nomeado major em comissão do Corpo Especial da Corte, recebendo do governo imperial um expressivo elogio. Todavia, a peleja prossegue. Solano López continua a acreditar em sua invencibilidade. A um cidadão de Corrientes, chamado Vitor Silvero, o tirano havia dito: — O imperador do Brasil não tem soldados que possam deter o arranco do soldado paraguaio, nem que possam resistir aos reveses de uma campanha no Estado Oriental. Para essa campanha não tem mais soldados do que os rio-grandenses, e estes são republicanos, que saberão aproveitar tal ensejo para se tornarem independentes. E sobretudo, o imperador não possui hoje exército, e sua esquadra não é temível. 32


No entanto, apesar dessas bazófias, Caxias iniciara a famosa “marcha de flanco”, indo acampar em frente da poderosa fortaleza paraguaia de Humaitá. Daí por diante, à custa de muito sangue, de duros sacrifícios, os Aliados vão infligindo sucessivas derrotas ao inimigo. Os brasileiros, sob o comando do general Marques de Sousa, alcançam outra vitória em Tuiuti e, em seguida, forçam a passagem de Humaitá. Este baluarte, considerado inexpugnável, acaba caindo. Depois é a vez de Curupaiti. Caxias, guerreiro hábil, audacioso e pertinaz, vence o bravo general Caballero nas batalhas de ltororó e Avaí. Mas não cessam, nesses lugares, as suas vitórias. Ele derrota o próprio López em Lomas Valentinas e após tomar Angostura, penetra em Assunção, orgulhosa cidade fundada por João de Ayala e que foi, durante mais de um século, a indomável capital das colônias espanholas do rio da Prata. O conflito do Paraguai termina com a morte do ditador em Cerro Corá, o qual faleceu em conseqüência de um tiro disparado pelo soldado João Soares. Um alferes nortista, então, cortou a orelha esquerda do tirano, justificando-se desta maneira: — É uma promessa que fiz na minha terra: levar a orelha de López! Quando a carnificina chegou ao fim, a 1º de março de 1870, Olavo contava apenas quatro anos de idade. O menino, nessa época, vai assistir, em companhia da mãe, ao desembarque do 31º Batalhão dos Voluntários da Pátria. Atravessa as ruas apinhadas de povo. Das janelas vê as senhoras acenarem com os lenços. Escuta, vibrante, as cadências épicas de uma triunfal marcha de guerra. Que delírio, que entusiasmo! Os tambores rufam e os oficiais, de fardas cobertas de galões, se perfilam ao sol. A multidão, no porto, abre alas. No momento em que o batalhão estaca e cessa a música, o povo, frenético, prorrompe em aclamações. De súbito, porém, a banda lança aos ares os compassos arrebatadores do hino nacional. A bandeira brasileira, que se achava no centro de um pelotão, impelida por brando vento marítimo, agita-se, estremece, desdobra-se, ondeia, adquire uma soberba e esplêndida majestade. A criança viva e inteligente, emotiva e sonhadora, perante esse inesquecível espetáculo, principiou a compreender o significado grandioso do substantivo “pátria”. E ao avistar o pai pela primeira vez, com o peito adornado de medalhas, esta impressão se tornaria ainda mais acentuada. O dr. Brás Martins dos Guimarães Bilac é um homem de abundante cabeleira e olhar perscrutador. Tem a testa ampla, bigodes caídos e cavanhaque. Olavo vai crescendo a respirar, por toda a meninice, uma contagiante atmosfera de glória. Tudo que lembra a guerra do Paraguai o impressiona: as narrativas dos combates, as bandeiras rotas e ensangüentadas, as fardas vistosas e as condecorações reluzentes, os arcos de triunfo e os cortejos monumentais. Solano López, para ele, “era como a personificação do diabo, pérfido e cruel, assinando a sentença de morte da própria mãe, assassinando os irmãos, vivendo jubilosamente no meio das carnificinas”. Muitas vezes Olavo ouviu contar, nos serões domésticos, o que foi o embarque de d. Pedro II para Uruguaiana: a população carioca, em peso, aclamava o imperador, vociferando ameaças e pragas cabeludas contra os odientos paraguaios. 33


O ambiente de rancor em relação aos vencidos subsistiu por bastante tempo. A cidade ainda se cobria de luto, chorando os seus mortos. E o garoto, quando lhe falavam a respeito do Paraguai, experimentava um forte sentimento de repulsa e de cólera. À semelhança de quase todos os meninos da sua idade, Olavo ficava de olhos arregalados e respiração suspensa, ao escutar as narrativas dos horrores da guerra. Decerto sobrava quixotismo nas histórias que ouvia. Era um quixotismo de acordo com a nossa natureza: ultrafogoso, resplandecente, tropical, mas capaz de iluminar, por isto mesmo, a infância monótona de qualquer menino tristonho. O dr. Brás, depois da guerra, volta a clinicar. A vida entra no seu ramerrão primitivo. Na família do médico há somente duas transformações: mudança do lar para a rua dos Andradas e o aparecimento de mais uma filha. É figura popular, o pai de Olavo: de elevada estatura, espadaúdo, usa chapéu alto, luvas, bengala, sobrecasaca marrom, que lhe desce até os joelhos, e calças irrepreensivelmente brancas. Possui aspecto solene, de burguês circunspecto, mas apresenta espírito um tanto irônico, um tanto excêntrico. Alimenta um sonho, este homem amante da tradição: quer que o filho também seja médico. Já imaginando Olavo como cultor zeloso da ciência que deu glória à Laënnec, matricula-o na escola do conhecido padre Belmonte. De nacionalidade portuguesa, o sacerdote era um professor velho, tabaquento e carrança. Andava com passos vagarosos, fazendo ranger no soalho as suas botas faiscantes e grossas. Assim que escutavam o ruído áspero do seu calçado, os alunos, de modo rápido, simulavam exagerada aplicação no estudo. Usava, o padre-mestre, ampla sobrecasaca. E sua cabeça, de linhas vigorosas, emergia de um colarinho alto e claro. Exibia cabelos compridos, levemente ondeados, onde brilhavam fios de prata, que lhe caíam sobre os ombros. Os seus olhos, grandes e severos, reluziam atrás dos óculos de aros de ouro. Gostava de andar com as mãos nas costas. Ora concedia afagos na cabeça de um aluno pequenino, ora dava ligeiro piparote nas orelhas de um preguiçoso. Às vezes se detinha, atendendo, numa voz sonora e autoritária, ao pedido de explicação de um aluno. O padre conservava sempre, diante de sua pessoa, no período das aulas, um bolorento compêndio de Raffy e uma enorme palmatória de jacarandá. Segundo esse compêndio, Deus havia criado o mundo no ano 4.138 antes de Cristo. Certo dia Olavo foi chamado à lição e intimado a dizer, de maneira certa, a data da criação do mundo. O filho do dr. Brás titubeia, gagueja, atrapalha-se. E por fim, com muito custo, responde: — 4.136 ... Boca que tal disseste! Houvera apenas um engano de dois anos... Uma ninharia... E no entanto, ó ferocidade pedagógica!, Olavo recebe, como castigo, meia dúzia de bolos. A reprimenda causa-lhe choro, amargura, humilhação, desespero. 34


E ele fica perguntando, a si próprio, por que Deus, sendo a suprema misericórdia, não se teria lembrado de criar o mundo dois anos mais cedo, a fim de lhe poupar a dor e o vexame daqueles bolos. O seu orgulho nunca mais iria esquecer nem perdoar a crueldade absurda de semelhante castigo. Desde então achou que o padre havia praticado um gesto abominável. Este sacerdote incomplacente, de férula em punho, rígido e inteiriço como aprumado monumento megalítico, era homem de poucas letras e de muita crença. Costumava classificar todos os indivíduos que lhe inspiravam desprezo com um simples e arrasador vocábulo: — Mação! Ele não dizia “maçom”, em hipótese alguma, como em geral quase todos dizem. Quando se abespinhava com alguém, só tinha mesmo esta palavra para fulminar os hereges, os vadios, os briguentos, os insubordinados: — Mação, mação! Tal palavra iria gravar-se, de forma indelével, na alma do menino Olavo, enchendo-a de profundo terror. O filho da modesta dona Delfina passará a tremer de susto diante dos símbolos cabalísticos das lojas maçônicas. Terá receio, sobretudo, do “Signo-de-Salomão”, isto é, da estrela de seis lados, cujo triângulo branco simboliza a Entidade Divina, o fogo espiritual, as forças da evolução, e cujo triângulo negro, oposto e complemento do primeiro, representa a criatura humana, os poderes da terra e a evolução regressiva. O significado exato do “Signo-de-Salomão” era ignorado totalmente por Olavo. Ele apenas enxergava algo de misterioso nas duas estrelas entrelaçadas... No colégio os alunos tinham um parlamento mirim, onde discutiam, todas as tardes, na hora do recreio, desde questões metafísicas até regras de gramática. A pequena assembléia contava com um presidente e dois secretários, que eram eleitos de sete em sete dias. E havia, além do mais, um rigoroso regimento interno. Os desmandos de linguagem recebiam, como pena, a expulsão perpétua do infrator. Aqueles fedelhos, mal saídos dos cueiros, tratavam-se por “excelência”, trocando difíceis mesuras e complicados salamaleques. Inúmeras ocasiões o padre Belmonte ia assistir à sessão. Cruzava as mãos sobre a respeitável barriga e, de face avermelhada pelo trabalho da digestão, se punha em estado de êxtase, estupidificado diante daqueles geniozinhos eloqüentes e precoces. Uma tarde — Olavo estava presente — discutiam se Calabar foi ou não foi traidor. Um jacobino de doze anos tecia o panegírico do mulato, porém um adversário, da mesma idade, dava-lhe apartes truculentos. A discussão atingiu tal ponto de acrimônia que o orador esbravejou: — Peço vênia a vossa excelência para lhe declarar que logo mais tenciono puxar-lhe as orelhas! O aparteante, no mesmo tom, respondeu: — E eu declaro a vossa excelência, com todo o respeito devido, que, à hora da saída, pretendo quebrar-lhe a cara! 35


Realmente, no momento da saída, em pleno largo do Rocio, os dois “parlamentares” se engalfinharam, trocando socos e pontapés...1 Olavo foi gago na infância, mas com força de vontade procurou corrigir esse defeito, lendo em voz alta os autores clássicos de sua predileção. Em tenra idade o mundo já lhe parecia mau e hostil. Não encontrava quem pudesse dar-lhe uma explicação do que fosse a vida. As injustiças que ele sofria, “essas pequeninas injustiças que assombram a alma da criança e ficam eternamente doendo na alma do homem”, adquiriam, aos seus olhos, contornos exagerados, fornecendo-lhe a impressão de serem tremendas e monstruosas. Muitas vezes julgava-se mais infeliz do que os escravos, que ele via acorrentados e submetidos a torturas, e do que os burros de carga, que deparava nas ruas, a ofegar sob as selvagens chicotadas. O seu espírito, embora ainda infantil, sofria inquietações, revoltas, desesperos. A existência se lhe afigurava uma coisa sórdida, um ergástulo repugnante, horrível, em que tudo era severo e duro, e sobre a qual pairava, “ameaçadora, numa eterna inclemência, a sombra da negra palmatória do cônego Belmonte”. Ah, o terror que lhe infundia esse instrumento de castigo! Uma ocasião, quando já havia sentido despertar o prurido poético, Olavo compôs uns versos e, sem terminá-los, adormeceu. O padre, descobrindo aquela “falta imperdoável”, aquele “delito infamante”, decidiu castigá-lo com a sua pesada palmatória. Em outra ocasião o sacerdote notou que Olavo quase não freqüentava as missas e que, embora tivesse memória invejável, desconhecia bastante o catecismo. O padre o chamou ao seu gabinete e passou-lhe uma enérgica descompostura. O menino ultra-sensível foi fazer queixa ao pai. Mas o cônego, apesar disso, voltou a repreendê-lo. Desta feita, porém, Olavo retruca: — Senhor padre, eu creio em Deus, sou religioso, mas a questão é que toda vez que ouço o reverendo falar, eu me lembro que infunde mais medo à criança do que propriamente fé. Nessas condições, vou à missa com um olho no Evangelho e outro na palmatória de vossa reverendíssima. Esse menino precoce, de inteligência brilhante e sensibilidade à flor da pele, fica todo atento, entretanto, quando acompanha, à noite, a leitura de folhetins que sua mãe faz em voz alta. Olavo, na escola, vai encontrar um lenitivo para os seus aborrecimentos nos encantadores livros de Júlio Verne. Todos os alunos, aliás, gostavam de ler o escritor francês. Os seus livros passavam de mão em mão. Até na hora do estudo, no grande salão de paredes despidas, Bilac e seus companheiros se refugiavam no universo fabuloso do romancista que iria influenciar o alto destino de homens como Charcot, Lyautey e o almirante Byrd. Enquanto o ventrudo padre Belmonte dormia a sesta na sua larga poltrona, e o bedel Sizenando, apaixonado pelo charadismo, tentava decifrar enigmas e 1

Bilac narrou cenas da sua infância em três livros: Crítica e fantasia, Ironia e piedade, e Últimas conferências e discursos.

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logogrifos, ele, Olavo Bilac, ia contemplando paisagens desconhecidas, correndo perigos inauditos, curtindo frio no Pólo, fome em ilhas desertas, sede devoradora nas infinitas extensões da África... Graças ao criador de Miguel Strogoff, aquela criança sonhadora podia dormir “à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da índia”. E perder-se em florestas virgens, navegar no fundo do oceano, no centro de “vegetações fantásticas e animais imensos”, ouvir o estrondo da queda do Niágara, enjoar-se com as oscilações de um balão “no meio do céu formigante de astros”. O efeito mágico só terminava quando Olavo lia a última linha de qualquer um desses romances. Então ele se via de novo na sala funérea, melancólica, a ouvir o ofego do padre e o andar do bedel maníaco por charadas. Confessaria, depois, que era como um pano de boca a descer “sobre o palco da ilusão, matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento...” Em cada fim de ano surgia, para Bilac, a perspectiva agradável das férias, mas o tédio de ter de suportar o colégio tornava-se um suplício indizível. Mal podia escutar as preleções do mestre. Sentia-se distraído. Deixava vagar o pensamento, olhando, através das janelas da sala de aula, o céu azul e as árvores verdes. O mundo externo lhe falava de liberdade, de folguedos. Enquanto a voz do professor ia arrastando-se, monótona, no ar pesado e adusto, ele, ansioso, contava os dias que ainda tinha pela frente, a fim de entrar na época cor-de-rosa das férias. Quando o mestre percebia, ao cabo de certo tempo, o alheamento dos seus alunos, mandava fechar as janelas e, como castigo, prolongava a soporífera lição. Não foi sem motivo que Raul Pompéia escreveu: “O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.” Inúmeras vezes, ao sair do lar rumo à escola, com os livros na maleta e a alma risonha, prazenteira, Olavo deparava, na rua, com um espetáculo comovente: as procissões de escravos que irrompiam das famigeradas “casas de comissão”. Eram seres maltrapilhos, cobertos de chagas, destinados aos trabalhos rudes do eito. Vários desses infelizes, por serem comedores de terra, carregavam no rosto uma máscara de ferro. Outros, bem velhos, de carapinhas embranquecidas, andavam tortos, aos tremeliques, tendo à cabeça cestos imundos para o serviço do “ganho”. O menino também via molecotes nus, verdadeiros saquinhos de ossos, a sugar, cheios de avidez, seios murchos, sem leite. E Olavo ficava paralisado de surpresa, de assombro.

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